Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
444/21.4PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: INIMPUTABILIDADE
PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO
PERIGOSIDADE
INTERNAMENTO DE INIMPUTÁVEL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAMENTO
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 163.º, N.º 1, E 410.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 20.º, 91.º E 98.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 18.º, 27.º E 30.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I – O juízo de inimputabilidade, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, depende da verificação cumulativa do elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto, e do elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha sido incapaz, naquele momento, de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

II – Ao juízo de inimputabilidade não basta a comprovação da anomalia psíquica, sendo necessária a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de este o ter praticado por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando esta incapacidade da anomalia psíquica que o afectava aquando da prática do facto.

III – Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade pressupõe a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integre o conceito de anomalia psíquica e que tem por base factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.

IV – Obtida a pronúncia científica, cabe ao tribunal ajuizar da verificação do nexo de causalidade entre a anomalia psíquica detectada e o facto praticado, a partir dos elementos científicos fornecidos pela perícia, com vista à comprovação do elemento normativo da inimputabilidade.

V – O conceito de perigosidade, do artigo 91.º do Código Penal, reporta-se à perigosidade subjectiva, ou seja, à perigosidade reportada à personalidade do agente.

VI – A probabilidade de cometimento de outros factos no futuro, referida na norma, assenta num juízo de previsão ou de prognose em que o julgador, projectando-se futuro, avaliará sobre a eventualidade de aquela personalidade vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos, ou seja, é um juízo de prognose simples sobre a probabilidade de repetição do facto típico e ilícito com base eminentemente factual.

VII – A perigosidade criminal, tal como a inimputabilidade penal, são conceitos essencialmente jurídicos, cabendo a competência para a respectiva pronúncia aos tribunais.

VIII – A medida de segurança só pode ser aplicada para salvaguarda de um interesse público preponderante.

IX – Em obediência do princípio de proporcionalidade, o julgador tem o poder-dever de determinar a suspensão da medida de internamento decretada, de acordo com o artigo 98.º do Código Penal, quando esta oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de assim se atingir a finalidade da medida, que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via de adequada intervenção terapêutica em meio aberto, de acordo com o artigo 30.º, n.º 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Realizada a audiência, a 1.ª instância proferiu sentença em que julgou a acusação e os pedidos de indemnização civil parcialmente procedentes e, em consequência, decidiu:

a) Absolver o arguido AA pela prática … de um crime de violência doméstica agravado … (na pessoa de BB).

b) Absolver o arguido AA pela prática … de um crime de violência doméstica agravado … (na pessoa de CC).

c) Declarar que o arguido AA cometeu factos ilícitos típicos, entre Agosto de 2021 e 09-09-2021, que preenchem os elementos objectivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 2, alínea a), do Código Penal (na pessoa de BB).

d) Declarar que o arguido AA cometeu factos ilícitos típicos, em 09-09-2021, que preenchem os elementos objetivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea d), e 2, alínea a), do Código Penal (na pessoa de CC).

e) Declarar que o arguido AA é inimputável perigoso, nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal.

f) Decretar a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento e de segurança adequado, fixando-se a sua duração máxima em três anos, sem prejuízo de o internamento findar quando o Tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade que lhe deu origem, nos termos dos artigos 91.º e 92.º do Código Penal;

g) Decretar a suspensão da execução do internamento, pelo período de três anos, sujeita a plano a elaborar pela DGRSP, o qual deverá contemplar a sujeição do arguido a tratamento e regime de cura medicamente adequado, com frequência em consultas e manutenção dos fármacos prescritos, assim como a proibição de contactar e de se aproximar da assistente BB.

Mais condenou o demandado AA a pagar à demandante CC uma compensação, no valor de 1 000,00 € (mil euros) …

Condenou ainda o demandado AA a pagar à demandante CC uma compensação no valor de 1 000,00 € (mil euros) …

2. Inconformado, o arguido … veio recorrer da sentença, formulando … as seguintes conclusões (transcrição):

“1.ª – A declaração de perigosidade e consequente aplicação da medida de segurança de internamento ao arguido, efetuadas pela douta sentença recorrida, resultam de erro notório na apreciação da prova, a que acresce a manifesta insuficiência para esta decisão da matéria de facto dada como provada.

2.ª – A sentença recorrida ao considerar, no ponto 32 do “FACTOS PROVADOS”, que o quadro de perturbação psicótica breve de que o arguido é (ou era) portador é de caracter permanente, extrapolou os meios de aquisição de prova conferidos ao Tribunal, na medida em que tratando-se de matéria que exige especiais conhecimentos científicos, se encontrava excluída do princípio da livre apreciação do julgador nos termos dos disposto no artigo 163.º n.º 1 do CPP.

3.ª – Pois, o que resulta do Relatório Pericial é que a perturbação em causa, e que afetava o arguido à data da prática dos factos, se tratava de “perturbação psicótica breve, a que corresponde o código F23.2 da International Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD10)” - (cfr. Relatório Pericial), ou seja, de um “Transtorno psicótico agudo e transitório”, ou seja, a perturbação que afetou o arguido, não só não é permanente, antes configurando uma doença aguda, o que significa que é caracterizada por um início súbito, de evolução rápida e curta duração.

4ª – Circunstância que, salvo o sempre devido respeito, deixa prejudicada toda a fundamentação efetuada da douta sentença recorrida, no sentido da aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento, pois, não é possível afirmar-se que à data da prolação da sentença recorrida o arguido ainda padecesse de qualquer tipo de perturbação.

5.ª – … a aferição da perigosidade do agente, traduzida por meio de uma valoração global do facto e do agente, no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie, deve ser feita, no momento da decisão.

6.ª – … “A prognose individual que interessa ao preenchimento dos pressupostos da medida de internamento acolhidos no artigo 91. º do CP é uma prognose de base clínica (médica)…”, não constituindo uma questão jurídica.

7.ª – Sendo consabido que o fundado receio de que o arguido que venha a cometer outros factos da mesma espécie, “enquanto pressuposto legalmente exigido para aplicação de medida de segurança tem de resultar dos autos”, parece manifesto que não resulta, dos factos provados nos presentes, qualquer circunstância que “fundadamente” permita fazer um juízo de prognose individual no sentido da verificação … à data da prolação da douta sentença recorrida, do risco de o arguido praticar factos semelhantes.

8.ª – Pelo contrário, existe uma multiplicidade de factos que permitem concluir, com elevado grau de segurança, que o risco de o arguido praticar outros factos da mesma espécie é muito diminuto.

9.ª – Concretizando, o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, por crimes desta ou de outra natureza; o risco de o arguido praticar novos factos poderá ser significativamente reduzido com o cumprimento rigoroso da terapêutica prescrita e o acompanhamento médico, o arguido continua a ser seguido em consultas de psiquiatria, estando sujeito a e acompanhamento psicoterapêutico, tem comparecido às consultas, adota uma atitude de responsabilidade, a perturbação psicótica breve que afetou o arguido é tratável e controlável e ATUALMENTE, o arguido não apresenta atividade psicótica; encontra-se bem inserido, social e profissionalmente.

