Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FÁTIMA SANCHES | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ACUSAÇÃO PÚBLICA REDUÇÃO FACTUAL CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES APRESENTAÇÃO DE QUEIXA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL | ||
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Data do Acordão: | 02/19/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 152º, N.ºS 1, ALÍNEA A), E 2, AL. A) E ARTIGO 143.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 358º, Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ARTIGO 115º DO CÓDIGO PENAL. | ||
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Sumário: | 1 - Embora sendo possível o cometimento do crime de violência doméstica através de um só ato, este terá que atingir de modo intenso a dignidade pessoal da vítima, revelando uma intensa crueldade, insensibilidade e desprezo pela consideração do outro como pessoa;
2 - Tendo apenas resultado provado que, numa única ocasião, o arguido agrediu a vítima com uma bofetada na face, a qual causou à ofendida “equimose bilateral a nível infra-orbitária”, e “dores na pirâmide nasal”, agressão que foi perpetrada na residência do casal e no contexto de uma discussão, cometeu o arguido, não o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea a), e 2, al. a), do Código Penal, mas tão só o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do mesmo diploma, pois a referida agressão não tem intensidade adequada a ofender de forma significativa a dignidade da vítima. 3 - Subsistindo matéria de facto que preenche os elementos objetivo e subjetivo constitutivos do tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples, ilícito de natureza semipública, não pode prescindir-se da apresentação de queixa - pese embora a mesma não fosse condição de procedibilidade no início do inquérito e correr-se, assim, o risco de, na fase de julgamento, se mostrar esgotado o respetivo prazo de exercício do direito de queixa -, sob pena de se violentar a vontade do respetivo titular dos interesses que a norma visa proteger. 4 - Não tendo a ofendida apresentado queixa (houve denúncia anónima) antes tendo manifestado, de forma reiterada e inequívoca, a sua vontade de não proceder criminalmente contra o arguido e afirmado a sua vontade de não pretender constituir-se Assistente, o MP não mantém a legitimidade para o exercício da ação penal, o que determina a extinção do procedimento criminal relativo ao crime de ofensa à integridade física simples. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. RELATÓRIO 1. No processo comum singular, com o NUIPC68/24.4GCVIS que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, no Juízo Local Criminal de Viseu, foi proferida sentença, em 15-10-2024 [referência96394379], com o seguinte dispositivo (transcrição): «Nos termos expostos, julga-se a acusação pública procedente, por provada, e, em consequência, decide-se: 1. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão; 2. Suspender a execução da pena de prisão por igual período, sujeita a regime de prova (art. 50.º a 53.º do Código Penal), em cumprimento do plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP e, ainda, a obrigação de o arguido sujeitar-se, nos termos a estabelecer pela DGRSP, a uma avaliação médica que afira da existência e da necessidade de eventual tratamento e, na sua sequência e se assim se justificar, a tratamento médico (art. 53.º, n.º 2 do CP); 3. Condenar o arguido AA na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, a cumprir no prazo máximo fixado para a suspensão da pena de prisão; 4. Condenar o arguido AA a pagar à ofendida a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), nos termos do disposto no art.s 21.º nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, e 82.º-A do Código de Processo Penal; 5. Condenar arguido AA no pagamento dos encargos e custas crime do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC´s (art. 513.º, nº 1 a 3 do Código de Processo Penal e art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais por referência à Tabela III anexa).»
2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido AA. O recorrente sintetizou os seus argumentos nas seguintes conclusões (transcrição): «1ª – O Tribunal a quo deu como provado, além mais, os seguintes aspetos que constam dos factos 3, 4, 14 e 15, que seguem a sublinhado, e com os quais não se concorda: 3. No dia 20 de Janeiro de 2024, cerca das 19h00, após a vítima ter regressado do trabalho, na Associação ...”, Lar e Creche, sita na Localidade de ..., na residência do casal, o arguido iniciou uma discussão com a vítima, acusou-a de estar alcoolizada (“bêbeda”) e desferiu-lhe uma chapada na cara. 4. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, no dia 20.01.2024, resultou na vítima BB “equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias). 14. Na sequência da aplicação daquelas medidas a vítima saiu de casa tendo ido viver para casa da filha. 15. Em Maio a vítima voltou a casa por sua própria vontade vivendo ambos na casa de morada de família desde então, pautando-se o relacionamento entre ambos, desde então, pela ausência de momentos de conflitualidade. 2ª – Concluiu o Tribunal a quo terem-se verificado todos os elementos (objetivos e subjetivos) do crime de violência doméstica, vindo a final a condenar o arguido, além do mais, na pena de prisão de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na execução; 3ª - Convicção formada erradamente porquanto o que importa é saber se a conduta do agente/arguido, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”. 4ª - Analisado o caso que nos toma, a conclusão deverá ser no sentido de não ser classificada como “maus tratos”. 5ª - Atentos os factos dados como provados, deverá concluir-se que a conduta do arguido, embora penalmente relevante e por isso passível de sanção penal, verificou-se apenas uma vez, sendo que a relação de ambos não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima. 6ª – Cremos, assim, ter sido violado o disposto no artigo 152º n.º 1 a) e n.º2 b) do Código Penal.»
