Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
598/21.0T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES NA AÇÃO EXECUTIVA
INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 740.º, N.ºS 1 E 2, 1083.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 2, E 1135.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Os processos de inventário instaurados no domínio de vigência da Lei n.º 23/2013, de 05.03 (RJPI) que se encontrem pendentes em 01.01.2020 - data da entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13/09 -, ficam sujeitos ao regime transitório previsto nos arts. 11º, 12º e 13º da Lei n.º 117/2019, resultando desse regime transitório que:

a) há processos de inventário que são de remessa obrigatória e oficiosa pelo notário a tribunal por, na sequência da Lei n.º 117/2019, terem passado a ser da competência material exclusiva dos tribunais - art.º 12º, n.º 1 da Lei n.º 117/2019; b) há processos de inventário que não sendo da competência exclusiva dos tribunais, são remetidos a tribunal a requerimento do interessado ou interessados diretos na partilha - art.º 12º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 117/2019; e

c) há processos de inventário que permanecem no cartório notarial, onde continuam a ser tramitados de acordo com o regime jurídico do RJPI, à excepção do disposto no n.º 3 do art.º 11º da Lei 117/2019.

II – O actual regime resultante da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, procedeu a uma repartição da competência entre os cartórios notariais e os tribunais judiciais para tramitar os processos de inventário: uns correm imperativamente nos tribunais; relativamente a outros, os interessados ficam com a disponibilidade de escolher em qual das instituições pretendem resolver as questões de partilha dos bens.

III – A lei não visou tirar ou alterar competência aos tribunais, antes visou restituir-lha imperativamente nuns casos ou facultativamente noutros. E, em sede do direito transitório, flexibilizou-a em ordem à celeridade processual e ao descongestionamento dos tribunais que necessariamente se verão confrontados com larga migração de processos.

IV – O artigo 1083º, nºs 1 e 2, do Código do Processo Civil estabelece que o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais: a) Nos casos previstos nas alíneas b) (Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária; e c) ( Nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo) do nº 2 do artigo 2102º do Código Civil; b) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial; c) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público.

V – Considerando os efeitos previstos no artigo 740.º, a separação de bens há-de ser decretada no processo de inventário, conforme resulta do preceituado no artigo 1135.º. Ou seja, um dos casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos tribunais judiciais por o inventário ser dependência de outro processo judicial é, manifestamente, aquele que trata da separação de meações na acção executiva, nos termos e para os efeitos do art.º 740.º, n.º 2 do Código do Processo Civil.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 598.21.0T8CNT

 

(Juízo Local Cível de Cantanhede)

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

AA, requerente nos autos em epígrafe, nos quais é Cabeça de casal BB, atravessa nestes autos o seguinte requerimento:

1- Requerente e requerido dissolveram o seu vínculo conjugal por divórcio por mútuo consentimento instaurado na ... Conservatória do Registo Civil ... pelo P. nº.../...20 por decisão proferida em 22 de setembro de 2020 a qual transitou logo em julgado, conforme documento que se junta, doc.1.

2- A casa de morada de família constituída por “Prédio urbano composto por Fracção Autónoma designada pela letra ... correspondente ao primeiro andar esquerdo, lado norte, destinada a habitação, com uma divisão para arrumos no sótão, com 3 divisões e garagem na cave, do prédio urbano sito em Praia ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...81 e descrito na CRP sob o nº...37, ficou para a Requerente AA, conforme consta do doc.1.

Sucede que,

3- Na sequência do divórcio os ex-cônjuges, e aplicando-se o regime do artigo 1790º do Código Civil, acordaram em celebrar a partilha do dissolvido casal por meio de escritura notarial.

Assim,

4- Por escritura de Partilha celebrada no dia 30 de dezembro de 2021, no Cartório Notarial ..., sito à rua ..., em ..., foi efectuada a partilha do dissolvido casal conforme documento que se junta e dá por reproduzido, doc.2.

5- Resulta que todos os bens comuns do casal foram partilhados, e tendo em conta o regime do artigo 1790 º do Código Civil foram tidos em conta os bens que seriam próprios de cada um bem como foi considerado o facto declarado de inexistirem dívidas do casal.

6- Ora, compulsados estes autos judiciais resulta que, tendo por referência a Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal, que diz devidamente actualizada, s.e., a fls.236 ss, constata-se que as VERBAS 8, 11, 13,20 e 21 não constam da Partilha Notarial, sendo que a Verba 13 e a Verba 21 dessa Relação de Bens estão em Duplicado (mesmo artigo ...45 da freguesia ...);

7- E, analisando tal Relação de Bens foi apurado, com base nos títulos do registo predial, o seguinte: a. Tais Verbas 8 (artigo ...4 da freguesia ..., ...), 11 (artigo ...64 da freguesia ...), 13(artigo ...45 da freguesia ...), 20(artigo ...63 da freguesia ...), e 21( artigo ...45 da freguesia ...), não se reportam a Bens do património do extinto casal pertencendo a terceiros e foram indevidamente relacionadas; b. Ao invés, resulta relacionada como Verba 12 (artigo ...29 da freguesia ...), na referida escritura, um prédio que, certamente também por lapso, não foi relacionado no Inventário.

8- Para melhor agilização faz-se aqui a correspondência entre a numeração das Verbas do Inventário com as Verbas da escritura notarial e que é como segue:

a. As Verbas 1,2,3,4 e 5 do Inventário correspondem às Verbas 1,2,3,4 e 5 da escritura Notarial;

b. E, tendo em conta a correcção a supra referida em 7., temos que as demais Verbas 6 , 7, 9, 10, 12,14, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 23, 24 e 25 do Inventário correspondem , respectivamente , às Verbas 16, 6, 7, 8, 9, 14, 18, 10, 11, 19, 20, 13, 14, 14 e 15 da escritura notarial.

