Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3243/23.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ARRESTO
RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
DECORRÊNCIA DO TEMPO SEM SER PAGA UMA DÍVIDA CONTRATUAL
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 391.º, 1, DO CPC
ARTIGO 3.º, N.º 2, DO CIRE
Sumário: A existência de uma dívida contratual de 146.376,46 euros e a passagem do tempo sem que ocorra pagamento, não são suficientes para que o tribunal conclua que ocorre, em relação ao requerente, justificado receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito e decrete o arresto de bens do devedor - n.º 1 do artigo 391.º do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………João Manuel Moreira do Carmo

2.º Juiz adjunto……….Fernando de Jesus Fonseca Monteiro


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(…)

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Recorrente …………………..AA;

Recorridos……………………V... Unipessoal Lda.

Melhor identificados nos autos.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se num procedimento cautelar de arresto – artigos 391.º a 396.º do CPC – e vem interposto pelo requerente quanto à decisão desfavorável ao seu pedido

O requerente pediu arresto dos bens da requerida V... Unipessoal, Lda., invocando um contrato de empreitada celebrado com ela, que o requerente cumpriu integralmente, mas a requerida apenas em parte, e em relação ao qual é credor do montante de 146.376,46€, sendo que a requerida não dispõe de património ou rendimentos que lhe permitam solver a sua dívida.

Realizou-se a audiência de julgamento, sem audição da requerida e depois foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, julgo improcedentes os pedidos formulados por AA e, em consequência, não decreto a providência cautelar requerida contra V... Unipessoal, Lda.

As custas serão suportadas pelo requerente, nos termos dos art. 539.º, n.º 1, 1ª parte e 530º do C.P.C.»

Os fundamentos desta decisão consistiram na falta de factualidade que permitisse concluir por uma situação reveladora da existência de um receio sério e atual de perda da garantia patrimonial que é constituída pelo património do devedor.

b) É, pois, desta decisão que vem interposto o recurso por parte do requerente/recorrente, cujas conclusões são as seguintes:

«1ª. O requisito elencado no 2º§ de fls 7 do R.I., face às alterações da lei, nas suas vertentes substantiva e adjetiva, é hoje inaplicável ao caso dos autos, maxime, à providência cautelar sub judicio, tanto mais que a factualidade ali alegada subsume-se nos dias de hoje a interpretação e aplicação muito diversas das que a Mma Juiz a quo lançou mão.

Vd, p.f., jurisprudência supra-citada no 15º item.

2ª. As regras de vida e de experiência comum, assentes em factos concretos, como são, in casu, os tidos como provados nos itens de 1 a 14, cf §2º, fls 7, da decisão recorrida - se tivessem sido devidamente analisados e valorados, e não foram, sempre levariam a 1ª instância a colher ali as devidas conclusões e, com base nelas, julgar o arresto procedente, mostrando-se, pois, a mesma incursa na nulidade prescrita no 615.º, d), com violação concomitante do 391.º - 1 e 392.º -1 do CPC.

3ª. Crê o Recte que, no calor da análise dos depoimentos testemunhais prestados ao vivo, e face, ainda, à urgência do interposto Arresto, ter-lhe-ia passado despercebida a força que emana dos factos alegados no reqto inicial, mais precisamente os tidos na sentença como provados, descritos sob os itens de 1 a 14, inclusive, de contrário a decisão teria sido muito outra, perante a força probatória que remanesce dos docs. ali juntos pelo Reqte da providência.

4ª. Alegara-se no r.i., comprovando-o com os docs 2.a) e 2.b) que entre o Rqte e a Rda fora acordado prazo para execução dos trabalhos ali referidos - 18 meses contados a partir da data de emissão da respetiva licença camarária, de acordo com o projeto que a Rda lhe dissera ter sido elaborado e apresentado na CM... por técnico competente e da sua confiança - pelo que a demandada só não cumpriu porque, deliberadamente, não quis, tudo como consta dos docs 3, 4, 5 ,6 e 7.

