Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3021/23.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO PENAL
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1781.º, AL.ªS A) E D), 1782.º, N.º 1, 1789.º DO CÓDIGO CIVIL, 623.º E 624.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O despacho de arquivamento não serve, só por si, para demonstrar a falsidade dos factos alegados em denúncia criminal.
II – Um contacto de natureza sexual isolado não basta para descaracterizar a inexistência de comunhão de vida.

III – Verificada a separação de facto dos cônjuges, com os seus elementos integrantes, por mais de um ano, segue-se de forma peremptória o decretamento do divórcio.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos: Falcão de Magalhães
Pires Robalo

          

  Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. AA intentou a presente acção contra BB, pedindo que:

- seja decretado o divórcio entre os cônjuges, com fundamento no artigo 1781º alínea a) e d) do Código Civil, e

- determinar-se ainda que os efeitos do divórcio retroajam à data da separação 02/08/2021, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1789º do CC.

            Alegou para tanto, no essencial, que:

            - o A. e a R. casaram entre si em 2013, casamento do qual resultou o nascimento de uma filha, em 2020.

            - depois de viver na Bélgica, o casal decidiu vir para Portugal.

- em 02.08.2021 surgiu a GNR na casa que habitavam, na sequência de uma denúncia por violência doméstica da R. contra o A., tendo a R. e a filha sido acolhidas numa casa abrigo, cuja localização o A. ignorou durante algum tempo.

- a R. acusou o A. de factos falsos, torpes e vis, sem fundamento.

- a partir de certa altura o A. soube onde a R. se encontrava e passou a fazer videochamadas com a filha e a visitá-la.

- a partir de 02.08.2021, A. e R. nunca mais viveram como marido e mulher, não mais partilharam cama e mesa, e separaram por inteiro as suas vidas, mantendo contactos apenas por causa da filha e dos processos pendentes.

- na sequência de actos de familiares da R. na Bélgica, o A. alterou o arrendamento e o acesso à sua conta bancária, deles excluindo a R..

- por ter sido diagnosticada doença grave à menor, para permitir o seu acompanhamento hospitalar em Coimbra e porque à R. cabia o exercício das responsabilidades parentais nas questões de particular importância, o A. e a R. acordaram no regresso da R. e da menor à residência do A. na ....

- o A. e a R. mantiveram-se a comer e a dormir separados um do outro, sendo a coabitação determinada exclusivamente pela situação de doença.

- em 19.01.2022 foi alcançado acordo em processo de promoção e protecção nos termos do qual a menor ficou à guarda do pai, tendo a R. se deslocado naquele dia para a Bélgica, onde vive desde então.

- o A. e a Ré apenas contactam por whatsapp para fazer videochamadas com a menor.

- desde 02.08.2021, A. e R. nunca mais se consideraram no trato entre si como marido e mulher, nem como tal se apresentaram em público, deixaram de viver na mesma casa, de fazer refeições em conjunto, de manter relações sexuais entre si, de cumprir ou partilhar contas em conjunto, contactando-se somente para discutir assuntos relativos à menor.

- não há da parte do A. o propósito de vir a restabelecer a vida conjugal.

- pelo que se encontra verificado o fundamento para o divórcio a que alude o art. 1781º al. a) do CC, assim como configura a factualidade descrita uma violação, por banda da R., dos deveres de respeito a que está adstrita por força do art. 1672º do CC, determinante da ruptura definitiva do casamento, fundamento para o divórcio a que alude o art. 1781º al. d) do CC.

Realizada a tentativa de conciliação, ambas as partes manifestaram o propósito de se divorciarem mas não foi possível obter acordo quanto à regulação das responsabilidades parentais, sendo, por esse motivo, proferido despacho a determinar a notificação da R. para contestar.

Não foi apresentada contestação.

Foi efectuado o saneamento da causa, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi depois proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Desta sentença foi interposto recurso pelo A., formulando as seguintes conclusões:

(…).

Não foi apresentada resposta.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, as questões a tratar são as seguintes:

- avaliar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

            - avaliar, mormente em função daquela impugnação, se existe fundamento para decretar o divórcio entre as partes e, na afirmativa, determinar o momento da separação de facto. 

III. Foram tidos por provados os seguintes factos:

1. Autor e ré casaram a 13 de maio de 2013.

2. CC está registada como filha de AA e de BB e como tendo nascido a ../../2020.

3. Foi proferido despacho de arquivamento no inquérito n.º 132/21...., no qual o autor figurava na qualidade de arguido e se investigava a prática de crime de violência doméstica tendo a ré como vítima, junto a 29 de junho de 2023, e cujo conteúdo dou por reproduzido.

4. No dia 2 de agosto de 2021, surgiu a GNR na casa que habitavam autor e ré, na ..., na sequência de uma denúncia por violência doméstica da ré contra o autor, a apoiar a saída imediata da casa da ré, da filha comum, dos filhos da ré e da sobrinha da ré.