10.ª – Devendo, ainda, ter-se como provado que perturbação psicótica breve que afetava o arguido à data da prática dos factos, tem natureza aguda e transitória, conforme resulta do Relatório Pericial, e não permanente, conforme se deu como provado na douta sentença recorrida.

11.ª – E que o arguido não tem registo de qualquer acompanhamento psicológico/psiquiátrico anterior, circunstância que, apesar de não se encontrar elencada nos factos provados, foi utilizada como fundamento pelo tribunal recorrido, embora para justificar a aplicação da medida de internamento (cfr. pag. 25, 5.º e 6.º parágrafos).

13.ª – Deve, assim, ter-se por não verificado um pressuposto exigido pelo artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal …

14.ª – A douta sentença recorrida ao considerar o arguido inimputável perigoso e ao aplicar-lhe uma medida de segurança de internamento, com a duração máxima de três anos, violou, senão outras disposições legais pelo menos, o disposto nos artigos 40º, n.º 3; 91º, n.º 1, do Código Penal e 127.º (à contrario) e 163.º n.º 1 do C. P. Penal.

…”.

           

3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio apresentar resposta em que pugna pelo seu não provimento …

4. A assistente BB veio também responder ao recurso, pugnando pelo seu não provimento …

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto … emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente …

6. … o arguido apresentou resposta em que, no essencial, reitera a posição assumida no recurso.

7. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre agora decidir.

                                                           *

II – Fundamentação 

… são as seguintes as questões a decidir:

- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

- Erro notório na apreciação da prova.

- A incorrecta decisão proferida sobre matéria de facto dada como provada no ponto 32 da sentença recorrida, por violação das regras de valoração da prova pericial, a consequente modificação da decisão e a não aplicação de medida de segurança ao arguido.

- O juízo de perigosidade criminal do agente.

                                                            *

2. A sentença recorrida.

2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

“Da Acusação:

1) O arguido AA e a assistente BB, nascida a .../.../1978, casaram em .../.../2004, na freguesia ..., ....

3) Dessa relação nasceu a filha CC, em .../.../2011, que residiu sempre na companhia dos progenitores.

4) Há cerca de quatro anos, o arguido e a assistente começaram a explorar o ..., sito na Rua ..., em ..., o que originou algumas dificuldades financeiras no agregado familiar.

5) Durante esse período, e em número de vezes não apurado, quando se encontravam no ..., o arguido AA apelidava a filha CC de “gorda” e dizia-lhe “és uma gorda, és a mais gorda da escola, a mais gorda de todas”, não se inibindo de o fazer perante os clientes do estabelecimento que ali se encontrassem.

6) A partir de agosto de 2021, o arguido AA começou a demonstrar ciúmes da assistente, passando a afirmar que ouvia vozes e que a mulher tinha amantes.

7) No dia 5 de setembro de 2021, no interior da residência comum, e sem que nada o fizesse prever, o arguido AA acusou a mulher BB de o andar a trair, dizendo: “Já podes dizer que já sei de tudo e já tenho provas, tens um amante”, “sei perfeitamente que tens um amante, é preto ou cigano ou brasileiro, o que é que andaste a fazer, houve orgias cá em casa”.

8) No dia 9 de setembro de 2021, pelas 6h, na cozinha da residência comum, o arguido verbalizou que tinha estado a “ouvir mais gravações” e, ato contínuo, questionou a assistente porque motivo queria um empréstimo de cem mil euros.

9) Quando a assistente lhe respondeu que seria para pagar as dívidas existentes e viverem desafogados, o arguido retorquiu: “ou estás embruxada ou estás doente da cabeça, tem duas personalidades”.

10) Instantes depois, o arguido e a assistente saíram de casa, na companhia da filha de ambos, em direção ao local de trabalho.

11) Todavia, cerca das 7h45, já na Rua ..., em ..., quando se encontravam no interior do veículo automóvel, o arguido AA começou a dizer que iria para a casa da sua mãe e que a filha CC tinha que ir com ele, pois “era a proteção dele”.

12) Logo em seguida, e sem que nada o fizesse prever, o arguido AA saiu do veículo, abriu a porta da frente do lado direito, agarrou a filha CC pelo braço e puxou-a com força para o exterior contra a sua vontade, tendo aquela gritado: “Oh, pai larga-me!”, ao que o arguido respondeu: “Não te posso largar porque és a minha proteção se te largar matam-me”.

13) Já no exterior, o arguido AA agarrou a filha pelo pescoço e pela cintura com força, e sem nunca a libertar, tentou seguir apeado em direção ao terminal ferroviário, enquanto a filha gritava “o meu pai está maluco”, ao mesmo tempo que se tentava libertar do pai.

14) Perante a aflição e o choro da filha, a assistente BB tentou, por diversas vezes, impedir o arguido e libertar a menor CC, inicialmente sozinha e depois ajudada por DD e EE, que acorreram em seu auxílio, mas sem sucesso.

15) Numa dessas tentativas, a assistente logrou puxar o braço do arguido que rodeava a barriga da filha; porém, o arguido AA conseguiu prender a mulher pelos cabelos e projetá-la ao chão, sem nunca deixar de segurar a criança pelo pescoço para evitar a sua fuga.

16) Ato contínuo, e aproveitando que a assistente se encontrava caída no chão, o arguido debruçou-se sobre a mesma e começou a agredi-la com socos, sem nunca largar a filha, só tendo cessado quando DD lhe tentou retirar a criança.

17) Nesse instante, e sempre com a filha junto a si, o arguido AA começou a gritar “Ela quer-me matar! Tenho provas", referindo-se à assistente, aparentando estar cada vez mais exaltado e descontrolado.

18) Incapaz de fazer cessar o comportamento violento do marido, a assistente solicitou de imediato auxílio a FF, Agente da Polícia de Segurança Pública que nesse momento surgiu no local de regresso a casa.

19) Foi então que a Agente FF ordenou ao arguido que cessasse o seu comportamento e largasse a jovem; porém o arguido ignorou tal ordem, persistindo em levar a filha consigo.

20) Nessas circunstâncias, a Agente FF e a assistente BB decidiram aproximaram-se do arguido, a fim de o afastar da menor.

21) Contudo, e sem que nada o fizesse prever, o arguido AA dirigiu-se à assistente BB e, ato contínuo, mordeu-lhe nos braços e agarrou-a pelos cabelos, puxando-os com força, o que provocou a sua queda no chão, ao mesmo tempo que lhe dizia as seguintes expressões: “Vou-te matar já bruxa, és uma puta andas-me a trair, tenho vídeos disso, mato-te”.

