Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALICE SANTOS | ||
Descritores: | CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA AGRAVADO ELEMENTOS DO TIPO MEDIDA DA PENA | ||
Data do Acordão: | 06/09/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | 40º,70º, 71º,143ºE 147º DO CP | ||
Sumário: | 1.O crime de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p. pelo art. 147º, do CP, é um crime preterintencional em que o resultado excede a intenção do agente, ou seja, em que para além de um crime de ofensas corporais doloso, o resultado é imputado a título de negligência. | ||
Decisão Texto Integral: | 22 22 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal. *** No processo comum singular, supra identificado após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que:- condenou o arguido JO como autor de um crime de ofensa à integridade física simples agravado pelo resultado, previsto e punido pelo artigo 143.°, n.º 1 e 147 nº 1, do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão. - Suspendeu a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 14 meses, sob a condição de pagamento a uma instituição de solidariedade social a indicar pela família da vitima, da quantia de € 1000,00, comprovando nos autos a realização de tal pagamento. - Condenou o arguido no pagamento à demandante civil da quantia de € 143,50 a título de indemnização pelos danos patrimoniais por esta sofridos. Deste acórdão interpôs recurso o arguido JO, sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso: B1: O recorrente pretenda tenha lugar audiência oral, desejando sejam objecto de debate os seguintes aspectos da motivação: A1.2., A1.3., A1.3.1., A1.3.2.; A4., A4.1., A4.2., A4.3., A4.4.e A4.5 .. B2: A M.ma Juíza considerou que os meros empurrões têm como consequência um tipo de ofensa corporal que, em regra, se esgota neles mesmos; porém, do mesmo passo - ponto 6) dos factos provados - não deixou de entender, salvo o devido respeito, em clara e manifesta contradição com o predito segmento discursivo, a despeito da anormalidade de tal evento, que quem empurra outra "pode e deve" prever a possibilidade de o ofendido sofrer lesões que o conduzam à morte. Daqui que deve concluir-se B3: que a M.ma Juíza, claramente, incorreu numa miscigenação de conceitos, pois a formulação verbal do ponto 6) não cumpre o conceito de negligência - mas sim os de dolo directo e dolo eventual - pelo que daqui resultou violado o disposto no art. 15° e, consequentemente, o do art. 147°, ambos do Código Penal, B4: o que, de resto, é confirmado pela seguinte asserção expressamente constante do texto da decisão recorrida: "Sucede contudo que, tendo empurrado a vitime, esta desequilibrou-se e veio a bater com a cabeça num carro, sofrendo lesões que conduziram à sua morte. Uma vez que não se demonstrou que o arguido tivesse, em algum momento, previsto que do empurrão por si praticado viesse a resultar a morte da vitima, afastado fica a possibilidade deste resultado lhe ser imputado a titulo de dolo ", Por outro lado, B5: a mesma douta Julgadora reconheceu, também de forma expressa, que o evento agravante surgido na hipótese dos autos, em regra, não se verifica B6: tudo isto a despeito de, como referido no ponto A4.2.. da motivação e de novo de forma explícita a M.ma Juíza ter reconhecido que "para dar como provados os factos referentes à acusação pública, ... , devidamente conjugados,. num raciocínio lógico e fundamentado nas regras do normal acontecer, ... ". Por outro lado, B7: e na senda do que se deixou dito no ponto A4.3. da motivação é inaceitável e de actualização intelectual impossível. Por isso, B8: pode e deve dizer-se que o evento morte é imputável, sim, a um de dois factores: ou ao chamado "risco geral de vida" ou ao atraso na prestação dos socorros por banda do INEM. E ainda: B9: a M.ma Juíza hipervalorizou o depoimento da testemunha T (prestado na sessão de Julgamento que decorreu no dia 01 de Outubro de 2009 gravado através do Sistema H@bilus Media Studio, o qual teve o respectivo início às 10 horas, 53 minutos e 15 segundos e findou às 11 horas, 17 minutos e 11 segundos da primeira sessão da audiência (Ficheiro n" 20091001105314 67677 64313)), pretendo ter sido neste que escorou a afirmação segundo a qual o arguido não deu apenas um empurrão, mas diversos, na pessoa da vítima. Ora, B10: ao afirmá-lo com base em tal meio de prova, a M.ma Juíza incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, pois esta testemunha sempre disse e redisse ter presenciado apenas um empurrão B11: razão pela qual V.as Ex.as devem corrigir a sentença sempre que a mesma se refere a empurrões (no plural), como modo de actuação, em concreto, do arguido B12: e, na sequência de tudo quanto dito, revogar a douta sentença recorrida e, como tal, mentor apenas a condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal. O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo. Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso. Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs visto. Colhidos os vistos legais e em audiência, cumpre agora decidir. O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada. Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida: Factos provados: Da acusação pública: 1) No dia 19/07/07, cerca das 19H30, na Rua … em São Martinho do Bispo, em frente ao supermercado .., e quando o ofendido J ali seguia a pé em direcção ao supermercado e o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ----15-66, gerou-se uma discussão entre ambos. 2) A dado momento, o arguido saiu do carro e, dirigindo-se ao ofendido, interpelou-o em tom de voz alto, dizendo-lhe “repete lá o que disseste”. 3) Como o ofendido continuou a caminhar, o arguido seguiu-o e, junto da entrada do supermercado, utilizando as mãos, empurrou-o por várias vezes, na última das quais fazendo com que o ofendido se tenha desequilibrado e caído de costas, batendo com a cabeça no veículo do arguido, junto à roda esquerda traseira, e seguidamente rolado para o chão, onde ficou inanimado. 4) Chamado o serviço de emergência médica, o ofendido foi transportado para o Hospital dos Covões em Coimbra onde, no dia 21/07/08, pelas 4H45, faleceu vítima de paragem cardio-respiratória devida a traumatismo cervical. 5) Em consequência da conduta do arguido, o ofendido sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no relatório de autópsia médico-legal a fls. 83 e ss. dos autos — cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido - designadamente escoriações e equimoses na cabeça e nos membros superiores, equimose no pescoço, escoriação na região dorsal, equimose no joelho direito e ainda lesões traumáticas raqui-meningo-medulares cervicais, sendo estas últimas causa adequada da morte do ofendido. 6) O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido provocando-lhe as lesões em que em regra se esgotam os empurrões, sendo que, ao empurrar o ofendido e causar-lhe a queda podia e devia ter previsto a possibilidade do mesmo vir a sofrer lesões que lhe viessem a provocar a morte, resultado que todavia não antecipou e com o qual não se conformou. 7) Agiu o arguido de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo não ser a descrita conduta permitida por lei penal. Do pedido de indemnização civil: 8) No dia 19/7/2007 o ofendido foi assistido no Serviço de Urgência do CHC, EPE. 9) A assistência médica que lhe foi prestada foi originada pelos ferimentos apresentados pelo ofendido em virtude da agressão ocorrida nesse dia e supra descrita. 10) A assistência médica causou ao CHC encargos no valor de €:143,50 Condições pessoais do arguido: 11) O arguido está reformado e aufere €:700,00 por mês de pensão de reforma. Vive em casa própria, com a mulher, que é doméstica. Tem a seu cargo um filho deficiente. Tem a 4ª classe de habilitações literárias. É dono de um veículo de marca Renault, modelo Clio. Não tem antecedentes criminais. É uma pessoa estimada na comunidade, amiga e trabalhadora. 12) O local onde ocorreu o referido em 3) é um local inclinado, e a vítima caiu em sentido descendente. 13) A vítima carregava na mão direita um saco de plástico contendo garrafas. 14) A vítima nasceu no dia 15/2/1929. Tinha uma idade aparente coincidente com a real. Tinha 1,65m e 72 kg. Factos não provados: Com relevo para a decisão da causa, nenhum outro facto se provou para além dos que nessa qualidade se elencaram. Motivação: Para dar como provados os factos referentes à acusação pública, valorou o Tribunal diversos elementos probatórios, devidamente conjugados, num raciocínio lógico e fundamentado nas regras do normal acontecer, nos termos que infra se exporão. Assim, desde logo foi considerado, quanto às lesões sofridas pela vítima, o teor de fls. 44 a 53 e 82 a 91. Confirmado por todas as testemunhas inquiridas e a que a este respeito prestaram declarações e também pelo arguido, é o local e hora da ocorrência dos factos em causa. Já acerca da causa da queda da vítima, duas versões foram apresentadas em Tribunal. Assim, de um lado relatou o arguido que nesse dia, da parte da tarde, a vítima o injuriou, sem razão para tanto, no interior do autocarro em que seguiam ambos, facto que o incomodou bastante. Esclareceu que ele e a vítima não se falavam há cerca de 30 anos, tendo-se zangado por causa de um clube de futebol. Cerca de 15 minutos depois de chegar a casa, decidiu sair novamente para ir a casa de uma tia e para isso pegou na