9- Ergo, adjudicados os bens conforme consta da Partilha Notarial que contemplam todos os bens relacionados no Inventário para separação de meações, sendo a partilha por divórcio a prevalecer, deve ser remetido o resultado da partilha para o processo de execução nº 141/07...., primeiro em registo de execução e no qual foi a Requerente citada para requerer a separação de meações, para a Execução e reclamações de créditos contra o devedor BB prosseguir contra ele sobre os bens que lhe foram adjudicados.

10- Na sequência deve ser proferido despacho a reconhecer que o objecto do processo foi realizado pela PARTILHA NOTARIAL, julgando válida a partilha realizada com as adjudicações feitas e, após as notificações, julgar verificada causa de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

Termos em que se requer que, verificada a partilha dos bens do casal que contemplou todos os bens relacionados no inventário e ainda um outro bem não relacionado, na sequência de divórcio e nos termos que a lei veio plasmar no art.1790 do CC, seja o resultado da PARTILHA comunicado ao processo de execução para a execução e apensos de reclamações prosseguir os seus termos contra o devedor BB e sobre os bens que lhe foram adjudicados.

Mais se requer que, esgotado o objecto do processo de inventário pela realização da PARTILHA NOTARIAL, deve declarar-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide”.

Pelo Juízo Local Cível ... foi proferida a seguinte decisão:

“Refªs 6963666, 7005782, 6969654 e 6992043:

Vêm a requerente e o cabeça de casal requerer que seja declarada a inutilidade superveniente do presente inventário, por ambos terem procedido à partilha extrajudicial do património comum do casal através da escritura pública datada de 30.12.2021.

Os credores CC e Novo Banco opuseram-se, por a separação de meações fundada em processo executivo – como é o caso vertente – ter de seguir o processo de inventário.

Vejamos.

Prescreve o art. 1135º do CPC:

“1 - Se for requerida a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal ou se houver que proceder-se à separação por causa da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, com as especificidades previstas nos números seguintes.

(…)

4 - O cônjuge do executado ou do insolvente pode escolher os bens com que deve ser formada a sua meação.

5 - Se usar a faculdade prevista no número anterior, são os credores notificados da escolha, podendo reclamar fundamentadamente contra ela.”

De igual modo, nos termos do art. 740º do mesmo diploma:

“1 - Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.

2 - Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.”

Deste cotejo legal, é óbvia a conclusão de que, a partir do momento em que o cônjuge do executado é citado para, querendo, requerer a separação de meações, apenas poderá obter validamente tal separação de bens pela via inventarial - Nesse sentido, entre outros, os acórdãos da RG de 30.01.2020, proc. 777/07.2TBBCL-B.G1, e da do STJ de 22.10.2015, proc. 3798/09.7TBBRG-C.G2.

Foi precisamente isso que a requerente desencadeou antes de 12.06.2017, com instauração do processo de inventário no Cartório Notarial ..., sendo que havia sido citada a 02.05.2017, para efeitos do citado art. 740º do CPC, no processo executivo 141/07...., do J... dos Juízos Cíveis e Criminais ....

Assim, contrariamente ao pretendido pela requerente e pelo cabeça de casal, a escritura de partilha extrajudicial datada de 30.12.2021 não torna os presentes autos supervenientemente inúteis, prosseguindo os mesmos os seus termos.

Nesta decorrência, pela última vez, insista com o cabeça de casal pela junção dos elementos em falta (definidos no despacho de 16.10.2021) no prazo de 10 dias, sob a cominação de condenação em multa por falta de colaboração com o tribunal”.

AA, não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª- Requerente e requerido eram casados entre si sob o regime da comunhão geral aquando de demanda executiva apenas contra o requerido BB pelo P.141/07....- Tribunal Judicial da Comarca ...-Juízo Central Cível e Criminal-Juiz ..., tendo sido a requerente citada nos termos do art.740, nº1 do CPC.

2ª- A requerente, conforme consta dos autos, em 12.06.2017 juntou ao referido processo executivo certidão comprovativa da pendência de processo para separação de bens em casos especiais, pendente no Cartório Notarial ... - Notário ..., tendo, em consequência ficado suspensa a execução ex vi art.740º, nº2 CPC.

3ª- Seguiu o processo de inventário para separação de meações com o nº3335/17 no referido Cartório Notarial ... tendo sido designada conferência preparatória nesse inventário para o dia 13.05.2021, pela 15h.

4ª- Na sequência da Lei nº117/2019 de 13 de setembro, requerente e requerido, deduziram em 12.05.2021 no referido processo pedidos de envio dos autos para o Tribunal Judicial ... da requerente, o que foi deferido por Despacho de 12.05.2021, conforme consta dos autos.

5ª- Requerente e requerido dissolveram o seu vínculo conjugal por divórcio por mútuo consentimento instaurado na ... Conservatória do Registo Civil ... pelo P. nº.../...20 por decisão proferida em 22 de setembro de 2020 a qual transitou logo em julgado.

6ª- A casa de morada de família constituída por “Prédio urbano composto por Fracção Autónoma designada pela letra ... sito em Praia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...81 e descrito na CRP sob o nº...37, ficou para a Requerente.