22) Face à conduta persistente do arguido, e ao facto de aparentar algum descontrolo e exaltação, a Agente FF decidiu iniciar os procedimentos necessários à sua contenção em segurança, dando-lhe ordem de detenção.

23) Ainda assim, o arguido não acatou tal ordem e persistiu na sua conduta, denotando estar cada vez mis agressivo, só tendo sido possível libertar a menor CC e concretizar a imobilização e detenção do arguido em segurança após a comparência de reforços policiais no local.

24) A assistente BB e a filha CC foram transportadas numa ambulância até ao Hospital ..., onde receberam tratamento médico e medicamentoso.

25) O arguido AA foi conduzido ao Hospital ..., onde ficou internado, no Serviço de Psiquiatria, até ao dia ... de 2021.

28) O arguido, ao agir do modo descrito, molestou psicológica e fisicamente a assistente BB e a filha CC, causando-lhes um estado de humilhação, sofrimento, ansiedade e medo permanentes, na medida em que não sabiam o que esperar daquele, submetendo-as a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoa, com total desrespeito pela sua personalidade e autoestima, atuando em plena via pública, a coberto de um sentimento de impunidade, valendo-se da sua superior força física.

29) Mais, ao atuar nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, agiu com o propósito, alcançado, de molestar fisicamente a assistente BB, então, sua esposa, na presença da filha menor, de a ofender na honra e consideração que lhe são devidas, de a maltratar física e psiquicamente e de a inibir de agir livremente, como pretendia e conseguiu, assim agindo de modo a rebaixá-la e enxovalhá-la, atingindo a dignidade humana e a integridade física e psíquica desta, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar.

30) Mais sabia o arguido que os seus atos eram na presença da filha menor de ambos.

31) O arguido agiu com o propósito de maltratar a menor CC, o que conseguiu, atingindo-a e lesando a sua integridade física e mental, bem sabendo que, ao agir da forma descrita a submetia a sofrimento físico e psicológico, bem sabendo que aquela era sua filha com apenas 10 anos de idade, e que sobre si recaía o especial dever de a proteger e de a tratar, com particular respeito e consideração, atendendo ao vínculo familiar que os unia e à idade daquela, resultado que representou e concretizou.

32) O arguido é portador de um quadro de perturbação psicótica breve (F23.2; CID-10), permanente, o que lhe conferiu uma incapacidade, no momento da prática dos factos, de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar por essa avaliação.

33) Em virtude da anomalia psíquica de que padece, caracterizada pela ideação delirante de ciúme, atividade alucinatória, agitação e desorganização comportamental, agravada, à data dos factos, pelo cansaço e privação do sono, dos seus antecedentes pessoais e do contexto sociofamiliar que o envolve, existe uma probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos ilícitos típicos da mesma espécie dos supra descritos.

34) Esse risco só poderá ser significativamente reduzido com o cumprimento rigoroso da terapêutica prescrita e o acompanhamento médico pelo arguido.

Mais se provou que:

35) O arguido admitiu parcialmente os factos que lhe são imputados.

36) O arguido … foi internado no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de ..., em 09.09.2021, onde permaneceu até 17.09.2021; após alta hospitalar, passou a residir em casa dos pais, onde permanece; o relacionamento familiar é caracterizado pela coesão e proximidade, dispondo o de apoio por parte dos pais; … continua a ser seguido em consultas de psiquiatria, estando sujeito a prescrição e acompanhamento psicoterapêutico; tem comparecido às consultas; adota uma atitude responsabilidade.

37) O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Da Contestação:

38) A perturbação psicótica breve que afetou o arguido é tratável e controlável.

39) Atualmente, o arguido não apresenta atividade psicótica.

…”.

2.2. Por sua vez, na sentença recorrida constam indicados os seguintes factos não provados (transcrição):

“Da Acusação:

c) Ao proferir, de forma séria e agressiva, as expressões mencionadas nos factos provados, agiu ainda o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de perturbar e de fazer crer à assistente que a iria molestar fisicamente, de forma a incutir-lhe receio pela sua vida, integridade física, segurança e bem-estar e a afetar a sua tranquilidade, paz individual, autonomia, decisão e que a inibiram de se movimentar livremente, consequência esta que igualmente previu, procurou e logrou atingir.

d) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

e) Na sua atuação, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.

f) O arguido agiu com o propósito de dirigir palavras e expressões objetivamente ofensivos à menor CC, o que conseguiu, atingindo-a na sua honra, dignidade e consideração, bem sabendo que, ao agir dessa forma, a feria na sua honra.

g) A perturbação de que padece o arguido é irreversível.

h) A probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos ilícitos típicos da mesma espécie é forte.

Da Contestação:

i) A perturbação psicótica breve que afetou o arguido é uma situação transitória e sem sequelas”.

2.3. Em relação à motivação da decisão sobre a matéria facto, o tribunal a quo escreveu o seguinte na sentença recorrida (transcrição):

“…

Já quanto aos factos provados n.ºs 24 a 27, o Tribunal teve em consideração os documentos a fls. 10, 11, 39-44, 129 e 130 e o relatório pericial a fls. 135-136.

Além disso, o relatório pericial a fls. 170-174 determinou a prova dos factos n.ºs 32 a 34, 38 e 39.

Efetivamente, resulta do relatório pericial a fls. 170-174 que o arguido apresenta um quadro de perturbação psicótica breve, o que, em situações normais, determinaria uma probabilidade extremamente elevada quanto à prática de factos semelhantes.

No entanto, uma vez que, com o tratamento médico adequado, foi possível afastar, para já, a atividade alucinatória, conclui-se que, caso esse tratamento seja respeitado, a possibilidade da prática de factos semelhantes diminui drasticamente.

Assim, em primeiro lugar, conclui-se que a perturbação de que padece o arguido é permanente, na medida em que continua a carecer de tratamento médico, não se afigurando como transitória e sem sequelas (facto não provado na alínea i)).

Contudo, o facto de o arguido, atualmente, não apresentar atividade psicótica, é sinal seguro de que a sua patologia é tratável e controlável, com recurso aos fármacos prescritos.

Portanto, se, por um lado, a patologia que o arguido apresenta não é irreversível (facto não provado na alínea g)), porquanto é tratável e controlável, e a probabilidade da prática de factos semelhantes não é forte (facto não provado na alínea h)), uma vez que apresenta crítica para o sucedido (tanto que assumiu a prática dos factos) e não apresenta atividade psicótica, a verdade é que esta condição atualmente existente apenas pode ser mantida com recurso à terapêutica prescrita, daí que não possa afastar-se totalmente a repetição de factos semelhantes.

… não pode olvidar-se que, apesar de estar casado com a assistente há cerca de 17 anos, o arguido não foi capaz de compreender que as desconfianças que sentia tinham como causa uma patologia do foro mental, recusando-se a procurar ajuda médica …

Assim, embora o arguido mantenha os tratamentos e não apresente atividade alucinatória, subsiste a probabilidade de o mesmo praticar factos semelhantes, caso não mantenha o tratamento de que carece.

