Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
319/10.2TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
ATRAVESSADOURO
DESAFECTAÇÃO
DOMINIALIDADE
DOMÍNIO PRIVADO
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, ARGANIL, INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 1305.º DO CC
Sumário: 1. A aquisição do carácter dominial/público de uma coisa pode ocorrer por: “qualificação”, “classificação”, “afectação” - que não têm, necessariamente, de se verificar de forma cumulativa.

2. A atribuição do carácter público a uma coisa, a sua “qualificação”, é sempre imprescindível para que seja atribuída a natureza pública à coisa.

3. Num número significativo de vezes, para que a coisa passe a pertencer à categoria dos bens públicos é, ainda, essencial um acto especial de “afectação” que consagre a coisa à produção efectiva de utilidade pública. Certos actos – uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais – suprem a falta de afectação expressa e só por si conferem carácter dominial aos caminhos.

4. Portanto, é público o caminho que, desde tempos imemoriais, esteja no uso directo e imediato do público, independentemente de saber quem o produziu ou administra.

5. A desafectação tácita de um caminho à dominialidade pública ocorre por modificação das circunstâncias de facto que originaram a sua afectação inicial (ao uso público).

6. Ao perder o carácter público, o caminho passa a pertencer ao domínio privado da pessoa colectiva de direito público sua proprietária, entra no comércio jurídico-privado e torna-se alienável e prescritível.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            O Município de A..., pessoa colectiva de direito público, com o n.º (...) , com sede na (...) , em Arganil, intentou a presente acção declarativa comum, então, sob a forma de processo ordinário, contra os réus, B... e mulher C... (adiante designados 1ºs réus), residentes na freguesia de (...) , em Arganil, e D... (adiante designada 2ª ré), residente na Rua (...) Lisboa, peticionando a sua condenação dos réus:

a) A reconhecerem que o caminho que tem início na Rua x(...) , cerca de 15/20 metros a Sul da ponte da Ribeira (...) , segue em linha recta, em direcção Poente/Nascente, com o comprimento de 7 metros, onde se encontram 7 degraus, flecte à direita, na direcção Norte/Sul, desenvolve-se por mais 8 degraus, prolonga-se por mais 14 metros até às escadas (cerca de 15 degraus) de acesso à casa de habitação de E...e às capelas de (...) e do (...) , e que até à década de 1960 deu acesso às povoações de P (...) , E (...) e S (...) , por onde qualquer pessoa circulava, é um caminho público;

b) A demolirem e retirarem do identificado caminho o portão que ali colocaram e que impede a livre circulação das pessoas;

c) A absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou dificultem a passagem de quem quer que seja pelo referido caminho.

Em ordem a sustentar a sua pretensão, a autora alega, em síntese, que, desde tempos imemoriais até à década de 1960, pelo caminho referido em a) do petitório, acima identificado, sempre passou livremente quem se dirigisse às capelas de (...) e do (...) , ao beirado da casa de F..., à habitação pertença de E... e às povoações de P (...) , E (...) e S (...) .

Segue dizendo que era por esse caminho que as pessoas da freguesia da (...) transitavam com lenha, mato e carregos, que transportavam de e para as suas propriedades, sendo esse o único caminho que existia para estabelecer a ligação entre a freguesia da (...) e as povoações de P (...) , E (...) e S (...) .

Adianta que o caminho em causa, que até à década de 1960 era constituído por um trilho em terra, sempre foi mantido e melhorado por si e por outros organismos públicos, sendo que, há cerca de década e meia, os réus colocaram um portão, junto à Rua x(...) , que impede o acesso a qualquer outra pessoa, já que se mostra fechado à chave, procurando e logrando, dessa forma, impedir que outras pessoas circulem pelo referido caminho.

Conclui pugnando pelo carácter público do caminho, porquanto o mesmo, desde tempos imemoriais, encontra-se no uso directo e livre de todos os munícipes de A... , sendo a actuação dos réus ilegal e prejudicial para o interesse público, já que impede que o caminho seja usado livremente pelo público.

Juntou nove documentos, procuração forense e documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça.

***

Regularmente citados para os termos da presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário, vieram os réus, no prazo legal, contestar, invocando, em síntese, o seguinte:

- A nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial;

- A ilegitimidade plural passiva dos réus, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, já que os réus não podem ser demandados desacompanhados de E...;

- A prescrição do exercício do direito peticionado pelo autor, nos termos do disposto no art. 309.º do Código Civil;

- Que, por si e pelos seus antecessores, utilizam a parcela de terreno, que o autor denomina de caminho, com exclusividade, para acesso às suas moradias, pelo menos desde 1960, de uma forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ignorando que estavam a lesar direitos de outrem e na convicção de estarem a exercer e serem titulares de um direito, tendo procedido à sua limpeza, colocado dois portões com chave, cimentando o chão, instalado grelhas de recepção de águas pluviais e executado as correspondentes caixas de recepção, pelo que adquiriram, por usucapião, servidão predial, a pé e para acesso às suas moradias, em favor dos prédios de que são respectivamente proprietários, formulando pedido reconvencional no sentido de que o tribunal declare e reconheça a referida aquisição, nos exactos termos propugnados.

Concluem pugnando pela improcedência da acção e pela condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização em seu favor.

Juntaram vinte documentos, procurações forenses e comprovativo do pagamento da taxa de justiça.

***

Replicou o autor pugnando, em síntese, pela improcedência das excepções invocadas pelos réus, do pedido de condenação como litigante de má-fé, e, bem assim, do pedido de reconvencional por aqueles aduzido, no caso de o mesmo ser admitido (o que não concebe por falta de fundamento legal), acabando por concluir nos termos peticionados na petição inicial.

***

Notificados da réplica, apresentaram os réus/reconvintes articulado que denominaram de tréplica, nos termos do qual suprem omissões apontadas pelo autor (entre os quais a indicação do valor da reconvenção) e pugnam que não assiste qualquer razão ao demandante.

***

Após convite do tribunal aos réus/reconvintes para aperfeiçoamento do articulado de contestação/reconvenção (ao qual os mesmos acederam apresentando nova peça processual aperfeiçoada) e concessão do exercício do contraditório à parte contrária (a qual, no exercício de tal direito, renovou a argumentação que plasmou na réplica), realizou-se uma audiência preliminar, a que se seguiu a prolação, por escrito, do despacho saneador, nos termos do qual o tribunal admitiu a reconvenção, fixou o valor da causa, julgou improcedente a invocada excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, entendeu pela legitimidade plural passiva dos réus e seleccionou a matéria de facto relevante para a boa decisão a causa (assente e controvertida), segundo as diversas soluções plausíveis da questão de direito.

***

Após a instrução dos autos, encontrando-se já designada data para a realização da ora denominada audiência final, na senda do pugnado pelos réus/reconvintes, o tribunal determinou o chamamento à acção de terceira pessoa, designadamente de E..., o qual, citado para contestar, veio sufragar, em síntese, a argumentação expendida pelo autor, concluindo que a acção deverá ser julgada de acordo com a prova a produzir em julgamento.

No normal prosseguimento dos autos, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova testemunhal nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 439 a 467, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final se decidiu o seguinte:

“Nestes termos, decide o tribunal:

- Julgar totalmente improcedente, por não provada, a presente acção declarativa, e, em consequência, absolver os réus e o chamado dos pedidos contra eles aduzidos pelo autor;

- Julgar totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção, e, em consequência, absolver o autor/reconvindo do pedido reconvencional contra ele aduzido pelos réus/reconvintes;

- Julgar improcedente o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé, que dele vai absolvido.

***

Custas da acção pelo autor.