7ª- Na sequência do divórcio os ex-cônjuges, e aplicando-se o regime do artigo 1790º do Código Civil, acordaram em celebrar a partilha do dissolvido casal por meio de escritura de partilha notarial celebrada no dia 30 de dezembro de 2021, no Cartório Notarial ..., sito à rua ..., em ..., foi efectuada a partilha do dissolvido casal.

8ª- Na partilha do casal, ao abrigo do artigo 1790º do Código Civil, foi tido em conta quais os bens que seriam próprios de cada um bem como foi considerado o facto declarado de inexistirem dívidas do casal.

9ª- Foi deduzido aos autos requerimento pelo qual foram suscitados lapsos na relação de bens do processo de inventário para separação de meações mas sobretudo demonstrando que a Partilha Notarial compreendeu no seu âmbito todos os bens relacionados no Inventário para separação de meações,

10ª- E foi impetrado que, sendo a partilha por divórcio a prevalecer, deve ser remetido o resultado da partilha para o processo de execução nº 141/07...., primeiro em registo de execução e no qual foi a Requerente citada para requerer a separação de meações, para a Execução contra o devedor BB prosseguir sobre os bens que lhe foram adjudicados.

11ª- E na sequência foi requerido que a. fosse proferido despacho a reconhecer que o objecto do processo foi realizado pela PARTILHA NOTARIAL, julgando válida a partilha realizada com as adjudicações feitas e, b. após as notificações, julgar verificada causa de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, prosseguindo na execução P.141/07.... a penhora sobre os bens adjudicados ao executado BB.

12ª- Pelo Despacho de fls. , objecto deste recurso, foi sustentado, de forma sucinta que , “ a partir do momento em que o cônjuge do executado é citado para , querendo, requerer a separação de meações , apenas poderá obter validamente tal separação de bens por via inventarial “ concluindo que “ Assim , contrariamente ao pretendido pela requerente e pelo cabeça de casal, a escritura de partilha extrajudicial datada de 30.12.2021 não torna os presentes autos supervenientemente inúteis, prosseguindo os mesmos os seus termos.”

13ª- O direito a requerer divórcio é pessoal, constitucional e irrestringível e o regime substantivo do divórcio impõe-se por si a qualquer regra adjectiva que é instrumental.

14ª- Trata-se de direitos fundamentais irrenunciáveis e que não podem ser cerceados por interesse de terceiros que sejam credores de um dos ex-cônjuges, estranhos ao outro ex-cônjuge.

15ª- O ex-cônjuge não devedor não pode ser impedido de realizar a partilha por divórcio segundo as regras aplicáveis de direito substantivo em vigor à data do divórcio, obrigando-o a uma partilha desvirtuada da que efectivamente tem jus.

16ª- Na sequência do divórcio, há lugar à partilha do dissolvido casal de acordo com o direito que assiste à requerente, conforme a lei aplicável à data, no caso, seguindo o disposto no art.1790 e 1793 ambos do CC.

17ª- O processo de inventário para separação de meações é um processo entre cônjuges.

18ª- O processo de inventário por divórcio é um processo entre ex-cônjuges.

19ª- O direito da requerente pedir a partilha por divórcio, sendo um direito superveniente ao processo pendente de separação de meações, é um direito pessoal , irrestringível e causa superveniente.

20ª- E sendo distinto e mais amplo que a simples separação de bens, podia ser requerido à escolha da requerente no Cartório Notarial, ex vi arts.1083º, nº2 do CPC.

21ª- O inventário subsequente a divórcio decretado na Conservatória do Registo Civil não tem que ser instaurado nos tribunais judiciais dado que o mesmo não é dependência de outro processo judicial.

22ª- Não se pode atribuir competência a um Tribunal em violação das regras da competência para a partilha por divórcio, pelo facto de pender um processo instrumental para separação de meações anterior e menos amplo porquanto os interesses dos credores do devedor estão acautelados sempre pela partilha a efectuar pelo divórcio e o ex-cônjuge não devedor não pode ser restringido nos seus direitos.

23ª- Tal representaria uma violação das regras da competência dos Tribunais em razão da matéria atribuindo competência por critérios estranhos aos factores de competência em razão da matéria no caso relações de familia.

24ª- Não pode o ex-cônjuge não devedor, ocorrendo dívidas da exclusiva responsabilidade do outro ex-cônjuge, ser “obrigado” seguir uma partilha que não respeita as regras da partilha por divórcio, art. 1790 do CC.

25ª- Uma tal interpretação e aplicação do direito, por se tratar de restrição de direito fundamental constitucionalmente garantido, constitui uma violação de direito civil e constitucional, ex vi art.36ºnº2 da CRP e arts.1788 a 1793 do CC. inconstitucionalidade que se invoca e argui.

26ª- Trata-se de um direito pessoal e irrestringível que não pode ser cerceado pela imposição de terceiros credores de um dos ex-cônjuges mas estranhos ao outro ex-cônjuge o qual não podem prejudicar, devendo a sua posição resultante do divórcio ser indemne a questões estranhas à ex-cônjuge não devedora.

27ª- Ergo a partilha é válida, eficaz e com a liquidação dos impostos devidos e todos os efeitos da extinção da comunhão indivisa que existe na sociedade conjugal, impõe-se a todos com efeitos erga omnes.

28ª- Não se pode confundir a competência dos tribunais sempre que a partilha seja dependência de processo judicial com a competência para requerer a partilha por divórcio que não foi decretado pelo Tribunal.

29ª- A partilha efectuada na sequência do divórcio, superveniente e mais ampla que uma partilha a efectuar em processo pendente para separação de meações, tem que prevalecer.

