Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1453/03.0TBFND-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: DIVÓRCIO
EFEITOS
CONTA BANCÁRIA
SALDO
ALIMENTOS
FILHO
DEFICIENTE
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADO
Legislação Nacional: ARTº 1789º, NºS 1 E 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Os efeitos de divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio, pelo que o acervo patrimonial estabiliza-se na data da propositura da acção e é a partir desta data que se decide se os bens móveis e/ou imóveis foram ou não integralmente relacionados no inventário respectivo, tendo sempre por referência a data em que a acção de divórcio deu entrada em tribunal, a menos que a situação se enquadre no nº 2 do artigo 1789º do CC.

II - Embora existisse um determinado saldo em conta bancária solidária dos ex-cônjuges à data da propositura da acção de divórcio, tendo o mesmo sido consumido em despesas de alimentação e vestuário da cabeça de casal e de um filho invisual e totalmente dependente que está a seu cargo, destino que não foi posto em causa pelas partes, cujo saldo inexiste à data da prolação da decisão recorrida e cuja finalidade não só não foi posta em causa como mereceu o acordo das partes em sede de diligência probatória, então deve considerar-se inaplicável o nº 1 do artigo 1789º do CC em virtude de os progenitores terem especiais responsabilidades para com esse filho e daí que não possa relacionar-se uma verba na relação de bens que deixou de existir, não porque tenha sido dissipada em proveito próprio da agravante, mas ao invés usou-a, repete-se, para suportar as suas despesas de alimentação e vestuário e sobretudo de um filho totalmente dependente e invisual que seguramente tem outras necessidades para além do vestuário e alimentação.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que integram a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Relatório

                Foi aberto inventário, por apenso aos autos de divórcio litigioso, entre o extinto casal composto por J… e C…, tendo a cabeça-de-casal C… prestado as declarações constantes de fls. 62 e 63 e relacionado os bens componentes do acervo hereditário.

A fls. 89 a 96 veio o interessado J… reclamar contra a relação de bens junta pela cabeça-de-casal. De acordo com as alterações ao regime do processo de inventário introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 227/94, de 8/9, cujos preceitos nucleares foram absorvidos pela reforma ao Código de Processo Civil introduzida pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/9, dispõe o actual art.º 1348º, n.º 2, do Código de Processo Civil que “apresentada a relação de bens, são os interessados notificados de que podem reclamar contra ela, no prazo de 10 dias, acusando a falta de bens que devam ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir, ou arguindo qualquer inexactidão na descrição dos bens, que releve para a partilha”. In casu vem o reclamante sustentar: no que concerne aos móveis a cabeça-de-casal omitiu os bens que identifica de 1º a 30º daquele articulado; no que concerne os imóveis: o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … tem actualmente o valor patrimonial de €8.838,97; a descrição cadastral indicada pela cabeça-de-casal como Verba 2° está completamente desactualizada, pois, já não existe o aludido artigo …, pelo que devera ser liminarmente eliminada da relação de bens; faltou à cabeça-de-casal indicar os seguintes prédios rústicos: um prédio rústico sito ao …; prédio rústico sito em …; relativamente aos direitos de crédito, a cabeça-de-casal omitiu os seguintes valores: saldo da conta bancária n.º … que em 05.05.2003 se cifrava no montante de 12.647,11 € (doze mil seiscentos e quarenta e sete euros e onze cêntimos) e que a cabeça-de-casal transferiu nessa mesma data e sem dar qualquer satisfação ao requerente para a conta n. ° … a que o requerente não teve nem tem acesso; saldo da conta bancária n.º …, que em 07.05.2003 se cifrava no montante de 22.564,88 € (vinte e dois mil quinhentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) da qual a cabeça-de-casal transferiu nesse mesma data 21.400,00 € (vinte e um mil quatrocentos euros) para a conta … sem o consentimento e conhecimento do requerente, sem que lhe tenha sido facultado o acesso a tal conta; saldo de uma conta bancária sedeada na …, que a cabeça-de-casal C… abriu em seu nome na altura da separação de facto de ambos, ocorrida em 27.04.2003, e com dinheiro de ambos e cujo número de conta ainda hoje o requerente desconhece; certificados de aforro em nome da cabeça-de-casal C…, que aplicou nos CTT balcão de Alcains na altura da separação de facto de ambos, ocorrida em 27.04.2003, e com dinheiro de ambos e cujos números ainda hoje o requerente desconhece. 