Custas da reconvenção pelos réus. (cf. art. 527, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)

Custas do incidente de litigância de má-fé pelos réus, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal. (cf. artigos 527, nºs 1 e 2 do CPC e 7, n.º4 do RCP e tabela II que lhe vem anexa)”.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso a autora, Município de A... e subordinadamente, os réus reconvintes, B... , C... e D... , recursos, esses, admitidos, respectivamente, como de apelação e subordinado, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 513), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

Município de A... :

1-O teor da douta sentença douta sentença de que se recorre, está em oposição com os factos dados como provados nos pontos 1º a 19º e 27º.

2-De acordo com o entendimento expresso na douta sentença, que acolhe o entendimento da Jurisprudência, designadamente, o Assento do STJ de 19-04-1989, DR, I, de 2-6-1989 BMJ, 386º-121) através do qual resultou que são públicos “ os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público”.

3-Apesar das correntes jurisprudenciais que se desenvolveram fixou-se jurisprudência no sentido de considerar públicos desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas.

4- Tal como resulta da douta sentença, são públicos os caminhos que estejam no uso directo e imediato do mesmo pelo público, e que tal uso ocorra desde tempos imemoriais.

5-Até ao início da década de 1960, sempre pelo caminho em questão passou livremente, desde tempos imemoriais, quem se dirigisse às capelas de (...) e do (...) , ao beirado do prédio/casa de habitação de F..., aos prédios pertencentes, respectivamente, aos 1ºs e 2ª Réus e ao prédio do chamado E... e às povoações de P (...) , E (...) e S (...) .

6-Tal circulação verificou-se durante séculos,

7-Era por tal caminho que circulava as pessoas da freguesia para as suas propriedades.

8-A manutenção e melhoramento do caminho, até ao início da década de 1960 sempre foram assegurados pelo autor e outros organismos públicos, facto provado 16).

9-Resulta ainda dos factos provados 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9), que o caminho em questão, se situa dentro da localidade (na malha urbana) da sede de freguesia da (...) , Concelho de A... .

10- Tendo em conta os factos dados como provados, não se aceita o douto entendimento do M. Juiz de 1ª instância, quando qualifica o caminho como atravessadouro, “ ou seja uma serventia pública que se fazia através dos terrenos particulares hoje pertencentes aos Réus e ao chamado, que tinham por finalidade encurtar o percurso entre locais determinados”.

11-Do facto provado 18) resulta que “ por volta do fim da década de 1950 e início de 1960, mas em data não concretamente apurada, foi melhorado o caminho, já existente, situado a sul do prédio ora pertencente ao chamado E....

12- Somente após ser melhorado o caminho existente a sul do prédio do chamado E..., houve condições para realizar as obras de melhoramento da capela do (...) , e deixar a circulação, por tal caminho, restringida à circulação dos Réus e do chamado.

13- Até ao fim da década de 1950 e início de 1960, o caminho era o melhor percurso para as povoações de P (...) , E (...) , S (...) , aceder à capela do (...) , capela de (...) , bem assim, para as pessoas, circularem com lenha, matos e outros produtos agrícolas.

14- Até ao início da década de 1960, tal caminho assumiu uma importância e relevância na economia da freguesia de (...) , que não se compadece com a natureza privada do caminho.

15- Resulta do facto provado 13). “ durante séculos” por tal caminho circularam pessoas das diferentes Povoações…e acederam às capelas e habitações.

16-Era o Município e outros organismos públicos, até ao início da década de 1960, que asseguravam a manutenção e melhoramento.

17-Resulta pois dos factos dados como provados nos pontos 1º a 19º da douta sentença, que o caminho em questão até ao início da década de 1960, estava no uso directo e imediato do público e tal acontecia desde tempos imemoriais. Tendo dado como provados os factos 1º a 19º, a decisão não poderia classificar o caminho em questão como um atravessadouro, mas sim como um caminho público, sendo nula a sentença nos termos estatuído no artº 615º nº 1 al.c) do CPC.

18-O leito do caminho, nunca foi ocupado, nem pelos Réus, nem pelo chamado, que sempre respeitaram o seu leito, (facto provado 27). Tanto os antecessores dos Réus como do chamado, nunca ocuparam o leito do caminho, que se encontra devidamente identificados nos termos constantes dos factos 8) e 9). Ou seja, os particulares, que têm as suas propriedades contíguas ao caminho, nunca o ocuparam, isto é, sempre, desde há séculos (facto provado 13), respeitam o seu traçado. E, nem os Réus ou chamado, alegaram que o leito do caminho integrava as suas propriedades, pelo que, ocorre nulidade da sentença nos termos do disposto no artº 615º nº 1 al. d) do CPC, tendo apreciado questões que não foram suscitadas pelas partes e delas não podia tomar conhecimento, já que, nenhuma prova se produziu.

19- Não há qualquer registo, nem tal foi alegados por Réus e Chamado, nem elemento de prova, que demonstre ainda que, indiciariamente, que o leito do caminho, fosse parte integrante dos respectivos prédios. Os elementos de prova existentes vão no sentido oposto: que o leito nunca integrou os prédios dos Réus e Chamado.

20-Embora não se aceite, que o leito do caminho seja parte integrante do prédio dos Réus e chamado, mesmo que tal alguma vez tivesse acontecido, o Estado, através do Município e de outros organismos públicos, teria convertido em espaço de domínio público, materializado nos actos de manutenção e melhoramento praticados durante séculos (facto provado 13) que mais não fosse pelo abandono dos respectivos proprietários, o manifestaria intenção ou “ animus possidendi”, que conferiria posse jurídica.

21-Se resulta da douta sentença, que o caminho em questão foi utilizado “durante Séculos”, e que a manutenção e conservação do caminho, até ao início da década de 1960, sempre foram asseguradas pelo Município ou por outros organismos públicos, daqui resulta, salvo o devido respeito, por melhor entendimento que, quando foram realizadas as obras de restauração da Capela do (...) , identificadas no facto provado 19), tal caminho já se encontrava no domínio do autor e dele já se tinha legitimamente apropriado.

22-Está tal caminho, assim sob jurisdição do Município, que o afectou ao uso público e como tal integrado na propriedade do domínio público. A dominialidade pressupõe a posse e superintendência do bem. A afectação pressupõe o exercício da jurisdição administrativa e claro está que “ durante séculos” o Município a exerceu.

23- Se alguma vez o leito do caminho em questão, que permanece delimitado por construções, erigidas pelos antecessores dos autores e chamado, facto provado 27), alguma vez pertenceu a particulares, este foi convertido em espaço público, por abandono dos seus seculares antecessores. Porém, dada a aparência secular das construções erigidas pelos Réus e chamado, e dado o facto de sempre terem respeitado o leito do caminho, nunca o tendo ocupado, sendo que os Réus até construíram por cima do caminho, deixando uma parte em jeito de túnel, claro se torna que o caminho foi legitimamente apropriado pela pessoa colectiva ou a que por ela passou a ser administrado, há séculos.

24-A partir do início da década de 1960, devido às obras de melhoramento realizadas na capela do (...) , reduziu no seu comprimento, terminando o caminho no prédio do chamado E....

25- O caminho continuou activo para acesso ao prédio dos Réus e do chamado.

26- Ainda que o caminho deixasse de estar “activo”, (na parte em que se prolongaria até às capelas e no acesso às aludidas povoações do E (...) , P (...) e S (...) ) não desaparece, nem ocorre a desafectação.

27-A jurisprudência dominante tem entendido que não é suficiente, para que ocorra desafectação, a mera não utilização. Ainda que se verificasse a desafectação de parte do caminho, (relacionada com a não utilização de parte do caminho desde 1959), tal não implica a perda da característica pública.