Relativamente aos factos provados n.ºs 28 a 31, o Tribunal considerou a prova dos factos n.ºs 6 a 23, em conjugação com as regras da lógica e experiência comuns.

Na verdade, quem agarra noutra pessoa pelo braço, pelo pescoço e pela cintura com força, mantendo essa conduta mesmo depois dessa pessoa solicitar que a largasse e mesmo tentar-se libertar, arrastando-a pela rua, sujeita à sua vontade, mesmo sabendo que se trata da sua filha menor, age com o propósito de a molestar física e psicologicamente e de lhe causar um estado de humilhação, sofrimento, ansiedade e medo permanentes, submetendo-a a um tratamento humanamente degradante.

O mesmo deve afirmar-se para quem prende outra pessoa pelos cabelos, a projeta ao chão, a agride com socos e a morde, sabendo que se trata da sua esposa e que pratica os factos na presença da sua filha menor.

A questão será a de saber se essa vontade/intenção foi formada livremente e se o agente tem consciência de que a sua conduta é proibida e punida por lei, o que, in casu, foi julgado não provado, precisamente devido à patologia de que sofre o arguido e que lhe retirou a capacidade de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, conforme decorre do relatório pericial a fls. 170-174 (factos não provados nas alíneas d) e e)).

…”.

                                                           *

3. Apreciando.

3.1. Diz o recorrente que a sentença recorrida padece de manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que a medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada se baseou em factos – o quadro de perturbação psicótica breve de que o arguido é portador é de caracter permanente (cf. ponto 32) – cuja prova extrapolou os meios de aquisição de prova conferidos ao tribunal a quo, na medida em que trata de matéria que exige especiais conhecimentos científicos e, como tal, está excluída do princípio da livre apreciação, nos termos previstos no artigo 163.º, n.º 1 do CPP.

O que resulta do relatório pericial é que a perturbação em causa, e que afectava o arguido à data da prática dos factos, se tratava de “perturbação psicótica breve, a que corresponde o código F23.2 da International Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD10)”, ou seja, de um “Transtorno psicótico agudo e transitório”. Assim, a perturbação que afectou o arguido, não só não é permanente, antes configura uma doença aguda, o que significa que é caracterizada por um início súbito, de evolução rápida e curta duração.

Circunstância que, segundo sustenta o recorrente, deixa prejudicada toda a fundamentação efetuada na sentença recorrida, no sentido de lhe ser aplicada a medida de segurança de internamento, pois não é possível afirmar que, à data da sua prolação, aquele ainda padecida de qualquer tipo de perturbação.

Vejamos.

                                                        *

Como é sabido, os vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP devem resultar do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo, pois, estender-se a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte da decisão.

Neste contexto, a insuficiência descrita na alínea a) tem lugar quando a factualidade dada como provada não se revela suficiente para fundamentar a solução de direito alcançada, ou então quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material (artigo 340.º, n.º 1 do CPP) não investigou toda a matéria contida no objecto do processo que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado.

Assim, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 04-10-2006, existirá insuficiência quando “os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (…)”.

Ora, in casu, da análise do texto da sentença recorrida não resulta qualquer elemento que revele que o tribunal a quo não indagou os factos relevantes para a decisão de aplicação de medida de segurança ao arguido que proferiu e que está em falta o apuramento de outra matéria necessária ao enquadramento jurídico suscitado pelo objecto do processo, nos termos definidos pela acusação, em relação à qual se impunha a sua investigação.

Aliás, resulta patente no recurso que a prova carreada para os autos se mostra suficiente para alcançar o sentido factual que se defende e que é contrário ao que foi dado como assente pelo tribunal a quo, uma vez que para sustentar a sua posição o recorrente invoca o resultado da perícia psiquiátrica a que foi submetido, constante do relatório junto a fls.170 a 174, referido na sentença recorrida.

A matéria provada (e não provada), na sua globalidade, abrange, pois, todos os aspectos relevantes para a discussão da causa, não se detectando qualquer insuficiência investigatória susceptível de consubstanciar o vício previsto no citado normativo indicado.

Termos em que não se verifica qualquer omissão subsumível no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP e improcede, por conseguinte, o vício de insuficiência suscitado pelo recorrente AA.

                                                       *

3.2. Diz ainda o recorrente que o tribunal a quo extraiu uma conclusão da prova que não lhe é lícito retirar, uma vez que afastou o juízo técnico formulado no relatório junto a fls.170 a 174, quando no ponto 32 da sentença recorrida considerou que o quadro de perturbação psicótica breve de que é portador é de carácter permanente, extrapolando os meios de aquisição de prova que lhe são conferidos, na medida em que tratando-se de matéria que exige especiais conhecimentos científicos, se encontrava excluída do princípio da livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 163.º n.º 1 do CPP.

O que resulta do referido relatório pericial é que a perturbação em causa, e que afectava o arguido à data da prática dos factos, se tratava de “perturbação psicótica breve, a que corresponde o código F23.2 da International Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD10)”, ou seja, de um “Transtorno psicótico agudo e transitório” que, não só não é permanente, antes configura uma doença aguda, o que significa que é caracterizada por um início súbito, de evolução rápida e curta duração.

O que, sustenta ainda o recorrente, deixa prejudicada toda a fundamentação efectuada na sentença recorrida, no sentido da aplicação da medida de segurança de internamento, pois não é possível afirmar-se que, à data da prolação da decisão, aquele ainda padecia de qualquer tipo de perturbação.

Assim, o recorrente conclui que a declaração de perigosidade e consequente aplicação de medida de segurança ao arguido, efectuadas na sentença recorrida, resultam de erro notório na apreciação da prova.

Vejamos.

                                                         *

No recurso perante a Relação a decisão sobre a matéria de facto é susceptível de ser sindicada por duas vias: por um lado, no contexto mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP e, por outro, no âmbito da impugnação ampla regulada no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do mesmo diploma.

No caso vertente, quanto se insurge contra a decisão que o tribunal a quo tomou quanto à matéria do ponto assente 32,  o recorrente AA parece alicerçar a sua posição em ambas as vias referidas, ao invocar que a referida decisão enferma de erro notório na apreciação da prova e ao impugnar a mencionada factualidade apurada, por esta não ter correspondência integral com o resultado da perícia psiquiátrica vertido no relatório junto a fls.170 a 174, sustentando, pois, que esta prova vinculada impõe um outro sentido factual que diz ser o correcto.

                                                        *

Como em todos os vícios regulados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o erro notório na apreciação da prova, descrito na alínea c), deve resultar unicamente do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.

Neste contexto, segundo se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, o erro notório “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova”.