3. Ao recurso interposto pelo Arguido respondeu o Ministério Público, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição): «1. Face à factualidade dada como provada e ponderando os elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço, não podemos deixar de concluir que bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar o arguido pela prática do crime de violência doméstica. 2. O contexto da actuação do arguido (e que resulta dos factos provados em 3, 4. 5. e 6), revela o grande desvalor da sua conduta. Com efeito, perante a hipótese da ofendida se apresentar alcoolizada, o arguido desferiu-lhe uma chapada na face, demonstrando a supremacia que assumia sobre a esposa, ao ponto de a sujeitar a um “castigo” quase feudal, apenas e só pelo facto de esta poder ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso. 3. Por outro lado, a chapada desferida foi de uma extrema violência, tendo resultado lesões que demandaram para a ofendida um período de 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias). A intensidade colocada pelo arguido nesta acção, manifestada pelo resultado verificado nas lesões sofridas, demonstra a violência da agressão, mas também a exteriorização da superioridade do arguido em relação à sua companheira, que visa desconsiderar, diminuir e humilhar a mesma. 4. Daí que se considere que a conduta do agente, pelo seu carácter violento e pela configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima e de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, em que se traduz este único facto que o Tribunal julgou provado, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”. 5. A actuação do arguido, que resulta dos factos provados, não obstante manifestada num único acto, põe em em causa a dignidade da sua mulher, afectou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, sobre quem exercia uma relação de domínio e de poder, o que quis e conseguiu, motivo pelo qual se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em apreço. Em suma, afigura-se-nos que o recurso do arguido não merece provimento, devendo manter-se integralmente a douta decisão recorrida.» 4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de que deve ser mantido o teor integral da sentença em recurso. Manifesta a sua adesão ao teor da resposta acima mencionada, acrescentando o que segue (transcrição): «8. Não nos merece qualquer reparo o entendimento defendido na sentença colocada em crise na qual se afirma: “Não obstante se tratar apenas de uma conduta, isolada, tem a gravidade e a intensidade suficiente para colocar em causa o bem jurídico protegido com a incriminação. Há, nitidamente, uma relação de domínio proporcionado pelo âmbito familiar que deixou a vítima sem defesa e numa situação humanamente degradante.” Com efeito, não obstante se ter apenas provado um único acto que o arguido praticou contra a vítima, o certo é que com esse comportamento o arguido colocou em causa a dignidade da sua mulher, afectou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, sobre quem exercia uma relação de domínio e de poder, o que quis e conseguiu, pelo que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito de violência doméstica agravado. Neste sentido cfr. o que se fez constar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no dia 02/10/2024 no âmbito do Processo nº 156/23.4GBVNG.P1.S1: “I. No crime de violência doméstica um único acto, ainda que isolado, é passível de preencher o tipo, desde que essa acção seja apta a colocar em causa, de forma intolerável, a dignidade da vítima ou a sua liberdade de determinação; II. O crime de violência doméstica encontra-se, numa relação de especialidade, com o crime de ofensas à integridade física simples e de subsidiariedade expressa em relação a outros crimes punidos mais gravemente “por força de outra disposição legal” (artigo 152º, nº 1 in fine do Código Penal); III. Comete o crime de violência doméstica o arguido que no leito conjugal, ao ser questionado pela ofendida sobre uma pretensa infidelidade, desfere-lhe uma cotovelada no peito e depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, agredi-a com vários socos na cabeça e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca” e posteriormente, munido de uma faca, apontou-a ao pescoço da vítima e aproximou a faca do abdómen da mesma e disse-lhe “eu furo-te a barriga”; IV. A persistência e intensidade na acção, revela uma manifestação de superioridade do arguido em relação à sua companheira, que visa desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar a mesma, ao não admitir ser questionado ou contrariado, reagindo com ofensas e ameaças desproporcionais à questão que lhe foi colocada, impondo a vontade pela força e a aniquilação da vontade da vítima.” 9. Tendo em conta todas as considerações acabadas de tecer, concluímos dizendo que as respostas do Ministério Público junto do Tribunal a quo identificam detalhadamente todas as questões a dirimir, equacionando-as devidamente, e rebatem de forma fundamentada e sólida os argumentos dos recorrentes, demonstrando a sua evidente falta de razão, pelo que, examinados os fundamentos dos recursos, sufragamos integralmente a argumentação da Sra. Procuradora da República na 1ª instância, que aqui damos por reproduzida e, por todo o exposto, emite-se parecer no sentido de que o presente recurso não deve obter qualquer provimento, mantendo-se, em conformidade com o exposto, os termos da decisão recorrida.»
5. Não foi apresentada resposta ao aludido parecer. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.
II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Delimitação do objeto do recurso.
Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior. Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente a questão a decidir restringe-se a saber se os factos dados como provados são suscetíveis de preencher os elementos objetivo e subjetivo do ilícito de violência doméstica previsto no artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
2. Da decisão recorrida. A sentença proferida pelo Tribunal a quo, na parte que interessa tendo em conta as questões a decidir é do seguinte teor (transcrição): «II. FUNDAMENTAÇÃO A. DE FACTO Da prova produzida e discussão da causa resultaram os seguintes: 1. FACTOS PROVADOS (com relevo para a decisão): FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO 1. O arguido AA e BB casaram a ../../1980. 2. Na constância do casamento tiveram 4 filhos em comum: - CC, nascida a ../../1981; - DD, nascida a ../../1983; - AA, nascido a ../../1987; e - EE, nascido a ../../1993. 3. No dia 20 de Janeiro de 2024, cerca das 19h00, após a vítima ter regressado do trabalho, na Associação ...”, Lar e Creche, sita na Localidade de ..., na residência do casal, o arguido iniciou uma discussão com a vítima, acusou-a de estar alcoolizada (“bêbeda”) e desferiu-lhe uma chapada na cara. 4. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, no dia 20.01.2024, resultou na vítima BB “equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias). 5. O arguido naquelas circunstâncias quis e conseguiu, molestar gravemente e de forma censurável, o corpo e a saúde física da vítima BB. 6. O arguido sabia que a sua conduta violava o dever de respeito e colaboração que devia ter para com a esposa e mãe dos seus filhos e que com a sua conduta, no interior da residência do casal, comprometia a manutenção da vida em comum do casal. 7. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e que incorria em responsabilidade criminal. FACTOS RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES ECONÓMICAS, PESSOAIS, SOCIAIS E PROFISSIONAIS DO ARGUIDO 8. O arguido é oriundo de uma família numerosa e humilde, sendo o segundo mais novo de uma fratria de 8 irmãos. 9. O arguido concluiu a 2ª classe de escolaridade e não sabe ler nem escrever à excepção do seu nome. 10. Casou com BB quando tinha 18 anos de idade. 