Veio a cabeça-de-casal apresentar resposta à reclamação nos seguintes termos: quanto aos bens móveis: os bens aludidos compunham o recheio da casa que foi de morada de família, com mais de 30 anos, sem qualquer valor comercial, pelo que não os relacionou atento o seu mau estado de conservação e sem valor, admitindo, todavia, relacionar os bens aí indicados; quanto aos imóveis: mantém o referido na verba n°2 da Relação de Bens, tal aquisição consta da escritura pública; o prédio referido em 33° da Reclamação era um prédio de pertença dos pais da cabeça-de-casal, A…, pelo que esta o adquiriu por sucessão, sendo bem próprio para efeitos de partilha, já que o reclamante foi considerado culpado no divórcio decretado, nos termos do previsto no artigo 1790º do CC; o interessado, contudo, receberá na partilha como se tivesse casado em regime de adquiridos, pelo que não deve ser relacionado; o mesmo sucede a 1/3 do prédio referido em 34°, já que tal prédio, de propriedade dos avós da cabeça-de-casal (J…), foi partilhado pelos 3 filhos: 1/3 para a cabeça-de-casal, 1/3 para M… e 1/3 para A…; quanto aos créditos: o valor referido em 35° e 36° foi gasto pela cabeça-de-casal em alimentação e vestuário, durante 4 anos, tendo ao seu cargo um filho invisual, totalmente dependente; nada mais havendo a relacionar, nomeadamente o indicado de 37° e 38º por não existirem.


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Realizada tentativa de conciliação em face da reclamação deduzida, resultou de tal diligência que pelas partes foi acordado que das verbas reclamadas, um dos frigoríficos referido no ponto 2º, uma das máquinas referida no ponto 3º e o esquentador referido no ponto 7º, do respectivo articulado, não devem integrar a relação de bens; relativamente ao imóvel indicado no ponto 2º da relação de bens, ao qual se reporta o ponto 32º da reclamação, acorda-se no sentido de que o aludido artigo … dê lugar ao artigo … da matriz da freguesia da Soalheira, devendo manter-se no demais nos termos já relacionados, consignando-se estar omisso na Conservatória do Registo Predial; e mais acordaram em relacionar apenas 75% do prédio referido na cláusula que antecede, visto que os 25% restantes pertencem exclusivamente à cabeça-de-casal, por via sucessória; acordando ainda em não relacionar o prédio vertido no ponto 34º da reclamação, por ser propriedade exclusiva da Cabeça de Casal.

Foi produzida a prova testemunhal oferecida pelas partes e conclusos autos foi proferida decisão que julgou a reclamação procedente, determinando-se o aditamento das sobreditas verbas à relação de bens, assim como a consignação das correcções decididas por acordo entre o interessado e a cabeça de casal.

                Notificada da decisão, a cabeça de casal veio interpor recurso, que foi admitido como agravo, com subida diferida e em separado, no momento em que se convoque a conferência de interessados, e com efeito devolutivo.

                A agravante atravessou nos autos as suas doutas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

                O agravado não contra alegou.

                Por despacho de folhas 50 manteve-se a decisão agravada.

2. Delimitação objectiva do recurso

                A questão a decidir no agravo e em função da qual se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, é a seguinte:

Ø Efeitos patrimoniais do divórcio. Relacionamento de saldos bancários existentes em momento anterior à propositura da acção. Utilização dos saldos das contas bancárias em alimentação e vestuário da agravante e de um filho invisual totalmente dependente que está a seu cargo


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                3. Colhidos os vistos aprecia-se e decide-se:

                Para uma completa compreensão do acórdão, vamos transcrever a parte do despacho que merece a discordância da agravante cabeça-de-casal:

 “Começando pelos pontos 35º e 36º da reclamação, que as partes entendem corresponder a uma situação de facto, importa reter que, conforme acordado na diligência probatória acima aludida, tais valores foram gastos pela cabeça-de-casal em alimentação e vestuário, durante 4 anos, tendo ao seu cargo um filho invisual, totalmente dependente. Neste conspecto, e atento o teor dos documentos juntos a fls. 129; 130; 145; 181; 243 a 250 e 262 a 279, é manifesto que existia saldo da conta bancária n° …, que em 05.05.2003 se cifrava no montante de 12.647,11 € (doze mil seiscentos e quarenta e sete euros e onze cêntimos) e que a cabeça-de-casal transferiu, sem dar qualquer satisfação ao requerente, para a conta n.º …; assim como existia saldo na conta bancária n.º …, que em 07.05.2003 se cifrava no montante de 22.564,88 € (vinte e dois mil quinhentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) da qual a cabeça-de-casal transferiu nessa mesma data 21.400,00 € (vinte e um mil quatrocentos euros) para a conta 036 – 10.050216 – 4 da mesma instituição bancária sem o consentimento e conhecimento do requerente, sem que lhe tenha sido facultado o acesso a tal conta. Assente que está a existência dos sobreditos saldos bancários, em contas tituladas pelo extinto casal, respectivamente, em 05.05.2003 e 07.05.2003, a questão que se coloca é saber se, por reporte à data em que o divórcio produz os respectivos efeitos patrimoniais, tais créditos devem, ou não, ser relacionados no presente inventário.

