Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
672/23.8T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CASO JULGADO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE TRANSAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – MOIMENTA DA BEIRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1248.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 7.º, 8.º, 278º, N.º 1, AL. E), 542.º, N.º 1, 576.º, N.º 3, 577.º, AL. I), 578.º, 580.º,581.º, 619.º, 628.º, 696.º A 702.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. No instituto do caso julgado, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior.

2. Uma sentença homologatória de uma transação, condenando ou absolvendo as partes nos termos acordados, é suscetível de constituir caso julgado material e, consequentemente, de produzir o efeito positivo ou negativo do caso julgado.

3. A autoridade de caso julgado opera positivamente na definição do direito, relevando em matéria de mérito da ação, contribuindo para a procedência ou para a improcedência do pedido.

4. Litiga de má fé quem deduz pretensão que sabia contrária a sentença judicial, não impugnada, que o condenou nos termos do acordo a que se vinculou.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:          *

Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Fernando Monteiro
              Carlos Moreira

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           I. Em 28.11.2023, AA instaurou a presente ação declarativa comum contra BB, pedindo, a título principal, a declaração da nulidade da partilha do património conjugal realizada no âmbito do procedimento de partilha ...11 e consequente cancelamento de registos efetuados com base na mesma [“a) e b)”]; caso assim se não entenda, que seja decretada a perda do benefício obtido com o enriquecimento sem causa por parte da Ré, à custa do A., condenando-se a mesma a restituir ao A. metade do valor dos bens com que indevidamente se locupletou [“c)”].

            Alegou, em resumo: a referida partilha é simulada, resultando de um acordo entre A. e a Ré (à data, casados), que, em virtude de o A. ter tido uma relação extraconjugal da qual surgiu um filho, quiseram evitar que o A. fosse obrigado, com execução do seu património, ao pagamento de uma pensão de alimentos a esse filho nascido fora do casamento; existe princípio de prova da simulação.

            A Ré contestou, invocando, além do mais, a exceção do caso julgado [alegando que a propriedade de um dos prédios partilhados foi judicialmente reconhecida, por sentença transitada em julgado no processo 1547/21...., onde se homologou transação onde o A. (ali Réu), reconheceu a propriedade do prédio em causa e se obrigou a entregá-lo à aqui Ré (ali A.); a causa de pedir das ações é a mesma (a partilha), havendo identidade de sujeitos e de pedidos; havendo o reconhecimento da propriedade de um dos prédios não pode o A. pretender, agora, que esse reconhecimento seja desfeito], a prescrição do alegado direito à restituição por enriquecimento sem causa e a incompetência em razão da matéria do tribunal, com a consequente absolvição da instância ou do pedido.

           Afirmada a competência do tribunal, o Tribunal a quo, por saneador-sentença de 30.10.2024, absolveu a Ré dos pedidos principais, absolveu a Ré da instância quanto ao pedido subsidiário e condenou o A., como litigante de má fé, na multa de duas UC.

            Dizendo-se inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - O objeto em causa nos presentes autos e nos autos 1547/21...., não consubstancia caso julgado, na sua função positiva ou negativa, nada obstando ao prosseguimento da presente ação.

            2ª - É errada a decisão de julgar verificada a exceção perentória da autoridade do caso julgado e de absolver a recorrida quanto aos pedidos de declaração de nulidade da partilha consubstanciada no Procedimento de partilha do património conjugal n.º ...11 e de cancelamento de todos e quaisquer registos que houvessem sido efetuados com base na mesma.

           3ª - O princípio orientador que permite saber se determinada ação é idêntica a outra, é o da existência ou inexistência da possibilidade de duas ou mais decisões judiciais se poderem contradizer na prática.

           4ª - Não ocorre contradição entre a presente ação e a do processo n.º 1547/21.....

           5ª - No processo n.º 1547/21...., o tribunal não conheceu do mérito relativamente a parte do pedido ali formulado pelo réu, aqui recorrente.

           6ª - O recorrente, no n.º 1547/21.... réu, com fundamento na simulação, deduziu pedido reconvencional onde pretendeu ver declarada a nulidade do divórcio e da partilha outorgada em 13.7.2011 no Procedimento de partilha do património conjugal n.º ...11 que correu termos na Conservatória de Registo Civil ..., com o consequente cancelamento dos registos posteriormente efetuados com base na mesma.

           7ª - No processo n.º 1547/21...., o tribunal não admitiu os pedidos, por julgar verificada a exceção da incompetência material para a sua apreciação.

           8ª - O réu interpôs recurso de apelação da decisão de julgar verificada a exceção da incompetência material.

           9ª - E o tribunal veio a considerar prejudicado o conhecimento do recurso de apelação autuado em separado.

           10ª - Aquele tribunal não chegou a conhecer do pedido de declaração de nulidade da partilha.

           11ª - Não existiu decisão de mérito na ação n.º 1547/21...., relativamente aos pedidos principais formulados na presente ação.

           12ª - O instituto do caso julgado, exerce uma função positiva e uma função negativa, sendo a função positiva exercida da autoridade do caso julgado e a função negativa através do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causa.

           13ª - Há que declarar a autoridade do caso julgado, se resultar demonstrado pelos elementos factuais e processuais que a relação material controvertida que constitui a causa de pedir, já foi factual e juridicamente alegada e conhecida noutra ação.

           14ª - A autoridade do caso julgado obsta à apreciação do mérito da causa e por isso tem-se entendido que configura uma exceção dilatória inominada, que leva à absolvição da instância.

            15ª - Os elementos factuais e processuais da presente ação e da ação n.º 1547/21...., não são idênticos.

