Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM CONTRADITÓRIO DO REQUERIDO RECURSO DA DECISÃO DE DECRETAMENTO FUNDAMENTOS | ||
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Data do Acordão: | 04/26/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA NAZARÉ DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 366.º, N.º 1, E 372.º, N.º 1, ALS. A) E B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
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Sumário: | I – É por referência à situação descrita no requerimento inicial do procedimento cautelar, e não a vicissitudes posteriores, que deve sindicar-se a legalidade da decisão de não ouvir o requerido antes do decretamento da providência.
II – O recurso contra o despacho que decretou a providência pode ter como fundamento o erro na decisão da matéria de facto ou o erro na decisão de direito, mas não a omissão de diligências de prova por parte do tribunal. III – É através da dedução de oposição – art. 372.º, n.º 1, al. b), do CPCiv. –, e não pela via do recurso, que o requerido, que não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, pode alegar factos ou produzir provas, não tidos em conta pelo tribunal, suscetíveis de afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 242/21.5T8NZR-A.C1
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
AA e sua mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., requereram contra CC e seu marido, DD, residentes na Estrada ..., ..., ..., a título de providências cautelares: Para o efeito alegaram em síntese: Os requerentes pediram ainda: No despacho liminar, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo dispensou a audição dos requeridos. Antes da data designada para a produção da prova indicada pelos requerentes, estes vieram alegar que os requeridos haviam colocado um portão na entrada da serventia e construído um muro em toda a extensão do caminho e que o portão impedia o livre acesso ao prédio dos requerentes e o muro não permitia o acesso ao logradouro dos prédios dos requerentes. Em consequência pediram a alteração dos pedidos deduzidos inicialmente no seguinte sentido: Produzida a prova indicada pelos requerentes, foi proferido despacho que decidiu: Os recorridos, notificados nos termos previstos no n.º 6 do artigo 366.º do CPC, recorreram do despacho que decretou as providências, pedindo se revogasse e se substituísse esse despacho por decisão que julgasse a providência cautelar totalmente improcedente. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Os requerentes responderam ao recurso, sustentando desenvolvidamente a manutenção da decisão recorrida. * Objecto do recurso Apesar de, no requerimento com que interpuseram o recurso, os recorrentes terem identificado, como objecto dele, o despacho que decretou as providências cautelares, a presente apelação não tem como objecto apenas tal decisão. Considerando o corpo da alegação e as conclusões formuladas sob as alíneas A) a I), o recurso visa também a decisão proferida em 30-11-2021 que dispensou a audiência deles, recorridos, antes do decretamento da providência. Sobre esta impugnação cabe dizer que ela é processualmente admissível e, de um ponto de vista lógico, deve ser apreciada antes do conhecimento do recurso contra o despacho que decretou as providências. Com efeito, na hipótese de a julgarmos procedente, ficará prejudicado o conhecimento deste último. E ficará prejudicado porque a procedência da impugnação contra o despacho que dispensou a audiência dos requeridos antes do decretamento da providência significa que tal decisão foi ilegal e que os requeridos deviam ser ouvidos antes do mencionado decretamento. A reposição da legalidade implica, por um lado, a anulação dos termos subsequentes ao despacho ilegal, entre os quais se compreende o despacho que decretou as providências, e, por outro, a prática dos actos omitidos, que no caso consiste na notificação dos requeridos para deduzirem oposição, oferecerem o rol de testemunhas e requererem outros meios de prova (n.º 2 do artigo 366.º do CPC combinado com a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 293.º do CPC aplicável por remissão do n.º 3 do artigo 365.