Ora, como refere o n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil, os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto ás relações patrimoniais entre os cônjuges.

Sendo este o princípio geral, há no entanto a excepção do n.º 2 do mesmo artigo, na redacção inovadora introduzida pelo Dec. Lei n.º 496/77, de 25/11, que reza assim: “se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro“.

Destes dois pontos do artigo 1789.º do Código Civil extrai-se linearmente o seguinte: i) proferida e transitada a sentença que decrete o divórcio, este produz imediatamente os seus efeitos a partir da data em que a acção foi proposta; ii) pode, no entanto, reportar-se à data da cessão da coabitação dos cônjuges a produção dos efeitos do divórcio, desde que tal seja requerido pelo cônjuge inocente ou menos culpado (ou – o que é o mesmo – pelo cônjuge não exclusiva ou predominantemente culpado).

Esta retroacção prevista no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil visa defender os interesses do cônjuge inocente ou menos culpado contra delapidações e abusos que possa cometer o cônjuge exclusiva ou predominantemente culpado desde o momento em que cesse a coabitação e até que seja proposta e decidida a acção de divórcio. Já o princípio consagrado no n.º 1 visa a protecção de qualquer dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da acção (cf. P. Coelho, Reforma do Código Civil, 1981, 48).

Como escreveu Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil, vol. VI, 1998, págs.227), “trata-se de uma regra que tem especialmente em vista evitar que qualquer dos cônjuges, na pendência do processo, tome medidas pecuniárias susceptíveis de prejudicar o outro cônjuge, qualquer que seja o regime de bens do casamento”. Ou evitar “que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum” (cf. Antunes Varela e Pires de Lima, in Código Civil anotado, vol. IV, 2.ª edição, pág. 561).

Temos que no caso vertente tal determinação dos efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio foi já objecto de despacho específico nos autos de divórcio.

Com efeito, e após o trânsito em julgado da sentença que o determinou, a requerimento da cabeça-de-casal pela fixação dos efeitos patrimoniais do divórcio na data em que a coabitação cessou por culpa exclusiva do requerente, ou seja, a partir de 27.04.2003, decidimos nos termos que seguem infra e aqui mostram pertinência.

No caso vertente a sentença proferida em 28.11.2005 mostra-se transitada em julgado, não constando do seu dispositivo qualquer alusão à data a partir da qual se produzem os efeitos do divórcio, na relação patrimonial, entre os ex-cônjuges.

Com efeito, apenas na fundamentação de facto encontramos os seguintes segmentos, que poderiam ter fundado a sobredita fixação, a saber:

“4. Os cônjuges encontram-se separados de facto, desde Maio de 2003, consecutivamente”;

“10. O réu abandonou o domicílio conjugal, em 27.4.2003”.

Assim, não só nada se fixou neste particular na sentença em causa, como o próprio acervo fáctico em que se estriba se mostra, pelo menos aparentemente, equívoco, tornando extremamente delicada uma qualquer interpretação que se pretenda fazer do mesmo neste conspecto.

Ora, sucede que a possibilidade de qualquer um dos cônjuges requerer que os efeitos se produzam a partir da data em que a separação tiver começado (se a separação de facto estiver provada no processo de divórcio) só funciona quanto ao divórcio litigioso (actual sem consentimento), sendo que o pedido tem de ser formulado até ao termo do julgamento da matéria de facto e nunca depois de proferida a decisão que decretou o divórcio pois, como expressamente prevê o sobredito normativo, esses efeitos tem de ser fixados na sentença e não já depois dela, nomeadamente pelo Juiz de primeira instância, que não de círculo.

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 2003.12.04 (in Colectânea de Jurisprudência - 2003, tomo V, pág. 108), “O pedido de retroacção dos efeitos do divórcio à data da cessação da coabitação deverá ser formulado, impreterivelmente, até à prolação da sentença de divórcio”.