5. A ré e a filha comum foram acolhidas em casa abrigo, entre 2 de agosto e 26 de outubro de 2021.

6. Desde 25 de dezembro de 2022 autor e ré não mais partilharam cama e mesa e não mantiveram relações sexuais.

7. O contacto mantido limita-se aos assuntos e vida da CC

8. Em 25 de outubro de 2021 surgiu uma suspeita de doença grave da filha CC,

9. Tendo a ré e a criança regressado à residência do autor, na ..., a 26 de outubro de 2021, tendo em vista permitir o acesso da criança ao Hospital Pediátrico de Coimbra.

10. Em 19 de janeiro de 2022 a ré deslocou-se para a Bélgica, permanecendo CC com o autor, na ....

E foram considerados não provados os seguintes factos:

a) A ré acusou o autor de factos falsos.

b) Que deu origem ao inquérito referido no facto 3.

c) Entre 2 de agosto de 2021 e até 25 de dezembro de 2022 autor e ré não partilharam cama e mesa, não mantiveram relações sexuais, não cumpriram ou partilharam contas em conjunto.”

IV. 1. O A. começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto.

Cumpriu com mínima suficiência, em termos gerais (sem prejuízo de ponto infra referido), os ónus da impugnação derivados do art. 640º n.º1 e 2 al. a) do CPC, pelo que cabe apreciar, levando em conta que: i. ao impugnante cabe, de acordo com o regime aplicável a esta impugnação, elencar os meios de prova que imponham decisão diversa (art. 640 n.º1 al. b) e 662º n.º1 do CPC), ficando assim subjacente ao regime legal o especial valor demonstrativo exigido da impugnação; que ii. o regime citado não vincula, porém, o tribunal aos meios probatórios indicados pelo impugnante, ficando antes adstrito ao poder-dever de envolver na discussão todos os elementos probatórios disponíveis (v. art. 640º n.º2 al. b), 1ª parte, e 662º n.º1 do CPC), e que iii. esta avaliação assenta numa convicção autónoma do tribunal de recurso (e não numa verificação de erros).

2. O A. impugna a decisão quanto ao ponto 6 dos factos provados e bem assim quanto aos factos tidos por não provados.

Aquele ponto 6 apresenta a seguinte redacção:

Desde 25 de dezembro de 2022 autor e ré não mais partilharam cama e mesa e não mantiveram relações sexuais.

O A. considera que tal facto deveria ter a seguinte redacção:

Desde 02 de Agosto de 2021 autor e ré não mais partilharam cama, mesa e contas e não mantiveram relações sexuais.

Ou, subsidiariamente, deveria ter pelo menos a seguinte redacção:

            Desde 19 de Janeiro de 2022 autor e ré não mais partilharam cama, mesa e contas e não mantiveram relações sexuais 

            Quanto aos factos não provados, têm a seguinte redacção:

a) A ré acusou o autor de factos falsos.

b) Que deu origem ao inquérito referido no facto 3.

c) Entre 2 de agosto de 2021 e até 25 de dezembro de 2022 autor e ré não partilharam cama e mesa, não mantiveram relações sexuais, não cumpriram ou partilharam contas em conjunto.

            No que a estes respeita, o A. considera que deveriam, todos eles, ser dados como provados (embora, naturalmente, no sentido de que a matéria da al. c) estaria contida no facto 6 tal como o A. entende estar provado).

3. Quanto ao ponto 6 dos factos provados, a discórdia assenta essencialmente na data a partir da qual cessaram as relações entre A. e R..

            Ponto em relação ao qual relevam essencialmente o depoimento de parte da R. e as declarações de parte do A. (incluindo a acareação entre eles realizada). O valor probatório legal destes depoimento de parte e declarações de parte não vem impugnado (sendo, ao invés, implicitamente admitido), valor legal que se aceita decorrer do art. 361º do CC para o depoimento de parte quando desfavorável ao depoente (dado o disposto no art. 354º al. b) do CC), e do art. 466º n.º3 do CPC para as declarações de parte e também, por extensão (igualdade de razão), para o depoimento de parte favorável ao depoente[1].

            Assim, partindo do depoimento de parte da R. e das declarações de parte do A., deles decorre, em termos coincidentes (ou seja, sem controvérsia), que:

- A. e R. viveram na ..., como casal, até 02.08.2021, data em que, na sequência de queixa da R., esta foi viver para casa abrigo.

- em virtude de problemas de saúde da filha comum, a R. regressou a casa do A. em 26.10.2021, local onde permaneceu até 19.01.2022, data em que a R. foi para Bélgica, onde estabeleceu a sua vida.

- desde 19.01.2022 e até 25 ou 26 de Dezembro de 2022 não existe notícia de ter ocorrido convivência habitacional ou contactos próximos ou íntimos.

O ponto de discórdia respeita aos eventos ocorridos entre Outubro de 2021 e Janeiro de 2022, e em Dezembro de 2022.

