Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5742/22.7T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: MORA DO ARRENDATÁRIO NO PAGAMENTO DA RENDA
COMUNICAÇÃO AO FIADOR
CARTA POSTAL SIMPLES
PRESUNÇÃO DE RECEBIMENTO PELO FIADOR
PROVA DA COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 224.º, N.ºS 1 E 2, E 1041.º, N.ºS 5 E 6, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A comunicação ao fiador da situação de mora do arrendatário no pagamento da renda, para os efeitos previstos no artigo 1041º, ns. 5 e 6, do CC, pode ser efetuada por meio de envio pelo correio de carta simples, cujo recebimento se presume, se enviada para a morada do fiador.

II – O envio de tal carta pode ser demonstrado mediante apresentação de cópia da mesma em conjugação com prova testemunhal.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Catarina Gonçalves
2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e BB, intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC e DD,

pedindo:

1. a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas e do despejo e entrega do locado às Autoras, livre e devoluto de pessoas e bens e

2. a condenação solidária de ambos os Réus a pagar às AA. as rendas em dívida, no valor de 1.890,00 € (em Dez. 2022 – 270,00/mês), a que acrescem aquelas que se forem entretanto vencendo até efetiva entrega do locado.

O 2º Réu (fiador) deduziu contestação, defendendo-se por impugnação, quanto às rendas em dívida e à sua interpelação para pagamento, concluindo pela sua absolvição do pedido ou pela improcedência da ação relativamente a si.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida Sentença, que culmina com a seguinte:

IV. Decisão:

 Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:

- julgo extinta, ao abrigo do art. 287.º, al. e) do Código de Processo Civil, por inutilidade superveniente da lide, a instância quanto aos pedidos de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas e de entrega do locado e

- julgo procedente a ação, quanto ao pedido de condenação solidária dos Réus a pagar às Autoras a quantia de € 5.130,00 (cinco mil cento e trinta euros), a título de rendas vencidas e não pagas (€ 270,00 x 19 meses).

Custas pelos Réus


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Não se conformando com o decidido, o 2º Réu, DD (fiador) dela interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

(…).


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As autoras apresentam contra-alegações ao recurso interposto pelo réu, concluindo no sentido da sua improcedência.

Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Impugnação da decisão proferida em sede de matéria de facto quanto aos pontos 6 e 7, da matéria dada como provada.
2. Em caso de procedência da impugnação, se é de alterar o decidido quanto à condenação do 2º Réu.
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

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Matéria de facto

O tribunal a quo proferiu o seguinte julgamento em sede de matéria de facto:

“São os seguintes os factos provados com relevância para a decisão da causa:

1- As AA são as únicas donas e legítimas possuidoras do seguinte prédio urbano: Prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, que se destina a habitação e se compõe de rés do chão com 3 divisões, cozinha e w.c., sito na R. ..., ..., ..., ... Coimbra, União das Freguesias ... e ..., concelho ... (…)

2- Em 06/10/2021, as AA. celebraram com o 1º R. um contrato de arrendamento, pelo qual, se obrigaram a proporcionar-lhe o gozo temporário do prédio identificado em 1), contra a renda de 270,00 €, a pagar mensalmente ao representante da senhoria, na R. ..., ..., ..., sala ...6, em Coimbra, do dia 01 ao dia 08 do mês anterior àquele a que dissesse respeito.

3- O contrato foi celebrado pelo prazo de 3 anos, não renovável e teve por fim exclusivo a habitação do 1º R.

4- O 2º Réu prestou fiança às Autoras relativamente às obrigações do locatário.

5- O 1º R. não procedeu ao pagamento das rendas dos meses de Junho de 2022 e seguintes.

6- As Autoras comunicaram ao 2º Réu o incumprimento do Réu arrendatário e interpelaram-no para o pagamento do valor em dívida.

7- O Réu fiador recebeu aquela comunicação e tomou conhecimento do seu conteúdo e da obrigação que para ele decorria da mesma, sem que tivesse procedido ao pagamento das rendas em dívida às Autoras.

8- O 1ª Réu entregou o locado às AA. em 2-02-2024.


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Inexistem factos não provados.”

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1. Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto dada como provada sob os ns. 6 e 7.

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[1], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.


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O Réu/Apelante deduz impugnação à decisão proferida quanto à matéria de facto contida nos pontos 6 e 7 dos factos provados:

“6- As Autoras comunicaram ao 2º Réu o incumprimento do Réu arrendatário e interpelaram-no para o pagamento do valor em dívida.

7- O Réu fiador recebeu aquela comunicação e tomou conhecimento do seu conteúdo e da obrigação que para ele decorria da mesma, sem que tivesse procedido ao pagamento das rendas em dívida às Autoras.”

Segundo o Apelante, tais factos devem ser dados como “não provados”, porquanto, não tendo sido junto qualquer documento para a sua prova, o tribunal a quo baseou-se unicamente no depoimento da testemunha indicada pelas recorridas, EE, resultando do seu depoimento não haver qualquer registo de que o recorrente tenha recebido a carta de julho – um aviso de receção, um registo, um aviso ou uma referência posterior a essa carta ou a outra.

O tribunal a quo explanou pelo seguinte modo, a convicção por si formada relativamente à matéria em causa:

“Quanto aos demais factos dados como provados, a testemunha FF, administrativa da sociedade comercial Empresa A..., Ldª., que gere o imóvel das AA., referiu, em termos credíveis, que o contrato de arrendamento em causa nos presentes autos foi assinado no seu escritório, na sua presença, quais as rendas que estão em dívida e as várias diligências e contactos estabelecidos com o 2º R., fiador, dando-lhe conhecimento da situação de incumprimento do R. inquilino.