           16ª - Na presente ação, é invocada a simulação como fundamento para o pedido de nulidade da partilha do património conjugal, relacionado no procedimento de partilha n.º ...11.

            17ª - Na ação n.º 1547/21...., foi invocado o reconhecimento da propriedade da Ré sobre o imóvel relacionado sobre a verba n.º 5 do aludido procedimento de partilha.

           18ª - Na ação n.º 1547/21...., foi deduzida reconvenção, onde foi invocada a simulação e formulado pedido de declaração de nulidade da partilha.

           19ª - Na ação n.º 1547/21...., não foi admitido o pedido reconvencional, não chegando a ser discutida a simulação do negócio de partilha.

           20ª - Não pode, por via da autoridade do caso julgado, afastar-se a possibilidade de discutir a subsistência da partilha, por via da simulação.

           21ª - A relação definida pela decisão n.º 1547/21...., apenas respeita ao imóvel relacionado sob a verba 5 do procedimento de partilha n.º ...11.

            22ª - Não resulta ofensa à autoridade do caso julgado quanto às verbas 1 a 4 relacionadas no procedimento de partilha n.º ...11, cuja subsistência, por via da simulação, poderá ser discutida nos presentes autos.

           23ª - O recorrente juntou como princípio de prova certidões emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira dos anos de 2015 e 2016, que provam que as Declarações de IRS relativas a esses anos, foram apresentadas em conjunto por recorrente e recorrida.

           24ª - O tribunal não considerou como princípio de prova as certidões da Autoridade Tributária e Aduaneira que provam que recorrente e recorrida usufruíam do património comum e partilhavam os respetivos rendimentos.

           25ª - A decisão de julgar verificada a exceção, perentória, da autoridade do caso julgado e de absolver a recorrida, traduz-se numa clara e inequívoca “não decisão”, numa incontornável e inadmissível omissão da realização da justiça material, com consequências intoleráveis na esfera jurídica do recorrente.

           26ª - O que constitui uma intolerável, injusta e inadmissível violação do direito de acesso à justiça, consagrado no art.º 20º da CRP.

           27ª - Violou a sentença recorrida, por erro de aplicação, o disposto nos art.ºs 576º, 577º, 580º, 581º e 619º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            28ª - Subsidiariamente o recorrente pediu que fosse decretada a perda do benefício obtido com o enriquecimento sem causa por parte da recorrida, à sua custa, condenando-se esta a restituir-lhe metade do valor dos bens com que indevidamente se locupletou em virtude de tal enriquecimento.

           29ª - O tribunal julgou verificada a exceção do caso julgado e decidiu absolver a ré da instância quanto ao pedido subsidiário, por considerar estar em causa a repetição da causa desenvolvida no processo 1547/21.....

           30ª - Na constância do matrimónio, recorrente e recorrida adquiriram diversos bens móveis e imóveis com dinheiro comum.

            31ª - A recorrente não efetuou o pagamento do valor declarado no Procedimento de partilha, a título de tornas.

            32ª - O valor das tornas era manifestamente inferior ao valor real dos imóveis.

            33ª - O património da recorrida, sem qualquer causa, enriqueceu com a propriedade total dos imóveis relacionados no procedimento de partilha.

           34ª - No procedimento de partilha foi atribuído às verbas a partilhar, o valor global de € 30 337,89, muitíssimo inferior ao seu valor real, considerando estarmos perante 5 (cinco) imóveis, dois deles com a natureza de prédios mistos.

           35ª - Dadas as caraterísticas dos dois imóveis destinados a habitação, designadamente o que constitui a residência da recorrida, o seu valor de mercado, à data, já ascenderia a centenas de milhares de euros.

           36ª - A recorrente, na ação n.º 1547/21...., atribuiu ao imóvel relacionado sobre a verba n.º 5 o valor de € 58 946,29, quando no procedimento de partilha lhe havia atribuído o valor € 138,49.

            37ª - O património da recorrida, sem qualquer causa justificativa, enriqueceu com a propriedade total dos imóveis relacionados sob as 5 (cinco) verbas do procedimento de partilha.

            38ª - Cabe à recorrida o direito a metade do valor real dos bens; caberia ao recorrente o direito a metade do valor real dos bens.

           39ª - Resulta enriquecimento sem causa da recorrida, na exata medida do empobrecimento do recorrente.

           40ª - Quanto ao imóvel relacionado na verba n.º 5 do procedimento de partilha, o património da recorrida, sem qualquer causa justificativa, enriqueceu pelo correspondente a metade do seu real valor de mercado.

           41ª - Nos autos do processo 1547/21...., apenas se discutiu o reconhecimento da propriedade sobre o imóvel relacionado na verba n.º 5 do procedimento de partilha; estão excluídos do processo, os imóveis relacionados sobre as verbas 1 a 4.

           42ª - O conhecimento da existência de enriquecimento sem causa por parte da recorrida, à custa do empobrecimento do recorrente, não fica prejudicado pela transação.

           43ª - Não se verifica a exceção do caso julgado quanto ao pedido subsidiário formulado pelo recorrente.

           44ª - Violou a sentença recorrida, por erro de aplicação, o disposto nos art.ºs 580º, 581º e 619º n.º 1 do CPC.

           45ª - Inexiste conduta processual do recorrente que possa subsumir-se aos pressupostos da litigância de má fé.

            46ª - O recorrente vem tentar fazer valer um direito que entende ter, qual seja, a anulação de negócio de partilha simulado.

           47ª - A nulidade foi invocada nos autos do processo n.º 1547/21...., não foi objeto de conhecimento por parte do tribunal, que se absteve de conhecer tal pedido.