11. Emigrou, primeiramente, para França, três meses após o matrimónio, e, após, para a Suíça, quando tinha 21 anos de idade, onde permaneceu durante 15 anos. 12. Depois do período de emigração fixou residência junto do agregado familiar e era operário de construção civil, mantendo em paralelo actividades agrícolas. 13. Em 16.02.2024 o arguido foi sujeito a aplicação de medidas de coação, além do TIR, nomeadamente a não permanecer na residência que foi comum do casal, devendo abandoná-la de imediato e não contactar por qualquer meio com a vítima, onde quer que se encontre. 14. Na sequência da aplicação daquelas medidas a vítima saiu de casa tendo ido viver para casa da filha. 15. Em Maio a vítima voltou a casa por sua própria vontade vivendo ambos na casa de morada de família desde então, pautando-se o relacionamento entre ambos, desde então, pela ausência de momentos de conflitualidade. 16. O arguido divide atualmente o seu tempo entre o espaço habitacional e a execução de atividades agrícolas na quinta onde residem, provindo os rendimentos que lhe são conhecidos da produção obtida, nomeadamente da venda de framboesas (estufas implantadas numa área de um hectare e meio). No entanto, é o seu filho mais novo, que trabalha como economista no Hipermercado ..., quem gere o negócio. 17. A ofendida, que durante a maior parte do tempo de matrimónio teve como função apenas cuidar dos filhos e dos seus pais, trabalha há cerca de oito anos como auxiliar de serviços gerais no Lar de Idosos de ..., auferindo o salário mínimo nacional. 18. Após a rutura da relação, em Março, o arguido foi seguido em consultas de psiquiatria, tendo-lhe sido prescrita medicação diária, verbalizando o arguido que se encontra mais estável ao nível emocional, desde então. 19. O arguido deixou de consumir bebidas alcoólicas, apenas consumindo cerveja sem álcool às refeições. 20. O arguido não tem antecedentes criminais. (…) B. DE DIREITO: 1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL Estão aqui acusados os arguidos da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a) 4º a 6, do Código Penal. É o seguinte o conteúdo das disposições legais citadas: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal); 2. No caso previsto no número anterior, se o agente: a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos”. * Isto posto, passemos à análise do crime de violência doméstica. Não existe, na doutrina e jurisprudência portuguesas, unanimidade quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação. Completamente arredada, é certo, está a possibilidade de o bem jurídico em apreço estar ligado à tutela da instituição família. Com efeito, seguindo de perto a orientação dominante, na esteira de AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, a criminalização da violência doméstica visa a protecção do bem jurídico saúde, “entendida em sentido lato como estado de equilíbrio físico, psíquico e emocional” (“Deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental” - in Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao artigo 152.º, § 4, p. 332). Ampliando o objecto de tutela do crime de violência doméstica, AUGSUTO SANTOS SILVA e INÊS FEITOR reconduzem-no à dignidade da pessoa humana (in Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2007, p. 110). Do mesmo jeito concluem Carlos Nunes e Raquel Mota, afirmando que “a norma visa proteger, autonomamente, não só o bem jurídico saúde, como também, e de forma individualizada, a dignidade humana” (in “O crime de violência doméstica: a al. b) do n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal”, Revista do Ministério Público, Ano 31, Número 22, Abril-Junho 2010, p. 146). Não aderindo a nenhuma das anteriores posições, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE defende que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra” (in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, § 2, p. 591). ANDRÉ LAMAS LEITE, por sua vez, destaca que o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, “multímodo”, reconduzindo-se à integridade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade. É, assim, um bem jurídico complexo, tutelando-se a dignidade da pessoa humana, a integridade física e psíquica, a honra, liberdade pessoal e autodeterminação sexual. Para que se mostre consumado, demanda a demonstração dos seguintes elementos: i) a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos (incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais) (elemento objectivo). Em primeiro lugar, é exigível que tenha havido uma ofensa no corpo e/ou na saúde de outrem, ou, cumulativamente ou em alternativa, maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças), sendo que se incluem ainda no tipo legal os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais. Este crime, é, por isso, um ilícito composto, que concorre com outras normas incriminadoras, com quem se encontra em concurso aparente de normas com os crimes de ofensas corporais simples (art. 143.º, n.º 1 do Código Penal), de injúria (art. 181.º do Código Penal), de ameaça (art. 153.º do Código Penal), de coação (art. 154.º do Código Penal), de sequestro simples (art. 158.º, n.º 1 do Código Penal), de devassa da vida privada (art. 192.º, n.º 1, al. b) do Código Penal), de gravações e fotografias ilícitas (art. 199.º, n.º 2, al. b) do Código Penal), de perseguição (art. 154-A, n.º 1 do Código Penal) e de importunação sexual (art. 170.º do Código Penal). As condutas previstas e punidas por este artigo podem, assim, ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, …). Todavia, como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30-06-2015, Relatora Ana Barata de Brito, disponível em www.dgsi.pt,”o crime de violência doméstica não é um tipo de crime correspondente a uma espécie de somatório de crimes contra as pessoas desde que cometidos numa relação afetiva. O crime de violência doméstica não é um conjunto de crimes de injúria e/ou de ofensas à integridade física, etc. Não basta uma pluralidade de crimes, apenas unificados pelo facto se terem sido cometidos no âmbito de uma relação afetiva para que, sem que algo mais se comprove, automaticamente se integrar tal conduta como maltratante e, portanto, como um único crime, mas de violência doméstica. Aliás, significativa, é desde logo a própria moldura penal. Por alguma razão o legislador decidiu punir o crime de violência doméstica mais gravemente do que os restantes crimes que podem ser convocados parcelarmente. É que a diferença assenta, como se disse, no específico bem jurídico e na necessidade da adequação da conduta global a atingir o referido bem jurídico, revelando uma significação bem mais abrangente e mais censurável que a soma das várias condutas criminosas e, por isso, se revela como muito mais grave que a mera conjunção desses crimes “parcelares”. A este propósito, refere-se no Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 132 e Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, «Revista do CEJ», n.º 8, p. 305, que “o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação. O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”. Mais se diga que, ao contrário do que se exigia anteriormente, com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, deixou de ser exigível a reiteração como elemento objetivo típico de verificação necessária, podendo concluir-se pela sua verificação, quer pela prática reiterada de atos ofensivos consubstanciadores de maus tratos, quer pela prática de um único ato ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da ação e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana - a este propósito, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-04-2010, processo n.º 13/07.1GACTB.C1, disponível em www.dgsi.pt. Assim, sendo embora possível o cometimento do crime de violência doméstica através de um só ato, o mesmo terá que atingir de modo intenso a dignidade pessoal da vítima, terá que assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa. Isto resulta, aliás, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, de alteração do Código Penal, da Lei n.