Mais afirmou que quando também o fiador deixou de estar contactável telefonicamente, lhe enviou, por correio simples, a carta datada de 10-11-2022, cuja cópia se encontra junta aos autos. Deslocou-se, igualmente, a casa do R. fiador, o qual não lhe abriu a porta, tendo confirmado junto de uma vizinha que o mesmo ali residia, e deixou-lhe cópia daquela mesma carta debaixo da porta. Na sequência da mencionada carta, o R. fiador deslocou-se ao escritório da testemunha, com a qual conversou, tendo-se comprometido a diligenciar no sentido da liquidação dos valores em dívida pelo 1º R., o que não aconteceu. De todo o exposto, extrai-se que o 2º R. há muito tinha conhecimento de que o pagamento das rendas devidas pelo arrendamento ajuizado estava em dívida. (…).

Ora, este depoimento que, pela forma lógica, segura e espontânea como foi prestado, mereceu credibilidade, está em oposição com a versão do R., espelhada na contestação.”

Sem colocar em causa o raciocínio exposto pelo juiz a quo relativamente às declarações da testemunha FF (única testemunha ouvida nos autos), o Apelante faz apoiar a sua posição de que tais factos devem ser dados como “não provados”, no argumento de que, sem o apoio de uma prova documental, não se pode dar como provado que o réu efetivamente tenha recebido a carta.

Não é de dar razão ao apelante.

O envio da carta pode ter-se por demonstrado com base na conjugação da cópia da carta que se encontra junta aos autos com o depoimento da testemunha que afirma que a mesma foi enviada.

Quanto à sua receção por parte do réu, tendo a carta sido enviada para a morada que o Réu assume como sendo a sua – Estrada Nacional ..., Edf...., ... A, ...., Coimbra –, correspondendo à morada indicada pelo réu aquando do pedido de apoio judiciário por si formulado no âmbito da presente ação, presumir-se-á o seu recebimento por parte do réu.

Não exigindo a lei qualquer tipo de comunicação específica (ao contrário do que sucede com determinadas notificações ao arrendatário, para as quais se exige carta registada com A/R – artigo 15º do NRAU), temos por válido o envio de uma carta enviada por correio simples.

Assim sendo, o respetivo recebimento pode ser provado com recurso a prova testemunhal ou por presunções (definidas pelo artigo 349º CC, como “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido).

Encontrando-nos perante uma declaração receptícia – torna-se eficaz logo que chega ao seu poder do destinatário ou é dele conhecida, sendo, ainda, considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida (artigo 224º, ns. 1 e 2 Código Civil).

Para a lei, basta que a declaração chegue ao poder do destinatário, em condições de ser por ele conhecida para se tornar eficaz, revelando-se indiferente que tome ou não efetivo conhecimento do respetivo conteúdo:

“A declaração chega ao poder do destinatário quando atinge a sua esfera pessoal, ficando ao seu alcance, de modo a que, em condições normais e segundo as regras da experiência comum, o declaratário possa, por atos que dependam apenas dele próprio (e que se espera que ele pratique nessas circunstâncias) tomar conhecimento da vontade manifestada pelo declarante. Deve, pois, a receção fazer-se em termos tais que se possa contar com o conhecimento, que seja legítimo esperá-lo de acordo com o que é normal acontecer e as condições efetivamente conhecidas pelo declarante. Assim, por ex., se é entregue uma carta, em sobrescrito fechado, na caixa do correio da morada correspondente à residência habitual do destinatário, espera-se que o mesmo a vá recolher, que a abra e que lei a comunicação dela constante[2]”.

É assim de ter por demonstrado que a carta datada de 10-11-2022 lhe foi enviada em condições de ter sido por ele conhecida.

Ainda que assim não fosse, temos ainda as declarações de tal testemunha – não postas em causa por qualquer outro meio de prova – a afirmar que, na sequência de uma outra carta que lhe foi deixada debaixo da sua porta, o 2º réu compareceu nas instalações da mediadora, onde se comprometeu a proceder ao pagamento dos montantes em divida.

Temos, assim por demonstrada, a ocorrência da comunicação da existência de mora no pagamento das rendas, em três momentos distintos:

- pela carta datada de 10.11.2022, enviada para a sua morada;

- pela cópia da carta que lhe foi deixada debaixo da porta, nessa mesma morada;

- por comunicação direta, no dia em que o réu se deslocou ao escritório da testemunha.

Tratando-se de factos sujeitos a prova livre, significa não ser obrigatória a junção de qualquer documento para o efeito.

Improcede, assim, a impugnação deduzida pelo Apelante à decisão proferida quanto aos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada.


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Fazendo o Apelante assentar todas as suas discordâncias no pressuposto de que o tribunal viesse a dar como não provada a existência de “comunicação” ao réu da falta de pagamento de rendas, nada mais haveria a apreciar.

De qualquer modo, sempre se dirá que dispondo o artigo 1041º, ns. 5 e 6, do Código Civil, que o senhorio deve “notificar” o fiador da mora e das quantias em dívida, e inexistindo qualquer norma que imponha a sujeição de tal comunicação a uma forma específica, pode a mesma ser efetuada mediante o envio de carta simples para a morada do fiador.

A Apelação é de julgar improcedente.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da Apelação a suportar pelo Réu/Apelante.           

                    Coimbra, 25 de março de 2025 

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…).


[1] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[2] Fernando A. Ferreira Pinto, in “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, anotação II ao artigo 224º, pp.505-506.