Trata-se, pois, de um vício em que as provas em que o tribunal se baseou não poderiam manifestamente levar à decisão que tomou sobre a matéria de facto, provas essas que são as que constam indicadas na fundamentação da convicção formada, segundo a valoração que o julgador delas fez, já que o erro é de decisão e tem de resultar do seu texto, sem recurso a elementos extrínsecos.

In casu, alega-se no recurso que o tribunal a quo não valorizou correctamente a prova pericial produzida, constante do relatório junto a fls.170 a 174, ocorrendo um erro notório na sua apreciação quando no ponto 32 o julgador deu como provado que a perturbação psicótica breve que foi diagnosticada ao recorrente é permanente.

O recorrente pretende, desta forma, ver reapreciada prova do ponto 32 da sentença recorrida, sendo que em apoio dessa pretensão invoca o resultado da perícia referida e o seu carácter vinculativo, decorrente do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do CPP.

Verifica-se, pois, que ao suscitar a existência de erro notório na apreciação da prova o recorrente se ancora, no essencial, em fundamentos que extravasam os limites da sindicância prevista no artigo 410.º, n.º 2, remetendo para um juízo sobre a valoração que a 1.ª instância fez da prova, que é próprio do mecanismo consagrado no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do CPP.

No âmbito da impugnação ampla, compete exclusivamente a quem recorre fixar o objecto do recurso, através da indicação precisa e especificada dos elementos previstos no artigo 412.º, n.os 3 e 4 do CPP, ou seja, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

In casu, atendendo às especificações feitas pelo recorrente, que, aliás, constam das conclusões do recurso, entende a Relação que estão as reunidas condições para que se conheça da questão que aquele suscitou, analisando-a à luz do invocado erro de julgamento a detectar segundo os critérios da impugnação ampla.

Pois bem.

                                                       *

No ponto 32 da sentença recorrida o tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria:

“32) O arguido é portador de um quadro de perturbação psicótica breve (F23.2; CID-10), permanente, o que lhe conferiu uma incapacidade, no momento da prática dos factos, de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar por essa avaliação”.

Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o julgador explicou que a prova da matéria do presente ponto 32 se fez com base no relatório pericial de fls.170 a 174, do qual resulta que o arguido apresenta um quadro de perturbação psicótica breve, o que, em situações normais, determinaria uma probabilidade extremamente elevada quanto à prática de factos semelhantes.

No entanto, segundo também explanou, uma vez que com o tratamento médico adequado foi possível afastar, para já, a actividade alucinatória, conclui-se que, caso esse tratamento seja respeitado, a possibilidade da prática de factos semelhantes diminui drasticamente.

Assim, conforme concluiu na sentença recorrida, a perturbação de que padece o arguido é permanente, na medida em que continua a carecer de tratamento médico, não se afigurando como transitória e sem sequelas. Contudo, o facto de o arguido, actualmente, não apresentar actividade psicótica, é sinal seguro de que a sua patologia é tratável e controlável, com recurso aos fármacos prescritos. A patologia que o arguido apresenta não é irreversível, porquanto é tratável e controlável.

Em consequência do exposto, a 1.ª instância levou os factos que constam nas alíneas g) [Da acusação - A perturbação de que padece o arguido é irreversível] e i) [Da contestação - A perturbação psicótica breve que afectou o arguido é uma situação transitória e sem sequelas] ao elenco de matéria não provada da sentença recorrida.

Vejamos.

                                                        *

Antes de passarmos à análise propriamente dita da impugnação que o arguido deduziu quanto à matéria do presente ponto 32, importa sinalizar a relevância que este conteúdo factual assume no contexto da questão jurídico-penal que o caso suscita.

Isto para melhor compreendermos as exigências probatórias que aqui se colocam, estabelecendo desde logo a devida destrinça entre o que é matéria que depende do juízo técnico-científico fornecido pela prova pericial e o que constitui questão que cabe ao tribunal decidir, de acordo com princípio da livre apreciação da prova.

Nos presentes autos estamos perante uma situação que o julgador considerou ser de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, nos termos previstos no artigo 20.º do Código Penal, a qual, como é sabido, obsta à condenação do agente com base na culpa …

Verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).

Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.

Assim, para o juízo de inimputabilidade não basta a comprovação do substrato biopsicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto.

Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade pressupõe, em sede de apuramento factual, a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integra o apontado conceito de anomalia psíquica, na medida em que o mesmo tem por base factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.

Por sua vez, cabe ao tribunal efectuar a comprovação do elemento normativo da inimputabilidade, ajuizando da verificação do nexo de relação causal entre a anomalia psíquica detectada e o facto concreto praticado, a partir dos elementos científicos fornecidos pela perícia que constituem, assim, contributos essenciais para tal tarefa decisória.

Nas palavras de Figueiredo Dias, “na caracterização deste substrato biopsicológico, da sua gravidade e intensidade, a primeira e mais importante palavra pertence aos peritos das ciências do homem, sendo aí diminuta, para não dizer nula, a capacidade de crítica material por parte do juiz. (…) À luz do paradigma emergente nas ciências do homem, a distinção entre modos de actuação “compreensíveis” segundo o sentido” e modos de actuação só “causalmente explicáveis” é cientificamente aceitável e dominável pelos peritos. Por isso deve esperar-se destes um auxílio decisivo para o juiz também quanto à comprovação do elemento normativo; aqui, porém, a última palavra pertencerá sempre ao juiz e a sua capacidade de crítica material será irrestrita nesta parte e medida continuando a caber-lhe com justeza o cognome de peritus peritorum”.

Como já foi dito, a declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.

Contudo, se agente do facto ilícito típico declarado inimputável revelar um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança, dentro dos pressupostos estabelecidos no artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal …

Assim, a aplicação de uma medida segurança, que no caso do artigo 91.º é a de internamento, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- prática de um facto ilícito típico (crime);

- inimputabilidade por anomalia psíquica do agente; e

- formulação de um juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faça supor o cometimento de outros factos da mesma espécie (repetição homótropa).

Por outro lado, “uma medida de segurança só pode ser aplicada (imposta) para salvaguarda de um interesse público preponderante”, tendo presente que a matéria é dominada por um princípio de proporcionalidade e, nesse sentido, a medida de internamento deve ter uma correlação com a gravidade do facto praticado, a apurar, não em função de uma determinada moldura abstracta da pena, mas segundo o relevo da lesão social verificada.

Ora, dando concretização às exigências constitucionais de proporcionalidade, corolário do princípio da menor intervenção possível (cf. artigos 18.º, 27.º e 30.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), o artigo 98.º do Código Penal vem consagrar a possibilidade a suspensão da execução do internamento se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcança a finalidade da medida. Neste caso a decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º do Código Penal, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados (artigo 98.º, n.º 3), para além de ser colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º do Código Penal, que prevêem, respectivamente, a suspensão com regime de prova e o plano de reinserção social (artigo 98.º, n.º 4).