4. Ponto este onde, como se referiu, apenas se pode atender ao depoimento da R. e ás declarações do A., sendo os depoimentos testemunhais irrelevantes ou inconsequentes. Com efeito:

- o depoimento da testemunha DD [mãe do A., cuja residência frequentava e onde por vezes ficava] tem-se por probatoriamente imprestável, nesta parte, sendo inseguro, impreciso e vago (asserção patenteada, por exemplo, pela forma como se mostra incapaz de explicar com clareza a diferença de relacionamento do casal antes e depois de agosto de 2021) e sobretudo parcial (característica que acompanha todo o seu depoimento mas se mostra particularmente evidente quando afirma que a R. tratava mal o filho e, instada a explicitar a afirmação, se seguem silêncios e hesitações, para acabar por referir que chamava nomes que, contudo, não consegue precisar ou explicar).

- a testemunha EE [tia do A., a cuja habitação ia por vezes, embora se reporte essencialmente a contactos mantidos em cafés] não tinha, nos aspectos em discussão, conhecimentos próprios relevantes. Mesmo quando afirma que, após o episódio de Agosto, A. e R. nunca mais estiveram juntos, ou que nunca mais se reconciliaram, limita-se a responder de forma meramente afirmativa a perguntas sugestivas, sendo ainda afirmação com nítido carácter opinativo, sem explicitar factos ou fontes – trata-se, pois, de afirmações sem qualquer valor probatório próprio.

- a testemunha FF [amigo do A., a cuja residência por vezes se desloca, mas sem nunca conhecer a R.] também nenhum conhecimento preciso e relevante demonstrou ter nesta parte (descontando afirmações genéricas e opinativas e sempre na sequência de perguntas sugestivas, sem espontaneidade).

- e o mesmo vale para a testemunha GG [amiga do A.].

Quanto aos demais elementos avulsos que o A. vai invocando, e para além de questões atinentes à atendibilidade de alguns deles nesta sede e fase, são probatoriamente irrelevantes para a questão a decidir.

5. Assim, e partindo dos referidos elementos probatórios atendíveis e no que toca ao primeiro período referido (Outubro de 2021 a Janeiro de 2022), verifica-se que o A. afirma que partilhavam a habitação por causa da filha comum, sem qualquer relação entre ele e a R.. Esta R. também afirma que não eram um casal, que não partilhavam o quarto, mas também refere que mantinham por vezes contactos sexuais, e, no final do seu depoimento, afirmou ainda que ela limpava a casa, cozinhava, ia às compras para todos, lavava a roupa. Mesmo o A., quanto à forma como tomavam as refeições, revelou-se inicialmente bastante ambíguo, só a final tendo, de forma não muito impressiva, afirmado que partilhavam a mesa por causa da filha. Sendo que, como a seguir melhor se explicita, não se encontram razões para desvalorizar decisivamente o depoimento, bem menos comprometido e mais desinteressado, da R.. Deste modo, do que destes elementos probatórios deriva é uma situação ambígua e fractal, um jogo de espelhos onde se partilha e não partilha uma vida comum. Criando assim um espaço de indefinição que impede a formação de uma convicção segura sobre os termos da vivência em comum naquele período. Ou seja, persiste uma dúvida fundada sobre a natureza da situação, dúvida que por duas vias se opõe à pretensão da A. quanto à fixação da data relevante em Agosto de 2021: sem convicção probatória, não se pode fixar o facto, e com dúvida, decide-se contra a parte onerada com o ónus da prova (no caso o A.), como deriva do art. 414º do CPC. Por isso que se não possa afirmar estar demonstrado que após Agosto de 2021 cessou a comunhão conjugal.

Quanto ao segundo período (a partir de 19.01.2022), resulta claro do depoimento de parte da R. que esta, a partir daquela data, foi viver para a Bélgica, retomando aí a sua vida, sem contactos pessoais com o A., e algo semelhante ocorre quanto ao A.. A R. reporta, contudo, um encontro sexual isolado em Dezembro de 2021 (quando esteve em Portugal para ver a filha, contacto ocorrido no dia 25 ou 26, não o conseguindo fixar com certeza). Contacto este cuja ocorrência o A. nega. Ponto este onde se acompanha a sentença recorrida, quanto ao valor mais persuasivo do depoimento da R., o qual se mostrou impressivo, frontal, com relato verosímil e circunstanciado, descrevendo os eventos em termos firmes, expressivos, com emotividade. Em contraste com a posição fria e defensiva do A.. Não se ignora que a negação de um facto, porque mais simples e redutiva, pode tornar a expressão verbal menos impressiva e não propicia tantos desenvolvimentos. Mas a imputação de factos pessoais falsos também tende a gerar emotividade (espanto, choque, incredulidade, ultraje, afronta), enquanto, no caso, a negação surgia reduzida a si mesmo, sem emoção nem explicitação adicional, num tom frio, contido e distanciado (mais próprio de quem está embaraçado e comprometido do que de quem está incrédulo ou ultrajado). Acresce que a R. não teria razão para sustentar o facto, sendo falso, pois se trata de circunstância que não a favorece (nem lhe atribui qualquer mérito ou, ao invés, até a pode vexar) e que atrapalha a também por si assumida intenção de se divorciar. Já a negação do A. corresponde claramente a um interesse próprio, que atrapalha a sua versão e também a sua posição face ao processo. Monta ainda elemento credibilizador da R. que a sentença invoca (o espanto da R. face à negação do A.) que, não tendo sido verbalizado, resultará dos dados visuais inerentes à imediação, e que este tribunal de recuso não pode controlar. Donde se ter por demonstrado que aquele encontro sexual ocorreu.