5ª. O apelante interpelou por escrito a Rda em 12/12/2022, exigindo-lhe por essa via a liquidação das prestações em falta, já então no valor global de 159.000,00€, mais IVA, sob pena de parar com os trabalhos, porquanto aquela, até então, além dos 19.730,00€, só lhe acrescera 18.000,00€, em 24/10/2022, encontrando-se em dívida, àquela data, a quantia de 103.085,44€, sem aí incluir ainda as demais que lhe são inerentes.

6ª. Daí, o justificado receio de perda de garantia patrimonial, atenta a falta de provisão da Rda, só desta forma sendo viável o cumprimento da respetiva obrigação através de bens que aquela eventualmente ainda possua, sendo que a mesma, ainda assim, tudo fará para se eximir ao pagamento da ajuizada dívida, o que se intui pela sua postura ao longo destes anos, aí assentando, aliás, o atual pensamento da nossa melhor jurisprudência sobre tal desiderato, ao enveredar por vias que fogem hoje aos velhos relhos lugares-comuns.

7ª. Quanto ao requisito da existência do direito, apenas se pedira à Mma Juiz a quo uma apreciação ou um juízo de mera verosimilhança, não sendo, de resto, imprescindível, que o direito em causa esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero fumus boni iuris, como é o caso.

8ª. Sob doc. 2. a) do R.I. vêm descritas 2 hipotecas da casa para cuja reconstrução fora o Reqte contratado pela Rda - o que se realça, para efeitos do disposto nos arts 393º e 394º do CC .- sendo, uma delas, registada a favor do Banco 1..., e a outra, a favor do Banco 1... e ITP, sob Ap. ...62 de 2019.05.28, no valor de 70.000,00€, e sob Ap....38, de 2022.06.23, respetivamente, ambas no valor global de 360.455,00€.

9ª. Tanto a condenação como a prova indiciária, a interpretação da prova como a fixação dos factos concretos que a integram devem ter por referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência comum de que a Mma poderia ter lançado mão, valorando-os nos diversos momentos do ato, por ser lícito aos nossos Magistrados recorrerem livremente às regras de vida, tudo com o acréscimo do atual ordenamento jurídico, ao reconhecer-lhes, e bem, plena liberdade para se socorrerem das regras de experiência comum e do conhecimento geral. O que não ocorreu na decisão recorrida.

10ª. Sobre tal desiderato e em reforço do alegado periculum in mora no rqto in., vd, p.f. i.o. os mui doutos Acs TRC, in Proc.1833/17.4T8FIG.C1, JTRC e 5101/22.1T8LRA.C1, ambos tirados por unanimidade em 06-03-2018 e 16-05-2023, respetivamente, de cujo teor, data venia e com a devida humildade, permite socorrer-se o signatário, dando-o aqui por reproduzido parcialmente no 15º e 16º itens das alegações.

Termos em que Vossas Excelências, revogando a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que julgue o interposto Arresto procedente, com as legais consequências, farão JUSTIÇA.»

II. Objeto do recurso.

O recurso coloca duas questões:

1.ª – Se a decisão padece de nulidade.

2.ª - Se a factualidade provada permite concluir pelo preenchimento dos requisitos do arresto indicados no artigo 391.º do CPC, ou seja, se ocorre para o requerente justo receio de perda da garantia patrimonial, sendo esta constituída pelos bens patrimoniais da Requerida.

III. Fundamentação

a) Nulidade de sentença

A recorrente alega que se as regras de vida e de experiência comum tivessem sido adequadamente conjugadas com os factos provados dos números 1 a 14 da decisão recorrida, o resultado seria a procedência do arresto, o que implica que se tenha cometido a nulidade prescrita no 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Não assiste razão à Recorrente.

Nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença padece de nulidade quando «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»

No caso, a Recorrente está a referir-se à omissão de pronúncia, mas esta só ocorre quando o tribunal omitiu de todo a apreciação da questão e não quando a analisou, mas concluiu em sentido diverso do pretendido pelo recorrente.