º 59/2007, mais se pronunciando a esse propósito, e no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-01-2013, proferido no processo nº 1354/10.6TDLSB.L1-5 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-12-2014, proferido no processo nº 12/13.4GDSTS-A.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Em suma, e como se deixou patente no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-10-2020, processo n.º 749/19.4PBSNT.L1-3, Relatora Cristina de Almeida e Sousa, para se concluir pela prática do crime de violência doméstica ”não basta a simples conjugação de uma espécie de binómio: existência de uma relação familiar, conjugal ou semelhante entre o arguido e a vítima e a prática de um ou vários dos crimes, para se dar por consumado o crime de violência doméstica”, sendo “imperativo que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da tal relação de proximidade e vinculação existencial entre o agente e a vítima, pela sua natureza e pelos efeitos que possam ter na possibilidade da vida em comum, ou de manutenção das relações de diferente natureza de entre as enumeradas no art. 152º do CP, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento lesivo da sua saúde física e mental, incompatível com a sua dignidade e liberdade, nesse contexto de intimidade. Assim, se na ponderação da «imagem global do facto», a conduta ou as condutas revelarem o “especial desvalor da ação” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, ou seja, gravidade ou intensidade suficientes para colocar em crise o bem jurídico protegido com a incriminação da violência doméstica, será aplicável o citado art. 152º do CP. Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os contornos acima referidos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, os quais reassumem a sua autonomia, à luz de cada um dos tipos legais que os prevêem, se e quando praticados sem esta tónica de tratamento cruel, desumano e degradante, ofensivo da personalidade da vítima, considerada na sua globalidade e de afronta intensa ou reiterada à sua dignidade, ao seu bem estar físico, psíquico e emocional e à sua liberdade individual de decisão e acção, animadas do propósito de predomínio e de manutenção de uma relação de abuso de poder e de controlo sobre a mesma. Com efeito, o traço distintivo que permite conferir esta forma específica e reforçada de tutela, mediante a incriminação do art. 152º do CP a condutas que sem essa especial incriminação só seriam social ou moralmente censuráveis ou só seriam enquadráveis como crimes autónomos de ofensas à integridade física simples ou qualificadas, de ameaças simples ou agravadas, de coação simples, de sequestro simples, de coação sexual, de violação, de injúria ou de difamação, etc., é a existência de um «estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.» (Plácido Conde Fernandes In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1,º semestre, página 307). Neste sentido, entende-se que, é essencial para o preenchimento do tipo de crime de violência doméstica que os comportamentos do agente, reiterados ou não, assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar. ii) a existência de uma relação específica entre o agente e o sujeito passivo (elemento objectivo). Em segundo lugar é, depois, necessário que entre o agente do crime e a ofendida exista uma qualquer relação específica, relação específica essa que, no que ora interessa, existe, na medida em que Arguido e Ofendida eram cônjuges. iii) a existência de uma conduta reiterada ou excepcionalmente violenta e grave (elemento objectivo). Em terceiro lugar, e com vista à delimitação da incriminação em causa de outras que apresentam elementos típicos comuns à que estamos a analisar, é necessário que a conduta em causa seja reiterada (daí que uma certa dilação temporal entre dois actos afaste a reiteração) ou, sendo isolada, seja excepcionalmente violenta e grave. iv) a existência de dolo (elemento subjectivo). O crime de violência doméstica previsto no art. 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, é doloso (cfr. o art. 13.º do Código Penal). Basta-se, contudo, o preenchimento do mencionado tipo legal do art. 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, com a mera existência de dolo eventual, o qual deve cobrir todos os elementos objectivos do tipo, e sendo, suficiente para a realização do tipo de ilícito que o autor saiba que está a infligir, reiteradamente ou de forma violenta e grave, maus tratos físicos ou psíquicos (nos quais se incluem os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais) a um terceiro com o qual mantém uma especial relação. * Feita a apreciação abstracta dos crimes em causa, passemos, agora, à análise em concreto da situação dos autos, isto é, à subsunção jurídica da factualidade apurada para concluirmos se estão, ou não, preenchidos os elementos típicos do crime de violência doméstica. Ora, da factualidade dada como provada sob o item 1 resulta que o arguido e a ofendida contraíram matrimónio em ../../1980 pelo que se encontravam na relação pressuposta pelo delito supra analisado. Por outro lado, da facticidade constante dos itens 3 a 7 resulta que a conduta do arguido – que no dia 20 de Janeiro de 2024, cerca das 19h00, após a vitima ter regressado do trabalho, na Associação ...”, Lar e Creche, sita na Localidade de ..., na residência do casal, o arguido iniciou uma discussão com a vítima, acusou-a de estar alcoolizada (“bêbeda”) e desferiu-lhe uma chapada na cara. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, no dia 20.01.2024, resultou na vítima BB “equimóse bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias) - integra o conceito de maus-tratos abrangido pela norma, desrespeitando em absoluto a dignidade e a integridade física da ofendida. Isto porque, se olhando apenas ao acto de agressão em si (“chapada na face”) poderia ser apreciada em diferentes perspectivas jurídicas, visto o contexto – no âmbito de uma discussão em que acusa a ofendida de ser “bêbeda” – e as lesões que lhe foram provocadas (“equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias) o mesmo é manifestamente subsumível ao conceito de tratamento degradante ou humilhante, impactante da sua dignidade. Com efeito, por um lado, a conduta do arguido, ocorre no âmbito de uma discussão, no interior da residência, e por força de um eventual estado de alcoolémia que a arguida apresentava. Por outro lado, trata-se de uma conduta grave, violenta e intensa tendo em conta que se trata de uma “chapada na face” que lhe causou “equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias), a qual traduziu desprezo, humilhação e especial desconsideração pela vítima, sendo ofensivas da dignidade pessoal da ofendida. Tais comportamentos demonstram, pois, que o arguido afectou de modo grave a sua saúde, donde resulta existir, na imagem global do facto, o atingimento desmedido da dignidade pessoal da ofendida. Não obstante se tratar apenas de uma conduta, isolada, tem a gravidade e a intensidade suficiente para colocar em causa o bem jurídico protegido com a incriminação. Há, nitidamente, uma relação de domínio proporcionado pelo âmbito familiar que deixou a vítima sem defesa e numa situação humanamente degradante. No que concerne ao elemento subjectivo, constata-se que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e que molestou gravemente e de forma censurável, o corpo e a saúde física da vítima BB, sabendo que a sua conduta violava o dever de respeito e colaboração que devia ter para com a esposa e mãe dos seus filhos e que com a sua conduta, no interior da residência do casal, comprometia a manutenção da vida em comum do casal. Em conformidade com o que antecede e posto a inexistência de uma qualquer causa de ilicitude ou desculpação, preencheu o arguido os elementos objectivo e subjectivo, pelo que vai condenado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal.»