º do CPC). Deste modo, caso a impugnação venha a ser julgada procedente, a consequência não é, como pretendem os recorrentes, a substituição do despacho que decretou as providências por decisão a negar tal decretamento. * Precisado o objecto do recurso, cabe dizer o seguinte sobre as questões suscitadas na presente apelação. A impugnação da decisão que dispensou a audição dos requeridas suscita a questão de saber se tal decisão é nula. O recurso contra o despacho que decretou as providências suscita questões de facto e de direito (nulidade da decisão, verificação dos requisitos do procedimento cautelar). * Impugnação da decisão proferida em 30-11-2021 que dispensou a audiência dos requeridos antes do decretamento das providências O tribunal a quo invocou o disposto no artigo 378.º do CPC e a verificação dos pressupostos enunciados no artigo 366.º do mesmo diploma para dispensar a audiência dos requeridos antes do decretamento da providência. Segundo o despacho recorrido, se se confirmassem os factos alegados pelos requerentes, a prévia audição dos requeridos poria em risco sério o efeito prático da providência, na medida em que, estando os requeridos em vias de colocar um portão na entrada da referida servidão e de realizar de obras no caminho que serve de servidão, a audição prévia colocaria em causa a finalidade pretendida com o procedimento, assim como a demora do seu decretamento poderia acarretar transtornos e prejuízos para a sua reposição. Por outro lado – continuou o despacho recorrido - configurando os requerentes o seu pedido mediante a existência de uma servidão de passagem pelo caminho adquirido por usucapião, cuja utilização se verificava há quase 40 anos, pelo pai do requerente AA, por este e sua mulher, pelos seus inquilinos e por terceiros que tinham necessidade de se deslocar a qualquer um dos prédios propriedade dos requerentes, sempre se teria de atender ao disposto no artigo 378.º do Código de Processo Civil que refere “se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”, prevendo tal normativo a não citação nem audiência do esbulhador/requerido. Os recorrentes imputam à decisão a violação do artigo 366.º, n.º 1, do CPC, do princípio do direito ao contraditório ínsito no artigo 3.º, n.º 1 e 415.º, todos do CPC, com a seguinte alegação: Apreciação do tribunal: São exactas algumas das premissas de direito e de facto em que assenta a impugnação da decisão, concretamente: No entanto, já não tem amparo na lei e nos factos a afirmação de que, no momento da inquirição das testemunhas, já não se verificava qualquer risco sério para o fim ou a eficácia da providência, na medida em que o acto que se pretendia impedir já tinha sido consumado. Em primeiro lugar cabe recordar que se é verdade que, no requerimento inicial, os requerentes pediram que os requeridos fossem “condenados” a absterem-se da edificação de qualquer muro ou portão que impedisse ou dificultasse o acesso aos prédios urbanos inscritos na matriz sob os artigos ...3 e ...1, também é verdade que, quando tiveram conhecimento da colocação do portão e da construção do muro, alteraram a sua pretensão, passando a pedir que os requeridos fossem condenados a removerem o portão de ferro e o muro. Em segundo lugar, a circunstância de, no momento em que foi produzida a prova, os recorridos já terem levado a cabo as acções que se pretendiam evitar com as providências é irrelevante para o juízo sobre a legalidade da decisão de dispensa da audiência dos requeridos. Vejamos. Uma vez que a citação dos requeridos depende de prévio despacho judicial (alínea b) do n.º 4 do artigo 226.º do CPC), a decisão sobre a não audição dos requeridos antes do decretamento das providências é tomada no momento do despacho liminar. É quando o processo lhe é apresentado a despacho liminar que o juiz decide se dispensa a citação dos requeridos antes do decretamento das providências. E visto que, nesse momento, a única realidade que tem ao seu dispor para decidir é a que tiver sido narrada pelos requerentes no requerimento inicial, é bom de ver que a decisão sobre a não audiência dos requeridos será tomada com base nessa realidade e não com a que se verificar no momento da produção da prova. Cita-se em abono desta interpretação EE que escreve a este propósito o seguinte: “A decisão de dispensa da audiência prévia do requerido deve ser tomada com base na matéria de facto alegada na petição inicial e de acordo com a situação factual nela descrita” [Providências Cautelares, 2015, Almedina, página 369]. Segue-se do exposto que era por referência à situação descrita no requerimento inicial que tinha sentido sindicar a legalidade da decisão de não ouvir os requeridos antes do decretamento da providência. Tendo por referência tal situação, a decisão é de manter, embora por razões não inteiramente coincidentes com as da decisão recorrida. Vejamos. Em primeiro lugar, o artigo 378.