sua viatura. Sucede que, perto do Supermercado… e porque estava uma fila de carros parada à sua frente, ele parou também e a vítima, que seguia a pé, dirigiu-lhe alguns insultos em voz muito alta e encaminhou-se para o seu carro, tendo–lhe batido com socos, desferidos com a mão esquerda, através da janela, que estava aberta, estando ele sentado no local do condutor. Os socos acertaram-lhe no rosto e no corpo, mas ele não sofreu ferimentos. Nessa altura, conseguiu sair para fora da viatura e a vítima continuou a agredi-lo, sempre com a mão esquerda, tendo ele respondido a tal agressão, com o exclusivo intuito de se defender, dando-lhe uma estalada e um empurrão. Esclareceu que a vítima carregava um saco de plástico com garrafas na mão direita, que nunca largou. Em determinado momento, segundo relatou, a vítima tentou agredi-lo com o saco de plástico, sem sucesso, contudo, já que ele se desviou, agachando-se e dando um empurrão à vítima, para se defender. O empurrão que deu à vítima foi com pouca força e acertou-lhe no tronco. A vítima desequilibrou-se e caiu contra o veículo. No seu ponto de vista, a vítima encontrava-se embriagada. Em sentido radicalmente oposto, prestou depoimento a testemunha T, que de forma isenta e serena, circunstanciada, relatou que se encontrava dentro do supermercado .. quando ouviu discutir na rua, razão pela qual passou a observar o sucedido. Viu a vítima a caminhar na direcção do supermercado, transportando na mão um saco de plástico e o arguido a conduzir um carro, na mesma direcção. A determinada altura, o arguido parou o carro ao pé do supermercado e quando a vítima se aproximou da bagageira do veículo, o arguido saiu do carro e disse-lhe “Repete lá o que disseste!”. A vítima continuou o seu caminho, desconhecendo a testemunha o que ela respondeu ao arguido ou se respondeu. O arguido, que falava alto, exaltado, e que gesticulava, foi então atrás da vítima e empurrou-o repetidas vezes. A determinada altura viu a vítima a cair de costas, desamparado, contra o carro. Refere que a vítima mantinha uma postura corporal calma e não viu que este tivesse tentado em algum momento agredir o arguido. No seu ponto de vista, nada indiciava, na postura corporal da vítima, que este estivesse embriagado. Por último, relatou que o terreno no local é inclinado. Também a testemunha L, que é empregada do supermercado, viu a vítima a aproximar-se a pé e o arguido a chegar de carro e a fazer uma marcha-atrás barulhenta, antes de parar. Sabe que houve uma troca de palavras entre os dois quando o arguido se encontrava dentro do carro. Não viu nenhum veículo parado a impedir a marcha do veículo do arguido. Ora, perante estas versões contraditórias dos factos, o Tribunal julgou claramente mais credível a versão dos factos carreada pela testemunha Teresa, quer pelo modo como esta prestou declarações, quer porque o depoimento da testemunha L corrobora este depoimento. Também a testemunha Isidro, de resto, declarou ter visto o arguido a bater na vítima, dando-lhe um estalo na cara ou no peito e viu a vítima a desequilibrar-se e a cair. Acresce que o arguido referiu que ficou incomodadíssimo com a atitude da vítima no autocarro, o que permite explicar a sua reacção violenta. E não é crível que a vítima tivesse batido repetidamente no arguido com a mão esquerda, sem largar o saco de plástico que transportava. Por todas estas razões se deu assim como não provada a versão dos factos trazida pelo arguido e provada a versão da acusação. Note-se que as divergências entre os depoimentos das testemunhas T, L. e I. foram-no tão só quanto a questões de pormenor, sendo explicáveis pelo decurso do tempo e pelos mecanismos de funcionamento da memória, que levam a que uma pessoa percepcione uns acontecimentos e outra pessoa percepcione outros. Há que referir que a testemunha J que é motorista dos SMUTC que conduzia o autocarro onde no dia dos factos seguiram a vítima e o arguido, relatou que ouviu a vítima a chamar ao arguido de estúpido e mal-educado, dizendo que este foi o último a chegar à paragem e o último a entrar, não tendo o arguido reagido. No que concerne às características físicas da vítima considerou-se o teor do relatório de autópsia junto ao processo. Relativamente às características do local onde os factos ocorreram, foram descritos de forma coincidentes por todas as pessoas que a este respeito foram inquiridas. Quanto às circunstâncias pessoais do arguido, levaram-se em conta as declarações deste e, no que concerne aos seus antecedentes criminais, considerou-se o teor do certificado do registo criminal junto aos autos. Foram igualmente considerados, quanto ao carácter do arguido, os depoimentos das testemunhas J, MA A. e LS que abonaram em