3. Apreciação do recurso. Da errada qualificação jurídica dos factos provados. O Arguido discorda da qualificação jurídica operada em primeira instância, pois que, “Atentos os factos dados como provados, deverá concluir-se que a conduta do arguido, embora penalmente relevante e por isso passível de sanção penal, verificou-se apenas uma vez, sendo que a relação de ambos não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.” [cf. Conclusão 5ª]. Damos aqui por reproduzidas as considerações tecidas, quer na sentença, quer no Recurso, e bem assim, na resposta e parecer juntos pelo Ministério Público em ambas as instâncias, sobre a evolução legislativa, doutrinal e jurisprudencial verificada sobre o ilícito de violência doméstica, acrescentando, em jeito de súmula, as seguintes, breves, considerações, atenta a vastidão do tratamento do tema, também do ponto de vista sociológico e civilizacional. Prescreve o artigo 152º nº1 alínea a) e nº2 alínea a) do Código Penal, onde se prevê o crime de violência doméstica [na parte que ora releva]: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”[2] Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011[3], «No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima». O sobredito aresto seguiu, nesta parte, a tese proposta por Nuno Brandão[4], segundo a qual «O desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo». No crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual. O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afetem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros. E a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no artigo 152º, nº1, alíneas a) a e) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos; não porque estejamos perante um fenómeno novo ou recente, mas antes porquanto atualmente vinga uma maior e mais ampla consciencialização acerca da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, o que os faz encarar como um problema de dimensão social. No apontado sentido, também Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette afirmam[5]: «As relações conjugais, como outras – de certa analogia ou proximidade, que o legislador equipara àquelas –, desenrolam-se, por via de regra, num determinado clima de confiança, solidariedade e respeito, que resiste à atinente cessação, persistindo para além dela. O aproveitamento da cobertura que as mesmas relações podem facultar à prática de condutas violentas por qualquer dos respetivos sujeitos, atuando sobre o outro, em contradição com a índole mesma daquele clima e com os ditames do vínculo estabelecido, seja ele qual for, torna-se, por isso, muito em particular reprovável. A lei, assim, dado que tais condutas vão acontecendo com alguma regularidade, optou por enérgica intervenção específica, tentando reagir contra a violação da harmonia estruturante das relações em causa. Repugna-lhe, com efeito, toda a forma de violência, em nome da preservação da paz doméstica (lato sensu), cuja negação gravemente se repercute na própria paz social – minando-lhe os alicerces –, a cujo nível as referidas relações dispõem de precípuo lugar. Por isso, acorre em defesa das vítimas, atribuindo-lhes um meio capaz de garantir boa proteção da vida, da integridade física e psíquica, da liberdade e da dignidade, contra qualquer inflição de maus tratos, dos quais se não excluem, v.g., «castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais». Em tal proteção se consubstancia a tutela penal aqui estruturada e conferida. A qual, mediatamente, não deixa de alastrar ao bem supra-individual que é a referida paz doméstica». Estamos perante um crime específico, porquanto pressupõe que o sujeito ativo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima [no caso da alínea a) do nº1 que é a que está em causa] só pode ser a pessoa que se encontre ou se tenha encontrado, para com o agente ou sujeito ativo, numa relação de conjugalidade. As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações). A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, assim, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada). O conjunto de ações típicas que integram o ilícito criminal em apreço, uma vez analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são cometidas, constituirão maus tratos quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, que deixa a vítima em situação de humilhação, degradação da autoestima e sobressalto, capazes de afetar a sua saúde globalmente considerada, dimensão da sua dignidade de pessoa humana. O que justifica a punição mais severa do agente através deste tipo legal de crime numa situação de concurso aparente com as ofensas à integridade física simples [ou outra conduta penalmente típica suscetível de integrar a violência doméstica], é precisamente o desprezo do agressor pela dignidade pessoal da vítima, enquanto revelador de um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto[6]. Como referido no aludido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011 - citando também Nuno Brandão e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.05.2010, relatado pelo saudoso Exmo. Desembargador Cruz Bucho - «O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima. Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do art. 152º do CP. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de ofensas à integridade física simples, do artigo 143º, do CP». O elemento subjetivo do tipo preenche-se por qualquer forma de dolo. Conforme assinalado supra, o Arguido considera que, atenta a matéria de facto provada, não se mostram preenchidos, quer o elemento objetivo, quer o subjetivo constitutivos do tipo legal de crime de violência doméstica. A matéria de facto que resultou provada (não impugnada em qualquer segmento pelo Arguido), excluindo a relativa às condições pessoais do Arguido é a seguinte: «1. O arguido AA e BB casaram a ../../1980. 2. Na constância do casamento tiveram 4 filhos em comum: - CC, nascida a ../../1981; - DD, nascida a ../../1983; - AA, nascido a ../../1987; e - EE, nascido a ../../1993. 3. No dia 20 de Janeiro de 2024, cerca das 19h00, após a vitima ter regressado do trabalho, na Associação ...”, Lar e Creche, sita na Localidade de ..., na residência do casal, o arguido iniciou uma discussão com a vítima, acusou-a de estar alcoolizada (“bêbeda”) e desferiu-lhe uma chapada na cara. 4. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, no dia 20.01.2024, resultou na vítima BB “equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias). 5. O arguido naquelas circunstâncias quis e conseguiu, molestar gravemente e de forma censurável, o corpo e a saúde física da vítima BB. 6. O arguido sabia que a sua conduta violava o dever de respeito e colaboração que devia ter para com a esposa e mãe dos seus filhos e que com a sua conduta, no interior da residência do casal, comprometia a manutenção da vida em comum do casal. 7. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e que incorria em responsabilidade criminal.»