º do CPC não é aplicável ao caso. Com efeito, o preceito aplica-se apenas ao procedimento de restituição provisória da posse e as providências requeridas pelos requerentes estão sujeitas às disposições do procedimento cautelar comum. Em segundo lugar, contrariamente ao que se afirmou na decisão impugnada, se os requeridos tivessem sido ouvidos antes do decretamento das providências, o fim delas não teria sido posto em risco. O fim das providências era manter livre e desimpedida a servidão de passagem até à decisão a proferir na acção principal. E assim, ainda que tivessem aproveitado a citação para colocar o portão e construir o muro à entrada da faixa de terreno por onde se fazia a passagem, continuava a ser possível manter o fim da providência. Na verdade, a intimação dos requeridos para manterem livre e desimpedida a servidão de passagem até à decisão a proferir na acção principal compreendia necessariamente a ordem para removerem o portão e o muro. Se os recorridos fossem ouvidos antes de ser decretada a providência, o que aconteceria é que a audição iria atrasar tal decretamento. E este atraso significava que os requerentes e as pessoas que, segundo eles, habitavam, como arrendatários, num dos prédios, ficariam privados mais tempo do acesso, a eles, de carro. Ora o facto de uma família, da qual, segundo os requerentes, fazia parte uma criança, ficar impedida de aceder, de carro, ao local onde tinha a sua habitação é uma situação grave e que requer uma resolução urgente. E era esta urgência que justificava a dispensa da audição dos requeridos. Socorrendo-nos das palavras de EE, deve ser dispensada a audiência prévia do requerido quando a providência cautelar revista um carácter urgente e dessa audiência possa resultar uma demora susceptível de aumentar ou prolongar o dano” [Providências Cautelares, 2015, Almedina, páginas 371]. Pelo exposto, mantém-se a decisão que dispensou a audiência dos requeridos. * Recurso contra o despacho que decretou as providências: O recurso suscita questões de facto e de direito. Considerando que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, iremos começar o julgamento pela apreciação daquelas. Em sede de facto, os recorrentes desferem as seguintes críticas à decisão: Apreciação do tribunal: A alegação de que nenhuma prova foi produzida quanto ao comprimento da servidão constitui uma crítica à decisão relativa à matéria de facto, concretamente à proferida sob os pontos números 11 e 15, pois é neles que estão descritas as dimensões da servidão. Esta crítica não procede. Vejamos. No recurso que interponha ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC contra a decisão que decreta a providência, o requerido tem a faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto. Cita-se em abono desta interpretação Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filie Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, páginas 438, em anotação ao artigo 372.º. A validade processual desta impugnação está dependente do cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do CPC. Em caso de incumprimento, a consequência é a rejeição da impugnação (n.º 1 e n.º 2, alínea a) do artigo 640.º do CPC). É este o destino da impugnação dos recorrentes. Com efeito, se a alegação deles permite alcançar quais os pontos de facto impugnados e qual a decisão sobre eles, ela já não cumpre o ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. E não cumpre porque o recorrente alegou genericamente que nenhuma prova foi produzida quanto ao comprimento da serventia, quando o cumprimento de tal ónus exigia que os recorrentes concretizassem o meio ou os meios de prova que impunham a alteração da decisão de facto. Mais: tendo o tribunal a quo especificado os meios de prova que o levaram a considerar sumariamente provados os pontos n.ºs 11 e 15 [declarações do requerente FF, e os depoimentos das testemunhas GG (pontos n.º 11), HH (ponto n.º 11), II e JJ (pontos n.ºs 11 e 15)], tendo tais meios de prova sido gravados e dizendo os recorridos que nenhuma prova foi produzida quanto à matéria em questão, era seu dever [alínea a), do n.º 2 do artigo 640.º do CPC] indicarem as passagens da gravação das declarações e dos depoimentos em que fundavam a sua afirmação de que nenhuma prova foi produzida sobre as dimensões da servidão, o que não fizeram. Pelo exposto, mantém-se a decisão proferida em relação aos pontos n.