Assim sendo, quando a suspensão prevista no artigo 98.º oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito, constitui poder-dever do julgador determinar a sua aplicação, se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a sua finalidade que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via de adequada intervenção terapêutica em meio aberto (cf. artigo 30.º, n.º 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa), privilegiando-se um regime que assegura a protecção comunitária face à perigosidade do agente, sempre que mostre verificada observada a exigência material básica de haver a expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento.

No presente recurso não se discute a declaração de inimputabilidade do arguido AA …

A discussão centra-se, pois, na perigosidade do arguido, requisito de que depende a sujeição do agente a uma medida de segurança.

Neste contexto, como se assinala no Acórdão da Relação de Évora de 13-05-2014, o conceito de perigosidade, consagrado no artigo 91.º do Código Penal, tem como conteúdo normativo a probabilidade de o agente de um facto-crime repetir a sua conduta típica e ilícita reporta-se, assim, à perigosidade subjectiva, ou seja, à perigosidade referida à personalidade do agente (contraposta à perigosidade objectiva, de uma dada acção), o que implica que o juízo adequado a aferir daquela probabilidade não pode deixar de ser um juízo de previsão ou de prognose em que o julgador, projectando-se no horizonte do que ainda não ocorreu, avaliará  sobre a eventualidade de, no futuro, aquela personalidade vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos.

Não está em causa, pois, a prova da probabilidade no sentido da demonstração de uma qualquer certeza matemática assente em método estatísticos ou mesmo a consagração de presunções legais, mas antes a formulação de um juízo de prognose simples sobre a probabilidade de repetição do facto típico e ilícito, ou seja, na terminologia legal, sobre o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Pese embora a perspectiva normativa assuma inegável relevância na determinação do sentido e alcance do conceito de perigosidade, presente em cada avaliação concreta, o juízo de prognose, assente na análise do caso individual e apoiado nas regras da experiência e em factos comprováveis, apresenta, assim, uma vertente eminentemente factual.

O juízo de que trata o artigo 91.º do Código Penal não integra o juízo técnico ou científico a emitir pelos peritos, cabendo antes ao tribunal decidir do mesmo sem os condicionalismos estabelecidos no artigo 163.º, n.º 2 do CPP, pois a perigosidade criminal, como a inimputabilidade penal, não é um conceito médico-científico, mas essencialmente jurídico.

Assim, como sublinha o referido Acórdão da Relação de Évora que vimos seguindo de perto, para a decisão sobre a questão da perigosidade, pede-se à perícia psiquiátrica que se pronuncie sobre a persistência da anomalia psíquica num futuro próximo e em que medida a ciência médica e a experiência dos peritos sustentam um juízo de prognose positivo quanto ao risco de repetição futura de factos semelhantes. No entanto, cabe ao tribunal, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, a responsabilidade da decisão final sobre o risco de repetição no caso concreto, ponderando as razões ou argumentos de ordem clínica, estatística ou derivados da experiência médica do perito, avançados no relatório pericial, bem como os demais elementos relevantes que resultam do julgamento e que versem, nomeadamente, sobre factores pessoais familiares e sociais relativos ao arguido, a aspectos do facto típico e ilícito praticado e do seu comportamento pretérito, que possam ajudar a compreender se é provável que a estrutura de personalidade que o caracteriza seja levada a repetir ilícitos idênticos em determinadas circunstâncias.

Aqui chegados.

                                                        *

Centrando-nos agora na questão suscitada no recurso, verificamos que a parte não impugnada da matéria do ponto 32 – O arguido é portador de um quadro de perturbação psicótica breve (F23.2; CID-10), o que lhe conferiu uma incapacidade, no momento da prática dos factos, de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar por essa avaliação – versa sobre o juízo de inimputabilidade que se mostra resolvido sem qualquer controvérsia.

Por sua vez, em relação ao segmento impugnado do mesmo ponto 32 – aquele quadro de perturbação psicótica breve é permanente – embora o seu interesse no recurso nos remeta para o juízo sobre a perigosidade do arguido, a verdade é que o referido elemento está ligado ao quadro psicopatológico de que aquele é portador, como uma sua característica que, como tal, é necessariamente determinada com base em factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos que, in casu, só a perícia psiquiátrica pode fornecer.

E aqui entramos no domínio da chamada prova vinculada ou tarifada, à qual se aplica o regime do artigo 163.º do CPP, cujo n.º 1 estabelece que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador.

Esta norma fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico, científico ou artístico elaborado pelo perito, que obriga o julgador.

A conclusão a que o perito chegou só pode, pois, ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos da mesma forma científicos. Daí que o n.º 2 do preceito disponha que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

                                                      *

Já se disse que a prova do elemento factual impugnado – perturbação psicótica breve que é permanente – se obtém através de perícia psiquiátrica, dependendo, pois, dos respectivos conhecimentos técnico-científicos.

Ora, no relatório da perícia psiquiátrica médico-legal relativa ao arguido AA, constante de fls.170 a 174, o Exmo. Perito médico exarou o seguinte Parecer Psiquiátrico Forense:

“De acordo com a avaliação clínico-psiquiátrica efetuada … podemos afirmar que o examinando é portador de um quadro de perturbação psicótica breve que corresponde o código F23.2 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).

Tal quadro clínico, verificando-se à data da prática dos factos que lhe são imputados, foi agravado pelo cansaço e privação do sono … Nesse momento, não conseguia distinguir o certo do errado nem possuía completa noção das possíveis consequências dos seus actos.

Desta forma … temos a referir que medico-legalmente, nada obsta a que seja declarada como inimputável para os factos que lhe são imputados.

Atendendo ao anteriormente enunciado, seria à partida altamente provável que o examinando viesse no futuro a praticar factos ilícitos semelhantes. Acontece que após o internamento hospitalar e com a medicação instituída, o examinando não apresenta atividade psicótica, possuindo já crítica plena para o sucedido. Deve cumprir rigorosamente a terapêutica prescrita e o acompanhamento médico que vier a ser indicado. Assim, parece estarem reunidas condições contentoras que diminuam drasticamente o risco de recorrência de episódios semelhantes aos descritos nos autos, não sendo para já necessária a aplicação de uma medida de segurança”.

No mesmo relatório, o Exmo. Perito formulou as seguintes Conclusões:

“1. O examinando era, à data da prática dos factos que lhe são imputados, portador de uma perturbação psicótica breve.

2. Tal patologia condicionava o livre arbítrio do examinando, devendo por isso ser declarado inimputável para os factos que lhe são imputados.

3. Atendendo a que se encontra medicado e supervisionado, será muito menor a probabilidade de voltar a praticar factos semelhantes aos descritos.

4. Não parece necessário, no momento, a aplicação de uma medida de segurança”.

Como se constata, no referido relatório não consta indicado o termo “permanente” para caracterizar a perturbação psicótica de que padece o arguido, nem esse termo é alguma vez utilizado em todo o respectivo texto.