Daqui se não segue, porém, que, em termos probatórios e factuais, este encontro sexual isolado justifique a fixação do facto provado descrito em 6 nos termos assumidos na sentença recorrida. Repete-se que as partes (A. e R.) acordam, nas suas declarações, na inexistência de convivência (de partilha de cama[2] e mesa) desde Janeiro de 2021. O contacto sexual ocorrido em Dezembro do mesmo ano não contraria esta asserção. Donde existir razão para ter tal como provado (e não como não provado).

E mesmo quanto ao relacionamento sexual, o contacto isolado apurado não pode apagar de todo o longo período prévio sem outros contactos. A realidade factual, sobretudo a realidade relevante para a acção, não se coloca num plano maniqueísta, de tudo ou nada: é variável e multifacetada, conhece graus diferenciados, e a sua tradução no processo deve respeitar as suas variações (embora contidas, se se tratar de facto essencial principal, na matéria invocada na prévia alegação das partes). A reconstituição processual da realidade subjacente ao litígio (a procura de uma verdade judiciária próxima da precisão histórica) postula necessariamente que essa realidade seja adquirida na medida em que se prove, e não apenas na medida em que foi alegada (se nem toda ela se demonstrar). Por outro lado, porque os factos são discutidos na medida em que se relacionam com a hipótese de uma norma, eles não perdem relevo (ou podem não perder relevo) por não se demonstrarem nos termos absolutos alegados: cabe ainda aproximar o que se demonstra da previsão relevante, o que só se alcança descrevendo aquilo que se demonstra, ainda que não coincidente com o alegado (desde que nele contido), para em momento subsequente se poder avaliar o seu relevo no preenchimento da hipótese da norma.

Ora, o que ocorre no caso é que se prova menos que o alegado (a não existência total de contactos é degradada numa não existência parcial, restringindo-se assim a alegação) e tal deve ser levado aos factos provados.

Por fim, e quanto às contas bancárias, não existe prova directa da asserção. A separação existencial, com laivos de conflituosidade, tal como deriva de depoimentos e declarações de parte (ficando implícito no depoimento de parte da R. que, regressada à Bélgica, teve que recomeçar a sua vida), associado ao teor das mensagens juntas aos autos, permitem, com manifesta segurança, inferir que as partes não iriam partilhar contas bancárias (ou que o A., que recebe uma reforma e se afastou da R. – a qual até regressar à Bélgica não trabalhava, como afirmou, - não iria partilhar com aquela os valores depositados).

Assim, o ponto 6 dos factos provados deve ter a seguinte redacção:

Desde 19 de Janeiro de 2022 autor e ré não mais partilharam cama e mesa e contas, e não mantiveram relações sexuais, com excepção do dia 25 ou 26 de Dezembro de 2022, dia no qual tiveram relações sexuais.

6. Em conformidade, a al. c) dos factos não provados deverá ter a seguinte redacção:

Entre 2 de agosto de 2021 e até 19 de janeiro de 2022 autor e ré não partilharam cama e mesa, não mantiveram relações sexuais, não cumpriram ou partilharam contas em conjunto.

7. Impugna ainda o A. a decisão sobre a matéria de facto quando relegou para o elenco dos factos não provados o que se mostra descrito nas al. a) e b): sustenta o A. que se demonstrou que a R. imputou ao A. factos falsos.

Admite-se que, relegada a matéria para os factos não provados, se não descrevam quais os concretos factos que seriam falsos, por não relevarem (embora não seja essa, em rigor, a melhor técnica descritiva). Já a estar provada a matéria em causa, tal descrição (a partir da alegação da PI) deveria ocorrer pois a menção a «factos falsos» constitui uma fórmula genérica vazia de conteúdo relevante: seria uma qualificação, não uma descrição operante, mostrando-se insusceptível de ser valorada do ponto de vista do preenchimento da hipótese da norma mobilizável. Descrição aquela que o A. prescinde de realizar, adoptando antes aquela fórmula vazia – o que poderia ter reflexos na avaliação da impugnação. Sem embargo, e como a demonstração precede a descrição (e assim os efeitos daquela falta de precisão), passa a avaliar-se o mérito da impugnação. 

O único elemento de prova que o A. invoca radica no despacho de arquivamento do inquérito aberto com base em denúncia da R.. E, na verdade, nenhum outro elemento de prova respeita a esta matéria (as testemunhas, aliás não directamente inquiridas sobre a matéria, não tinham dela conhecimento directo, limitando-se a exprimir genéricas opiniões pessoais).