ºs 11 e 15. * Uma segunda crítica à decisão de facto é a constituída pela seguinte alegação: “no que diz respeito às dimensões do portão, que não resultava da sentença qual a prova produzida que levasse à decisão de que, encontrando-se as duas partes laterais sem qualquer abertura, forçosamente tal circunstância limita o acesso de passagem a veículos de maiores dimensões, como pesados, ambulâncias ou carros de bombeiros”. Antes de mais, importa contextualizar esta crítica. O despacho recorrido julgou provado sob o ponto n.º 30 que, no dia 10/12/2021, os requeridos acabaram por colocar um portão de ferro na entrada da serventia e procederam à construção de um muro em toda a extensão do caminho. E sob o n.º 31 julgou provado que “o portão colocado impede o livre acesso aos prédios dos Requerentes, embora não esteja fechado à chave, impossibilita qualquer passagem de ambulância em caso de emergência médica, ou mesmo a passagem de bombeiros em caso de incêndio, não existindo outro acesso de carro ou a pé”. Em sede de fundamentação de direito, mais concretamente ao apreciar a questão de saber se estavam verificados os pressupostos do decretamento da providência, o despacho sob recurso afirmou o seguinte a propósito da colocação do portão: “… atenta a estrutura e dimensão do portão de ferro colocado pelos requeridos, em que só abre numa das partes (ao meio), encontrando-se as duas partes laterais sem qualquer abertura, forçosamente tal circunstância limita o acesso de passagem a veículos de maiores dimensões, como pesados, ambulâncias ou carros de bombeiros”. É exacta a alegação dos recorrentes de que a decisão recorrida não indicou qual o meio de prova que a levou a afirmar, em relação ao portão, que as duas portas laterais não tinham qualquer abertura. Esta omissão é, no caso, irrelevante Vejamos. Resulta do n.º 4 do artigo 607.º do CPC - aplicável com as necessárias adaptações às decisões proferidas nos procedimentos cautelares por remissão dos artigos 363.º, n.º 3 e 295.º ambos do CPC - que o dever de fundamentação da decisão de facto só existe em relação aos factos que o juiz julga provados e em relação aos que julga não provados. Assim sendo, a não indicação do meio de prova de que falam os recorrentes constituiria uma violação do dever de fundamentação das decisões judiciais se o Meritíssimo juiz do tribunal a quo tivesse julgado provado o facto em questão, o que não sucedeu. Na verdade, não figura na matéria sumariamente provada que as duas portas laterais do portão não tinham qualquer abertura. Diga-se que se tal matéria aí figurasse, a consequência não seria a nulidade da decisão por falta de fundamentação, como pretendem os recorrentes. A nulidade da decisão por falta de fundamentação está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e só ocorre quando a sentença omite por completo as razões de facto e/ou direito do que foi decidido. Se o juiz não fundamentar um segmento da decisão de facto, a faculdade que assiste às partes é a de requererem que o juiz do tribunal da 1.ª instância a fundamente (alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC). O que poderá censurar-se à decisão recorrida é o ter-se socorrido, em sede de fundamentação de direito, de um facto – encontrarem-se as duas portas laterais do portão sem qualquer abertura - que não figurava na matéria assente, contra o que prescreve o n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicável à decisão proferidos nos procedimentos cautelares por remissão do n.º 3 do artigo 365.º e do artigo 295.º do CPC. A censura, a fazer-se, não teria qualquer influência na decisão. Na verdade, não foi por as portas laterais do portão não terem qualquer abertura que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo concluiu que se mostrava suficientemente fundado o receio de lesão da servidão de passagem. O Meritíssimo juiz concluiu em tal sentido por o portão impossibilitar qualquer passagem de ambulância em caso de emergência médica, ou mesmo a passagem de bombeiros em caso de incêndio, não existindo outro acesso de carro ou a pé, e por o muro edificado impedir, totalmente, o acesso aos logradouros dos prédios dos requerentes. E estes factos – essenciais - foram julgados provados, o primeiro sob o n.º 31 e o segundo sob o n.