           48ª - A nulidade do contrato, por simulação, é, sempre, de conhecimento oficioso do tribunal, por razões de interesse público (art.ºs 240º, 242º e 286º do Código Civil/CC), apenas se salvaguardando as situações de proteção de terceiros de boa fé (art.º 243º do CC).

           49ª - O recorrente atua na defesa convicta e séria de uma posição, consciente de que a sua pretensão é legítima.

           50ª - Numa perspetiva meramente empírica, a conduta processual de má fé implica que alguém olhe para um processo e fique chocado com a conduta de uma ou várias partes, concluindo que é inaceitável a submissão de alguém a um processo judicial.

           51ª - Chocante será a verificação do enriquecimento sem causa da recorrida, na exata medida do empobrecimento do recorrente.

           52ª - O recorrente pretende fazer valer um direito que entende ter e pretende provar – anulação de negócio de partilha por ter sido simuladamente celebrado.

            53ª - A sanção por litigância de má fé apenas deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme aos princípios da boa fé e da lisura processuais.

            54ª - A litigância de má fé só é censurável se na dedução da sua pretensão, as partes não ignoravam a falta de fundamento dos factos alegados.

            55ª - O recorrente age na defesa convicta de uma posição, não se vislumbrando no seu comportamento uma atuação desconforme ao respeito devido ao tribunal ou à parte contrária.

           56ª - Violou a sentença recorrida, o disposto no art.º 542º do CPC.

            57ª - Deverá a decisão recorrida ser revogada, ordenando-se o prosseguimento da ação, nos termos referidos e com as legais consequências.

            A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir: a) se ocorrem as exceções do caso julgado, máxime, enquanto exceção dilatória (pedido subsidiário) e figura da autoridade do caso julgado (pedidos principais); b) litigância de má fé.


*

           II 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:           

            1) A Ré instaurou, em 20.4.2021, ação contra o A., que correu termos sob o n.º 1547/21...., no Juízo Central Cível ..., na qual formulou, além do mais, os seguintes pedidos: a. Ser reconhecida a posse e a propriedade plena da autora sobre o prédio misto sito em ..., ..., freguesia ..., concelho ..., composto por prédio urbano constituído por prédio total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, afeto a habitação, inscrito na matriz sobre o artigo ...53 e prédio rústico composto por cultura, mato, rochas, inscrito na matriz sobre o artigo ...91 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com a ficha n.º ...09, registado a seu favor; b. Ser o réu condenado a reconhecer à autora o direito de propriedade sobre o referido prédio; c. Ser o réu condenado a restituir à autora referido imóvel; d. Ser o réu condenado a restituir à autora todos os bens móveis pertença da autora e que se encontram no interior do imóvel.

           2) O A., ali Réu, contestou e deduziu pedido reconvencional pedindo a declaração da nulidade do divórcio e da partilha subsequente e, subsidiariamente, o reconhecimento da sua própria propriedade sobre o prédio, por usucapião e ainda, subsidiariamente, a perda do beneficio do enriquecimento sem causa da Ré, ali A..

            3) Por despacho proferido a 05.6.2023, em sede de audiência prévia, foi rejeitada a reconvenção no que concerne ao pedido de declaração de nulidade do divórcio e da partilha subsequente, por se ter aquele Tribunal declarado incompetente, mas admitidos os pedidos de reconhecimento da sua própria propriedade sobre o prédio, por usucapião e ainda, subsidiariamente, a perda do beneficio do enriquecimento sem causa da Ré, ali A..

           4) Na audiência de julgamento, A. e Ré (ali Réu e A.), alcançaram transação nos seguintes termos:[1]

           “1 - O réu reconhece a propriedade plena da autora relativamente aos bens que identifica na Petição IniciaI como sendo seus e, bem assim, que se encontra instalado no referido prédio misto um posto de abastecimento de combustível com dependências afetas a essa atividade, concretamente, estabelecimento de café e todas as demais edificações que nele se encontrem instaladas, incluindo um armazém melhor identificado no relatório pericial.

           2 - Nesse pressuposto, o réu obriga-se a entregar à autora até ao dia 31/12/2023 todos os bens referidos na cláusula anterior, fazendo-o a título pessoal e enquanto legal representante e em representação da sociedade A..., Lda. (que atualmente explora o estabelecimento comercial de venda de combustíveis no referido posto de abastecimento), com exceção do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...53, relativamente ao qual conservará o direito de habitar enquanto for vivo, sem possibilidade de arrendamento.

           3 - Por seu lado, obriga-se a autora a pagar ao réu a quantia total de € 40 000 (quarenta mil euros), que será entregue ao réu no momento da referida entrega dos bens e em simultâneo, devendo fazê-lo por meio de cheque visado ou bancário.

           4 - Mais acordam que, até ao momento da entrega efetiva dos bens à autora a sociedade gerida pelo réu formalizará o necessário trespasse do estabelecimento comercial para a mesma ou para entidade por esta a indicar, acordando o valor de um euro para o trespasse.

           5 - Mais fica acordado que o réu permitirá que a autora, através do seu mandatário, visite o estabelecimento ou encaminhe terceiros interessados para o visitar.

           6 - Mais se obriga o réu a manter o estabelecimento nas condições de funcionamento e conservação que existem na atualidade, permitindo à autora, através do seu mandatário, se assim o desejar, que registe fotograficamente as descritas condições.

            7 - Mais declara o réu aceitar restituir à sua filha CC todos os bens da propriedade desta que se encontrem no prédio urbano onde habita, devendo para tal o ilustre mandatário da autora deslocar-se ao local com o ilustre mandatário do réu para proceder à identificação e recolha de tais bens.

            8 - Da presente transação fica excluído o trator da marca FIAT, identificado no artigo 30º da Petição Inicial.