No caso, o tribunal analisou a questão, pelo que não ocorre a apontada nulidade.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1) O requerente dedica-se ao ramo da construção civil - que exerce licenciado pelos alvarás nºs ...-PUB e ...-PAR emitidos pelo Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P. - tendo outorgado com a requerida, em 07/10/2020, no âmbito dessa atividade profissional, um acordo intitulado “contrato de empreitada de obras”, pelo valor de 265.000,00€, acrescido do respetivo IVA à taxa legal, com vista à reconstrução de um prédio urbano em ruínas de que aquela é proprietária, sito em ..., ..., inscrito na matriz sob o art. ...33 e descrito na CRP sob o nº ...25.

2) Na cl. 4ª desse contrato, fora acordado entre ambos que o prazo legal para a execução dos trabalhos ali referidos seria de 18 meses, contados a partir da data de emissão da atinente licença camarária, conforme o previsto no plano de obras aprovado.

3) Na cl. 5ª do contrato celebrado, acordaram as partes que tanto os materiais como os utensílios para a sua aplicação seriam “fornecidos” pelo empreiteiro (requerente).

4) Foi emitido pela CM... em 03.02.2021 o alvará referido em 2.

5) Aquando da celebração do acordo referido em 1), já dispunha a requerida do orçamento elaborado pelo requerente, no montante de 265.000€, acrescido de IVA à taxa em vigor.

6) Apesar do referido em 4), a requerida só autorizou o início da construção em 2.05.2022, cerca de ano e meio após a outorga do acordo referido em 1) e cerca de dois meses antes de se esgotar o prazo de 18 meses fixado para o requerente acabar com a obra nos termos contratados.

7) Após o referido em 6), o requerente avançou com a obra, após ter despendido dinheiro com materiais de construção e salários dos trabalhadores.

8) Das cinco prestações acordadas na cl. 3ª do acordado celebrado - no valor

de 53.000,00€ cada uma – a requerida só viria a pagar ao requerente, dali a 3 meses, a quantia de 19.730,00€, ficando em falta 33.270,00€, acrescidos do atinente IVA.

9) O requerente continuou com a obra até 18.11.2022.

10) Em 07.12.2022 o requerente envia ao sócio-gerente da requerida uma carta registada com A.R., recebida por aquele em 12/12/2022 a interpela-lo no sentido de lhe serem liquidadas as três parcelas que já se encontravam em falta, no valor global de 159.000,00€, mais IVA, sob pena de os trabalhos continuarem parados, porquanto, até àquela data, só haviam sido pagos – para além dos 19.730,00€ iniciais - mais 18.000,00€, em 24/10/2022, o que perfaz, apenas, a quantia de 37.730,00€.

11) Após aquela comunicação, a requerida solicitou a emissão de duas novas faturas, uma, de 17.818,50€ e, outra, de 35.165,34€, ou seja, 52.983,84€, para serem abatidos no débito global existente.

12) Quanto àquelas últimas faturas, a requerida apenas liquidou 39.000,00€, ficando em dívida, 13.983,84€, ou seja, no total - pelas 3 primeiras fases já concluídas a que se reporta a cl. 3ª do acordo celebrado – ficou por liquidar, atenta a dedução dos montantes entretanto já recebidos pelo requerente - de 19.730,00€, 18.000,00€ e 39.000,00€ - o valor de 82.270,00€, acrescidos do respetivo IVA, de 18.922,10€, bem como dos juros que se venceram desde, pelo menos, desde a data em que a requerida foi interpelada para liquidar o seu débito, em 12.12.2022, no montante de 1.929,40€, tudo no total de 103.121,50€ a favor do requerente.

13) Em 1.07.2022, as partes outorgaram novo contrato intitulado “contrato de empreitada, Pensão Avenida, Alojamento Local – Estabelecimento de hospedagem”, no valor de 432.549,61€, acrescido de IVA, e, nos termos das suas cls 1ª,2ª e 3ª, co-financiado pelo ITP, com liquidações parcelares realizadas de acordo com faseamento idêntico ao do 1º contrato celebrado, que seriam, então, aprovadas em auto de medição a elaborar pela arquiteta responsável pela obra, tudo em ordem a que os activos recebidos por parte do ITP servissem de garantia ao pagamento dos trabalhos levados a cabo pelo requerente.

14) O requerente investiu em execução desse novo acordo cerca de 10% do valor global ali acordado, ou seja, de 43.254,96€, sem retorno da requerida, que faltou assim ao pagamento, ao requerente, do montante global de 146.376,46€.

