Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
21/22.2T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
ORIGEM DE QUANTIAS DEPOSITADAS EM CONTA BANCÁRIA E MOTIVO DE TRANSFERÊNCIA PARA UM DOS FILHOS
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:  JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1092.º, 1, B) E 1093.º, DO CPC
Sumário: No inventário, não sendo caso do previsto no art.1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art. 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.
No caso, admitidos os movimentos bancários, discutido apenas se o dinheiro é economia do casal, transferido, por acordo de pais e filho, para este, para o “esconder”, considerando que a prova se limita aos documentos aceites e aos depoimentos desta família, não se justifica aquela remessa.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão, de 4.7.2023:

«O requerido AA deduziu incidente de reclamação contra a relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, acusando, entre o mais, a falta de relacionação de várias quantias em dinheiro, no valor global de € 232.927,80, por se tratar de bem comum do ex casal na posse de terceiro, o filho de ambos, concluindo pelo dever da sua relacionação.

A cabeça de casal pugna pelo indeferimento do requerido alegando que tal quantia se tratou de doação ao filho do casal, pelo que, considera não ser um bem comum.

Ora, atenta a alegação do requerido, conjugado com o que preceitua o artigo 1689.º do Código Civil, somos em crer que a presente questão não pode ser resolvida no âmbito do presente incidente, impondo-se a sua remessa para os meios comuns, uma vez que se trata de saber se na data em que foi intentada a ação de divórcio existe ou não referida quantia e se a mesma se trata de bem comum em poder de terceiro. No fundo trata-se de saber se tal quantia deve ou não figurar na partilha que se pretende efetuar no presente inventário.

Com efeito «A remessa para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efetiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as ações declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental” – cf. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/05/2017, processo n.º 848/15.1T8VFX.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.

Destarte, repercutindo-se a questão em causa na determinação de um valor que afetará o acervo ou influirá no cálculo do valor dos bens a partilhar e que tal montante constitui a quase totalidade do valor dos bens comuns a dividir, é nosso entendimento que a complexidade da questão torna inconveniente a apreciação da mesma, implicando a redução da garantia das partes, atendendo à tramitação simplificada e às limitações probatórias inerentes aos incidentes, pelo que, e ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 1093.º do Código de Processo Civil, abstemo-nos de conhecer incidentalmente a questão invocada, determinando a remessa dos interessados para os meios comuns, para discutirem se a indicada é um bem comum e se encontra na posse de terceiro ou se ao invés não é bem comum por ter sido doado a terceiro.

Por outro lado, atendendo ao facto de que tal quantia constituiu a quase totalidade do valor do presente inventário, de forma a não se praticarem atos inúteis, não se irá produzir prova sobre as demais questões suscitadas na reclamação à relação de bens, além do mais por uma dessas questões depender intrinsecamente da decisão que vier a ser proferida nos meios comuns.

Pelo exposto, determina-se a remessa das partes para os meios comuns, ficando os autos suspensos até que se mostre decidida tal questão.” (Fim da citação.)


*

           Inconformada, a interessada BB recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. A douta decisão recorrida, referente à remessa para os meios comuns e suspensão dos autos, por despacho de 04-07-2023 não pode manter-se, pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e dos princípios jurídicos competentes.

II. Espera, pois, a Recorrente e, assim, com o presente recurso, ver revogada a decisão proferida nos presentes autos, o que, conduzirá, ao prosseguimento do processo de inventário.

III. Existe erro notório na fundamentação do douto despacho que remeteu os interessados para os meios comuns e, em consequência decretou a suspensão dos presentes autos.

IV. Conforme se encontra rebatido nos autos, os interessados divorciaram-se através de um processo intentado a 03/05/2019.

V. Os efeitos do divórcio retroagiram à data da propositura da aludida acção, como

prontamente esclarece o art.º 1789.º, n.º 1 do Código Civil.

VI. O dinheiro reclamado foi movimentado muitos meses antes da propositura da acção.

VII. Foi movimentado pelo próprio recorrido!

VIII. O Recorrido não aceita a validade de um acto (doação), que ele próprio efetuou.

IX. Comportamento que configura um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, nos termos do art.º 334.º do CC.

X. Mas, a questão é clara e cristalina, pois só devem ser relacionados e partilhados os bens existentes à data da propositura do divórcio.

XI. Nesse sentido se tem pronunciado a jurisprudência, de forma unânime, nomeadamente: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-11-2014, Processo 2009/06.1TBAMDB.L1.S1 e, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-05-2012, processo 238/06.7TCGMR – B.G1.S1.