º 32. * Por último, ainda com relevância em sede de facto, embora com mistura de questões de direito, alegam os recorrentes que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo errou ao não ter apurado as dimensões exactas do portão, que proferiu uma decisão de remoção do mesmo, sem qualquer apreciação fáctica e concretização da largura real do portão e a largura dos mencionados veículos, violando o princípio da equidade, o que importava a nulidade da decisão por falta de fundamentação. Ao alegarem que o juiz errou ao não ter apurado as dimensões exactas do portão, os recorrentes censuram a actividade probatória desenvolvida pelo tribunal a quo antes da prolação da decisão sobre o decretamento das providências. Sucede que, ainda que o tribunal a quo tenha errado por não ter apurado as dimensões exactas do portão, os recorrentes não estão em condições de invocar este erro como fundamento do recurso. Com efeito, resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC conjugado com a alínea b) do mesmo preceito que o recurso interposto contra o despacho que decretou a providência pode ter como fundamento o erro na decisão da matéria de facto ou o erro na decisão de direito, mas já não a omissão de diligências de prova por parte do tribunal. Se os requeridos entendiam que as medidas exactas do portão afastavam os fundamentos da providência e que o tribunal a quo devia ter realizado diligências de prova para apurar tais medidas, então deviam ter deduzido oposição ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC, pois é através da oposição prevista nesta alínea que os requeridos, que não tiverem sido ouvidos antes do decretamento da providência, têm a faculdade de alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Pelo exposto, julga-se improcedente a alegação dos recorrentes. * Julgadas as questões de facto suscitadas pelo recurso consideram-se provados e não provados os seguintes factos discriminados no despacho recorrido: Factos provados: Factos não provados * Descritos os factos, passemos à apreciação dos restantes fundamentos do recurso visando a decisão de direito. Comecemos pelo argumento de que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo errou ao decretar a demolição do muro numa extensão de 300 metros, pois desta forma implicará a demolição de construções dos requeridos no prédio a poente desta serventia que não é objecto da acção. Este argumento não é pertinente como fundamento do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC. Como já escrevemos acima, resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC conjugado com a alínea b) do mesmo preceito que o recurso interposto contra o despacho que decretou a providência pode ter como fundamento o erro na decisão da matéria de facto ou o erro na decisão de direito, ou seja, como diz a letra da alínea a), recorrer quando entenda que, face aos elementos apurados, a providência não devia ter sido decretada. O erro que é imputado à decisão labora com base no seguinte pressuposto de facto: que a demolição de 300 metros de muro implica a demolição de construções dos requeridos no prédio a poente da serventia que não tem relação com ela. Sucede que esta matéria não está provada. Logo, não poderá ser tomada em conta por este tribunal na decisão do recurso. À semelhança do que se disse a propósito da questão das medidas do portão, se os requeridos entendiam que a demolição de 300 metros de muro implicava a demolição de construções dos requeridos no prédio a poente da serventia que não tem relação com ela, então deviam ter deduzido oposição ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 372.º do CPC, pois é através da oposição prevista nesta alínea que os requeridos, que não tiverem sido ouvidos antes do decretamento da providência, têm a faculdade de alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Pelo exposto improcede este fundamento do recurso. * Um outro argumento de que se servem os recorrentes para pedir a revogação da decisão, já apreciado, em parte, em sede de facto, é o constituído pela alegação de que o juiz, ao não ter apurado as dimensões exactas do portão e ao ter proferido uma decisão de remoção do mesmo, sem qualquer apreciação fáctica e concretização da largura real do portão e a largura dos mencionados veículos, violou o princípio da equidade, o que importava a nulidade da decisão por falta de fundamentação. Em primeiro lugar é totalmente descabido invocar no caso, como critério de decisão, o princípio da equidade. Os tribunais só podem resolver segundo a equidade nos casos previstos no artigo 4.