Esta é aliás a posição sustentada na jurisprudência e doutrina, de onde se apontam, a título de exemplo, os Acs. do STJ, de 19/10/2004, Col. Jur. STJ, 2004, T-III, pag. 65, e de 19/12/2006, Col. Jur. STJ, 2006, T-III, pag. 176; o Ac. do T. Rel. Guimarães, de 31/01/2008, Col. Jur. 2008, T-I, pag. 275; o Ac. da Relação de Coimbra de 1991.02.19, Boletim do Ministério da Justiça, 404, pág. 519, mas também Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 560 e 561; e Tomé d´Almeida Ramião, “O Divórcio e questões conexas”, Quid Juris, 2009, pág. 79. Daí que, sem prejuízo da regra geral supletiva consagrada no sobredito art.º 1789º do C.C. tenhamos decidido indeferir, por extemporânea, a pretensão da requerente.

Subsiste, pois, a sobredita regra do n.º1 do art.º 1789º do C.C., de onde resulta que, tendo a acção de divórcio dado entrada em juízo a 12.12.2003, será até esta data que relevarão os bens que compõem a massa a partilhar. Nesta medida, reportando-se os saldos em causa a momento anterior à dissolução, para efeitos patrimoniais, do património comum dos ex-cônjuges, deverá o mesmo ser relacionado, assim procedendo, nesta parte, a reclamação”.


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                3.1 – Saldo de € 12.647,11 existente na conta … em 5 de Maio de 2003.

                Insurge-se a agravante relativamente ao facto do despacho agravado ter fixado a data de 12 de Dezembro de 2003 – data da entrada da acção de divórcio – como a data que releva para efeitos patrimoniais do divórcio.

                Determina o artigo 1789º do CC na redacção introduzida pelo DL nº 496/77, de 25.11:

1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.

2. Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.

3. (…).

Tanto quanto logramos entender, os motivos de discordância passam pela afirmação constante 3º§ de folhas 17 onde o Sr. Juiz escreveu subsiste, pois, a sobredita regra do n.º1 do art.º 1789º do C.C., de onde resulta que, tendo a acção de divórcio dado entrada em juízo a 12.12.2003, será até esta data que relevarão os bens que compõem a massa a partilhar, enquanto a agravante entende que não «será até» mas sim desde a propositura da respectiva acção.

Neste diferendo e relendo o nº 1 do artigo 1789º do CC ex vi o nº 1 do artigo 9º do CC concluímos que nada de relevante projecta na questão a decidir: na verdade se os efeitos de divórcio (…) se retrotraem à data da propositura da acção de divórcio, então toda a acção ou omissão levadas a cabo por um dos ex-cônjuges – os efeitos produzem-se a partir do trânsito em julgado, mas retrotraem-se à data da entrada em Juízo da acção – por referência ao acervo patrimonial, este estabiliza na data da propositura da acção e é a partir desta data que se decide se os bens móveis e/ou imóveis foram ou não integralmente, repete-se, relacionados no inventário, tendo sempre por referência a data em que a acção de divórcio deu entrada em tribunal, a menos que a situação se enquadre no nº 2 daquele mesmo artigo o que não sucede.

Posto isto, vejamos se o despacho recorrido merece censura.

Sabemos da sua leitura que a acção de divórcio deu entrada em 12 de Dezembro de 2003 tal como sabemos que em 5 de Maio de 2003 existia na … um depósito no valor de € 12.647,11 que a cabeça de casal transferiu para outra conta da mesma agência bancária.

Sabendo-se que a relação de depósito pode ser singular[1] ou plural[2], «dentro da categoria das contas plurais ou colectivas, ou seja, das contas de depósito com mais de um titular (…) em geral, são duas as modalidades ou variantes que, na legislação, na doutrina e na prática bancária se distinguem. Há por um lado as contas plurais (ou colectivas) conjuntas e, por outro lado, as contas plurais (ou colectivas) solidárias. O depósito plural solidário é aquele em que qualquer dos credores (depositantes ou titulares da conta), apesar da divisibilidade da prestação, tem a faculdade de exigir, só por si, a prestação integral, ou seja o reembolso de toda a quantia depositada e em que a prestação assim efectuada libera o devedor (o Banco depositário) para com todos eles – artigo 512º do CC»[3], já a movimentação a débito do depósito plural conjunto exige a actuação conjunta de todos os seus titulares, ou dito de outra forma, só pode ser movimentada em conjunto por todos os seus titulares[4].

Em princípio o depósito bancário integrava a categoria de plural/solidária já que a instituição permitiu que a agravante transferisse o saldo existente para uma outra conta, em princípio, singular e por isso só passível de ser movimentada pela sua titular a aqui cabeça de casal.