28- Mesmo que um bem (não constante do elenco legal imperativo) deixe de estar afecto à utilidade pública, pode passar a deixar de estar afecto à utilidade pública, mas tal não implica, sem mais, a transferência da propriedade, mas sim o passar a integrar o domínio privado da pessoa colectiva, conforme bem refere o Prof. Marcelo Caetano in Manuel de Direito Administrativo, 9ª edição, II, 934, e AC STJ de 18 de Maio de 2006.

29- Mesmo que tivesse ocorrido essa desafectação, o que daí derivaria directamente era que, a parte do caminho não utilizada, a partir de 1959, passaria a integrar o domínio privado do Município.

30- Aceita-se que, a partir de 1959, a parte do caminho que, após a habitação do E..., dava acesso às capelas de (...) e (...) , bem como às povoações de P (...) , E (...) e S (...) , possa estar em situação de desafectação tácita. Contudo, tal parte do caminho transitou para o domínio privado do Município, não se transmite para a esfera privada dos particulares.

31-Os atravessadouros são passagens entre determinados imóveis, encurtado distância entre os mesmos, que resulta de uma mera tolerância dos donos por onde passaram, (RP, de 23-10- 2003: CJ, 2003, 4º -187).

32-O caminho em questão, desempenhou até ao início da década de 1960, uma importância capital, para as povoações de diversas localidades, acesso às capelas, e para toda a povoação da (...) , que por ali transportava a lenha mato e carregos.

33-A utilização que foi dada ao caminho não era compatível com a de um qualquer atravessadouro, tanto mais que se trata de uma via, situada no interior de uma povoação, isto é, situado no interior da malha urbana e não dá acesso a prédios específicos, mas sim, a uma multiplicidade de funções, compatível com a importância de uma coisa pública. Ou seja, destinam-se à satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância.

34-Violou o Mº. Juiz de 1ª instância, o disposto nos artº 1383º do Código Civil e o artº 615º nº 1 al. c) e d) do CPC.

Termos em que e nos melhores de direito e com o Mui douto Suprimento de V. Ex.ª deve o presente Recurso obter provimento, alterando a decisão de que se recorre por outra que julgue procedente os pedidos do recorrente, declarando que o caminho em questão é público, ordenado que os Réus retirem do caminho o portão que ali colocaram, de forma a que se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam e dificultem a passagem pelo referido caminho e assim farão, JUSTIÇA!             

Réus reconvintes:

1. A parcela de terreno designada por passagem, é constituída por três segmentos no que concerne à titularidade da propriedade.

2. O primeiro segmento atravessa, ao nível do solo, a casa de habitação dos 1.os apelantes, cujo imóvel ocupa, em toda a sua extensão aérea, a referida passagem.

3. Um segundo segmento que divide ao meio a casa de morada de família da 2.ª apelante.

4. E um terceiro, e último segmento, que é constituído por 15 degraus ascendentes que terminam numa porta lateral da moradia do chamado.

5. Cada uma destas porções deve considerar-se como parte integrante e exclusiva de cada artigo urbano que atravessa.

6. Estando, portanto sujeito ás regras das servidões prediais.

7. Até porque, tendo sido até finais da década de 50 do Séc. XX, um atravessadouro, com a extinção do mesmo, o leito do caminho integrou-se em cada um dos imóveis onerados, passando a constituir servidões.

8. A douta Sentença, somente nesta parte, não aplicou a melhor solução jurídica ao considerar que no caso inexiste um prédio dominante e um serviente (dado que os três prédios urbanos são simultaneamente dominantes e servientes) e que o leito do terreno em causa é propriedade dos réus apelantes subordinados bem como do chamado, que, em conjunto, podem gozar e fruir dele.

9. Pelo que a douta Sentença violou os artigos 1383, 1543, e seguintes, do Código Civil.

Terminam, peticionando a procedência do seu recurso e alterando-se, em consequência, nesta parte, a sentença recorrida

            Contra alegando, os réus, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em inexistir a apontada contradição da mesma e nela se a fez correcta aplicação da lei aplicável, designadamente, porque o caminho em causa tem de se qualificar como “atravessadouro” e, como tal, extinto.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

            Recurso do Município de A... :

            A. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do NCPC;

            B. Se o caminho em causa reveste as características de “caminho público” ou apenas pode ser classificado como “atravessadouro”.

            Recurso dos réus reconvintes:

C. Se cada uma das três partes que constituem o referido caminho, deve considerar-se como fazendo parte integrante e exclusiva de cada um dos artigos urbanos que atravessa, estando, por isso, sujeito ás regras das servidões prediais.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Na localidade de (...) , do concelho de A... , existe uma rua com a designação de Rua x(...) .

2. No lado Norte dessa rua situa-se a ponte sobre a Ribeira (...) .

3. Na direcção Norte-Sul, a cerca de 15/20 metros após a ponte referida, situa-se o prédio/casa de habitação dos 1ºs réus, o qual se encontra inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 1272º.

4. Na mencionada rua e sempre na mesma direcção, a seguir ao prédio/habitação dos 1ºs réus, situa-se o prédio/habitação da 2ª ré, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1089º.

5. A seguir ao prédio/habitação da 2ª ré situa-se o prédio/habitação de F... , o qual se encontra inscrito na matriz predial respectiva, na titularidade de G..., sob o art. 166º.

6. Imediatamente a seguir a este prédio existe o prédio que é pertença do chamado E..., o qual se encontra inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 1008º.

7. Junto à Rua y(...), entre o prédio/habitação dos 1ºs réus e o prédio/habitação da 2ª ré existe um caminho, que dá acesso ao prédio/habitação dos 1ºs réus, ao prédio/habitação da 2ª ré, ao beirado de F... e ao prédio/habitação do chamado E....

8. Tal caminho tem início na Rua x(...) , entre o interstício das paredes dos prédios dos 1ºs réus e da 2ª ré, somente ao nível do solo, com uma largura de 1,30 metros, desenvolvendo-se, em linha recta e por nove metros, no sentido Poente/Nascente, até à parede onde culmina um patamar rectângulo em tijoleira (1º patamar), patamar esse situado do lado esquerdo da porta de entrada da habitação dos 1ºs réus e para o qual se tem acesso através de oito degraus no sentido ascendente.

Nesse 1º patamar, flecte à direita, segue em linha recta, no sentido Norte/Sul, até a um 2º patamar, onde se situa a porta de entrada da habitação da 2ª ré, patamar esse para o qual se acede através de sete degraus.

Segue, em linha recta e ascendente, até um 3º patamar, para o qual se acede através de três degraus, prosseguindo, em linha recta, até a um 4.º patamar, onde se situa uma porta de acesso ao prédio ora pertença do chamado E..., para o qual se acede através de 15 degraus.

9. O 2º segmento de tal caminho, entre o 1º e o 4º patamar, tem 18,10 metros de comprimento e 1,40 metros de largura.

10. Até ao início da década de 1960, era por esse caminho, que até então tinha a configuração de um T, que se acedia à capela de (...) e à capela do (...) , a primeira situada a Sul e a segunda a Nascente do prédio pertencente ao chamado E..., o que era possível porque das escadas que davam e dão acesso ao prédio ora pertencente ao chamado E...seguia-se por um lanço de escadas até às referidas capelas de (...) e do (...) .

11. No local onde agora se vira à direita em direcção (Norte/Sul) do prédio pertença do chamado E..., havia também um prolongamento desse caminho, na direcção da esquerda (Sul/Norte), que passava pela parte traseira do prédio hoje pertencente aos 1ºs réus e ia desembocar em propriedades privadas.

12. Era também por esse caminho que as pessoas da freguesia transitavam com lenha, mato e carregos, que transportavam para e das propriedades.