O rigor técnico-científico exigido para a determinação da matéria em análise, que só a perícia da especialidade permite assegurar, impõe que as designações utlizadas para caracterizar quadros clínicos, perturbações e patologias, tenham correspondência no que nos fornece o respectivo relatório pericial.

Assim, tratando-se de um termo cuja utilização só poderia ter lugar se fosse secundada por via técnico-científica, com base nos pertinentes elementos médico-psiquiátricos, a sua ausência do relatório pericial leva a que, no caso, não existe suporte para a sua inclusão no ponto de facto em análise, devendo o mesmo ser dele eliminado.

                                                      *

Pese embora a eliminação do termo “permanente” do ponto 32, certo é que, atentos os factos que se mantêm inalterados no elenco de matéria provada, resulta acertado considerar, como considerou o tribunal a quo, que, sob o ponto de vista clínico, à data da prolação da sentença o arguido é portador da perturbação diagnosticada, pois como se apurou:

- Em virtude da anomalia psíquica de que padece [perturbação psicótica breve -F23.2; CID-10], caracterizada pela ideação delirante de ciúme, actividade alucinatória, agitação e desorganização comportamental, agravada, à data dos factos, pelo cansaço e privação do sono, dos seus antecedentes pessoais e do contexto sociofamiliar que o envolve, existe uma probabilidade de vir a praticar outros factos ilícitos típicos da mesma espécie dos supra descritos (cf. pontos provados 32 e 33).

- Esse risco só poderá ser significativamente reduzido com o cumprimento rigoroso da terapêutica prescrita e o acompanhamento médico pelo arguido (cf. ponto provado 34).

-  O arguido foi internado no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de ..., em 09-09-2021, onde permaneceu até 17-09-2021, continua a ser seguido em consultas de psiquiatria, estando sujeito a prescrição e acompanhamento psicoterapêutico e tem comparecido às consultas (cf. ponto provado 36).

Ora, perante o quadro assim dado como assente, é manifesto que o arguido apresenta o quadro de perturbação psicótica breve, que não se extinguiu, sendo que, conforme assinala o tribunal a quo na motivação da decisão sobre a matéria de facto que levou à sentença recorrida, com o tratamento médico adequado foi possível afastar, para já, a actividade psicótica, pelo que se esse tratamento for respeitado, a possibilidade da prática de factos semelhantes diminui drasticamente.

Por outro lado, o facto de o arguido, actualmente, não apresentar actividade psicótica, é sinal seguro de que a sua patologia é tratável e controlável, com recurso aos fármacos prescritos. A patologia que apresenta não é, assim, irreversível, sendo tratável e controlável.

Esta matéria e a perícia a que se refere o relatório de fls.170 a 174, com base na qual a primeira resultou demonstrada, não comportam e são até contrárias ao que o arguido invocou no recurso, com apoio nas definições da “Classificação Internacional de Doenças CID-10”, de que a perturbação que o afectou configura uma doença aguda e, como tal, se caracteriza por um início súbito, de evolução rápida e curta duração.

Não procede, pois, a tese do recurso porquanto a mesma não encontra suporte nos resultados da perícia a que o arguido foi submetido, segundo os quais, como já se disse, o facto de não apresentar presentemente actividade psicótica não é sinónimo de qualquer extinção do transtorno diagnosticado, sendo que a situação apenas pode ser mantida com recurso à terapêutica prescrita, não podendo, pois, afastar-se totalmente a repetição de factos semelhantes. 

                                                      *

3.3. Assente que ficou que o arguido é portador do referido quadro clínico, prossigamos agora para a análise da última questão que suscitou no recurso, relativa ao juízo de perigosidade, em ordem a saber se, no momento da condenação, existe o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Trata-se de um juízo de prognose que, como atrás já foi dito, compete ao julgador formular, tendo presente que «[a] prognose individual que interessa ao preenchimento dos pressupostos da medida de internamento acolhidos no artigo 91.º do CP é uma prognose de base clínica (médica) pois assenta na anomalia psíquica como factor necessário e decisivo do risco de repetição homótropa, mas que não dispensa a ponderação – com base na experiência comum e nos conhecimentos e experiência de quem julga – de factores pessoais e situacionais, como sejam o enquadramento familiar e social do arguido, mas também aspectos do facto típico e ilícito praticado ou do comportamento pretérito daquele que possam ajudar a compreender – de acordo com a experiência comum – se é provável que aquela estrutura de personalidade seja levada a repetir ilícitos idênticos em determinadas circunstâncias.

Ponderação e decisão esta que […] integra a decisão a proferir pelo tribunal em matéria de facto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, ou seja, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, sem prejuízo de ser necessária perícia médica para aferir da existência da anomalia psíquica no momento da prática do facto e da probabilidade da sua subsistência num futuro próximo, enquanto componente essencial da prognose de risco de repetição de actos da mesma espécie, para efeitos do disposto no artigo 91.º do CP» (cf. Acórdão da Relação Évora de 13-05-2014 e, no mesmo sentido, citando-o, cf. os Acórdãos do STJ de 16-10-2014, 15-03-2017 e 27-10-2021).

A questão que a este respeito se suscita é ainda uma questão de facto, pois a subsistência ou insubsistência da perigosidade não conforma em si mesma uma questão de direito.

Assim, o juízo sobre a perigosidade pode ser sindicado, em recurso, pelas duas vias já referidas em 3.2: por um lado, no contexto mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP e, por outro, no âmbito da impugnação ampla regulada no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6, também do CPP.

                                                         *

No caso dos autos, o recorrente apoia a sua pretensão na invocada existência de vício de erro notório na apreciação da prova, alegando para tanto que é manifesto que dos factos provados não resulta qualquer circunstância que “fundadamente” permita fazer um juízo de prognose individual no sentido da verificação, à data da prolação da douta sentença recorrida, do risco de aquele praticar factos semelhantes.

Pelo contrário, verifica-se uma multiplicidade de factos que permitem concluir, com elevado grau de segurança, que o risco de o arguido praticar outros da mesma espécie é muito diminuto.

… conclui no recurso, os factos indicados são de molde a fazer um juízo seguro de prognose favorável em relação ao arguido, no sentido de que o risco de praticar novos factos de idêntica natureza não é significativamente superior ao de qualquer outra pessoa.

Vejamos, pois.

                                                        *

Conforme já foi dito em 3.2., o erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, deve resultar unicamente do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, e “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova”.

Trata-se, pois, de um vício em que as provas em que o tribunal se baseou não poderiam manifestamente levar à decisão que tomou sobre a matéria de facto, provas essas que são as que constam indicadas na fundamentação da convicção formada, segundo a valoração que o julgador delas fez, já que o erro é de decisão e tem de resultar do seu texto, sem recurso a elementos extrínsecos.