30ª- Pois o divórcio implica uma partilha a efectuar de acordo com as regras de direito substantivo, à data do decretamento do divórcio, com toda a liquidação do dissolvido casal, nessa liquidação compreendendo todos os bens da separação de meações por realizar.

31ª- Ao indeferir a pretensão deduzida pela requerente o Despacho em causa viola as regras do direito substantivo aplicável à partilha por divórcio, arts.1788 a 1793 do CC.,

32ª- E viola o preceito constitucional do art.36ºnº2 da CRP que versando sobre direitos fundamentais é de aplicação directa, padecendo a decisão de nulidade por violação frontal da lei.

33ª- Viola tal Despacho as regras imperativas da competência dos Tribunais em razão da matéria, art.65º e 1083 CPC, pelo que é nulo.

34ª- Acresce que a interpretação subjacente e prolatada pelo Despacho é inconstitucional por violação do art.36ª, nº2 da CRP, ao impedir a ex-cônjuge a aplicação das regras de direito da familia , sujeitando-o a regras diversas a seguir o que se invoca e argui

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente revogando-se a decisão proferida substituindo-a por decisão que julgue verificada causa de inutilidade superveniente da lide por força da partilha por divórcio reaalizada em Cartório Notarial, remetendo o resultado dessa partilha para o processo executivo P.141/07.... do Tribunal Judicial da Comarca ...- Juízo Central Cível e Criminal- Juiz ... para prosseguir sobre os bens que couberam ao ex-cônjuge devedor. Justiça”.

2. Do objecto do recurso

É a seguinte a questão a resolver:

“Nascendo” o inventário para separação de meações pelo facto de existir um processo executivo por dividas da responsabilidade apenas de um dos cônjuges, requerendo o outro cônjuge inventário para separação de meação, ou seja, para defender o seu direito patrimonial na comunhão conjugal, o acordo posterior – 30 de Dezembro de  2021 - celebrado por meio de escritura de partilha notarial, torna inútil o inventário judicial?

A 1.ª instância entende que não, assim justificando:

(…) Deste cotejo legal, é óbvia a conclusão de que, a partir do momento em que o cônjuge do executado é citado para, querendo, requerer a separação de meações, apenas poderá obter validamente tal separação de bens pela via inventarial - Nesse sentido, entre outros, os acórdãos da RG de 30.01.2020, proc. 777/07.2TBBCL-B.G1, e da do STJ de 22.10.2015, proc. 3798/09.7TBBRG-C.G2.

Foi precisamente isso que a requerente desencadeou antes de 12.06.2017, com instauração do processo de inventário no Cartório Notarial ..., sendo que havia sido citada a 02.05.2017, para efeitos do citado art. 740º do CPC, no processo executivo 141/07...., do J... dos Juízos Cíveis e Criminais ....

Assim, contrariamente ao pretendido pela requerente e pelo cabeça de casal, a escritura de partilha extrajudicial datada de 30.12.2021 não torna os presentes autos supervenientemente inúteis, prosseguindo os mesmos os seus termos”.

A Apelante, tentando contrariar a decisão, agora em recurso, alega:

“13ª- O direito a requerer divórcio é pessoal, constitucional e irrestringível e o regime substantivo do divórcio impõe-se por si a qualquer regra adjectiva que é instrumental.

14ª- Trata-se de direitos fundamentais irrenunciáveis e que não podem ser cerceados por interesse de terceiros que sejam credores de um dos ex-cônjuges, estranhos ao outro ex-cônjuge.

15ª- O ex-cônjuge não devedor não pode ser impedido de realizar a partilha por divórcio segundo as regras aplicáveis de direito substantivo em vigor à data do divórcio, obrigando-o a uma partilha desvirtuada da que efectivamente tem jus.

16ª- Na sequência do divórcio, há lugar à partilha do dissolvido casal de acordo com o direito que assiste à requerente, conforme a lei aplicável à data, no caso, seguindo o disposto no art.1790 e 1793 ambos do CC.

17ª- O processo de inventário para separação de meações é um processo entre cônjuges.

18ª- O processo de inventário por divórcio é um processo entre ex-cônjuges.

19ª- O direito da requerente pedir a partilha por divórcio, sendo um direito superveniente ao processo pendente de separação de meações, é um direito pessoal , irrestringível e causa superveniente.

20ª- E sendo distinto e mais amplo que a simples separação de bens, podia ser requerido à escolha da requerente no Cartório Notarial, ex vi arts.1083º, nº2 do CPC.

21ª- O inventário subsequente a divórcio decretado na Conservatória do Registo Civil não tem que ser instaurado nos tribunais judiciais dado que o mesmo não é dependência de outro processo judicial.

22ª- Não se pode atribuir competência a um Tribunal em violação das regras da competência para a partilha por divórcio, pelo facto de pender um processo instrumental para separação de meações anterior e menos amplo porquanto os interesses dos credores do devedor estão acautelados sempre pela partilha a efectuar pelo divórcio e o ex-cônjuge não devedor não pode ser restringido nos seus direitos.

23ª- Tal representaria uma violação das regras da competência dos Tribunais em razão da matéria atribuindo competência por critérios estranhos aos factores de competência em razão da matéria no caso relações de familia.

24ª- Não pode o ex-cônjuge não devedor, ocorrendo dívidas da exclusiva responsabilidade do outro ex-cônjuge, ser “obrigado” seguir uma partilha que não respeita as regras da partilha por divórcio, art.º 1790 do CC.