º do Código Civil e a decisão sobre o decretamento de providências cautelares não cabe em nenhum deles. Em segundo lugar, não colhe contra a decisão a alegação de que a circunstância de o tribunal não ter apurado as dimensões do portão e não ter concretizado a largura real do portão e a largura dos veículos tornava a decisão nula por falta de fundamentação. Com efeito, a nulidade da decisão por falta de fundamentação está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e, na interpretação deste preceito, a jurisprudência afirma de modo constante que ele abrange apenas o caso da sentença que omite por completo as razões de facto e ou de direito da decisão, o que não é o caso da decisão recorrida, pois ela indicou com clareza as razões de direito e de facto que a levaram a decretar a providência. * Sob a epígrafe verificação dos requisitos do procedimento cautelar [conclusões R) a Y)], os recorrentes socorrem-se de vários argumentos, misturando as seguintes questões: nulidades de sentença (artigo 615.º do CPC), requisitos das providências cautelares não especificadas (artigo 362.º do CPC) e recusa da providência nos termos do n.º 2 do artigo 368.º do CPC. Assim num passo deste capítulo [conclusões U) e V)] alegam: Noutro passo, alegam que o decretamento da providência é manifestamente extemporâneo na medida em que não veio impedir a realização das obras, uma vez que as mesmas se encontravam já totalmente concluídas à data da prova da prova. Rematam esta alegação imputando ao despacho a violação do artigo 615.º n.º 1, alíneas b) e c), do CPC, que determinaria a sua nulidade. Por fim alegam que, considerando que os requerentes têm livre acesso aos seus imóveis, os danos patrimoniais causados pela remoção do portão e destruição do muro revelam-se muito superiores à sua manutenção, o que, seguindo os recorrentes, era do senso comum. Apreciação do tribunal: Em primeiro lugar, cabe dizer que não está provado que o portão de acesso ao prédio dos requerentes abre-se de par em par e permite o livre acesso aos imóveis, nem que a servidão está desimpedida e sem obstáculos ao estacionamento. E não estando provada esta realidade ela é irrelevante para a aplicação da lei, pois resulta claramente do n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicável ao acórdão por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC, que a lei aplica-se apenas aos factos considerados provados. Em segundo lugar, ao alegar que o decretamento da providência era manifestamente extemporâneo na medida em que não impediu a realização das obras, que se encontravam já totalmente concluídas à data da prova, os recorrentes argumentam como se as providências requeridas visassem tão só impedir a realização das obras, concretamente a colocação do portão e a construção do muro. O argumento não é exacto. Em primeiro lugar, a providência principal é a intimação dos requeridos para manterem a servidão livre e desimpedida. A intimação dos requeridos para se absterem de fechar a entrada da servidão com um portão e não construírem era um instrumento ao serviço da providência principal. Sucede que, tendo tomado conhecimento da realização das obras, ainda antes da produção da prova, os requerentes pediram a intimação dos requeridos para removerem o muro e o portão, o que foi deferido. Não se pode, assim, dizer que, na data da produção da prova, uma das providências ainda fosse a não realização das obras. Em segundo lugar, a realização das obras não retirava razão de ser ao procedimento cautelar. Vejamos. As providências cautelares previstas no n.º 1 do artigo 362.º do CPC não são meios de reacção contra as lesões já consumadas do direito do requerente. Com efeito, resulta do n.º 1 do artigo 362.º, na parte em que se refere ao fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, e do n.º 1 do artigo 368.º, na parte em que dispõe que a providência será decretada desde que se mostre suficientemente fundado o receio da lesão do direito, que a lesão que se quer evitar com a providência é aquela que se produzirá enquanto o requerente aguarda que seja proferida decisão definitiva na acção principal, caso não seja decretada a providência. Porém, como escreve Marco Carvalho Gonçalves, as lesões já consumadas podem fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano [Providências Cautelares, 2015, Almedina, páginas 207, 208 e 209]. E este receio fundado de lesões futuras, de continuação das lesões, ou da repetição delas cabe no âmbito das providências pedidas ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC. Era precisamente o que se passava com a colocação do portão e a construção do muro. Estas obras, ao impedirem o exercício do direito de passagem, violavam este direito. Sucede que esta violação não se esgotava com tais obras. Enquanto elas se mantivessem, perdurava a violação do direito. As obras davam, assim, origem a uma violação continuada no tempo do direito de passagem. Se a providência de intimação dos requeridos para manterem a servidão livre e desimpedida já nada podia acautelar em relação às violações passadas do direito de passagem, o mesmo já não se poeria dizer em relação às violações futuras. Em relação a elas mantinha utilidade e razão de ser. Por último, no capítulo dos requisitos do procedimento cautelar, os recorrentes alegaram que, considerando que os requerentes tinham livre acesso aos seus imóveis, os danos patrimoniais causados pela remoção do portão e destruição revelavam-se muito superiores à sua manutenção, o que é do senso comum. Apesar de os recorrentes não invocarem expressamente o n.