Atento o mencionado supra, nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada. É o que acontece na situação em apreço. Na verdade, apenas resultou provado que, numa única ocasião, o Arguido infligiu à vítima uma ofensa à sua integridade física. A sentença em crise considerou que tais factos preenchem o elemento objetivo do tipo, expressando esse seu entendimento pela seguinte forma: «(…) da facticidade constante dos itens 3 a 7 resulta que a conduta do arguido - (…) - integra o conceito de maus-tratos abrangido pela norma, desrespeitando em absoluto a dignidade e a integridade física da ofendida. Isto porque, se olhando apenas ao acto de agressão em si (“chapada na face”) poderia ser apreciada em diferentes perspectivas jurídicas, visto o contexto – no âmbito de uma discussão em que acusa a ofendida de ser “bêbeda” – e as lesões que lhe foram provocadas (“equimose bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias) o mesmo é manifestamente subsumível ao conceito de tratamento degradante ou humilhante, impactante da sua dignidade. Com efeito, por um lado, a conduta do arguido, ocorre no âmbito de uma discussão, no interior da residência, e por força de um eventual estado de alcoolémia que a arguida apresentava. Por outro lado, trata-se de uma conduta grave, violenta e intensa tendo em conta que se trata de uma “chapada na face” que lhe causou “equimóse bilateral a nível infra-orbitária”, dores na pirâmide nasal, o que lhe demandou para se curar 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias), a qual traduziu desprezo, humilhação e especial desconsideração pela vítima, sendo ofensivas da dignidade pessoal da ofendida. Tais comportamentos demonstram, pois, que o arguido afectou de modo grave a sua saúde, donde resulta existir, na imagem global do facto, o atingimento desmedido da dignidade pessoal da ofendida. Não obstante se tratar apenas de uma conduta, isolada, tem a gravidade e a intensidade suficiente para colocar em causa o bem jurídico protegido com a incriminação. Há, nitidamente, uma relação de domínio proporcionado pelo âmbito familiar que deixou a vítima sem defesa e numa situação humanamente degradante.» Não subscrevemos o entendimento expresso no excerto transcrito de que a conduta do Arguido preencha o conceito de maus tratos abrangido pela norma. Entendeu o Tribunal a quo reconduzir aquela conduta ao conceito de maus-tratos porque, por um lado, a agressão ocorreu num contexto de uma discussão e no interior da residência comum e, por outro lado, porque a agressão é grave atento o facto de da mesma ter resultado para a vítima lesão física que demandou 15 dias de doença com afetação da capacidade de trabalho geral. Ora, a circunstância de a agressão ter ocorrido no interior da residência apenas conduziria, qualificada que fosse de conduta maltratante, a que o crime se perfetibilizasse na sua forma agravada, não podendo ser considerada como traduzindo, por si só, uma maior gravidade da agressão capaz de preencher aquele conceito de maus tratos. Quanto à agressão em si, é, sem dúvida, grave e teve consequências relevantes, contudo, pensamos que, tratando-se de uma única conduta, não assume a gravidade bastante para que se possa considerar que se está perante uma situação em que a vítima foi sujeita humilhação, desprezo, desconsideração a tal ponto que se possa ter por adquirido que foi atingida, de forma desmedida, a dignidade pessoal da ofendida. Note-se que a conduta do Arguido que se mostra espelhada nos factos provados, está desacompanhada de contexto (para além da referência a discussão por o Arguido considerar que a vítima estava alcoolizada) que permita falar-se de uma imagem global do facto com a gravidade que é exigida pela norma. Com efeito, não subscrevemos o entendimento plasmado na decisão de que aqueles factos traduzam uma “relação de domínio proporcionado pelo âmbito familiar que deixou a vítima sem defesa e numa situação humanamente degradante”. É evidente no caso dos autos que, a ausência desse contexto se explica pelo facto de a conduta em causa vir descrita, tendo em conta o objeto do processo definido pela acusação, como um episódio acompanhado de muitos outros, sendo o mesmo contexto dado por esse conjunto de episódios. Contudo, tais factos [alíneas a) a ss) dos factos não provados] resultaram não provados e os provados não apontam, de todo, desacompanhados dos demais, para essa imagem global do facto.
Com tudo isto, não se quer dizer que a conduta adotada pelo Arguido não tenha gravidade, ainda mais quando a vítima é pessoa que, em virtude da relação existente entre ambos, é credora de espacial respeito e consideração. Contudo, analisando a matéria de facto dada como provada, cremos que esta, numa ótica da eventual suficiência para a realização do tipo legal de crime de violência doméstica (numa apreciação da ilicitude material), não bastam. Uma vez que, com a revisão do Código Penal operada em 2007, se ultrapassou, em definitivo, a questão da exigência de um comportamento reiterado por parte do agente, não surge fácil, as mais das vezes, a tarefa de delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física. A solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-10-2012[7], “Uma mesma bofetada, dependendo das circunstâncias, pode ser só uma ofensa à integridade física ou um caso de maus tratos. Poderá haver maus tratos se, por exemplo, um cônjuge esbofetear o outro na presença de filhos menores de ambos. Aqui, mais do que a ofensa corporal, sobreleva o juízo de que ao agressor foi indiferente a imagem com que os filhos ficam do outro progenitor. É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos.” Também relativamente a um caso em que não se tendo provado agressões físicas (pelo menos, no estrito âmbito do ilícito de violência doméstica), é evidente, pelo tipo de conduta adotada, o preenchimento do tipo de crime de violência doméstica, veja-se o acórdão recente do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-04-2023[8] onde se afirma: “De facto, os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se, mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica. Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo nº 662/13.9GDMFR). Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. (…) E diga-se que a violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em tantos casos como este em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de homens que tudo fazem para diminuir as parceiras ao nível do «objecto», vilipendiando-as no seu ânimo e na sua auto-estima.” Voltando ao caso dos autos. Está em causa uma agressão que se traduziu numa bofetada na face, a qual causou lesões físicas à ofendida, agressão que foi perpetrada na residência do casal e no contexto de uma discussão. Em nosso entender, este ato praticado pelo Arguido na pessoa da ofendida, não tem a virtualidade de se integrar na previsão da norma do artigo 152º do Código Penal, por não representar um potencial de agressão que supere a proteção oferecida pelo crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artigo 143.º do Código Penal. Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos físicos ou psíquicos, muito embora constituam factos ilícitos típicos e, como tal, puníveis. Não se mostra, pois, preenchido o elemento objetivo do tipo legal de crime de violência doméstica. No que concerne ao elemento subjetivo, resultou provado que: «5. O arguido naquelas circunstâncias quis e conseguiu, molestar gravemente e de forma censurável, o corpo e a saúde física da vítima BB. 6. O arguido sabia que a sua conduta violava o dever de respeito e colaboração que devia ter para com a esposa e mãe dos seus filhos e que com a sua conduta, no interior da residência do casal, comprometia a manutenção da vida em comum do casal. 7. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e que incorria em responsabilidade criminal.» Como já dissemos, o elemento subjetivo do tipo preenche-se com qualquer forma de dolo. A matéria de facto transcrita supra não foi impugnada e considera-se assente, porém, a mesma, se expurgada daquilo que são juízos de valor e afirmações conclusivas, acomoda-se e não vai para além do dolo de uma ofenda à integridade física simples. Vejamos. Se retirarmos, por conclusivas as expressões “gravemente” e “de forma censurável”, o que resultou provado foi que o arguido atuou querendo e conseguindo molestar o corpo e a saúde física da vítima BB. Por outro lado, se retirarmos o segmento relativo à intenção direcionada para o preenchimento da qualificativa (no domicílio comum ou no domicílio da vítima) o que fica é que o Arguido sabia que a sua conduta violava o dever de respeito e colaboração que devia ter para com a esposa e mãe dos seus filhos. Ora, a violação desses deveres previstos no artigo 1672º do Código Civil enquanto deveres dos cônjuges, por si só não consubstancia necessariamente a prática de crime, muito menos de crime de violência doméstica. Por um lado, porque a par dos deveres de respeito e colaboração, ali se preveem, com igual dignidade, os deveres de fidelidade e de coabitação e o adultério ou a vida conjugal optando os cônjuges por residir em espaços diferentes, no contexto civilizacional atual, não configuram qualquer prática penalmente sancionada. Tudo está, pois, em saber se a violação daqueles deveres, qualquer deles, atento o contexto em que ocorre, transporta consigo aquela carga de humilhação, desrespeito, aviltamento, exigidas pela norma que prevê a criminalização da violência doméstica. Em suma, o dolo descrito não vai além do dolo previsto para a prática do crime previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal[9]. Arredada está, assim, a punição da conduta do Arguido como integrante de um crime de violência doméstica, procedendo o recurso, por se mostrar violado o disposto no artigo 152.º do Código Penal.