Não é inteiramente exacto ou pacífico o valor probatório a atribuir ao despacho de arquivamento ou ao despacho de acusação (actos semelhantes, embora de conteúdo diverso e sinal contrário), proferidos em inquérito criminal. Ressalvando o respeito justamente devido a posição contrária, tende a recusar-se àquele despacho valor probatório autónomo dos factos subjacentes (ou seja, qualidade probatória bastante para, por si, suportar tais factos)[3].

O despacho de arquivamento constitui um documento autêntico. Mas o especial valor probatório deste tipo de documento só abrange as declarações do seu autor e os factos que este praticou ou percepcionou (art. 371º n.º1, 1ª parte, do CC). O que desde logo exclui os factos imputados ao arguido, que o magistrado do MP não presencia.

O referido art. 371º n.º1, 2ª parte, do CC também estipula que os juízos pessoais do documentador estão sujeitos à livre apreciação da prova. Mas aquele art. 371º n.º1 visa os juízos pessoais do documentador sobre os factos que pratica ou percepciona, enquanto no despacho de arquivamento os juízos pessoais do documentador não visam realmente esse tipo de factos mas antes os meios de prova disponíveis no processo (e cuja produção, aliás e em regra, não realizou). Ou, seja os juízos pessoais do magistrado do MP que poderiam ser avaliados respeitariam à própria valoração da prova (se tal valoração se justifica ou não), já não quanto aos próprios factos. O que coloca a situação fora do âmbito daquela norma civil (que não contempla juízos pessoais sobre dados não factuais, no sentido exposto) – ou, de qualquer modo, a avaliação do juízo pessoal do magistrado do MP sobre meios de prova apenas permite avaliar aquele juízo, e já não avaliar os próprios meios de prova.

Quanto aos factos em discussão (tidos por não demonstrados), o despacho de arquivamento analisa criticamente a prova produzida para, à luz dessa análise, formar uma convicção própria sobre a verificação ou não de tais factos[4]. Convicção esta cuja densidade é, aliás, controvertida, dado o disposto no art. 283º n.º1 do CPP e o seu apelo à noção de «indícios suficientes» (no caso, o despacho de arquivamento até apela ao conceito de «possibilidade razoável», parâmetro inferior ao exigido em julgamento). O despacho já não contém em si, porém, qualquer meio probatório imediato dos factos imputados (para além dos resumos do teor de meios probatórios anteriores ao despacho). Apenas avalia meios de prova que lhe são externos para sustentar a formação de um juízo valorativo sobre eles e, dessa forma, sobre a sua suficiência ou não para demonstrarem (suficientemente) os factos em termos de justificarem a dedução de uma acusação ou o arquivamento do processo. Isto significa duas coisas. Uma, que o despacho de arquivamento não faz prova directa ou sequer mediata quanto aos factos em discussão. Apenas prova a discussão sobre eles estabelecida pelo magistrado do MP. E duas, que admitir que tal despacho faria prova sobre tais factos equivalia a substituir a convicção do tribunal pela convicção daquele magistrado: como o tribunal não avalia as provas, mas a convicção que o magistrado do MP sobre elas formou, seria esta convicção, e não aquelas provas, a sustentar a fixação dos factos (ou, pelo menos, o tribunal não ia avaliar a consistência de meios de prova mas a consistência da avaliação dos meios de prova realizada pelo magistrado do MP). O que é inadmissível: são as provas que são valoradas pelo julgador, e a convicção deste, racionalmente fundada naquelas provas, sustenta a decisão sobre a matéria de facto (em conclusão, art. 607º n.º4 do CPC).

Três notas de regime sustentam esta asserção. De um lado, a utilização do despacho de arquivamento implicava simultaneamente a utilização (ainda que indirecta) dos meios de prova em que o despacho de arquivamento se baseou, meios de prova esses produzidos em processo diferente deste. O que violaria o disposto no art. 421º do CPC, que só permite a utilização de provas produzidas em outro processo se estas estiverem sujeitas a audiência contraditória, o que não vigora no inquérito criminal, em geral não sujeito ao contraditório (a produção de prova não lhe obedece em regra: o arguido não acompanha a investigação e só intervém ou a discute em termos limitados, em casos que a lei elenca[5]). De outro lado, a utilização da convicção (valorada como ajustada ou não) do magistrado do MP colocaria os meios de prova efectivamente produzidos (e por aquele valorados) fora do âmbito da contraditoriedade imposta pelo art. 415º n.º1 do CPC (a parte só podia discutir a convicção do magistrado do MP, não a prova produzida). Por fim, o regime processual previu os casos em que a fixação de factos no processo penal teria relevo no processo civil, regulando-a nos termos dos art. 623º e 624º do CPC, nos quais atende ao valor de caso julgado da sentença proferida (necessariamente assente em julgamento contraditório) para transplantar para o processo civil os factos decorrentes do julgamento criminal, em certos termos[6] - factos que assentam na convicção do julgador perante prova externa ao processo civil mas que foi alcançada com garantias especiais (sobretudo ampla contraditoriedade e garantias processuais específicas). Não parece ajustado a tal regime admitir que avaliação unilateral do MP possa ser usada como elemento probatório (ainda que sem o grau presuntivo que aquele regime contempla), na medida em que a convicção alheia só é valorada no processo civil como efeito do caso julgado judicial (e já não do caso decidido, não judicial).