13. Durante séculos, era também pelo caminho em questão que circulava livremente quem se deslocava em direcção às povoações de P (...) , E (...) e S (...) , que pertenciam à freguesia de (...) .

14. Até ao início da década de 1960, sempre ali passou livremente, desde tempos imemoriais, quem se dirigia às capelas de (...) e do (...) , ao beirado do prédio/casa de habitação de F..., aos prédios ora pertencentes (respectivamente) aos 1ºs réus e à 2ª ré ao prédio ora pertença do chamado E...e às referidas povoações.

15. Até ao início da década de 1960, o caminho era constituído por um trilho em terra, sendo que há cerca de duas décadas passou a ter o pavimento revestido a cimento.

16. A manutenção e o melhoramento do caminho, até ao início da década de 1960, sempre foram assegurados pelo autor e outros organismos públicos.

17. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 1997 e 2001, a Junta de Freguesia de (...) procedeu à instalação de uma conduta de águas pluviais dirigida ao adro da capela do (...) para o caminho em questão.

18. Por volta do fim da década de 1950 e início da década de 1960, mas em data não concretamente apurada, foi melhorado o caminho, já existente, situado a Sul do prédio ora pertencente ao chamado E....

19. A partir do início da década de 1960, com a reconstrução/restauração da capela do (...) , deixou de ser possível aceder às capelas de (...) e dos Passos através do caminho referido em 8) dos factos provados.

20. Para preservar a segurança e a higiene do local, já que, por vezes, alguns meliantes introduziam-se no caminho, aproveitando para aí fazerem as suas necessidades, os então proprietários (Embaixador H ..., I...e J...) dos imóveis contíguos aí existentes (aos quais se acede pelo caminho em questão e são hoje propriedade, respectivamente, do chamado, dos 1ºs réus e da 2ª ré), na década de 60 do século XX, por si ou interposta pessoa, colocaram um portão em ferro, de cor castanha, tendo cada qual ficado com uma chave.

21. Já na década de 90 do século XX, aquando das obras no prédio/casa de habitação então adquirido pelos 1ºs réus, o portão acima referido foi substituído por outro, que é o actual, o qual se encontra fechado à chave, impedindo o livre acesso a qualquer pessoa que não detenha ou não seja facultada (pelos réus) a sobredita chave.

22. Desde o início da década 60 do século XX e após a colocação do 1º dos portões referido, só os sucessivos proprietários dos três prédios contíguos aí situados (aos quais se acede pelo caminho em questão) passaram a utilizar o caminho.

23. E, desde meados da década de 80 do século XX, só os réus utilizam esse caminho, procedendo à sua limpeza e manutenção.

24. Desde o início da década de 1960, juntamente com os sucessivos proprietários do prédio ora pertencente ao chamado E..., por si e pelos seus antecessores, com carácter de exclusividade, os réus utilizam e servem-se do referido caminho (parcela de terreno) para acesso às suas moradias, de uma forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ignorando que estavam a lesar direitos de outrem e na convicção de estarem a exercer direito próprio.

25. Nesse uso, os réus, por si ou através dos seus antecessores, colocaram dois portões com chave; procurando, desse modo, impedir que outras pessoas, circulem pelo referido caminho (parcela de terreno), restringindo o acesso aos próprios e aos sucessivos proprietários do prédio ora pertença do chamado; cimentaram o seu chão, instalaram nele grelhas de recepção de águas pluviais, executaram as correspondentes caixas de recepção e procederam à sua limpeza.

26. Os réus pintaram as paredes dos seus prédios.

27. Em parte do seu trajecto, de ambos os lados do caminho referido em 8) dos factos provados, existem casas de habitação.

***

Factos não provados

1. O caminho referido em 8) dos factos provados tem jeito e é hoje parecido com uma rua e teve a configuração de um “T” até há cerca de 20 anos.

2. Havia uma procissão anual, em homenagem a Santa (...) , cujo percurso era efectuado pelo caminho referido em 8) dos factos provados.

3. O caminho referido em 8) dos factos provados, até ao ano de 1959, era o único que existia para estabelecer a ligação entre a sede da freguesia e as povoações de P (...) , E (...) e S (...) .

4. Na década de 40 do século XX já existia junto à Rua x(...) uma cancela, em madeira, com dois foles e um trinco por dentro, a vedar o acesso a qualquer pessoa ao caminho referido em 8) dos factos provados.

5. Foi em razão de ter sido aberto e/ou melhorado o caminho situado a sul do prédio pertença do chamado E...que passou a ser possível, por essa via (novo ou melhorado caminho), a partir do ano de 1959, o acesso da população às capelas de (...) e do (...) , e, bem assim, deixou de ser efectuado pelo caminho referido em 8) dos factos provados.

6. Há cerca de duas décadas os 1ºs réus, sem qualquer autorização, construíram uma churrasqueira na parte do caminho que seguia em direcção às mencionadas propriedades privadas (ponto 11.º dos factos provados), permanecendo aberto e em funcionamento, somente, a parte do caminho que flecte à direita na direcção do prédio pertencente ao chamado E...e das capelas de (...) e do (...) .

            Recurso do autor

A. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do NCPC.

            No que a esta questão concerne limita-se a recorrente a dizer que a sentença recorrida sofre da aludida nulidade porque atenta a factualidade dada como provada e constante dos respectivos itens 1.º a 19.º, o caminho em causa não pode ser classificado como atravessadouro, mas sim como caminho público, o que a torna nula por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.

            O supra mencionado artigo 615, n.º 1, al. c), sanciona com a nulidade a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

            De acordo com A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, a pág. 669, a oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos, respeita à contradição real entre os fundamentos e a decisão, em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto.

            Não padece a sentença recorrida da nulidade com base na oposição entre os seus fundamentos e a decisão que nela foi proferida, uma vez que na mesma se considerou que o caminho em causa não está, desde o início da década de 60 do século passado, afecto à utilidade pública, pelo que perdeu o seu carácter público e mais se considerou que em virtude dessa alteração do uso, passou o mesmo a ser um mero atravessadouro e, por isso, extinto.

            O que está em causa é a discordância do recorrente com o enquadramento jurídico que foi dado à factualidade dada por apurada, designadamente se estamos perante um caminho público ou um atravessadouro e respectivas consequências mas, isso, não preenche a aludida nulidade, constituindo, ao invés, o cerne da questão sub judice, do que a seguir nos ocuparemos.

Consequentemente, não padece a sentença recorrida da apontada nulidade.

            Pelo que, quanto a esta questão, improcede o recurso.

            B. Se o caminho em causa reveste as características de “caminho público” ou apenas pode ser classificado como “atravessadouro”.

O autor sustenta que o referido é público com o fundamento em o mesmo, desde há séculos estar afecto ao uso da generalidade das pessoas que residiam na localidade em causa e noutras que lhe são próximas e o usavam para acesso às Capelas de (...) e do (...) , vários terrenos agrícolas e para acesso de e para as localidades de P (...) , E (...) e S (...) , pelo que não podem os réus privar a generalidade das pessoas que a ele querem aceder de o fazerem, não lhes sendo, por isso, lícito, fechá-lo mediante a instalação de um portão, de que só eles dispõem da chave.

Na sentença recorrida, considerou-se que estamos em face de um atravessadouro, com o fundamento em que o mesmo, desde o início da década de 60 do século XX, deixou de estar afecto à utilidade pública e cuja finalidade essencial era encurtar o percurso entre locais determinados, designadamente para as referidas Capelas e povoações vizinhas, por o trajecto do caminho principal ser “mais longo e agreste”.