º 2 do artigo 368.º do CPC é para este preceito que remete a sua alegação. Com efeito, resulta dele, combinado com o n.º 1 do mesmo preceito que, apesar de haver a probabilidade séria da existência do direito e de se mostrar suficientemente fundado o receio da sua lesão, o tribunal tem o poder/dever de não decretar a providência quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar. Como se vê, o preceito põe em confronto dois prejuízos hipotéticos: o que resultaria para o requerido se a providência fosse decretada e o que resultaria para o requerente se a providência não fosse decretada. Do ponto de vista lógico e cronológico, o prejuízo que pesa na decisão de recusa das providências é um prejuízo futuro, isto é, um prejuízo que ocorrerá depois do decretamento da providência e por causa do decretamento. Quanto aos sujeitos afectados pelo prejuízo, a letra do n.º 2 do artigo 368.º, ao falar no “prejuízo dela resultante para o requerido” aponta no sentido de que o que releva para a sua aplicação é apenas o prejuízo, patrimonial ou não patrimonial, que atinge a esfera jurídica daquele contra quem é requerida a providência. Fora do alcance do preceito estão os prejuízos resultantes da providência que atinjam quem não é parte no procedimento. Por fim, para que a providência seja recusada é necessário que o prejuízo que dela resulta para o requerido seja consideravelmente superior ao dano que com ela o requerente pretende evitar, no sentido de que o prejuízo dela resultante exceda em muito o dano que se quer evitar. Por força desta exigência, a providência não será de recusar quando os factos não permitam afirmar este excesso. O n.º 2 do artigo 368.º do CPC, interpretado com o sentido e o alcance expostos, não dá cobertura à pretensão dos recorrentes, uma vez que o tribunal não está em condições de fazer o juízo comparativo pressuposto nele. Na verdade, ignoram-se os danos patrimoniais causados aos recorrentes pela remoção do portão e destruição do muro. Mais: a prova desses danos pressupunha a sua alegação pelos recorrentes e a sede própria para tal alegação era a oposição prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 372.º do CPC. * Recurso contra a decisão que condenou os requeridos a pagar aos requerentes, título de sanção pecuniária compulsória, quantia de 50,00 € (cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento do determinado nos pontos 3.1 e 3.2 do dispositivo do despacho que decretou as providências. Os recorrentes acusam este esse segmento do despacho de ser nulo por não ter fundamentado o valor da sanção pecuniária compulsória de 50 euros. Assiste razão aos recorrentes. Segundo o n.º 2 do artigo 829.º-A do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória será fixada segundo critérios de razoabilidade. Resulta deste preceito que cabia ao tribunal a quo indicar as razões pelas quais fixava à sanção pecuniária compulsória o valor diário de 50 euros. Ao fixar o montante da sanção pecuniária compulsória em 50 euros por cada dia de atraso no cumprimento do que fora determinado, dizendo ser o montante justo e adequado pela violação das medidas determinadas, o tribunal não indicou os critérios de tal valor. A decisão enferma, pois, de nulidade por falta de fundamentação. Considerando o n.º 1 do artigo 665 do CPC, cabe a este tribunal apreciar a questão de saber se há fundamento para fixar tal valor. A resposta a esta questão é afirmativa. Em primeiro lugar, apesar de não se conhecer a situação económica e financeira dos requeridos, o valor é, em termos quantitativos, moderado. Em segundo lugar, afigura-se que tal valor será suficiente para os requeridos não desprezarem a ordem do tribunal. Pelo exposto, mantém-se o valor diário da sanção pecuniária compulsória. Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantêm-se as decisões recorridas. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas custas do recurso. Coimbra, 26-04-2022
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