Da punibilidade da conduta nos termos do disposto no artigo 143º do Código Penal. Atento o decidido supra, impõe-se a absolvição do Arguido quanto ao ilícito criminal de violência doméstica. Porém, os factos provados integram os elementos objetivo e subjetivo constitutivos da prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1 do Código Penal. De notar que a alteração da qualificação jurídica em causa não carece de prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, uma vez que, por um lado, a mesma resulta de alegação da própria Defesa (nº2 do artigo 358º do Código de Processo Penal) e, por outro, porque degradar a acusação por um crime de violência doméstica (que integrava condutas consubstanciadas em ofensas à integridade física e outras) em um crime de ofensa à integridade física, não implica a necessidade de nova defesa: não sendo juridicamente relevante, não “surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido”[10] Com efeito, atentas as considerações tecidas supra sobre o ilícito de violência doméstica, configura-se, as mais das vezes, uma situação de concurso aparente de crimes como o de ofensa à integridade física, injúria, ameaça, etc… Assim, pode ocorrer que, realizado o julgamento e proferida decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, aquela se veja reduzida, subsistindo apenas factualidade integrante de um, ou mais, daqueles crimes, os quais recuperam a sua autonomia. A questão que se coloca, então, é a da saber se é possível prosseguir o processo e condenar pela prática de um, ou mais, dos crimes em causa. É o caso dos autos, em que se considerou, em face da redução da matéria de facto inicialmente imputada ao arguido, não se verificarem os elementos objetivo e subjetivo constitutivos do tipo legal de crime de violência doméstica, devendo o arguido dele ser absolvido, mas subsistindo matéria de facto que preenche os elementos objetivo e subjetivo constitutivos do tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples. Nesta parte, seguiremos de perto o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº9/2024[11], onde se decidiu, por unanimidade, fixar a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.” Na verdade, embora a questão ali colocada pressuponha estar-se perante um crime de natureza particular como é o crime de injúria, o entendimento nele expresso no que tange aos seus fundamentos, aplica-se, em larga medida aos crimes de natureza semipública.
O ilícito de violência doméstica tem natureza pública, enquanto que o ilícito de ofensa à integridade física simples, tem natureza semipública (artigo 143º nº2 do Código Penal). Assim, quando o procedimento criminal foi instaurado, por os factos que estavam em causa indiciarem a prática de crime de violência doméstica, não era exigível ao Ofendido, para que o mesmo se iniciasse e prosseguisse, a dedução de queixa, detendo o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal, enquanto titular da ação penal – Artigo 48º do Código de Processo Penal. Porém, como resulta do mesmo preceito legal, aquela legitimidade tem as restrições constantes dos artigos 49º e 50º, isto é, no caso de procedimento dependente de queixa, o ofendido tem que a fazer chegar ao Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, o ofendido tem de apresentar queixa, constituir-se como Assistente e deduzir acusação particular. Isso mesmo afirma o STJ no acórdão mencionado: «Como se sabe, o princípio da oficialidade do processo consagrado no artigo 219º, nº 1, da CRP, refletido nos artigos 48º do CPP, 2º e 4º da L. 68/2019, de 27/08, (EMºPº) e 3º da L. 62/2013, de 26/08,(LOSJ), segundo o qual a promoção processual dos crimes é tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completo alheamento da vontade e da atuação dos particulares, atribuindo-se ao MºPº a iniciativa e promoção processuais, não vale para os crimes semipúblicos, cujo procedimento está dependente de prévia queixa, nem para os crimes particulares, cujo procedimento, além da prévia queixa e da prévia constituição como assistente, depende também de dedução de acusação particular. (48º, 49º e 50º CPP). Quer a queixa[12] quer a acusação particular são pressupostos positivos de punição e, nos casos em que o procedimento depende das respetivas pré-existências, sem elas falha a legitimidade do MP para o exercício da ação penal. Queixa é a manifestação de vontade de procedimento criminal corporizada em qualquer meio capaz de a levar ao conhecimento do Ministério Público em tempo, apresentada pelo respetivo titular do direito, em regra, o ofendido, para que, com os factos relatados, o MP exerça a ação penal contra o autor do crime. (111º CP e 49º CPP). Trata-se de um pressuposto processual, um pressuposto positivo de punição, “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser”[13] (cfr arts 113º, 114º, 115º e 116º do CP). Como condição de procedibilidade é conditio sine qua non do início do processo.» Como resulta da própria natureza das coisas, sendo a queixa, nos crimes semipúblicos, condição sine qua non da legitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal, reporta-se à fase inicial do processo. Assim, iniciando-se o processo com vista à investigação de crime de violência doméstica, que tem natureza pública, poderia o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação ver-se confrontado, a final, em face de uma redução factual resultante do julgamento, com a surpresa de uma absolvição ou arquivamento por falta de queixa, não obstante a matéria, ainda assim, dada como provada, integrar a prática de um crime de natureza semipública. Porém, a pedra de toque é, a final, a vontade do Ofendido, posto que o ilícito é de natureza que não prescinde da manifestação de vontade do titular do interesse tutelado pela norma, quer ela seja no sentido da instauração do procedimento criminal, quer seja no sentido de não o fazer o de lhe pôr fim. Por isso, mesmo num caso como o dos autos, não pode prescindir-se da inequívoca manifestação da vontade do Ofendido em proceder criminalmente contra o Arguido, exigindo-se