Efectivamente, como resulta dos factos descritos nos itens 7.º a 19.º dos factos provados, estamos em presença de um caminho, situado na malha urbana da localidade de (...) , que dá acesso às habitações dos réus e chamado, com as características definidas nos itens 7.º a 9.º, o qual, até ao início da década de 60 do século passado e desde tempos imemoriais, servia como meio de livre acesso às Capelas de (...) e do (...) , a algumas propriedades rústicas e de e para as povoações de P (...) , E (...) e S (...) .

Por outro lado, como resulta dos itens 18.º e seguintes, a partir do início da já referida década de 60, após o melhoramento do caminho existente a sul do prédio propriedade do chamado e, ainda, porque com a reconstrução das mencionadas Capelas, deixou de a estas ser possível aceder através do caminho aqui em disputa, este (caminho) deixou de ser usado pela generalidade das pessoas, como até aí o vinha sendo, passando o mesmo apenas a ser usado e fruído pelos ora réus, que, desde aí, o vêm limpando e mantendo, cimentaram, instalaram grelhas de recepção de águas pluviais e respectivas caixas de recepção e no qual colocaram um portão, de que só eles têm a chave.

É em face deste circunstancialismo, que teremos de averiguar se o referido caminho se reveste ou não, de características que o permitam classificar como caminho público ou, assim não sendo, como atravessadouro.

É sabido que a aquisição do carácter dominial/público de uma coisa pode ocorrer[1]:

Por “qualificação”, quando a lei define, geral e abstractamente, toda uma classe de coisas, bem identificáveis, como pertencentes a uma categoria determinada de bens públicos; é o caso das águas marítimas em que basta a genérica disposição da lei para, com ou sem operações de delimitação, tal coisa ser incluída na categoria do domínio público.

Por “classificação”, quando se declara que certa e determinada coisa pertence a essa classe, por possuir os caracteres próprios da mesma; é o caso das coisas que entram no domínio público depois de se verificar, por lei ou acto administrativo, possuírem o atributo típico da classe genericamente considerada dominial, v. g. a classificação duma estada como nacional.

Por “afectação”, quando a uma coisa determinada é efectivamente destinada/afectada à utilidade pública.

“Qualificação”, “classificação” “afectação” que não têm necessariamente de se verificar de forma cumulativa, bastando, por vezes, para a atribuição do carácter público a uma coisa, a sua “qualificação”[2]; esta sim, imprescindível a que a uma coisa seja atribuída a natureza pública – “só são públicas as coisas assim qualificadas por lei”[3] ou por índice evidente de utilidade pública estabelecido por lei.

Mas, num numero significativo de vezes, além da imprescindível “qualificação”, as coisas só passam a pertencer à categoria dos bens públicos após um acto de “classificação” e/ou após um acto especial de “afectação”.

“Classificação” – acto, como já se referiu, pelo qual se declara que uma certa e determinada coisa reúne os caracteres próprios de dada classe legal de bens dominiais – que pode ser anterior à própria construção da coisa, hipótese em que se destina a dar carácter de utilidade pública às obras a realizar (v. g a Câmara declara que o caminho que vai construir é de interesse e/ou utilidade pública.); ou que pode ser o mero reconhecimento dum estado de facto ou duma situação jurídica já existente (em que a classificação se destina a dissipar as dúvidas existentes – classificação verificativa); e que, por vezes, se deduz da mera inscrição da coisa no cadastro do domínio público.

“Classificação” que, todavia, ainda não implica o reconhecimento da coisa estar já a produzir uma utilidade pública, o que só ocorre com a “afectação”, com a aplicação de bem à função (de bem comum) justificativa da sua consideração como bem público

Afectação que é pois “o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”; que “pode revestir diversas formas: (…) a abertura duma coisa que se produziu (…) e pode resultar dum acto administrativo (decreto ou ordem que determina a abertura/utilização/inauguração) ou traduzir-se num mero facto (inauguração) ou numa prática consentida pela administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público. Quer dizer que não há afectação, propriamente dita, mesmo tácita, senão onde se exerça a jurisdição administrativa e portanto se possa provar o destino ou uso público com consentimento do poder”[4].

É justamente aqui, neste passo da aquisição da dominialidade, que “entra” e encaixa o entendimento adoptado pelo Assento de 19-04-1989[5], segundo o qual “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”, segundo o qual, no fundo, certos actos – uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais – suprem a falta de afectação expressa e só por si conferem carácter dominial aos caminhos.

Assento que, é sabido, procurou pôr termo a uma controvérsia jurisprudencial (e doutrinal) com origem e rebate na distinção entre caminhos públicos e atravessadouros; controvérsia em que se distinguiam 3 orientações:

Uma 1.ª, segundo a qual, para um caminho ser público, bastava que, desde tempos imemoriais, ele estivesse no uso directo e imediato do público, independentemente de saber quem o produziu ou administra.

Uma 2.ª, segundo a qual só devem considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso directo e imediato do público, tenham sido construídos ou legitimamente apropriados pelo Estado ou autarquia local e se mantenham por eles administrados (Estado ou ente autárquico)[6].

Uma 3.ª, segundo a qual a prova de que determinado caminho está a ser usado pelo público, desde tempos imemoriais, faz presumir a sua natureza dominial, podendo, todavia, tal presunção ser ilidida mediante prova em contrário[7].

Assento em que fez vencimento a 1.ª orientação – tendo-se considerado não estarem definidas as coisas públicas no actual Código Civil e não estar já em vigor o artigo 380.º do Código Civil de 1867[8] – defendendo-se ser “suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público”, para o que também se ponderou ser “esta orientação a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados”; tendo-se concluído que “basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público, o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.” (desde tempos imemoriais).

Assento que “convertia/mantinha” como caminhos públicos todos os atravessadouros com posse imemorial, ao arrepio do C. Civil, que os considera abolidos quando não estejam transformados em servidão[9] – cfr. 1383.º do CC.

Daí que tenha feito curso, entretanto, a interpretação restritiva que o Ac. do STJ de 10/11/1993 juntou ao Assento[10], passando ainda (além do que se diz no Assento) a exigir-se, como requisito da aquisição da dominialidade, a afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses públicos/colectivos de certo grau de relevância.

Para o que se fez notar que a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros continua a ser útil e admissível e que o Assento não pode ter o alcance de revogar/alterar o disposto no art. 1383.º do C.C.; pelo que, destinando-se os caminhos públicos a estabelecer ligações de interesse geral e entre povoações – enquanto os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim especial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante desses prédios – passou a exigir-se, para o caminho ser público, a verificação da afectação do caminho à utilidade pública, ou seja, à satisfação de relevantes interesses colectivos.

Tudo isto – o que vimos de expor sobre a atribuição do carácter dominial a uma coisa – é, a nosso ver, em termos materiais, Direito Administrativo.

Se o CC de Seabra “não traçava uma teoria do domínio público, limitando-se a fazer a classificação das coisas dentro dos quadros do direito privado: as coisas públicas a que se referia estavam longe de ser todas as então sujeitas ao regime da propriedade pública”[11], o actual “C. Civil de 1966, sempre no intuito de não versar matérias de Direito Público, não dá qualquer noção de coisa pública, limitando-se a considerar fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais com as que se encontram no domínio público”[12] (202.º/2 do C. Civil).

Assim, a nosso ver e com o devido respeito, o nosso mais alto Tribunal foi “metido” na matéria da “dominialidade pública” apenas e só por causa e a propósito da distinção/alternativa entre caminhos públicos e atravessadouros[13].

Em termos úteis e práticos, para o campo do direito civil/privado, estabeleceu – como reflexo da jurisprudência uniformizada pelo Assento de 19-04-1989 e da posterior interpretação restritiva – que só podem ainda ser considerados atravessadouros[14] os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público, desde que tal uso do público não satisfaça interesses públicos/colectivos com certo grau de relevância; uma vez que, “a partir daqui” – a partir do momento em que tal uso directo e imediato do público satisfaz relevantes interesses públicos/colectivos – deixam os caminhos de poder ser considerados atravessadouros e passam a ser considerados caminhos públicos.