           9 - Mais acordam, em diligenciar pela instalação de um novo contador do consumo de eletricidade para o posto de abastecimento de combustível, em data anterior à acordada entrega de bens, sendo todas as despesas inerentes a tal instalação suportadas pela autora BB.

            10 - Custas em partes iguais, prescindindo reciprocamente das custas de parte.”

           5) Foi proferida sentença homologatória da transação, nos seguintes termos: “Nos presentes autos, onde é Autora BB e Réu AA, vieram as partes transigir sobre o objeto da causa, nos termos supra. / A transação apresentada afigura-se válida, quer pelo seu objeto, pela natureza disponível dos direitos em questão e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, dispondo os ilustres mandatários das partes de poderes especiais para transigir, estando ainda presente a Autora e o Réu. / Deste modo, atenta a previsão dos art.ºs 283º, n.º 1 e 2, 284º, 290º, n.º 1 e 4, do Cód. Proc. Civil, homologo, pela presente sentença, a referida transação, cujo conteúdo aqui dou por reproduzido, condenando e absolvendo nos seus precisos termos. / Em consequência, declaro extinta a presente instância, nos termos previstos na al. d), do art.º 277º do Cód. Proc. Civil, ficando prejudicado o recurso de apelação autuado em separado. / Custas pela forma acordada. / Valor: € 95 200, fixado por despacho proferido em 05.6.2023. / Registe e notifique, arquivando oportunamente”.

            2. Releva ainda:[2]

            a) Na ação aludida em II. 1. 1), a Ré (aí A.) invocou ser “dona e legítima possuidora do prédio misto” em causa, que lhe foi adjudicado “por procedimento de partilha do património conjugal subsequente ao processo de divórcio que correu termos pela Conservatória de Registo Civil ... com o n.º ...11” (divórcio decretado, em 08.7.2011, na Conservatória de Registo Civil ...; partilha realizada em 13.7.2011, na mesma Conservatória), e, ainda, nomeadamente, que o dito prédio está registado em seu nome e que sempre o teria adquirido por usucapião, em razão da factualidade indicada na petição inicial (p. i.).

           b) Na contestação/reconvenção referida em II. 1. 2), o A. (aí Réu) afirmou, designadamente: A. e Réu dissolveram formalmente o casamento no dia 08.7.2011; a A. nada pagou ao Réu a título de tornas, nem efetivamente houve qualquer alteração da situação patrimonial relativa aos bens do casal; A. e Réu continuaram a fazer vida em comum, como se o casamento nenhuma alteração houvesse sofrido; quer o divórcio por mútuo consentimento decretado entre A. e Réu quer a celebração de escritura de partilha e posteriores registos de aquisição efetuados em nome apenas da A., foram realizados de comum acordo pelas partes, apenas com o intuito de que o património “comum” do casal não fosse “beneficiar” o filho nascido fora do casamento, pretendendo-se assim salvaguardar tudo o que haviam adquirido na constância do seu relacionamento para as filhas do casal.

            c) Replicando, a Ré (aí A.) veio a concluir pela improcedência da reconvenção e como na p. i., aduzindo, designadamente: o divórcio entre o reconvinte e a reconvinda ocorreu efetivamente em 2011 e a partilha correspondeu à efetiva divisão dos bens comuns do casal extinto; o reconvinte recebeu as tornas que lhe eram devidas; desde a partilha que a reconvinda vem utilizando o imóvel (em causa) como coisa unicamente sua, dele retirando as suas utilidades.

           d) No despacho mencionado em II. 1. 3) foi identificado o objeto do litígio («Direito de Propriedade reivindicação / Usucapião e Enriquecimento sem causa»), foram enunciados os temas da prova («- Da propriedade do bem imóvel descrito no art.º da P. I.; - Da ocupação pelo Réu do dito bem imóvel; - Da propriedade dos bens móveis descritos em 30, da P. I.; - Da posse, pelo Réu, dos bens móveis descritos em 30, da P. I.; - Do enriquecimento sem causa da Autora à custa do Réu.»), sem reclamações, e designou-se data para realização da audiência de julgamento (24.10.2023).
           e) Na p. i. da presente ação, alegou-se, nomeadamente (sem prejuízo do indicado em I., supra): após o divórcio de 08.7.2011 e o Procedimento de Partilha do Património Conjugal outorgado em 13.7.2011 - que não corresponderam à vontade real e efetiva de A. e Ré -, estes continuaram a fazer vida em comum, partilhando cama, mesa e habitação, mantendo-se a relação entre o casal nos exatos termos aos ocorridos antes da dissolução formal do casamento, e continuaram a usufruir do património comum, designadamente, dos imóveis formalmente partilhados.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

           Na situação em análise, cremos, não resta alternativa ao que decorre dos articulados das ações e da transação alcançada na ação anterior, homologada por sentença transitada em julgado.   

           O A. intentou a presente ação volvidos 35 dias, a contar da sentença (e do acordo obtido em audiência de julgamento).

            Porém, a realidade jurídica que a antecedeu, demonstrada nos autos e que envolveu as partes (além do mais, integrando matéria já julgada), repercute-se no tempo presente e na ação sequente, reclamando adequada ponderação à luz dos princípios, figuras e institutos do ordenamento jurídico vigente.

            4. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se que a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo fez tal ponderação e decidiu corretamente, como se explicitará.

            5. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.ºs 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 696º a 702º (art.º 619º, n.º 1 do CPC[3]).

           A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (art.º 621º, parte inicial).

           A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (art.º 628º).

            6. A eficácia do caso julgado material - relevante para a situação em análise - varia em função da relação entre o âmbito subjetivo e o objeto da decisão transitada e o âmbito subjetivo e o objeto do processo posterior.