25ª- Uma tal interpretação e aplicação do direito, por se tratar de restrição de direito fundamental constitucionalmente garantido, constitui uma violação de direito civil e constitucional, ex vi art.36ºnº2 da CRP e arts.1788 a 1793 do CC. inconstitucionalidade que se invoca e argui”.

Avaliando.

Como é sabido, os processos de inventário instaurados no domínio de vigência da Lei n.º 23/2013, de 05.03 (RJPI) que se encontrem pendentes em 01.01.2020 - data da entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13/09 -, ficam sujeitos ao regime transitório previsto nos arts. 11º, 12º e 13º da Lei n.º 117/2019, resultando desse regime transitório que:

a) há processos de inventário que são de remessa obrigatória e oficiosa pelo notário a tribunal por, na sequência da Lei n.º 117/2019, terem passado a ser da competência material exclusiva dos tribunais - art.º 12º, n.º 1 da Lei n.º 117/2019;

b) há processos de inventário que não sendo da competência exclusiva dos tribunais, são remetidos a tribunal a requerimento do interessado ou interessados diretos na partilha - art.º 12º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 117/2019;

e

c) há processos de inventário que permanecem no cartório notarial, onde continuam a ser tramitados de acordo com o regime jurídico do RJPI, à excepção do disposto no n.º 3 do art.º 11º da Lei 117/2019.

Este regime transitório visa dar remédio aos interessados directos na partilha quando, na tramitação do inventário notarial, tenha ocorrido uma demora anormal, fazendo perigar o direito desses interessados a obterem uma decisão judicial em tempo útil  - art. 20º da CRP -, pelo que, preenchidos que sejam os requisitos da al. a) ou da al. b), do n.º 2 do art.º 12º, qualquer interessado directo na partilha pode requerer a remessa do processo de inventário (notarial) para o tribunal, a fim de passar a ser tramitado, quanto aos actos subsequentes, como inventário judicial.

Mais, os processos de inventário instaurados no domínio da RJPI que se encontrem pendentes em 01.01.2020 e que transitem para o tribunal, são remetidos no estado em que se encontrarem, sendo aplicável à tramitação subsequente o regime dos arts. 1082º a 1135º do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem, introduzido pela Lei n.º 117/2019, cumprindo ao juiz, uma vez ouvidas as partes, fazendo uso dos poderes de gestão processual e de adequação formal, conciliar essa tramitação subsequente com a realizada anteriormente à remessa do processo para o tribunal, a qual seguiu o regime jurídico do RJPI.

Ou seja, o actual regime resultante da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, procedeu a uma repartição da competência entre os cartórios notariais e os tribunais judiciais para tramitar os processos de inventário: uns correm imperativamente nos tribunais; relativamente a outros, os interessados ficam com a disponibilidade de escolher em qual das instituições pretendem resolver as questões de partilha dos bens.

A lei não visou tirar ou alterar competência aos tribunais, antes visou restituir-lha imperativamente nuns casos ou facultativamente noutros. E, em sede do direito transitório, flexibilizou-a em ordem à celeridade processual e ao descongestionamento dos tribunais que necessariamente se verão confrontados com larga migração de processos.

A norma transitória do artigo 12º da Lei n.º 117/19 determina que os processos pendentes não só são enviados para o tribunal quando se verifique a competência imperativa e exclusiva do tribunal, mas também quando ocorrer violação do direito de acesso à justiça em tempo útil, por se tratar de processos que se encontrem suspensos, ao abrigo do artigo 16.º do RJPI, há mais de 1 ano ou estejam parados, sem realização de diligências úteis, há mais de 6 meses, podendo nestes casos qualquer interessado directo na partilha requerer a remessa ao tribunal competente e ainda quando é essa a vontade dos interessados directos na partilha que representem, isolada ou conjuntamente mais de metade da herança.

Dada a previsível sobrecarga dos tribunais, e o ensejo de imprimir celeridade a estes processos, permitiu-se a opção dos interessados, segundo a sua conveniência, por outro tribunal, diverso do que normalmente seria competente para a causa.

Ora, resulta dos autos o seguinte:

1- Requerente e requerido eram casados entre si sob o regime da comunhão geral aquando de demanda executiva apenas contra o requerido BB pelo P.141/07....- Tribunal Judicial da Comarca ...-Juízo Central Cível e Criminal-Juiz ..., tendo sido a requerente citada nos termos do art. 740, nº1 do CPC, para requerer a separação de meações ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida.

2- A requerente, conforme consta dos autos, em 12.06.2017 juntou ao referido processo executivo certidão comprovativa da pendência de processo para separação de bens em casos especiais, pendente no Cartório Notarial ... - Notário ..., tendo, em consequência ficado suspensa a execução ex vi art.740º, nº2 CPC.

3- Na sequência seguiu tramitação o processo de inventário para separação de meações com o nº3335/17 no referido Cartório Notarial ....

4- Entretanto foi designada a conferência preparatória nesse inventário para o dia 13.05.2021, pela 15h.

5- Na sequência da Lei nº117/2019 de 13 de setembro, requerente e requerido, deduziram em 12.05.2021 no referido processo pedidos de envio dos autos para o Tribunal Judicial ... da requerente, o que foi deferido por Despacho de 12.05.2021.

6- Em .../.../2020, requerente e requerido dissolveram o seu vínculo conjugal por divórcio por mútuo consentimento instaurado na ... pelo P. nº.../...20 por decisão proferida em 22 de setembro de 2020 a qual transitou logo em julgado.

7- Na sequência do divórcio do casal foi efectuada a Partilha do dissolvido casal por escritura pública celebrada no dia 30 de dezembro de 2021, no Cartório Notarial ..., sito na rua ..., em ....