Ou seja, sempre com o devido respeito, a referida jurisprudência do nosso mais alto Tribunal concentra-se fundamentalmente, no estrito âmbito do direito civil/privado, em dizer até onde vão, no limite, os atravessadouros; o que, porém, faz pela negativa, dizendo que vão até onde “começam” os caminhos públicos, para o que, naturalmente, estabelece a linha de fronteira (isto é, onde “começam” os caminhos públicos)[15].

É este o sentido da jurisprudência – traçar a linha de fronteira; continuando a haver e a manter-se – no puro campo do Direito Administrativo (como supra referimos) – outros e diversos modos dum caminho adquirir o carácter dominial[16], razão pela qual a posição assumida pelo nosso mais alto Tribunal não significa/denota, a nosso ver, que o mesmo se reconheça como a Jurisdição materialmente competente para declarar (por via de acção[17] ou de reconvenção) todos e quaisquer modos de aquisição dominial, em todo e qualquer tipo de litígio (esteja ou não em causa a alternativa “atravessadouro ou caminho público”, decorra o litígio entre particulares ou entre um particular e uma pessoa colectiva pública – como é o nosso caso – ou mesmo entre duas pessoas colectivas públicas).

Uma coisa – como é o nosso entendimento – é a defesa invocada obrigar a apreciar o carácter público dum arruamento, uma vez que a invocação de tal carácter público configura, no contexto da lide, uma excepção que conduzirá à improcedência da lide; outra coisa é, no fim de tal apreciação (além da improcedência da acção), passar a declarar-se em termos positivos e formais o resultado de tal apreciação (o que só se pode fazer se se possuir competência material para tal – art. 93.º do NCPC).

Vem isto particularmente a propósito por a situação referida no Assento – uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais – não ser a única situação em que aquisição da dominialidade pode ocorrer sem uma afectação expressa (como a supra exposta).

Ensinava o Prof. Marcello Caetano[18] que, “ (…) para que um caminho outrora particular se converta em público, é necessário que pelo abandono do proprietário este deixe prescrever os seus direitos e que o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público pratiquem actos ou factos que representem, através da conservação, reparação, regulamentação de transito, etc., a intenção do animus sem o qual não há posse jurídica”. E, logo a seguir, acrescentava que “a aquisição da propriedade por usucapião, ligada a actos administrativos que manifestem a intenção de destinar a coisa ao uso público, é que poderão suprir a falta de afectação expressa e conferir carácter dominial a tais caminhos (…)”.

É uma situação (a referida na transcrição) relativamente próxima, mas não coincidente, com a definida no Assento de 19-04-1989.

Tem de diferente não exigir a imemorialidade do uso, mas, por outro lado, exige, para o reconhecimento da dominialidade pública do caminho, que se prove que o mesmo tenha sido produzido ou legitimamente apropriado/usucapido pela pessoa colectiva de direito público e por ela administrado; passando, com a usucapião (do direito privado) a fazer parte do domínio privado e, logo a seguir, a pertencer ao domínio público, em face do uso público e, principalmente, da sua utilidade pública – da sua aptidão para satisfazer necessidades colectivas.

É a situação que corresponde aos pressupostos exigidos pelas duas orientações que ficaram vencidas no Assento de 19-04-1989.

E, retomá-las, não é nem um pouco “contra a lei” do Assento.

É que tais orientações – extrai-se do já antes exposto – ficaram apenas vencidas como “linha de fronteira” entre os caminhos públicos e os atravessadouros; mas continuam tais orientações, um pouco mais exigentes (para o reconhecimento da dominialidade pública dum caminho), a ser válidas e vigentes no estrito âmbito do direito administrativo.

Tais orientações, por outras palavras, apenas não funcionam/valem para estabelecer a “linha de fronteira”, ou seja, pode haver caminhos públicos sem que qualquer pessoa colectiva de direito público neles haja praticado quaisquer actos ou factos de conservação ou reparação – por ter sido aqui que o Assento de 19-04-1989 estabeleceu a “linha de fronteira”, não exigindo tais actos ou factos de conservação ou reparação – porém, tal não significa que a prática de actos ou factos de conservação ou reparação, nos termos referidos, não possa/deva conduzir à aquisição/reconhecimento da dominialidade pública dum caminho.

Isto dito, aplicando o que vimos de expor – premissa maior – ao caso sob recurso, impõe-se inferir o seguinte:

O DL 477/80, de 15-10, enumera, para efeitos de inventário geral do património do Estado, os bens que estão no seu domínio público e privado; entre aqueles bens, ao referir-se a vias de comunicação terrestre, indica apenas as linhas férreas de interesse público, as auto-estradas e as estradas nacionais, com os seus acessórios, obras de arte, etc. (art. 4.º/h), pelo que as restantes vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos, fazem parte, por “qualificação” (ex vi art. 6.º e 7.º do DL 34.593, de 11-05-1945[19]), do domínio público dos Municípios e Freguesias[20].

Não será pois por falta de “lei” que não se concederá carácter dominial ao caminho em causa; acontece, isso sim, que estamos perante um daqueles casos em que a imprescindível “qualificação legal” é, só por si, totalmente inconclusiva/insuficiente, que estamos perante um daqueles casos em que, via de regra, a coisa/caminho só pode passar a pertencer à categoria dos bens públicos após um acto de classificação e/ou após um acto especial de afectação.

Ora – salienta-se – não foi alegado por nenhuma das partes a existência de um qualquer acto de “classificação” e/ou um qualquer acto de “afectação” expressa (com os conteúdos e significados supra alinhados), por parte de qualquer entidade pública, em relação ao dito caminho pedonal que ali existia antes das obras de melhoramento do caminho existente a sul da casa do chamado e de reconstrução das já mencionadas Capelas.

O autor, como já se disse, para além alegação vaga/genérica de que assegurou a “manutenção e o melhoramento do caminho até ao início da década de 60” tão só alegou e invocou, para além da imemorialidade do uso público, a prática de actos/factos reveladores do uso indiscriminado da generalidade das pessoas sobre o referido caminho, até àquele período, o que logrou demonstrar, após o que passou o mesmo a estar no uso restrito por parte dos réus e chamado, nos termos acima mencionados, aliado à prática de actos/factos reveladores da sua conservação e reparação, como o atinente animus possessório, apenas por parte de tal grupo restrito de pessoas, o que, desde logo e sem margem para dúvidas, afasta a possibilidade de se considerar, relativamente a tal caminho, após a modificação ocorrida, a sua afectação ao seu uso pelo público e a sua utilidade pública (a sua aptidão para satisfazer necessidades colectivas).

Em síntese, as situações alegadas/invocadas pelo autor, e que se vieram a demonstrar nos já descritos moldes, reconduzem-nos a uma das duas situações em que a aquisição da dominialidade pode ocorrer sem uma afectação expressa; reconduzem-nos à situação referida no Assento – uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais – já que é de afastar a outra situação acima referida, em que o reconhecimento da dominialidade pública do caminho pode acontecer desde que se prove que o mesmo foi produzido ou legitimamente apropriado/usucapido pela pessoa colectiva de direito público e por ela administrado, passando, com a usucapião a fazer parte do domínio privado e, logo a seguir, a pertencer ao domínio público, em face do uso público e, principalmente, da sua utilidade pública.

Ora – é este o ponto – o que se provou permite dar como preenchido, pelo menos, um destes dois modos de aquisição da dominialidade dos caminhos.