           Se o âmbito subjetivo e o objeto da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i. é, se ambas as ações possuem o mesmo âmbito subjetivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como exceção do caso julgado - trata-se da respetiva vertente negativa, que tem por finalidade evitar que o tribunal da ação posterior seja colocado na alternativa de reproduzir ou de contradizer a decisão transitada (art.ºs 580º, n.º 1, in fine, e 581º). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa exceção dilatória (art.º 577º, alínea i)).

           Mas se a relação entre o objeto da decisão transitada e o da ação subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o objeto prejudicial (i. é, que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objeto) vale como autoridade de caso julgado (material) na ação em que se discuta o objeto dependente. Quando isso suceda, o tribunal da ação posterior – ação dependente – está vinculado à decisão proferida na causa anterior – ação prejudicial. Está aqui em causa a natureza positiva do instituto, ao fazer valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões.

            Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior.[4]

            Assim, a figura da autoridade do caso julgado - que é distinta da exceção do caso julgado e que não supõe a tríplice identidade por esta exigida (de sujeitos, pedido e causa de pedir) - visa garantia a coerência e a dignidade das decisões judiciais, a certeza e a segurança nas relações jurídicas; para invocar a autoridade de caso julgado é fundamental apreciar se a questão se encontra ou não coberta por alguma decisão anterior, de tal modo que se torne desnecessário ou inconveniente uma pronúncia posterior (pressupõe a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida).[5]

            7. É entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência que a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.º 581.

            Trata-se da vinculação de um tribunal de uma ação posterior ao decidido numa ação anterior: é isso precisamente que constitui a autoridade de caso julgado; a autoridade do caso julgado impede a apreciação e conhecimento dos factos inerentes às pretensões formuladas, tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.[6]

            A figura da autoridade do caso julgado ocorre na medida do que foi apreciado e decidido.[7]

            Merece ainda especial relevo o valor enunciativo do instituto, por força do qual fica excluída toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na sentença passada em julgado.[8]

            8. O caso julgado está, porém, sujeito a limites, designadamente objetivos, subjetivos e temporais.

            No tocante aos limites objetivos - i. é, ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado - este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão, ou seja, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art.º 607º, n.º 3).

            E não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo.

            O caso julgado incide, pois, sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão - abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença.

           Os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado, ficando fora do caso julgado o que não seja essencial ao iter iudicandi, conceção (intermédia) para o qual se orienta, maioritariamente, a jurisprudência.[9]

            9. Vejamos, agora, o explanado na decisão da 1ª instância sobre o enquadramento fático e normativo do caso em análise:

            a) - No nosso ordenamento jurídico, a sentença homologatória da transação constitui uma decisão de mérito, “equiparada à que julga aplicando o direito aos factos (cf. art.º 290º, n.º 3, do CPC).”[10]  

           - Uma sentença homologatória de uma transação, condenando ou absolvendo as partes nos termos acordados, é suscetível de constituir caso julgado material[11] e, consequentemente, de produzir o efeito positivo ou negativo do caso julgado.

            - Pela transação[12], as partes dispõem da situação jurídica de direito substantivo afirmada em juízo - determinam, assim, o conteúdo dos direitos e deveres das partes que a subsequente homologação judicial vem tutelar, extinguindo o processo (tornado inútil pela supressão do litígio) e abrangendo-as na autoridade do caso julgado.[13] No momento de proferir a sentença homologatória, o juiz encontra-se assim perante a situação jurídica definida pelas partes. A tutela judiciária é, ainda aqui, tutela de situações jurídicas dela carecidas, já não porque necessitadas duma definição, mas porque à definição feita pelas partes falta a força do caso julgado.[14]

            - A sentença homologatória proferida no processo 1547/21.... produziu caso julgado material e, consequentemente, efeito positivo e negativo de caso julgado.

           - Na situação em análise, as partes são as mesmas, independentemente de ocuparem posições diferentes numa e noutra (ativa e passiva); quanto ao pedido e à causa de pedir, a conclusão é, todavia, distinta - o pedido principal numa das ações é o reconhecimento da propriedade de um prédio, que tem como causa de pedir o negócio jurídico pelo qual foi adquirido aquele prédio e a posse do ali Réu (aqui A.) sobre o mesmo; nos presentes autos, o pedido principal assenta na declaração de nulidade do negócio jurídico – a partilha – e tem como causa de pedir os factos constitutivos da simulação.

            - Daqui retira-se que não há a identidade do pedido principal e da causa de pedir necessária há afirmação da exceção dilatória do caso julgado (art.º 581º).

            No entanto, está-se perante uma decisão onde se pressupôs a validade da partilha, expressa no reconhecimento pelo Réu (aqui A.) de que o prédio pertence à A. (aqui Ré) e uma ação em que se pretende a nulidade dessa partilha e a eliminação dos seus efeitos, dos quais, a propriedade da Ré sobre o prédio que lhe adveio na sequência desse negócio.

            - Ora, a primeira decisão constitui caso julgado. E considerando aquilo que aqui se pede, nestes autos, não pode o Tribunal ser alheio à circunstância de que, naquela ação, a validade da partilha foi pressuposto da sentença (homologatória da transação).

            Como tal, apesar de não estar em causa a identidade das ações e não se poder falar no efeito negativo do caso julgado, poderá falar-se no efeito positivo, ou seja, na autoridade de caso julgado.