Assim, baseando-se a posição do A. apenas naquele despacho, não pode proceder a impugnação nesta parte.

8. Como melhor se explicita infra, a separação de facto, enquanto fundamento do divórcio, supõe o propósito de não se retomar a vida em comum (art. 1782º n.º1 do CC).

Trata-se de elemento subjectivo mas com notório sentido factual. O A. alegou essa matéria (v. especialmente art. 29 e 30 da PI) mas ela não foi objecto de apreciação, não constando quer do elenco de factos provados, quer do elenco de factos não provados. Existe pois deficiente decisão sobre a matéria de facto neste aspecto, por desconsideração (omissão) de matéria de facto relevante alegada (por não se ter atendido a tudo o que foi pertinentemente alegado) e, simultaneamente, necessidade de proceder à ampliação dessa matéria de facto, o que pode ser avaliado à luz dos elementos probatórios disponíveis (mesmo oficiosamente), nos termos do art. 662º n.º e 2 al. c) do CPC (sem necessidade de anulação da decisão, remédio este subsidiário).

Ora, o que se verifica é que se demonstra que desde pelo menos 19.01.2022 que o A. não tem o propósito de se reconciliar, o que deriva, de forma articulada, dos depoimentos das testemunhas EE e FF, nesta parte críveis e atendíveis, quando reportam que o A. deixou de considerar a R. como sua mulher, agindo como se ela não fizesse parte da vida dele, em conjugação com a atitude das partes, patenteada nos conflitos que relatam e, em particular, na radical separação vivencial (com a R. a criar um percurso autónomo na Bélgica, sem actos de aproximação do A.). Tudo tendendo a confortar a existência de uma comum e recíproca vontade de separação definitiva.

Assim, deve aditar-se ao elenco dos factos provados o seguinte facto, com o número 11:

Não há, por parte do Autor o propósito de vir a restabelecer a vida conjugal desde pelo menos desde 19.01.2022[7].

Sem necessidade, no caso, de prévia discussão perante as partes dado, de um lado, se tratar de facto que o A. alegou e, de outro lado, atenta a posição da R., que não interveio activamente na acção (tirando a participação tendencialmente obrigatória na tentativa de conciliação).

9. Os factos relevantes são, assim, os seguintes:

1. Autor e ré casaram a 13 de maio de 2013.

2. CC está registada como filha de AA e de BB e como tendo nascido a ../../2020.

3. Foi proferido despacho de arquivamento no inquérito n.º 132/21...., no qual o autor figurava na qualidade de arguido e se investigava a prática de crime de violência doméstica tendo a ré como vítima, junto a 29 de junho de 2023, e cujo conteúdo dou por reproduzido.

4. No dia 2 de agosto de 2021, surgiu a GNR na casa que habitavam autor e ré, na ..., na sequência de uma denúncia por violência doméstica da ré contra o autor, a apoiar a saída imediata da casa da ré, da filha comum, dos filhos da ré e da sobrinha da ré.

5. A ré e a filha comum foram acolhidas em casa abrigo, entre 2 de agosto e 26 de outubro de 2021.

6) Desde 19 de Janeiro de 2022 autor e ré não mais partilharam cama e mesa e contas, e não mantiveram relações sexuais, com excepção do dia 25 ou 26 de Dezembro de 2022, dia no qual tiveram relações sexuais.

7. O contacto mantido limita-se aos assuntos e vida da CC

8. Em 25 de outubro de 2021 surgiu uma suspeita de doença grave da filha CC,

9. Tendo a ré e a criança regressado à residência do autor, na ..., a 26 de outubro de 2021, tendo em vista permitir o acesso da criança ao Hospital Pediátrico de Coimbra.

10. Em 19 de janeiro de 2022 a ré deslocou-se para a Bélgica, permanecendo CC com o autor, na ....

11) Não há, por parte do Autor o propósito de vir a restabelecer a vida conjugal desde pelo menos desde 19.01.2022[8].

10. E têm-se por não provados os seguintes:

a) A ré acusou o autor de factos falsos.

b) Que deu origem ao inquérito referido no facto 3.

c) Entre 2 de agosto de 2021 e até 19 de janeiro de 2022 autor e ré não partilharam cama e mesa, não mantiveram relações sexuais, não cumpriram ou partilharam contas em conjunto.