                A decisão recorrida afirma que, atento um conjunto de documentos, existia no Banco … a quantia de € 12.647,11 em 5 de Maio de 2003 – cf. 13 e 14 – ou seja em data anterior a 12 de Dezembro de 2003 data de entrada em Juízo da acção de divórcio, interpretando-se o segmento da decisão recorrida «se cifrava no montante de € 12.647,11 que a cabeça de casal transferiu, sem dar qualquer satisfação ao requerente, para a conta nº … também da referida …» com o sentido de tal transferência ter ocorrido em data anterior à entrada em Juízo da acção de divórcio.

                3.2 Vistas as coisas por este prisma nada a apontar à decisão recorrida quando considera que a cabeça-de-casal devia relacionar o saldo existente na conta à data em que, indevidamente, operou a transferência do saldo para uma conta singular, sabendo ou não podendo desconhecer que presuntivamente o saldo pertencia ao casal. Todavia, a decisão recorrida traz-nos uma realidade que não podemos olvidar: ou seja os ex-cônjuges aceitaram/concordaram na diligência probatória que antecedeu a decisão recorrida que tal valor foi gasto pela cabeça de casal em alimentação e vestuário, durante 4 anos, tendo a seu cargo um filho invisual totalmente dependente.

                Desta declaração vinculativa para ambos os ex-cônjuges resulta a inexistência de qualquer saldo na sobredita conta a partir de meados de 2007, quantia que ainda durante parte do casamento foi usada para encargos da vida familiar – 1674º, 1675º, 1676º, 1877º, 1878º e 1879º todos do CC – tendo o mesmo destino após a entrada da acção de divórcio em Tribunal.

                Embora existisse um determinado saldo à data da propositura da acção de divórcio, a verdade é que o mesmo foi consumido em despesas de alimentação e vestuário da cabeça de casal e de um filho invisual e totalmente dependente que está a seu cargo, destino que não foi posto em causa pelas partes, cujo saldo inexiste à data da prolação da decisão recorrida e cuja finalidade não só não foi posta em causa como mereceu o acordo das partes em sede de diligência probatória.

Consideramos por isso inaplicável o nº 1 do artigo 1789º do CC em virtude de os progenitores terem especiais responsabilidades para com o filho, tal como não foi posto em causa que parte daquela quantia foi usada pela agravante para se vestir e alimentar finalidade esta que também foi reconhecida pelo agravado, e daí que não possa estar relacionar-se uma verba na relação de bens que deixou de existir, não porque tenha sido dissipada em proveito próprio da agravante, mas ao invés usou-a, repete-se, para suportar as suas despesas de alimentação e vestuário e sobretudo de um filho totalmente dependente e invisual que seguramente tem outras necessidades para além do vestuário e alimentação.

Ao ter-lhe sido dado um destino consensual e esgotada muito antes da entrega da relação de bens não é aplicável o disposto no nº 1 do artigo 1789º do CC, na medida em que, por acordo tácito dos cônjuges e ex-cônjuges, tal verba foi adstrita à finalidade que verbalizaram durante a diligência probatória[5] que antecedeu a decisão recorrida e por isso deixou de fazer parte do acervo patrimonial que agravante e agravado partilham no respectivo inventário.

3.3 Idêntico raciocínio se faz por referência ao montante de € 22.564,88 que existia em 7 de Maio de 2003 no … e do qual a agravante transferiu para uma conta própria o montante de € 21.400,00 a que deu a mesma finalidade da quantia referida em 3.2.  


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em conceder provimento ao agravo e consequentemente revoga-se o despacho recorrido na parte em que ordenou que se relacionassem os saldos das contas identificadas sob as verbas 35º e 36º da reclamação.

                Custas pelo agravado – artigo 446º do CPC.

                Notifique.

               

Jacinto Meca  (Relator)


[1] Quando o depósito pode ser movimentado a débito pelo seu único titular.
[2] Quando o depósito pode ser movimentado por duas ou mais pessoas.
[3] Ac. RP, datado de 5.5.2005, proferido no âmbito do processo nº 0531986, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[4] Ac. RP, datado 14.1.1998, CJ, Ano XXIV, tomo I, pág. 184.
[5] Começando pelos pontos 35º e 36º da reclamação (…) importa reter que, conforme acordado na diligência probatória acima aludida, tais valores foram gastos pela cabeça-de-casal em alimentação e vestuário durante 4 anos, tendo a seu cargo um filho invisual e totalmente dependente.