            - Com efeito, está-se claramente perante um caso julgado que se impõe por via da sua autoridade.[15]

           - A decisão do processo 1547/21.... é um pressuposto da definição da situação jurídica desta ação pois nela há já a verificação de que o negócio translativo da propriedade é válido, pelo que não pode o sentido da decisão que aqui vier a ser proferida ser outro - se a autoridade do caso julgado formado naquele processo, onde se reconheceu a propriedade da Ré daquele prédio, não se projetasse nos presentes autos, corria-se o risco de, a final, se declarar nula a partilha efetuada e, consequentemente, deixar o prédio em causa de pertencer à Ré, contrariando frontalmente o reconhecimento que foi feito no anterior processo, por decisão judicial (ainda que homologatória).

            -  O reconhecimento da propriedade da Ré sobre aquele prédio constitui uma decisão indiscutível que tem de ser acatada nos presentes autos, não só com o respeito dessa propriedade, mas com aquilo que lhe é pressuposto – a validade do negócio que a ele deu origem.

           - A decisão proferida no processo 1547/21.... impõe-se, com força de autoridade, aos presentes autos, tendo formado efeito de caso julgado positivo, que vincula este Tribunal sobre um objeto processual que é materialmente conexo com aquele que se encontrava em discussão no outro processo.

           - A autoridade do caso julgado constitui uma exceção perentória, determinando a absolvição do pedido (cf. artigo 576º, n.º 3, do CPC)[16], pelo que, face ao exposto, julga-se verificada a exceção perentória da autoridade do caso julgado e, consequentemente, absolve-se a Ré dos pedidos contra si formulados sob as alíneas a) e b) [cf. ponto I., supra].

            b) - Relativamente ao pedido da “alínea c)” e tendo presente o disposto no art.º 581º, além da já referida identidade dos sujeitos, existe identidade do pedido e da causa de pedir, dada a total coincidência entre estes elementos numa ação e noutra; em ambas as ações os pedidos se fundam no enriquecimento da Ré à custa do património do A., por lhe ter sido adjudicado parte do património sem que esta tivesse suportado as tornas correspondentes - cf., sobretudo, pontos I. e II. 1. 1) e 2. alíneas a) a e), supra.

           - Deste modo, a questão subsidiariamente levantada não pode ser conhecida nos presentes autos por estar atingida com o efeito negativo do caso julgado, donde se proíbe a propositura de uma ação para analisar questão idêntica que já foi levantada.

           - Esta questão, além de ser idêntica à levantada no processo 1547/21...., reconduziu à condenação da Ré no pagamento da quantia de € 40 000. Embora da transação alcançada não resulte, expressamente, que a condenação do pagamento naquela quantia é relativa ao valor do benefício obtido pela Ré aquando a partilha dos bens, é possível fazer uma interpretação daquela transação de onde se retira que a condenação da Ré é uma decorrência do pedido reconvencional formulado pelo A. (ali Réu), idêntico ao aqui formulado. 

            - No fundo, aquilo que o A. agora pretende já lhe foi concedido através de sentença transitada em julgado que homologou a transação celebrada e que, nessa sequência, condenou a Ré ao pagamento da quantia de € 40 000.

           - Verifica-se, neste processo e relativamente ao pedido subsidiário, a exceção de caso julgado, por estar em causa a repetição da causa desenvolvida no processo 1547/21...., exceção dilatória, de conhecimento oficioso (art.ºs 577º, alínea i) e 578º) que determina a absolvição do réu da instância (art.ºs 278º, n.º 1, alínea e) e 576.º, n.º 2).

           10. A 1ª instância afirmou a autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no âmbito da ação de processo comum que correu termos sob o n.º 1547/21.... (cf. art.º 619º, n.º 1), sabendo-se que a figura da autoridade do caso julgado ocorre na medida do que foi apreciado e decidido.[17]

           A interpretação dada pela 1ª instância à transação obtida no aludido processo, homologada por sentença, respeitou a essência dessa mesma transação (inexoravelmente ligação à partilha corporizada no instrumento de 13.7.2011), pelo que nada será de objetar à afirmação da exceção de autoridade do caso julgado quanto ao segmento das “alíneas a) e b)” do pedido formulado nos autos - o demandante está vinculado a aceitar o resultado da primeira ação.

            A autoridade de caso julgado opera positivamente na definição do direito, relevando em matéria de mérito da ação, contribuindo para a procedência ou para a improcedência do pedido.[18]

            11. Relativamente à afirmada exceção do caso julgado, na sua vertente negativa, é irrecusável a coincidência entre pedidos e causas de pedir (sendo causa de pedir o ato ou facto jurídico donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar) das duas ações (baseadas no pretenso enriquecimento sem causa), sendo o pedido novamente formulado pelo A. volvidos 35 dias sobre a transação e o términus da primeira ação, e sem que se tenha de algum modo impugnado o ali decidido.

            Por conseguinte, a Ré podia obstar à propositura de uma nova ação (cf. art.ºs 580º e 581º CPC).

            E, uma vez mais, nada será de objetar à descrita interpretação da sentença homologatória da primeira ação efetuada pela 1ª instância, à luz do disposto nos art.ºs 236º e 238º do CC, permitindo concluir que na ação posterior a parte pede o mesmo que consta (está compreendido) da transação e da sentença homologatória.

           12. Propendendo-se porventura para entendimento diverso (máxime, que sobre esse segmento do pedido reconvencional nada foi estipulado naquele negócio - não foi objeto da transação celebrada entre as partes nessa ação), porque a transação destina-se a compor definitivamente um determinado litígio (art.º 1248º, n.º 1, do CC), na falta de qualquer restrição constante da transação, importava entender que a mesma compôs todo o litígio que existia entre as partes, e, assim, após a celebração da transação, ficou precludido qualquer pedido que já tivesse sido formulado na ação em que foi celebrada, mesmo quando sobre ele nada conste.[19]

           13. A respeito da condenação do A. por litigância de má fé, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo referiu:

            - Da prova produzida nos autos e do comportamento processual adotado pelo A. resulta que este instaurou ação peticionando algo contrário àquilo em que, em ação anterior, havia reconhecido; pediu, ainda, a título subsidiário, algo que já tinha recebido.