11. Embora num momento final, após discutir os dados atinentes ao divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (de que quer prevalecer-se), o A. invoca a existência de vontade de ambas as partes em se divorciarem, tendo sido reguladas provisoriamente as responsabilidades parentais quanto à filha menor, para requerer que se homologue o divórcio (os demais aspectos tinham sido já acordados). O divórcio pode ser alcançado a partir da vontade concordante das partes. No caso, essa vontade alcançou-se na tentativa de conciliação, tendo sido regulados, por acordo, os aspectos exigidos por tal divórcio consensual com excepção do que respeitava à regulação das responsabilidades parentais da filha menor. Nesse momento processual, foi proferido despacho que, invocando a circunstância de não ter sido possível a obtenção da totalidade dos acordos necessários para a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, determinou a notificação da ré para, no prazo de 30 dias, contestar. Assim, ainda que se admitisse que aquela vontade das partes poderia converter, naquele momento, o divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento (sem necessidade de se alcançar o acordo suposto, cabendo ao tribunal realizar a regulação em falta), o relevo daquela vontade, para alcançar este efeito, foi afastado, logo após a sua manifestação, por despacho, o qual não foi impugnado. E pese embora a conversão do divórcio possa ocorrer em qualquer fase do processo, essa conversão depende de uma vontade actualizada manifestada nesse sentido – art. 931º n.º5 do CPC e 1779º n.º3 do CC. Ora, como o relevo da vontade materializada foi judicialmente afastado após a sua manifestação, e como tal vontade não foi agora manifestada pela R., não é possível considerar aquela pretensão.

           

            12. De acordo com os art. 1773º n.º3 e 1781º do CC, o divórcio, sem consentimento de um dos cônjuges (litigioso[9]), só pode ter por fundamento:

a) a separação de facto por um ano consecutivo;

b) a alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;

c) a ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;

d) quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

13. Não é líquido que este sistema consagre um modelo singular (divórcio como constatação da ruptura do casamento) ou um modelo misto (em que ainda intervém o divórcio como remédio). Seguro é que as alíneas a) e d) do art. 1781º do CC correspondem a «um sistema de divórcio-constatação da ruptura do casamento, em que a causa do divórcio é a própria ruptura em si, independentemente das razões que a tenham determinado», ou do cônjuge que a tal ruptura tenha dado causa, constituindo a aludida al. a) uma hipótese específica e a al. d) uma causa geral, ampla mas subsidiária (de que a al. a) constitui especialidade).

14. A hipótese da al. d) do citado art. 1781º não está, em termos autónomos[10], verificada por não terem ficado provados os factos em que o A. a suportava (correspondentes à falsidade dos dados de facto constantes de denúncia criminal).

15. Resta a hipótese da al. a) da mesma norma, nos termos da qual, atentos também os termos do art. 1782º n.º1 do CC, o divórcio assenta nos seguintes requisitos:

- existência de separação de facto, e

- uma sua duração (mínima) de um ano consecutivo.

16. Quanto à separação de facto, esta ocorre quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges (elemento objectivo) e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer (elemento subjectivo) (art. 1782º n.º1 do CC).

A comunhão de vida corresponde, por sua vez, à partilha de um projecto vivencial comum, implicando uma comunhão pessoal e económica, reflectida nos deveres conjugais legalmente delineados (art. 1762º do CC). A existência de coabitação constitui justamente manifestação imediata e normal (embora não necessária) da comunhão de vida inerente ao casamento. Asserção esta a compreender em termos amplos e elásticos, porém, dadas as diferentes formas que esta comunhão pode envolver, muitas vezes por razões exógenas aos cônjuges.

No caso, verifica-se que desde 19.01.2022 que o A. e a R. não partilham cama e mesa, nem contas, nem mantiveram relações sexuais, à excepção de um dia (25 ou 26 de Dezembro de 2022). Tal corresponde a uma separação existencial integrável naquela noção de separação de facto: inexiste comunhão de vida. A existência de um contacto sexual, isolado e diluído num período muito amplo, e desligado de outros factos atinentes à comunhão de vida (e assim sem integrar tal comunhão), não exclui a exposta asserção. A separação pode qualificar-se como contínua, sem interrupção.

Não existe, pois, comunhão de vida entre os cônjuges.

Quanto ao propósito de não restabelecer a comunhão de vida, analisa-se num elemento volitivo (uma «disposição interna») que «complementa e esclarece» o elemento objectivo, pois só em função deste propósito se pode afirmar que a comunhão de vida cessou[11]. Este elemento subjectivo é que revela assim, em último termo, o fracasso final ou definitivo do projecto de vida comum, assente na vontade determinante do cônjuge.

No caso, está directamente demonstrado este propósito, e por referência ao período da separação (ou pelo menos por mais de 1 ano), estando assim verificado este requisito mesmo de acordo com a solução mais exigente (mais próxima do regime legal) – o acto de propositura da acção, jurisprudencialmente aceite de forma corrente como manifestação daquele propósito, vale no caso como expressão da profundidade do propósito demonstrado, com o sentido de se tratar de manifestação final de um propósito anterior, sólido e consolidado.