Quanto à situação referida no Assento:

Estava alegado pelo autor que a manutenção e o melhoramento do caminho em causa, até ao início da década de 60 do século passado, sempre foi assegurado por si e por outros organismos públicos (embora, insista-se, sem descrever quais os concretos factos exercidos e com que intenção); bem como este estava afecto, desde tempos imemoriais, ao uso das populações locais.

“Imemorialidade”, “tempo imemorial”, é aquele tão antigo que o seu início já se perdeu na memória dos homens[21], o que, evidentemente, se tem de ter tido por demonstrado, em face da matéria dada como provada, sempre com a referência temporal já referida – início da década de 60.

De igual forma se demonstrou que, com a mesma referência temporal, este caminho foi usado, durante séculos, de forma livre, pelas populações locais, para acesso de e para as localidades de P (...) , E (...) e S (...) , para acesso às referidas Capelas e de e para várias propriedades rústicas.

Pelo que, face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, se tem de concluir que o supra referido caminho, desde tempos imemoriais e até ao início da década de 60 do século XX, reveste as características de um caminho público e não um atravessadouro, contrariamente, ao decidido na sentença em apreço.

A classificação deste caminho como “atravessadouro” foi justificada na decisão recorrida nos moldes que se seguem:

“Em suma, o trato de terreno em causa nos autos (caminho), desde o início da década de 60 do século XX, não se encontra afecto à utilidade pública, ou seja, a sua utilização não tem por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, pelo que, ao arrepio do propugnado por autor e chamado, desde logo pela ausência deste requisito essencial, não pode ser qualificado como caminho público.

De todo o modo, como ressuma do acervo fáctico apurado, e, bem assim, da fundamentação da decisão de facto, o trato de terreno em causa, até ao início da década de 60 do século XX, mais não era de que um atravessadouro, ou seja, uma serventia pública, que se fazia através dos prédios particulares hoje pertencentes aos réus e ao chamado, respectivamente, que tinha por finalidade essencial encurtar o percurso entre locais determinados, designadamente para as pessoas que pretendiam deslocar-se do centro da localidade de (...) às capelas de (...) e do (...) , bem como às propriedades envolventes e às povoações referidas supra e vice-versa.

Pela sua localização, configuração e dada a existência de um caminho principal que permitia às pessoas estabelecer as sobreditas ligações, que apenas era preterido, muitas das vezes, em detrimento do caminho em causa nos autos, por o seu trajecto ser mais longo e agreste, somos de concluir que o caminho cuja dominialidade se discute neste processo traduzia-se num mero atalho que fazia parte do leito dos prédios atravessados, sendo usado por toda a população para os trajectos referidos por mera tolerância dos sucessivos proprietários dos referidos prédios, ou seja, dos antecessores dos réus e do chamado.”.

Não podemos concordar com esta conclusão.

Efectivamente, pelas razões antes expostas, não se pode concluir que o caminho em causa era usado como alternativa ao caminho principal, por o trajecto deste ser mais longo e agreste, nem que fosse usado por mera tolerância dos proprietários dos prédios que o marginam.

Como vimos, ao invés e sempre por referência até ao início da década de 60 do século XX, este caminho que, na prática, constituía uma “rua” da localidade da (...) , era usado pela generalidade das pessoas para acesso às Capelas, propriedades rústicas e às outras localidades já referidas, pelo que se impõe concluir estar afecto a interesses de ordem pública.

De resto, de salientar, ainda, que a referência feita à “fundamentação de facto”, no sentido de esta permitir concluir que o caminho era usado como “atalho”, para encurtar distâncias, como alternativa ao designado “caminho principal”, é inócua, porquanto, nos factos provados, não é feita a mínima referência a esta factualidade e se tal se concluiu da discussão dos factos em sede de audiência, não consta da acta que qualquer das partes se tenha querido deles aproveitar, como lhe permitia o disposto no artigo 5.º do NCPC.

Sobre a factualidade dada como provada e não provada não incidiu qualquer recurso, pelo que a mesma se encontra definitivamente fixada e nesta nada consta que permita concluir estarmos em presença de um atravessadouro, mas sim de um caminho público, isto até ao início da década de 60 do século XX.

            Este período temporal, como resulta do que consta dos itens 18.º a 26.º, dos factos provados, mostra uma mudança/alteração radical, relativamente ao uso do caminho/rua em causa.

            Efectivamente, como melhor ali se encontra descrito, nesta época, foi melhorado o caminho, já existente, localizado a sul do prédio do chamado e com a reconstrução/restauração das sobreditas Capelas, deixou de a estas ser possível aceder através do caminho, aqui da discórdia, altura em que os réus colocaram, ou mandaram colocar um portão em ferro, substituído por outro já na década de 90, que se encontra fechado à chave, de que só os réus dispõem, impedindo o livre acesso ao referido caminho por parte das demais pessoas, que não sejam portadoras de cópia da referida chave.

            Em consequência do que, a partir do início da década de 60, só os proprietários dos três prédios que lhe são contíguos o passaram a utilizar e, desde a década de 80, que passaram a proceder à sua limpeza e manutenção, passando a usá-lo com carácter de exclusividade, impedindo que as demais pessoas ali residentes ao mesmo acedam e nele procedendo à realização das obras e trabalhos melhor descritos no item 25.º.

Assim, importa, averiguar quais as consequências desta mudança/alteração das circunstâncias do uso que passou a ser dado ao caminho em referência, por cotejo com o que anteriormente lhe era dado, o que tem reflexos no desfecho da acção.

Como o refere António Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Parte Geral Coisas 3.ª Edição, Almedina, Maio de 2013, a pág.s 82 e 83, a constituição, a transmissão, a modificação e a extinção da situação dominial pública regulam-se pelo Direito público e, designadamente só a lei pode determinar a publicização de um bem ou a sua desafectação; a comercialidade dos bens públicos não é possível em termos de direito privado e só podem ser titulares pessoas colectivas de Direito público.

Não obstante, como ali se refere na nota 265 (pág. 83), admite-se que quando a natureza pública de uma coisa implique o seu uso público, que a desafectação possa ser tácita.

Esta, no ensinamento de Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9.ª edição (Reimpressão), Almedina, 1980, pág.s 957 a 959, é a que resulta da prática consequente à perda da utilidade pública dos bens.

Ali acrescentado que “a desafectação tácita verifica-se sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração”.

Indicando como exemplos, o caso da estrada velha que, pela abertura de outra com a mesma utilidade, deixou de ser utilizada, da fortaleza desguarnecida ou terreno marginal do mar que deixou de o ser.

E acrescentado que “A desafectação tácita das coisas públicas tem, pois, de ser aceite em todos os casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica.”.

Concluindo que “A desafectação tácita significa que a coisa perdeu o carácter público e ficou pertencendo ao domínio privado da pessoa colectiva de direito público sua proprietária. Daí resulta que, a partir do momento em que se haja verificado a tácita desafectação, entra no comércio jurídico-privado e se torna alienável e prescritível.

O simples desinteresse ou abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a utilidade pública não vale por desafectação tácita. A desafectação há-de ser consequência da cessação da função que estava na base do carácter dominial.”.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 08/05/2007, Processo 07A981, in http://www.dgsi.pt/jstj, radica a desafectação tácita na falta de utilização de um determinado bem dominial, por desnecessidade, em função do que o mesmo perde a utilidade pública de que antes se revestia, passando a integrar o domínio privado do Estado ou de outra pessoa colectiva de utilidade pública e, como tal, pode, nos termos gerais, ser adquirido por usucapião.

No mesmo sentido, podem, ainda, ver-se os Acórdãos do mesmo Alto Tribunal, de 18/05/2006, Processo 06B1468; de 13/07/2010, Processo 135/2002.P2.S1 e de 09/02/2012, Processo 1007/03.1TBL.SD.P1.S1, todos disponíveis no mesmo sítio do ora primeiramente citado.