XII. O acto de gestão foi praticado pelo próprio Recorrido e, não pela Recorrente.

XIII. A Recorrente aceita esse acto de gestão e, reconhece a doação.

XIV. A questão a dirimir é estranha à partilha.

XV. Trata-se duma relação jurídica apenas entre o Recorrido e um terceiro.

XVI. O processo é apenas do interesse do Recorrido e, é estranho à relação patrimonial dos ex-cônjuges.

XVII. Por tudo isso, a questão deve ser dirimida nos presentes autos em sede incidental.

XVIII. A mesma não reveste de complexidade, podendo ser assegurada convenientemente em sede de incidente, sem afastar as garantias de defesa das partes.

XIX. A douta decisão faz tábua rasa da prova documental!

XX. A questão é clara e, existem já elementos de prova suficientes.

XXI. Nunca se poderia pugnar pela insuficiência do meio o processual (incidente).

XXII. Ainda mais evidente, é a discussão em torno dos famigerados € 47.290,87 euros.

XXIII. Quanto a esse valor, do suporte documental, afere-se que o montante foi depositado e, é propriedade de um terceiro.

XXIV. Dúvidas não restam, que o dinheiro (totalidade) nunca pode ser relacionado como bem comum.

XXV. Parte dele NUNCA pertenceu sequer ao património conjugal.

XXVI. E o restante está na posse de um terceiro, através de um acto de disposição do próprio Recorrido e, aceite pela Recorrente.

XXVII. Além disso, não relacionação desse dinheiro, atendendo ao exposto supra, não é impeditiva da propositura de uma acção, nos termos gerais do Código Civil, contra o aludido terceiro e, eventualmente contra a Recorrente.

XXVIII. Não se mostram verificados os requisitos do art.º 1093.º, n.º 1 do CPC.

XXIX. Deve o despacho ser revogado e, em consequência ser o Tribunal obrigado a pronunciar-se sobre a questão do dinheiro, nos termos relatados supra.

XXX. A suspensão da instância só pode ser determinada se a causa prejudicial afetar a utilidade da partilha, como resulta do art.º 1093.º, n.º 2 do CPC.

XXXI. O douto despacho recorrido justifica a suspensão com o valor do dinheiro, que segundo o Mmo. Juiz corresponde à quase totalidade do inventário.

XXXII. Mas, o processo supostamente a intentar apenas reveste de interesse para o Recorrido.

XXXIII. O aludido processo terá sempre de correr contra um terceiro estranho á relação jurídica entre os interessados no inventário.

XXXIV. Acresce, a morosidade de uma acção de processo comum.

XXXV. Não pode a Recorrente, que não tem interesse na propositura dessa acção nos meios comuns, ficar indefinidamente à espera do impulso processual do Recorrido.

XXXVI. A inação da parte interessada, o Recorrido, poderá eventualmente resultar na deserção da instância nos termos do art.º 281.º do CPC.

XXXVII. Apenas está em causa a definição dos bens que deverão ser objecto de partilha.

XXXVIII. O eventual litígio, referente à questão do dinheiro, não revela aptidão para arrasar ou modificar os fundamentos da partilha dos bens que, entretanto, possa ser executada nos presentes autos de inventário.

XXXIX. Existe um enorme acervo patrimonial a partilhar, mormente diversos bens móveis e imóveis, que podem ainda ser avaliados, pois o valor indicado é apenas o patrimonial.

XL. E sempre será mais difícil e moroso, operar uma partilha de bens móveis e imóveis.

XLI. Pois, o dinheiro, se for eventualmente considerado bem comum na acção a propor, é facilmente divisível.

XLII. A celeridade sobrepõe-se à possível inconveniência de vir a ser alterada a partilha em consequência desse dinheiro, cuja existência ainda não é definitiva, nem se encontra rigorosamente definida.

XLIII. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/06/2022, Proc.º 1309/20.2T8LRA-A.C1.

XLIV. Assim, o Tribunal até pode remeter às partes para os meios comuns, mas nunca pode determinar a suspensão da instância até que seja proferida uma decisão no eventual processo.

XLV. Logo, a manter-se a remessa para os meios comuns, deve o despacho ser revogado e, em consequência determinar-se o prosseguimento dos autos quanto aos demais bens.

XLVI. De todo o exposto, não poderá, o despacho que remeteu os interessados para os meios comuns e, suspendeu a instância manter-se.


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           O interessado AA contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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As questões a decidir são as seguintes:

A remessa dos interessados para os meios comuns.

A suspensão do inventário por força da referida remessa.


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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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O interessado AA acusou a falta de relacionação das seguintes quantias em dinheiro:

1º Economias do casal, enquanto trabalhadores na Suíça, e que foram transferidas, por acordo de todos, da conta do ora reclamante para a conta do filho de ambos, CC, na Banco 1... de ... com o n.º ...00..., com a condição de que tais montantes seriam restituídos ao património do casal logo que tal lhe fosse solicitado por qualquer um: - 82.314,36 euros em 27/12/2017; (Doc. 1) - 41.322,57 euros em 20/12/2017; (Doc. 2) - 10.000,00 euros 20/12/2017; (Doc. 3) - 10.000,00 euros 20/12/2017; (Doc. 4) - 12.000,00 euros em 29/12/2017; (Doc. 5) Total de 155.636,93 euros transferido pelo ora reclamante que a cabeça de casal deve relacionar.