seu favor. Quanto aos factos não provados, o certo é que não se fez qualquer prova que permitisse dar como provado outro facto para além dos que nessa qualidade se descreveram. * Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar. Questões a decidir: - Se foi incorrectamente julgado o ponto 3 dos factos dados como provados; - Se se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física simples agravado pelo resultado, p. e p. pelo artº 143º e 147º nº 1 do CPenal. De acordo com o disposto no art 428 nº 1 do Código Processo Penal “as relações conhecem de facto e de direito”. Contudo, a modificalidade da decisão da 1ª instância só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art 410 do Código Processo Penal, quando se verifiquem as condições estabelecidas no art 431 do mesmo diploma, que são: “a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, b) se, a prova tiver sido impugnada, nos termos do art 412 nº 3 ou c) se tiver havido renovação da prova”. Conjugado com este normativo há que atender ao que dispõe o art 412 nº 3 do Código Processo Penal que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas; Dispõe, ainda o nº 4 que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do art 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Resulta, portanto, do exposto que a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto é susceptível de modificação, no caso de gravação de prova, se esta tiver sido impugnada nos termos do art 412 nº 3 e 4 do Código Processo Penal. O arguido sustenta que o tribunal “ a quo” deu como provado que “ Como o ofendido continuou a caminhar, o arguido seguiu-o e junto da entrada do supermercado, utilizando as mãos, empurrou-o por várias vezes…”, quando resulta da prova ter havido apenas um empurrão. O arguido ao pretender a modificação dos factos provados, que tem como incorrectamente julgados, indica as provas produzidas em audiência de julgamento que no seu entender impõem decisão diversa da recorrida, pelo que, o que o mesmo imputa à sentença é um erro de julgamento, do Tribunal recorrido, na apreciação da prova. No caso “ sub judice” houve lugar à documentação da prova na audiência de discussão e julgamento, tendo o recorrente dado, minimamente, cumprimento ao disposto no art 412 nº 3 do Código Processo Penal. Assim, está este Tribunal habilitado a modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto. A documentação da prova em 1ª instância tem por fim garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto. Esta garantia exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª instância e o de recurso relativamente ao princípio da livre apreciação da prova. De acordo com o disposto no art 127 a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. “O art 127 do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador. A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88). Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, pg 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcede a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”. Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos. Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta « é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ."- Cfr., in "Direito Processual Penal", 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205. O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355 do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova. No dizer do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”. O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto. Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234. Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de_2002 (C.J., ano XXV|II, 20, página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum". Vejamos, pois, se assiste razão ao arguido: O tribunal na fundamentação refere que: (…) Já acerca da causa da queda da vítima, duas versões foram apresentadas em Tribunal. Assim, de um lado relatou o arguido que nesse dia, da parte da tarde, a vítima o injuriou, sem razão para tanto, no interior do autocarro em que seguiam ambos, facto que o incomodou bastante. Esclareceu que ele e a vítima não se falavam há cerca de 30 anos, tendo-se zangado por causa de um clube de futebol. Cerca de 15 minutos depois de chegar a casa, decidiu sair novamente para ir a casa de uma tia e para isso pegou na sua viatura. Sucede que, perto do Supermercado .. e porque estava uma fila de carros parada à sua frente, ele parou também e a vítima, que seguia a pé, dirigiu-lhe alguns insultos em voz muito alta e encaminhou-se para o seu carro, tendo–lhe batido com socos, desferidos com a mão esquerda, através da janela, que estava aberta, estando ele sentado no local