Ou seja, foram as partes, estando já dissolvido o seu casamento e na sequência da Lei nº117/2019 de 13 de setembro, que pediram/optaram pelo envio dos autos de inventário para separação de meações em consequência da execução que pendia sobre o requerido, para o Tribunal Judicial ... da requerente, o que foi deferido por Despacho de 12.05.2021.

Ora, o artigo 1083º, nºs 1 e 2, estabelece que o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:

a) Nos casos previstos nas alíneas b) (Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária; e c) ( Nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo) do nº 2 do artigo 2102º do Código Civil;

b) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial;

c) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público.

2. Nos demais casos, o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais – esta norma afasta a competência exclusiva que a Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, nos termos do seu art.º 3.º, atribuía aos cartórios notariais em matéria de inventários, delimita os processos de inventário cuja competência é, em exclusivo, atribuída aos tribunais judiciais, daqueles em que é conferida aos interessados a opção entre estes tribunais e aqueles cartórios, sem prejuízo de a intervenção judicial ocorrer sempre que necessário.

A este propósito, escreve o Conselheiro Lopes do Rego - “A recapitulação do inventário”, artigo publicado na Revista Julgar Online, dezembro de 2019, págs. 6 e 7:

“Importa começar por analisar os traços fundamentais do sistema alternativo ou concorrencial delineado pela Lei n.º 117/2019:

a) Em primeiro lugar, há situações de competência exclusiva ou imperativa do tribunal, definidas pelo art. 1083.º, n.º 1 CPC: e, assim, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:

I) Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 2102.º do Código Civil ou seja, quando a lei sucessória impõe a aceitação beneficiária, por o Ministério Público considerar que, estando em causa interessados incapazes ou equiparados, a tutela dos respetivos interesses implica a aceitação a benefício de inventário, ou por o ausente ou incapaz de facto não poder outorgar em partilha por acordo;

II) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial – prevalecendo, neste caso a competência por conexão sobre a eventual vontade e interesse das partes em requerer inventário notarial;

III) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público, desencadeando ele próprio o processo judicial, em que intervém como parte principal, no interesse do incapaz, menor acompanhado ou ausente.

b) Fora destes casos de competência exclusiva do tribunal judicial, a Lei n.º 117/19 admite a desjudicialização, desde que consentida, quer pelo notário, quer pela maioria dos interessados: é o que decorre, quer do art. 1.º do Anexo em que se regulamenta o inventário notarial, quer do art. 1083.º, n.ºs 2 e 3 CPC.

A desjudicialização, no novo regime instituído pela Lei n.º 117/19, pressupõe assim:

– que o notário perante o qual é requerido o inventário conste de lista elaborada pela Ordem dos Notários, enunciando aqueles que pretendem processar tais processos no respetivo cartório;

– que, nos casos em que se não verifique a competência exclusiva do tribunal, o processo possa ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais; porém, se o processo for instaurado no cartório notarial sem a concordância de todos os interessados, o mesmo é remetido para o tribunal judicial se tal for requerido, até ao fim do prazo de oposição, por interessado ou interessados diretos que representem, isolada ou conjuntamente, mais de metade da herança.”

Também com interesse, veja-se o artigo do Juiz Desembargador Tomé D'Almeida Ramião -  “O regime dos recursos e as normas transitórias no novo regime do processo de inventário”, incluído no e-book CEJ “INVENTÁRIO: O NOVO REGIME”, maio 2020, disponível online, no sítio do CEJ, em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Inventario2020.pdf - , explicando, nas págs. 38-40, que:

“1. Competência material

1.1. Compete exclusivamente aos tribunais judiciais tramitar o processo de inventário:

a) Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária;

b) Nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivos de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo;

c) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial (é o caso do artigo 1135.º – separação de bens na sequência de penhora de bens comuns ou de insolvência de um dos cônjuges);

d) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público (artigo 1083.º/1 do CPC);

e) Nos casos em que o processo de inventário seja requerido pelo interessado ou acordo dos interessados (n.º 2 do artigo 1083.º).

Nas demais hipóteses, o processo de inventário pode ser facultativamente instaurado, à escolha do interessado que o propõe ou mediante acordo entre todos os interessados, nos cartórios notariais que mostrem disponibilidade e interesse em processar estes processos e que constem de uma lista a elaborar pela Ordem dos Notários, ou seja, é facultativa a competência para a tramitação do inventário notarial (artigo 1.º do Regime do Inventário Notarial anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro).

Ora, o n.º 1 fixa positivamente a competência exclusiva do tribunal relativamente aos processos aí elencados, e neles não cabe, de facto – nomeadamente na sua alínea b) – o inventário para a partilha dos bens comuns na sequência do divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, nos termos previstos no artigo 1333.º, pelo que, nestas situações, nada impede que os ex-cônjuges requeiram o inventário para esta finalidade no cartório notarial, pois que a competência deste é concorrente com a dos tribunais.

Mas, nos autos em crise e como escreve a 1.ª instância, “a partir do momento em que o cônjuge do executado é citado para, querendo, requerer a separação de meações, apenas poderá obter validamente tal separação de bens pela via inventarial - Nesse sentido, entre outros, os acórdãos da RG de 30.01.2020, proc. 777/07.2TBBCL-B.G1, e da do STJ de 22.10.2015, proc. 3798/09.7TBBRG-C.G2.

Foi precisamente isso que a requerente desencadeou antes de 12.06.2017, com instauração do processo de inventário no Cartório Notarial ..., sendo que havia sido citada a 02.05.2017, para efeitos do citado art. 740º do CPC, no processo executivo 141/07...., do J... dos Juízos Cíveis e Criminais ....