           - O A., ao instaurar a ação, atuou dolosamente, sabendo que tinha sido parte numa ação em que tinha adotado um comportamento diametralmente oposto, sabendo, igualmente, que já lhe tinha sido concedido aquilo que pretendia (o pagamento de um valor pelo enriquecimento sem causa); faz um uso manifestamente reprovável do processo, com o objetivo de conseguir um objetivo ilegal (cf. alínea d), do n.º 2, do art.º 542º, do CPC) - a declaração de nulidade de um negócio cuja validade acabou por reconhecer e a condenação da Ré no pagamento de um valor já atribuído.

             14. Nos termos do art.º 542º, n.º 1, do CPC, tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir; segundo o n.º 2, do mesmo art.º, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [alínea a)], tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [alínea b)] ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável [alínea d)].

           O instituto, mormente na indicada vertente substantiva/material [citadas alíneas a) e b)],  não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes acautelando um interesse público de “respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça”, destinando-se a assegurar “a moralidade e eficácia processual”, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça.[20]

           As partes deverão litigar com a devida correção, ou seja, no respeito dos princípios da boa fé e da verdade material e, ainda, na observância dos deveres de probidade e cooperação expressamente previstos nos art.ºs 7º e 8º do CPC, para assim ser obtida, com eficácia e brevidade, a realização do direito e da justiça no caso concreto.

           15. A condenação como litigante de má fé há de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente[21], pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; a afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir.

            16. A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga (v. g., pretendendo exigir o que não é devido!); esta actuação merece censura e condenação. O autor faz um pedido a que conscientemente sabe não ter direito - usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça.[22]

            17. Prosseguido.

           O A. interpôs a presente ação escondendo a realidade da primeira ação.

            Aí reconheceu, expressamente, a propriedade da recorrida sobre determinado bem imóvel; as partes, visando pôr termo a um litígio, fizeram recíprocas concessões, conforme consta da mencionada transação (art.º 1248º, n.º 1, do CC).

            A sentença homologatória transitou em julgado.

           A realidade processual e as posições das partes foram suficientemente esclarecidas nos autos, e foram esses os elementos que determinaram o desfecho do litígio à luz do regime jurídico aplicável.

            Tudo o mais - admitindo-se a eventual existência de interesses que se consideraram excluídos do património comum do dissolvido casal[23] - não contenderá, necessariamente, com o que aqui foi discutido e conhecido.

            Analisada a atuação do A. nos presentes autos é manifesto que este não poderia deixar de equacionar e explicitar todos os pretéritos acordos das partes, v. g., se e em que medida contribuiu para a regulação/definição dos respetivos interesses; porém, não o fez, deduzindo pretensão que sabia contrária a sentença judicial que nunca colocou em causa e que o condenou nos termos do acordo a que se vinculou.

            Litigou de má fé, comportamento, deveras censurável, que não podia deixar de ser sancionado de harmonia com a lei processual civil.

           18. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


*

           III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pelo A./apelante.


*

25.3.2025



[1] Audiência realizada em 24.10.2023, encontrando-se presentes, nomeadamente, a A., o Réu e os Exmos. Mandatários das partes e fazendo-se contar da respetiva ata: «Iniciada a diligência pelas 09 horas e 50 minutos, após terem decorrido longas conversações entre as partes, com interrupção para almoço pelas 12.30 horas, e recomeço pelas 14 horas e 10 minutos, retomadas as negociações foi obtida a conciliação das partes nos seguintes termos: (...)».
[2] Atentos os documentos juntos na sequência do despacho de 08.5.2024.
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[4] Vide Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAROnline, novembro/2019, pág. 7.

[5] Vide, nomeadamente, Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 260 e 318 e seguintes; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 304 e seguintes; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 91 e seguintes; A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 383 e seguintes e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1973, págs. 60 e seguinte e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 26.01.1994, 03.11.2016-processo 1628/15.0T8STR-A.S1, 19.5.2016-processo 4091/07.5TVPRT.P1.S1, 05.9.2017-processo 6509/16.7T8PRT.P1.S1, 20.12.2017-processo 2377/12.6TBABF.E1.S2, 27.02.2018-processo 2472/05.8TBSTR.E1, 18.9.2018-processo 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1, 18.9.2018-processo 21852/15.4T8PRT.S1, 18.10.2018-processo 3468/16.0T9CBR.C1.S1, 13.11.2018-apelação 4263/16.1T8VCT.G1.S1 [assim sumariado: «Quando se fala de caso julgado na vertente de autoridade (o chamado efeito positivo do caso julgado) do que se está a falar é da imposição da decisão tomada sobre uma questão que é prejudicial em relação à decisão a tomar num processo subsequente (processo dependente).»], 12.02.2019-processo 654/13.8TBPTL.G1.S1 e 26.02.2019-processo 4043/10.8TBVLG.P1.S1, e da RC de 28.9.2010-processo 392/09.6TBCVL.C1, 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1, 30.6.2015-processo 89/14.5TBLRA.C, 14.11.2017-processo 826/14.8T8GRD.C1 e 06.3.2018-processo 10324/15.7T8CBR.C1, publicados, o primeiro, no BMJ 433º, 515 e, os restantes, no “site” da dgsi.
[6] Cf. citado acórdão da RC de 28.9.2010-processo 392/09.6TBCVL.C1 e acórdão da RE de 22.11.2018-processo 687/16.3T8STR.E1, publicado no “site” da dgsi.