2. Matéria de facto – Factos não provados

Não há.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

1 - No n.º 1 do artigo 391.º do CPC diz-se o seguinte:

«O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.»

Vejamos se a factualidade provada permite concluir pelo preenchimento dos requisitos do arresto indicados este artigo 391.º do CPC, ou seja, se ocorre para o requerente justo receio de perda da garantia patrimonial, sendo esta constituída pelos bens patrimoniais da Requerida.

2 - A resposta é negativa, pelas seguintes razões:

(a) O receio de perda da garantia patrimonial pode resultar, em regra, de duas situações típicas, a saber: o risco de insolvência, que é a situação alegada pelo recorrente, e o risco de dissipação ou ocultação de bens.

No caso dos autos, apenas interessa a primeira destas situações.

Como referiu o Prof. Alberto dos Reis, «… o justo receio de insolvência cria o perigo de insatisfação do direito de crédito, coloca o credor perante a ameaça de lesão; daí a justificação da providência cautelar (…). Não basta qualquer receio; é necessário, segundo a lei, que seja justo. Isto significa que o requerente há-de alegar e provar factos positivos que, apreciados no seu verdadeiro valor, façam admitir como razoável a ameaça de insolvência próxima» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 3.ª edição. Coimbra Editora/1981, pág. 18.

(b) Na jurisprudência tem-se entendido que o receio do credor tem de se fundamentar em factos que o revelem de modo objetivo, quer dizer, que sejam percetíveis para uma pessoa medianamente informada, sagaz e prudente (bonus pater familie).

Acórdão do TRC de 15-06-2004 (in http://www.gdsi.pt), processo n.º 1197/04:

«Por isso, não é possível concluir pelo justificado receio do credor com base, apenas, em meras probabilidades ou hipóteses de alienação do património por parte do devedor» - Sumário.

Acórdão do TRC de 30-06-2009 (in http://www.gdsi.pt), processo n.º 152/09.4TBSCD-A.C1:

«Tem-se vindo a entender no plano jurisprudencial, particularmente nesta Relação, que para a comprovação do justo receio da perda de garantia patrimonial não basta o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, já que para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação.»

– Acórdão do TRC de 30-06-2009 in http://www.gdsi.pt, processo n.º 972/08.7TBLSA-A.C1:

«Não preenche este requisito do arresto a comprovação pura e simples de que o devedor tem dificuldades financeiras.

– Acórdão do TRC de 17-01-2006 (in http://www.gdsi.pt),  processo n.º 3721/05

«Atenta a função meramente preventiva do arresto, parece insuficiente basear a medida cautelar em simples recusa de cumprimento da obrigação, desligada de outros factores relacionados com a perda da garantia patrimonial, já que aquela falta de modo algum pode equivaler ao pressuposto legal em causa.»

(c) Vejamos agora o caso concreto.

Resulta dos factos provados que a requerida tem uma dívida contratual de 146.376,46 euros para com a requerente.

Do ponto de vista da requerente esta omissão poderá conduzir à suspeita de que a requerida não tenha dinheiro para lhe pagar.

Porém, esta suspeita só por si não é suficiente para desencadear o procedimento cautelar do arresto, porquanto a lei exige que o receio de perda da garantia patrimonial seja justificado.

Seria um receio justificado se os factos mostrassem que a requerida está ou está a encaminhar-se para uma situação de insolvência.

Mas não resulta dos factos provados que tal situação ocorra.

Nos termos do n.º 2, do artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – DL n.º 53/2004, de 18 de março –, «As pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.»

Por conseguinte, se dos factos provados resultasse que a dívida para com a requerente, isoladamente ou juntamente com outras, dava lugar a um passivo manifestamente superior ao ativo, então sim, poderia concluir-se pela existência de uma situação em que ocorria justificado receio de perda da garantia patrimonial.

Mas não é esta a situação dos autos, pelo que a simples existência da dívida e a passagem do tempo, sem que ocorra pagamento, não são suficientes para que o tribunal defira o pedido de arresto.

Cumpre, pelo exposto, manter a decisão recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente.

Custas pelo Recorrente.


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Coimbra, …