De facto, considerando os efeitos previstos no artigo 740.º, a separação de bens há-de ser decretada no processo de inventário, conforme resulta do preceituado no artigo 1135.º. Ou seja, um dos casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos tribunais judiciais por o inventário ser dependência de outro processo judicial é, manifestamente, aquele que trata da separação de meações na acção executiva, nos termos e para os efeitos do art.º 740.º, n.º 2 – neste preciso sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Évora de 16.12.2021 - nos termos do disposto no artigo 1083.º, constituindo, como é o caso, dependência de outro processo judicial, a competência para o inventário é exclusiva dos tribunais (cfr. n.º 1, alínea b)); Acórdão da Relação do Porto de 13.7.2022 - O processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais, sempre que constitua dependência de outro processo judicial; Acórdão da Relação do Porto de 24.1.2022- As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art.º 1083º/1 CPC.

E, não lobrigamos, como alega, mas não fundamenta a Apelante, como é que o ex-cônjuge não devedor é restringido nos seus direitos.

Segundo a Recorrente, “uma tal interpretação e aplicação do direito, por se tratar de restrição de direito fundamental constitucionalmente garantido, constitui uma violação de direito civil e constitucional, ex vi art.36ºnº2 da CRP e arts.1788 a 1793 do CC.

Trata-se de um direito pessoal e irrestringível que não pode ser cerceado pela imposição de terceiros credores de um dos ex-cônjuges mas estranhos ao outro ex-cônjuge o qual não podem prejudicar, devendo a sua posição resultante do divórcio ser indemne a questões estranhas à ex-cônjuge não devedora.

A partilha notarial foi feita de acordo com a lei, a vontade das partes e jamais os terceiros credores de um dos ex-cônjuges ficam prejudicados pois sempre (mas apenas) têm direito a executar os bens que couberam ao ex-cônjuge devedor.

As nulidades dos negócios jurídicos estão previstas na lei e têm que resultar de factos concretos alegados e cominados com tal vício e na escritura de partilha notarial não existe qualquer vício de nulidade ou qualquer vício que afecte a sua validade e eficácia quer inter partes quer erga omnes como acto público feito por quem tem competência para tal e dando cumprimento a todas as normas legais.

Ergo a partilha é válida, eficaz e com a liquidação dos impostos devidos e todos os efeitos da extinção da comunhão indivisa que existe na sociedade conjugal, impõe-se a todos com efeitos erga omnes.

Pois, não se pode confundir a competência dos tribunais sempre que a partilha seja dependência de processo judicial com a competência para requerer a partilha por divórcio que não foi decretado pelo Tribunal. cfr. a obra, “O novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, “de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, anotações aos artigos 1083, pag.25, e art.1133, pag.160.

Pelo que, a partilha efectuada na sequência do divórcio, superveniente e mais ampla que uma partilha a efectuar em processo pendente para separação de meações, tem que prevalecer porquanto o divórcio implica uma partilha a efectuar de acordo com as regras de direito substantivo, à data do decretamento do divórcio, com toda a liquidação do dissolvido casal, nessa liquidação compreendendo todos os bens da separação de meações por realizar.

Ao indeferir a pretensão deduzida pela requerente o Despacho em causa viola as regras do direito substantivo aplicável à partilha por divórcio, arts.1788 a 1793 do CC. e viola o preceito constitucional do art.36ºnº2 da CRP que versando sobre direitos fundamentais é de aplicação directa, padecendo a decisão de nulidade por violação frontal da lei”.

Com alguma pertinência para a nossa decisão, nomeadamente no sentido da protecção dos credores, o que afasta o alegado pela Apelante, pode ler-se no Acórdão do STJ de 22.01.2008-processo 07A4033 que – o negrito é nosso:

 «I - Efectuado o requerimento para separação de meações (...), a instância executiva fica suspensa até à partilha. A partir deste momento prosseguirá sobre os bens penhorados se ficarem a pertencer ao executado, ou sobre outros que lhe tenham cabido, caso os penhorados não lhe couberem (mas fiquem a pertencer ao seu cônjuge).

II - Neste inventário, o cônjuge do executado tem o direito de escolha dos bens que hão-de formar a sua meação. Mas nesse caso, os credores podem reclamar contra essa escolha, fundamentando a sua queixa, inferindo-se do n.º 2 do art.º 1406º que o fundamento da reclamação só pode ser a má avaliação dos bens.

III - Teve aqui o legislador evidentes preocupações com os credores, pois, como é evidente, uma avaliação incorrecta, pode resultar em manifesto prejuízo deles. Note-se que o que se trata aqui é a possibilidade de o exequente vir a penhorar bens que couberam ao executado, sendo evidente o dano se existir uma avaliação por defeito dos bens escolhidos pelo cônjuge deste. (...)

V - Mesmo que se entenda que o processo pode terminar com uma transacção, nela têm que intervir, para além dos interessados no inventário, os credores exequentes cuja penhora em bens comuns do casal originou a instauração do processo (para separação de meações - art.º 293º, n.º 2, do CPC).

VI - Tendo os interessados, no presente inventário para separação de meações, chegado a acordo, sem que estivesse presente a credora, exequente no processo principal, vindo a ser homologada por sentença a referida transacção, fazendo-se terminar o processo, inviabilizou-se a realização da partilha e a consequente adjudicação dos bens a cada um dos cônjuges (ou seja, o preenchimento dos respectivos quinhões), não se permitindo, assim, o prosseguimento da execução com penhora de bens.