[7] Cf. cit. acórdão da RC de 06.3.2018-processo 10324/15.7T8CBR.C1.

[8] Cf., entre outros, acórdãos da RG de 16.3.2017-processo 1486/11.3TBBCL.G1 e da RC de 28.9.2010-processo 392/09.6TBCVL.C1, 17.9.2013-processo 507/12.7TBSEI.C1 e 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1, publicados no “site” da dgsi.

   Vide, ainda, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, Almedina, 2017, pág. 599.

[9] Vide Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 318 e J. Rodrigues Bastos, ob. e vol. citados, pág. 253, e, entre outros, acórdãos do STJ de 10.7.1997 e 27.9.2018-processo 10248/16.0T8PRT.P1.S1, in CJ-STJ, V, 2, 165 e “site” da dgsi, respetivamente, e da RC de 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1 (já cit.).

[10] Cf. J. Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do Caso Julgado”, Revista da Ordem dos Advogados, III-IV, 2019 pág. 692, nota 1.

[11] Cf. acórdão do STJ de 02.6.2021-processo 2381/19.3T8CBR.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.

   Assim, também, como se indica neste aresto, J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 533 (em anotação a idêntico normativo do CPC de 1961).

   É indiscutível que a sentença homologatória de uma transação (bem como, de uma desistência ou de uma confissão do pedido) é suscetível de fundamentar a exceção de caso julgado - vide M. Teixeira de Sousa, no seu blogue do IPPC, em anotação ao acórdão da RG de 26.3.2015-processo 2454/14.9TBBRG.G1 (publicado no “site” da dgsi).
[12] Dispõe o art.º 1248º, n.º 1, do CC que a «transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões», explicitando o art.º 1250º, que «a transação preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado, quando dela possa derivar algum efeito para o qual uma daquelas formas seja exigida, e de documento escrito, nos casos restantes (redação conferida pelo DL n.º 116/2008, de 04.7)».
[13] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[14] Reproduzindo o ensinamento de J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, págs. 36 e seguinte, acolhido, entre outros, pelo acórdão da RL de 17.3.2015-processo 51/15.0YLPRT.L1-2 [assim sumariado: «I - A sentença homologatória da transação é uma sentença de mérito, porque absorve o conteúdo do negócio jurídico em que se traduz a transação, condenando e absolvendo nos termos exatamente pretendidos e resultantes das concessões recíprocas das partes em que aquela se traduz. II - Não é do negócio jurídico em que se traduz a transação que resulta a extinção da instância mas da sentença que a homologa que, por outro lado, confere autoridade de caso julgado aos efeitos substantivos decorrentes daquele negócio jurídico. III - Como qualquer outro negócio jurídico, e nos termos gerais destes, a transação pode ser declarada nula ou anulada. IV - Se além dessa anulação a parte pretender também que o processo em que foi proferida a sentença homologatória da transação veja reaberta a respetiva instância para vir a ser julgado em função do direito, terá que interpor recurso de revisão, só podendo fazê-lo no prazo de 60 dias a partir do momento em que teve conhecimento do fundamento de nulidade ou anulabilidade do negócio em que se traduz a transação e no prazo de cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória - art.º 697º/2 CPC. (...)»], publicado no “site” da dgsi.

[15] Citou-se o acórdão da RC de 11.6.2019-processo 355/16.5T8PMS.C1 [com o sumário: «1. O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas. 2. Quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão). 3. O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão). 4. Ao contrário do que acontece com a excepção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir. 5. O que está em causa na litigância de má-fé não é o facto de a parte ter ou não razão ou o facto de conseguir (ou não) fazer prova dos factos que alegou; o que está em causa é um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa-fé processual, a que as partes estão submetidas – deveres que se encontravam previstos nos art.ºs 7º e 8º CPC -, é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.»], publicado no “site” da dgsi (sublinhado nosso).

[16] Citou-se o acórdão do STJ de 10.5.2023-processo 7473/21.6T8PRT.P1.S2 [consta do sumário: «Ao contrário da exceção dilatória de caso julgado, cuja procedência implica a absolvição da instância [art.ºs 278º, n.º 1, e), e 576º, n.º 2, do CPC], a exceção de autoridade do caso julgado é uma exceção perentória, importando, por isso, a absolvição do pedido, nos termos do art.º 576º, n.º 3, do mesmo diploma.»], publicado no “site” da dgsi.

  Cf., ainda, acórdão do STJ de 14.10.2021-processo 251/13.8TBPTB-C.G1.S1, publicado no mesmo “site”.

[17] Cf. cit. acórdão da RC de 06.3.2018-processo 10324/15.7T8CBR.C1.

[18] Cf. cit. acórdão do STJ de 14.10.2021-processo 251/13.8TBPTB-C.G1.S1.

[19] Vide M. Teixeira de Sousa, no seu blogue do IPPC, em anotação ao acórdão da RG de 26.3.2015-processo 2454/14.9TBBRG.G1.

[20] Vide Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, págs. 55 e seguinte.
[21] No intuito de moralizar a atividade judiciária, o art.º 542º, n.º 2, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma atuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave (lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes) - cf., de entre vários, o acórdão da RG de 10.5.2018-processo 27/15.8T8TMC.G1, publicado no “site” da dgsi.
  Apontando (já) para tal “equiparação”, no domínio do anterior quadro normativo, veja-se o ensinamento de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 358, nota (2).
[22] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, págs. 262 e 263.
[23] Veja-se, principalmente, o teor do relatório pericial de 23.01.2023 e o alegado pelas partes relativamente ao estabelecimento comercial implantado no imóvel descrito no art.º 1º da p. i. da primitiva ação.