do condutor. Os socos acertaram-lhe no rosto e no corpo, mas ele não sofreu ferimentos. Nessa altura, conseguiu sair para fora da viatura e a vítima continuou a agredi-lo, sempre com a mão esquerda, tendo ele respondido a tal agressão, com o exclusivo intuito de se defender, dando-lhe uma estalada e um empurrão. Esclareceu que a vítima carregava um saco de plástico com garrafas na mão direita, que nunca largou. Em determinado momento, segundo relatou, a vítima tentou agredi-lo com o saco de plástico, sem sucesso, contudo, já que ele se desviou, agachando-se e dando um empurrão à vítima, para se defender. O empurrão que deu à vítima foi com pouca força e acertou-lhe no tronco. A vítima desequilibrou-se e caiu contra o veículo. No seu ponto de vista, a vítima encontrava-se embriagada. Em sentido radicalmente oposto, prestou depoimento a testemunha T, que de forma isenta e serena, circunstanciada, relatou que se encontrava dentro do supermercado “Ponto Fresco” quando ouviu discutir na rua, razão pela qual passou a observar o sucedido. Viu a vítima a caminhar na direcção do supermercado, transportando na mão um saco de plástico e o arguido a conduzir um carro, na mesma direcção. A determinada altura, o arguido parou o carro ao pé do supermercado e quando a vítima se aproximou da bagageira do veículo, o arguido saiu do carro e disse-lhe “Repete lá o que disseste!”. A vítima continuou o seu caminho, desconhecendo a testemunha o que ela respondeu ao arguido ou se respondeu. O arguido, que falava alto, exaltado, e que gesticulava, foi então atrás da vítima e empurrou-o repetidas vezes. A determinada altura viu a vítima a cair de costas, desamparado, contra o carro. Refere que a vítima mantinha uma postura corporal calma e não viu que este tivesse tentado em algum momento agredir o arguido. No seu ponto de vista, nada indiciava, na postura corporal da vítima, que este estivesse embriagado. Por último, relatou que o terreno no local é inclinado. Esta testemunha que presenciou todos os factos e que o tribunal conferiu toda a credibilidade quer a instâncias da sra Juiz, quer a instâncias da Sra procuradora referiu sempre apenas um empurrão. Sra Juiz: Então o Sr, JO, diz a Sra, que deu um empurrão ao Sr J. Só lhe deu um empurrão ou deu-lhe vários? Deu-lhe murros? Testemunha T Não. Deu-lhe um empurrão, ele bateu no carro e caiu. (…) Sra Juiz: Só viu um empurrão? Testemunha: Só vim um empurrão. (…) Sra Procuradora: Portanto, foi um empurrão? Testemunha: Foi um empurrão e a pessoa foi contra o carro. Ora, das declarações da testemunha, temos de concluir que o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento ao dar como provado que o arguido empurrou por várias vezes o ofendido. Assim e perante a prova produzida há que alterar os factos provados sob o ponto nº 3 que passará a ter a seguinte redacção: 3) Como o ofendido continuou a caminhar, o arguido seguiu-o e, junto da entrada do supermercado, utilizando as mãos, empurrou-o fazendo com que o ofendido se tenha desequilibrado e caído de costas, batendo com a cabeça no veículo do arguido, junto à roda esquerda traseira, e seguidamente rolado para o chão, onde ficou inanimado. Sustenta o recorrente que apenas se deve manter a condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art 143º do CPenal, pois que, “que a M.ma Juíza, claramente, incorreu numa miscigenação de conceitos, pois a formulação verbal do ponto 6) não cumpre o conceito de negligência - mas sim os de dolo directo e dolo eventual - pelo que daqui resultou violado o disposto no art. 15° e, consequentemente, o do art. 147°, ambos do Código Penal, o que, de resto, é confirmado pela seguinte asserção expressamente constante do texto da decisão recorrida: "Sucede contudo que, tendo empurrado a vitima, esta desequilibrou-se e veio a bater com a cabeça num carro, sofrendo lesões que conduziram à sua morte. Uma vez que não se demonstrou que o arguido tivesse, em algum momento, previsto que do empurrão por si praticado viesse a resultar a morte da vitima, afastado fica a possibilidade deste resultado lhe ser imputado a titulo de dolo”. O crime de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 147º, do CP, é um crime preterintencional em que o resultado, excede a intenção do agente, ou seja, em que para além de um crime de ofensas corporais doloso, o resultado é imputado a título de negligência. O crime preterintencional encontrava-se previsto no art. 361º, do CP de 1886, segundo o qual “Se, por efeito necessário da ofensa, ficar o ofendido privado da razão ou impossibilidade por toda a vida de trabalhar, a pena será de prisão de dois a oito anos. § único A mesma pena agravada, será aplicada, se a ofensa corporal for cometida voluntariamente, mas