VII - Deverá, pois, revogar-se a sentença homologatória da transacção, realizando-se nova conferência de interessados e subsequente partilha.”

No Acórdão da Relação de Guimarães, de 07.3.2019-processo 3660/14.1T8VNF-G.G1:

“I. Penhorado um determinado bem comum do casal, numa execução movida unicamente contra um dos cônjuges, e citado o outro cônjuge ao abrigo do disposto no art.º 740º do CPC, das duas, uma:

- Ou o cônjuge do executado não requer a separação de meações nem junta certidão de acção pendente, e a execução prossegue contra o bem penhorado, para a sua venda ou adjudicação na acção executiva;

- Ou o cônjuge requer a separação de meações ou junta certidão comprovativa de processo de separação de bens já instaurado, suspendendo-se a execução nos bens comuns até à partilha.

II. Nesta última situação, podem ocorrer duas hipóteses:

1ª Ou o bem penhorado é adjudicado ao executado. 2ª Ou é adjudicado ao seu cônjuge.

III. Naquela primeira hipótese, não surge, neste âmbito, qualquer problema, uma vez que se o bem penhorado for adjudicado ao executado, a execução pode voltar a prosseguir os seus trâmites ulteriores relativamente a tal bem. No entanto, se se verificar a segunda hipótese, e o bem penhorado for adjudicado antes ao cônjuge do executado, ficando o executado com a sua meação preenchida com o direito às tornas, deve-se entender que a garantia de pagamento do crédito do exequente resultante da primitiva penhora (que incidia sobre um bem comum do casal) transfere-se automaticamente para os bens que passaram a constituir o quinhão do executado/devedor.

IV. Nessa medida, qualquer acordo de composição dos quinhões que tenha sido estabelecido pelos cônjuges naquele Inventário, por via do qual se atinja aquele resultado (o bem penhorado seja adjudicado ao cônjuge não executado, ficando o cônjuge executado com direito a tornas, logo, alegadamente, pagas em mão), deve ser considerado ineficaz em relação ao Tribunal da execução por aplicação do regime da penhora de créditos (art.ºs 740º, n.º 2; cf. art.º 777º do CPC; e art.ºs 820º e 823º do CC, este por analogia), ficando o executado (ou o cônjuge do executado) obrigado a entregar as tornas no processo executivo - mesmo que estas já tenham sido alegada e indevidamente entregues ao executado.

V. Enquanto isso não suceder, a penhora que incide sobre os bens imóveis (bens comuns do casal) tem que se manter, pois que, conforme decorre do disposto no art.º 740º, n.º 2 do CPC a penhora primitiva mantém-se (“permanece”) “até à nova apreensão”.

VI. Além disso, tendo em conta a afirmada ineficácia dos actos de partilha efectuados (designadamente, da entrega em mão das tornas) perante a penhora vigente dos bens comuns do casal (cf. n.º 2 do art.º 740º do CPC), não se pode julgar verificada a existência de caso julgado (seja em que modalidade for), uma vez que a decisão proferida no processo de inventário (sentença que homologou a partilha) não impõe a sua autoridade, nem obsta a que se reconheça a ineficácia (limitada) dos actos de partilha homologados, em face dos efeitos sub-rogatórios (automáticos) da penhora dos bens comuns sobre as tornas ou o direito às tornas que vieram a integrar o património do executado.”

E da Relação de Évora de 13.12.2005-processo n.º 630/05-3:

“(...) 2 - No inventário para separação de meações com a adjudicação do bem, onerado por penhora, ao cônjuge não executado, transfere-se, também, este ónus, nos termos do art.º 823º do Cód. Civil para os bens que hão-de constituir o quinhão do seu cônjuge, devedor, o valor das tornas, sobre elas passando a incidir a garantia do pagamento do crédito.

3 - O devedor das tornas fica colocado na posição de fiel depositário, com todos os deveres daí inerentes, inclusive, com a obrigação e prestar contas (art.º 843º, n.º 1 do CPC), pelo que sobre ele incide o dever de conservar as tornas em seu poder ou de as depositar à ordem do tribunal.

4 - A não existência de conflito entre os cônjuges, e a estratégia deliberada para colocar o imóvel - o único bem capaz de garantir substancialmente a satisfação do crédito do credor Estado Português - no património da cônjuge-mulher e não executada, com vista à subtracção ao pagamento, consubstancia um comportamento malicioso tendente a fazer do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal, ou seja, manifesta má fé processual.

5 - No inventário para separação de meações, atento o interesse dos credores, quando aos bens é atribuído valor muito diferente dos valores de mercado deve o juiz, oficiosamente, ao abrigo do disposto no art.º 1353º, n.º 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, determinar se proceda à avaliação” – todos os acórdãos estão publicados em www.dgsi.pt.

Assim, contrariamente ao pretendido pela Apelante, a escritura de partilha extrajudicial datada de 30.12.2021, atento o disposto na norma do artigo 1083.º e a protecção dos credores (que não violam as normas constitucionais invocadas pela Apelante) não torna os presentes autos supervenientemente inúteis, devendo os mesmos prosseguir os seus termos - a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide apenas tem lugar quando “por um facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida”.

Assim, com todo o respeito pelas razões invocadas pela Apelante, mantemos o decidido na 1.ª instância.

As conclusões (sumário):

(…).

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível ....

Custas a cargo da Apelante.

Coimbra, 30 de Maio  de 2023

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Arlindo Oliveira – 1.º adjunto)

( Emidio Santos - 2.º adjunto)