                                                        *

Na motivação da decisão sobre a matéria de facto … o tribunal a quo fez constar a respeito do juízo de perigosidade criminal aqui em causa que, segundo resulta do relatório pericial de fls.170 a 174, o arguido apresenta um quadro de perturbação psicótica breve, o que, em situações normais, determinaria uma probabilidade extremamente elevada quanto à prática de factos semelhantes. No entanto, uma vez que com o tratamento médico adequado foi possível afastar, para já, a actividade alucinatória, conclui-se que, caso esse tratamento seja respeitado, a possibilidade da prática de factos semelhantes diminui drasticamente.

Assim, em primeiro lugar, conclui-se que a perturbação de que padece o arguido continua a carecer de tratamento médico, não se afigurando como transitória e sem sequelas [facto não provado na alínea i)]. Contudo, o facto de o arguido, actualmente, não apresentar actividade psicótica, é sinal seguro de que a sua patologia é tratável e controlável, com recurso aos fármacos prescritos.

Portanto … esta condição actualmente existente apenas pode ser mantida com recurso à terapêutica prescrita. Daí que não possa afastar-se totalmente a repetição de factos semelhantes.

Assim, conclui o tribunal quo que, pese embora mantenha os tratamentos e não apresente actividade alucinatória [actividade psicótica, noção mais abrangente que engloba a de natureza alucinatória, como nos parece que terá sido o que julgador quis aqui dizer], subsiste a probabilidade de o arguido praticar factos semelhantes, caso não mantenha o tratamento de que carece.

Mais adiante, em sede das consequências jurídicas do facto, o julgador voltou a analisar a questão de perigosidade, começando por dizer que o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos ilícitos e típicos da mesma espécie, enquanto pressuposto legalmente exigido para a aplicação de medida de segurança, tem de resultar dos autos.

Tendo, depois, assinalado que os factos praticados pelo arguido são objectivamente graves …

Além disso, conforme observou a 1.ª instância, ficou provado que existe a probabilidade de o arguido praticar factos semelhantes, sendo este risco significativamente reduzido com o cumprimento rigoroso da terapêutica prescrita e o acompanhamento médico.

Na verdade, o arguido admitiu parcialmente os factos que lhe são imputados e, actualmente, não apresenta actividade psicótica.

No entanto, não pode olvidar-se que a actividade psicótica do arguido foi revertida porquanto o mesmo permaneceu internado no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de ..., até 17-09-2021.

Portanto, apesar de, actualmente, o arguido se encontrar psicologicamente estabilizado e de aderir ao tratamento prescrito, afigura-se essencial, para manter a sua condição, um acompanhamento que garanta que o mesmo se sujeita ao tratamento de que carece.

A 1.ª instância fez ainda notar que não existem registos anteriores de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico ao arguido …

Tal circunstância poderá também compelir o arguido a acreditar que, por se encontrar estabilizado, não carece de tratamento.

Assim, afirma o tribunal a quo que apenas o acompanhamento especializado poderá auxiliar o arguido a não apresentar actividade psicótica, o que permite concluir pela existência de fundado receio de que o mesmo venha a cometer outros factos típicos graves, caso esse tratamento não se mantenha.

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Atendendo ao acima exposto, é de concluir, em primeiro lugar, que no juízo que realizou e deixou explanado na motivação da decisão de facto e também em sede de consequências jurídicas dos factos, o tribunal a quo respeitou o valor da perícia vertida … pois … as conclusões do relatório são consentâneas com os aspectos clínicos considerados na prognose que fez sobre a perigosidade do agente.

Importa aqui sublinhar o destaque que o julgador deu ao carácter essencial do cumprimento rigoroso da terapêutica prescrita e do acompanhamento médico do arguido, na redução do risco de este voltar a praticar factos ilícitos típicos da mesma espécie dos aqui julgados (cf. pontos provados 33 e 34), como, de resto, se impunha fazer, face à relevância que, em concreto, a intervenção hospitalar, médica e medicamentosa assumiu no caso dos autos, tendo comprovadamente permitido controlar a actividade psicótica que esteve na origem do processo (cf. pontos provados 6 a 23).

Ora, se é certo que a sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso permite controlar o risco de repetição de novos factos da mesma espécie, não é menos verdade que a garantia de que a perigosidade não ocorre não pode ficar dependente de um elemento cuja concretização é deixada a cargo do arguido, quando são fundados os riscos de que, atentas as características da sua personalidade, num processo terapêutico unicamente dependente da sua iniciativa para que se efective, sem falhas nem interrupções, o mesmo se sujeite ao tratamento de que decisivamente carece para obstar à probabilidade de vir repetir a sua conduta típica e ilícita.

Sem essa garantia que, como frisou o julgador, os factos do processo não fornecem, indo até em sentido contrário, conforme foi por ele analisado, é temerário admitir que, sem a aplicação de uma medida de segurança como a decidida pela 1.ª instância, fica afastada a probabilidade de que AA venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Donde o juízo de perigosidade do arguido não pode deixar de ser afirmado, como justificadamente entendeu o tribunal a quo na sentença recorrida.

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Em suma, a valoração que o tribunal a quo fez do relatório de perícia médico-legal referido, e que deixou exposta na motivação da sentença recorrida, pois é disso que se trata, quando cumpre conhecer de um eventual vício de erro notório, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, não revela qualquer incorrecção por violação de regras fundamentais em matéria de prova vinculada como a aqui em questão, como também a decisão da matéria de facto não atenta contra princípios gerais da experiência comum, não merecendo, pois, censura o que probatoriamente foi decidido pelo julgador.

… não se divisa, pois, qualquer erro na valoração probatória resultante da violação das regras da experiência ou de outros princípios a considerar, que seja patente aos olhos de um observador médio que lê a decisão …

O tribunal a quo sustentou a convicção formada a partir da prova perante si produzida, que valorou segundo princípio da livre apreciação previsto no artigo 127.º do CPP e, no caso da perícia, de modo conforme com o valor que lhe deve ser reconhecido, nos termos impostos pelo artigo 163.º, n.º 1 do CPP, apresentando uma explanação racionalmente sustentada em premissas lógicas, objectivas e em consonância com o regime referido, seguindo um percurso decisório que se apresenta conforme com os princípios e regras fundamentais em sede probatória …

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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação:

Em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA quanto à parte criminal e consequentemente:

1. Modificam a decisão sobre a matéria de facto na parte relativa ao ponto provado 32, o qual passa a ter a redacção “32) O arguido é portador de um quadro de perturbação psicótica breve (F23.2; CID-10), o que lhe conferiu uma incapacidade, no momento da prática dos factos, de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar por essa avaliação”.

2. Confirmam, quanto ao mais, a sentença recorrida.

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Custas de a cargo recorrente, face à irrelevância da modificação ordenada em 1. no desfecho do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).                                    

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2023

(Elaborado e revisto pela primeira signatária e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

Helena Bolieiro – relatora

Rosa Pinto – adjunta

Alice Santos – relatora