a apresentação de queixa. É claro que, não sendo a mesma apresentada, dadas as circunstâncias em que o processo se iniciou, as mais das vezes, como no caso dos autos, o momento da decisão (julgamento) está muito para além do prazo para a apresentação de queixa, tendo-se este direito extinguido – Cfr. artigo 115º do Código Penal. Por isso é que, a boa prática nos inquéritos é a de, mesmo na presença de factualidade suscetível de integrar a prática de crime de violência doméstica, questionar o Ofendido sobre a sua intenção de proceder, ou não, criminalmente e de se constituir, ou não, como assistente. Como já se disse, embora a questão sobre a qual se debruça seja relativa a crime de natureza particular, no mencionado acórdão do STJ erige-se como pressuposto central a necessidade de respeitar, a vontade do titular dos interesses protegidos pela norma, como faz no seguinte excerto: «Como vimos supra, a existência de crimes particulares funda-se na circunstância de ou se estar perante infrações em que o maior interessado na sua não perseguição pode ser a própria vítima, dada a intimidade ou privacidade do bem jurídico atingido, e o melhor guardião dessa privacidade, sabe-se, é o próprio ofendido, ou se estar perante ilícitos de menor densidade jurídico-penal, bagatelas penais e pequena criminalidade, ou o ocorrerem dentro de relações pessoais de grande proximidade[14]. E com tais fundamentos se coloca na inteira vontade, interesse ou conveniência do ofendido a tutela do seu bem jurídico, conferindo-lhe o legislador a total disponibilidade do processo, por considerá-lo o melhor juiz da sua decisão de promoção ou não promoção processual nesses tipos de ilícito.» Por isso é que, estando em causa ilícito de natureza semipública não pode prescindir-se da apresentação de queixa (pese embora a mesma não fosse condição de procedibilidade no início do inquérito e correr-se, assim, o risco de, na fase de julgamento, se mostrar esgotado o respetivo prazo de exercício do direito de queixa), sob pena de se poder estar a violentar a vontade do respetivo titular dos interesses que a norma visa proteger. Ora, no caso dos autos, compulsado o processado, verificamos que, para além de a Ofendida nunca ter apresentado queixa, manifestou, de forma reiterada e inequívoca, que a sua vontade é não proceder criminalmente contra o Arguido. Com efeito, não foi a Ofendida quem levou ao conhecimento dos órgãos de polícia criminal os factos, constando do auto de notícia de fls.13 a 16 que a denúncia que motivou a deslocação da GNR a casa da Ofendida e do Arguido foi uma denúncia anónima. Depois, aquando da sua inquirição como testemunha perante a autoridade policial, cujo respetivo auto é fls. 211 a 215, a Ofendida, questionada expressamente sobre se deseja procedimento criminal pelos factos relatados e bem assim se deseja constituir-se assistente, respondeu que não. Mais tarde, em nova inquirição nos mesmos moldes, cujo auto é fls.245, reafirmou aquela sua vontade de não pretender constituir-se Assistente e, tendo-lhe sido explicado o conteúdo do instituto da suspensão provisória do processo afirmou concordar com a sua aplicação no caso dos autos. Por fim, compulsada a fundamentação da sentença recorrida no que aos factos não provados concerne, verificamos que foi em larga medida por a Ofendida se ter legitimamente recusado a depor, que não se provaram a esmagadora maioria dos episódios de violência descritos na acusação. Num caso como o dos autos, nem mesmo quem considera que a inexistência de queixa não retira ao Ministério Público a legitimidade para proceder criminalmente nestes casos, defende a condenação pelo crime de natureza semipúbica, como acontece no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2023[15], onde se firma: «I – A convolação ou degradação do crime de violência doméstica em crime de ofensas à integridade física simples, operada na sentença, não gera a ilegitimidade do Ministério Público relativamente ao procedimento decorrido, porque aquando do seu início a apresentação de queixa não era exigível para que exercesse a acção penal; de outro modo, seria agora a apresentada à ofendida/assistente uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade que não poderia anteriormente considerar, porque então inexistente. II - A exigência de queixa ou de acusação particular não se destinam a proteger algum interesse do suspeito da prática de algum ilícito, mas sim a possibilidade de aferição, por parte do ofendido, da melhor forma de tutela dos seus interesses, que pode não passar pelo procedimento criminal e eventual punição do autor do acto ilícito, colocando a lei na disponibilidade dos ofendidos – enquanto portadores concretos do bem jurídico violado - a decisão relativamente à instauração e prosseguimento do procedimento criminal. II – Esta doutrina só não será aplicável quando resulte dos autos que o ofendido não pretende que o procedimento criminal, iniciado relativamente a um crime que se supunha revestir natureza pública, se mantenha após a alteração da sua natureza para um crime de natureza semi-pública ou particular.» (sublinhado nosso) Em conclusão, o Arguido, absolvido enquanto autor de crime de violência doméstica, também não será condenado pela prática de crime de ofensa à integridade física simples, atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para proceder criminalmente pela prática deste ilícito nos presentes autos.
III. DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente o recurso interposto pelo Arguido AA, absolvendo-o da prática do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, assim se revogando a sentença recorrida.
Sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP) Coimbra, 19-02-2025 Os Juízes Desembargadores Fátima Sanches (Relatora) Helena Lamas (1ª Adjunta) Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro (2ª Adjunta) (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)
[5] In “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anotação 4 ao artigo 152º, págs. 438 e 439. [6] Cfr. Nuno Brandão, ob. cit., p. 18. |