Existe, pois, separação de facto.

Por fim, esta separação de facto (envolvendo os dois elementos, objectivo e subjectiva), durava, no momento da instauração da acção (28.06.2023), há mais de 1 ano consecutivo. 

Estão, pois, verificados os pressupostos legais do divórcio, por configurada a situação correspondente ao art. 1781º al. a) do CC, a qual, por peremptória (dispensando avaliação adicional), conduz ao decretamento do divórcio.

17. Quanto ao início da separação de facto, no quadro do art. 1789º n.º2 do CC, deve fixar-se em 19.01.2022.

18. Este tipo de acção tende a apelar ao regime do art. 535º n.º1 e 2 al. a) do CPC e assim à imputação das custas ao A. quando o réu i. não contestou a acção, o que está verificado, e ii. não lhe deu causa. Este segundo requisito ocorre quando o autor esteja a exercer um direito potestativo, o que também se verifica, e esse direito potestativo não tenha origem num facto ilícito praticado pelo réu. Quanto a este elemento, o divórcio a decretar tende a pressupor um ilícito conjugal (endofamiliar), por corresponder à violação ao menos do dever de coabitação (art. 1672º e 1673º do CC) [sendo para o efeito irrelevante a discussão sobre a natureza deste dever pois basta ao regime uma ilicitude formal[12], baseada em facto próprio das partes, sendo também irrelevante o facto de o divórcio operar objectivamente pois tal significa apenas que o divórcio não radica especificamente na ilicitude, embora a pressuponha (fica diluída na ruptura que causa e releva), e dispensa o juízo de censura (culpa)]. Ignora-se, face aos factos alegados e tidos por provados (e apenas a estes se pode atender), a quem pode ser atribuída a iniciativa da violação daquele dever de coabitação[13]. Assim, estão ambas as partes em falta, sendo o ilícito bilateral (assentando em facto próprio de ambas as partes). Neste sentido, a R. deu causa à acção, no sentido do art. 535º n.º2 al. a) do CPC, mas, simultaneamente, também o A. lhe deu causa, estando numa situação paralela ou simétrica (mesmo para os termos do art. 527º n.º1 do CPC). O que justifica que, numa compreensão teleológica do regime (porque o direito potestativo assenta em facto comum, estando parcialmente verificada a hipótese e parcialmente não verificada), as custas sejam, na acção e no recurso, suportadas por ambas as partes, por metade.

V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência,

- decreta-se o divórcio entre AA e BB.

- fixa-se o início da separação de facto em dezanove de Janeiro de dois e vinte e dois.

Custas, na acção e no recurso por ambas as partes, na proporção de metade.

Notifique-se.

Oportunamente, cumpra-se o disposto no art. 78º n.º1 do Código do Registo Civil.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).     

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Por razões que a economia da decisão, no caso, não justifica desenvolver.
[2] O facto provado em causa distingue a partilha da cama da existência de relações sexuais, o que se pode aceitar: aquele é momento de comunhão pessoal que pode exceder o mero relacionamento sexual (embora a comunhão de cama seja comummente associada também a este relacionamento sexual).
[3] Diferente seria os eu valor acessório, corroboratório ou indiciário, que não está em causa.
[4] Nos casos, como o vertente, em que avalia o mérito da investigação do ponto de vista da verificação, ou não dos factos imputados.
[5] V.g. o direito de presença do art. 61º n.º1 do CPC (de alcance limitado, sem envolver exercício do contraditório pois permite conhecer mas não debater), ou as declarações para memória futura (art. 271º do CPC).
[6] A título de presunção.
[7] O momento temporal alegado era mais amplo: art. 29 da PI.
[8] O momento temporal alegado era mais amplo: art. 29 da PI.
[9] Qualificação que o legislador, talvez inadvertidamente, manteve no nome da subsecção III, onde se insere a norma citada, e no art. 1829º n.º2 al. b) do CC.
[10] Também se discute se a separação de facto por prazo inferior a um ano pode ser enquadrada nesta hipótese mas a questão ficou prejudicada pelo enquadramento factual nesta sede fixado.

[11] Permite assim distinguir a separação de facto das hipóteses em que existe comunhão de vida sem vivência de facto em comum e em que não existe separação de facto, ou em que existe coabitação, mas sem comunhão (v. Sobre a separação de facto como fundamento do divórcio, e algo mais - Nuno de Salter Cid, textos de Direito da família para Francisco Pereira Coelho, 2016, pág. 54/55).
[12] No caso, contrariedade à norma contratualmente assumida, supondo ainda o dever genérico assim assumido de manter a comunhão de vida. Aliás, por estarem em causa incumprimentos importantes dos deveres conjugais é que faz acreditar, segundo a lei, que o vínculo matrimonial se rompeu (P. Coelho / G. Oliveira).
[13] O facto de a R. ter saído de casa em circunstâncias específicas em data anterior à que corresponde ao início da separação de facto não é relevante, justamente por não se integrar na separação de facto que sustenta o divórcio.