sem intenção de matar, e contudo ocasionar a morte”. Neste preceito, a lei protegia a integridade física e a vida contra as ofensas corporais voluntárias com resultados muito graves – a morte, a alienação ou a impossibilidade permanente de trabalhar. No § único do aludido preceito previa-se o então chamado “homicídio preterintencional”, em que o resultado morte não podia ser imputado dolosamente ao autor que só teve intenção de ofender corporalmente, exigindo-se a negligência do agente, quanto à produção do resultado, em face do princípio basilar do direito penal, consagrado no art. 44º, nº7, do mesmo Código, de que sem culpa não há responsabilidade criminal (vide Maia Gonçalves, in Código Penal Português, de 1886, 4ª Ed., pág. 580-581, Eduardo Correia, in Direito criminal, I, 440 e segs., Figueiredo Dias, in Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais, 1961, págs. 126º e segs. e jurisprudência citada na anotação 1., ao aludido preceito, por Maia Gonçalves). No art 145º, do CP, revisto pelo DL. nº 48/95, de 15MAR, conforme afirma Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricenses do Código Penal, Vol I, pág. 240, «Estamos perante um delito qualificado pelo resultado que se caracteriza por uma especial combinação de dolo e negligência (crime preterintencional). O delito fundamental doloso (aqui a lesão da integridade física) é por si só susceptível de punição, no entanto, a pena é substancialmente elevada com base numa especial censurabilidade do agente, uma vez que o perigo específico que envolve esse comportamento se concretiza num resultado agravante negligente (morte ou lesão da integridade físicas graves)». (…) «Através deste tipo legal protege-se a integridade física e a vida, uma vez que a não existir esta disposição a punição seria feita através das regras do concurso, o que implicaria necessariamente a consideração autónoma e diferenciada dos dois bens jurídicos (lesão da integridade física dolosa e homicídio negligente). Existe uma punição agravada em relação aos dois crimes (fundamental doloso e agravante negligente) que pressupõe bens jurídicos distintos». Portanto, no ilícito previsto no artº 147º do CPenal o crime base é doloso e o resultado é imputado a título de negligência (Ac do STJ de 7/3/90, proc nº 40419). Assim teremos que apreciar a provada conduta do arguido nesta perspectiva, ou seja teremos de fazer uma valoração qualitativa do poder e dever de previsão da idoneidade normal das lesões imediatamente oriundas da agressão para provocarem o decesso da pessoa agredida (ac STJ 17/4/91, BMJ 406-341). É que previsibilidade e dever de prever são elementos que objectivamente delimitam a negligência, no entanto, o concreto conteúdo, âmbito de tais elementos deve ser aferido, não em termos absolutos, mas sim de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, ou de certo tipo de homem, pelo que existe dever de prever, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um resultado. Como refere Eduardo Correia (Direito Criminal, I, 424 e segs) “É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e cuidados adequados a evitá-los”. No caso vertente, o arguido, deveria e poderia ter previsto a possibilidade de com a sua conduta se ter produzido a morte da vítima. Na verdade vítima tinha 78 anos e aparentava essa idade, excesso de peso, vinha com um saco na mão, o local onde ocorreram os factos é um local inclinado e a vitima caiu em sentido descendente. Portanto, o arguido ao empurrar de forma violenta a vitima contra o veículo, fez com que esta caísse de costas, desequilibrada, batendo com a cabeça no veículo do arguido, junto à roda esquerda traseira, e seguidamente rolado para o chão, onde ficou inanimado. O arguido atendendo às características da vítima devia ter previsto que o empurrão que lhe deu e nas circunstâncias que o fez, podia potenciar a morte. As quedas em indivíduos com a idade da vítima”podem causar fracturas do esqueleto pós craniano, potencialmente agravadas pela diminuição da densidade óssea,(…). Quando são afectadas as primeiras vértebras cervicais tal pode condicionar uma alta taxa de mortalidade”. Portanto e no que respeita ao ponto 6 dos factos provados efectivamente o que se retira é que, no que respeita ao crime base o arguido agiu com dolo, já quanto ao resultado agiu sem aquele cuidado a que estava obrigado, ou seja, agiu com negligência, logo, o resultado é imputado a título de negligência. Assim e nesta parte mantém-se a sentença recorrida. Nestes termos e pelos fundamentos expostos sem prejuízo da alteração da matéria de facto acima referida, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se em 8 ucs a taxa de justiça, Coimbra, Alice Santos Belmiro Andrade |