2º Economias do casal, enquanto trabalhadores na Suíça, e que foram transferidas, pela cabeça-de-casal para a conta do filho de ambos, CC, na Banco 1... de ... com o n.º ...00..., com a condição de que tais montantes seriam restituídos ao património do casal logo que tal lhe fosse solicitado por qualquer um: - 30.000,00 euros em 20/03/2019(Doc. 6) - 47.290,87 euros em 17/08/2018 (Doc. 7). O montante de 30.000,00 euros eram economias do casal e estavam na conta do reclamante e foi movimentada pela cabeça-de-casal. O montante de 47.290,87 euros eram economias que o casal tinha em casa em francos suíços foi depositado na conta de CC, pela cabeça-de-casal e por este, sem prévio conhecimento e contra a vontade do reclamante porquanto tais movimentos foram realizados numa altura em que já se encontravam desentendidos e com o objetivo de retirar esta importância da disponibilidade do requerente. Todas estas quantias, no montante de 232 927,80 euros, foram depositadas na conta do filho do casal CC e constituem bem comum casal, devendo ser relacionadas como dinheiro do casal em nome do terceiro seu filho CC. Deve a cabeça-de-casal relacionar a quantia de 232 927,80 euros que se encontram depositados na Banco 1... na conta do filho de ambos CC n.º ...00....

Respondeu a interessada BB:

O saldo das contas a relacionar só poderia ser o que existia à data da propositura da acção de divórcio (que era inexistente), e não antes, pois ainda persistia a comunhão conjugal.

As ditas transferências sempre foram feitas pelo próprio reclamante para a conta do seu descendente, passando assim a pertencer ao descendente CC.

Quanto ao valor € 47.290,87, o mesmo corresponde às economias do descendente CC, que nada têm a ver com a discussão a fazer nos presentes autos.

O montante € 30.000,00 euros foi efectivamente transferido pela cabeça de casal, mas a pedido do Reclamante. Mais uma vez o montante passou a pertencer ao descendente CC.

Relativamente a esses € 30.000,00 euros, o descedente CC transferiu € 10.000,00 euros para o Reclamante.

Respondeu o interessado AA, além do mais, que a cabeça de casal e o filho de ambos concordaram na decisão de colocar o dinheiro do casal na conta do filho, no interesse de todos, para acautelar e evitar a instauração contra o casal, pelo estado suíço, de eventuais averiguações sobre aquele património, dado que o estado suíço estava a fazer um apuramento exaustivo do património dos casais portugueses que trabalhavam na Suíça.

Em 2.11.2022, tinha sido ordenado o prosseguimento dos autos para produção da prova apresentada.


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Considerando os princípios da concentração dos atos processuais, da economia de meios e da celeridade, a regra basilar é a de que, em qualquer processo, todas as questões e pretensões que nele se coloquem devem no mesmo ser decididas.

“A prossecução da regra de que a partilha de bens comuns deve ser efetuada de forma justa e equitativa passa também pela observação da regra de que a resolução de todas as questões tenha lugar no processo de inventário devendo a partilha realizar-se de uma só vez.” (Ac. da R. Porto, de 08.09.2020, proc. 3744/06, em dgsi.pt.)

Esta regra é afastada ou atenuada pelo disposto no art. 1903 do Código de Processo Civil, o qual estatui:

Outras questões prejudiciais

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

Não sendo caso do previsto no art.1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

Nos incidentes da instância, a prova apenas é limitada quantitativamente, que não qualitativamente, podendo ser apreciados e valorados todos os meios de prova em direito admissíveis.

A jurisprudência vem entendendo que os interessados só devem ser remetidos para os meios comuns quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.

No caso concreto:

As partes reconhecem as transferências documentadas. Mais, com uma relativa exceção (€ 47.290,87), as partes reconhecem que o dinheiro era economia do casal. Elas apenas divergem na razão porque o dinheiro aparece na conta do filho de ambos.

As partes não se queixaram de qualquer redução de garantias em ver a questão resolvida aqui.

A prova a produzir limita-se aos esclarecimentos dos pais e filho, não se vislumbrando que outra pudesse ser feita, com relevância, no processo comum.

Assim, não ocorre a complexidade pressuposta na decisão recorrida.

Afastada a remessa que justificou a suspensão, fica também esta arredada.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se o prosseguimento do processo.

            Custas pelo interessado AA, vencido.

            2024-05-07


(Fernando Monteiro)

(Rui Moura)

(Moreira do Carmo)