Transpondo estas considerações para o caso em apreço, não pode deixar de se concluir que o caminho em causa foi público até ao início da década de 60 do século passado, após o que perdeu essa classificação por virtude de desafectação tácita, uma vez que, após tal período temporal, o mesmo passou apenas a estar na disponibilidade dos réus, só estes o utilizando, nos moldes descritos nos itens 20.º a 25.º, deixando de ser fruído/utilizado pelas demais pessoas do lugar e redondezas, ao que tudo indica, pelo facto de, cf. item 18.º, se ter melhorado o caminho nele referido.

Depois do início da referida década de 60, só os réus exerceram actos de posse sobre o referido caminho (sendo, quanto a tal inócuo, dado o seu carácter esporádico e sem afastar a posse daqueles, o facto referido em 17.), pelo que, face ao exposto se tem de concluir que o caminho em questão perdeu a utilidade pública de que dispunha, não podendo, assim continuar a ser considerado, verificando-se, desde tal período de tempo, a sua desafectação tácita à dominialidade pública, por modificação das circunstâncias de facto que originaram a sua afectação inicial (ao uso público).

Ou seja, o referido caminho foi público, mas deixou de o ser, pelas apontadas razões, desde o início da década de 60 do século XX.

Como acima se deixou dito, não obstante estarmos perante um caminho que foi público e que deixou de o ser por desafectação tácita, nos termos expostos, tal não significa que estejamos perante uma “res nulius”, relativamente ao leito do referido caminho.

Efectivamente, a única conclusão a extrair de tal alteração da qualificação do caminho é a de que, como acima já referido, o leito desse caminho se passou a integrar no domínio privado do Município de A... , ficou pertença deste, no âmbito do domínio privado e, por conseguinte, a reger-se pelo direito privado, do que decorre a possibilidade da sua alienabilidade e prescritibilidade.

E a única forma que os réus tinham de legitimar a sua detenção e posse exclusiva sobre o leito do caminho, era a de alegar e provar a aquisição da respectiva propriedade, através da usucapião, em termos que lhe possibilitassem agirem e virem a ser reconhecidos como donos e proprietários do mesmo, através da prática de factos conducentes à aquisição de tal direito, o que não fizeram, pelo que se tem de considerar ser o mesmo de propriedade do autor, agora, no âmbito do seu domínio privado.

A colocação do portão por parte dos réus, viola o direito de propriedade do autor sobre o dito caminho, violando o carácter pleno e exclusivo de tal direito por parte do autor, consagrado no artigo 1305.º do CC e, como tal, não pode subsistir, não podendo os réus, em consequência, praticar outros actos que impeçam ou dificultem o acesso ao referido caminho, pelo que deve proceder o presente recurso, no que se refere às alíneas b) e c) do petitório do autor.

Assim, no que se refere a esta questão, procede, parcialmente, o presente recurso.

Recurso dos réus

C. Se cada uma das três partes que constituem o referido caminho, deve considerar-se como fazendo parte integrante e exclusiva de cada um dos artigos urbanos que atravessa, estando, por isso, sujeito às regras das servidões prediais.

A título de pedido reconvencional, peticionaram os réus que seja reconhecida a existência de uma servidão de passagem de pé, constituída através da usucapião, para acesso às suas moradias.

Na sentença recorrida improcedeu tal pedido com o fundamento em que sendo o caminho em causa de qualificar como atravessadouro e, por isso, extinto, os réus e o chamado adquiriram a propriedade do leito do dito caminho, pelo que sendo dele proprietários, não se pode constituir o direito real de servidão, por menor em relação ao direito de propriedade.

Em sede de alegações, pugnam os réus, aqui recorrentes, pelo reconhecimento de que cada um dos três segmentos do caminho é propriedade de cada um dos três prédios que atravessa, na parte em que com cada um deles confina, mas já, cada uma dessas partes não se pode considerar que seja propriedade (ou compropriedade) relativamente aos demais, que com ele não confinam.

Concluímos que o caminho em causa não é um atravessadouro, mas sim que se tratou de caminho público, actualmente, tacitamente, desafectado, pelo que o mesmo perdeu tal qualidade.

Mas daqui não decorre e aliás, nem os réus formulam tal pedido, que estes passassem a ser donos do leito do referido caminho.

Com efeito, uma coisa é o caminho ter perdido a qualidade de “caminho público” e outra a questão de saber a quem ficou a pertencer, sendo certo que, como acima já referido, a desafectação apenas implica que a propriedade do caminho passe para o domínio privado da autoridade pública respectiva, no caso, o Município de A... ou a Junta de Freguesia da (...) , passando a ser alienável e prescritível, nos termos gerais (art.º 1304.º do CC).

Mas para que assim suceda será necessário que se formule o pedido de reconhecimento do respectivo direito de propriedade, com base na usucapião ou outro título aquisitivo válido, mediante a alegação e prova dos factos em que assenta a referida pretensão.

No caso em apreço, os réus não formulam qualquer pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o leito do caminho em causa, não tendo sido esta questão objecto do processo, nem agora o poderá ser, pelo que, nos termos expostos, não se pode concluir que os réus sejam os proprietários do caminho.

O que obsta, também, a que possam ver reconhecida a favor dos respectivos prédios de cada um deles, a declaração de que se acha constituída a pretendida servidão de passagem, uma vez que esta se traduz num encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, conforme artigo 1543.º do Código Civil.

Ora, não estando demonstrado que o leito do caminho em causa faça parte dos prédios que o marginam e pertencentes aos réus e chamados, constituindo, ao invés, um caminho/rua pertencente ao domínio privado da autarquia, não se pode ter por constituída a pretendida servidão de passagem, dado que os réus pretendem que cada um dos seus prédios, aí se incluindo o leito do caminho, fique onerado com uma servidão de passagem a favor dos demais prédios, sem que esteja demonstrado que o leito do caminho seja propriedade de tais prédios (do de cada um dos vários réus).

O caminho embora tendo perdido a qualidade de público, por ter ficado a pertencer ao domínio privado do Município, é susceptível de ser usado por todos e, por via disso é que os réus o podem usar e fruir e não por se tratar de uma servidão de passagem.

De resto, como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, a pág. 615, a servidão de passagem “Não é uma figura que se estenda a todos os imóveis (art.º 204.º), mas apenas à mais importante categoria deles, constituída pelos prédios rústicos e urbanos.”.

E, como os mesmos autores, referem na mesma obra, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, da mesma editora, 1982, a pág. 195, “uma rua ou praça pública não entra no conceito de prédio rústico.”.

Do que decorre ser insusceptível a constituição da referida servidão de passagem, sobre o leito do caminho em causa, o que não entra em choque com a consideração de que perdida a natureza pública do caminho, o respectivo leito passa a ser alienável e prescritível, o que permite, designadamente, a aquisição da respectiva propriedade, com base na usucapião, desde que alegados e provados os factos inerentes, mas enquanto assim não suceder, o autor continua a ser o dono do leito do caminho, no âmbito do domínio privado do Município.

Reitera-se que os réus não enveredaram por este caminho, não obstante os actos de posse que alegaram se demonstraram, cf, itens 20 a 25, mas do que não se pode retirar a conclusão de que se acha constituída a pretendida servidão.

Pelo que, improcede o recurso intentado pelos réus.

Nestes termos se decide:      

Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação intentado pelo autor, Município de A... , em função do que se altera a decisão recorrida, para os seguintes termos:

a) condenam-se os réus a reconhecerem que o caminho identificado na alínea a) do petitório do autor, foi um caminho público até ao início da década de 60 do século XX, após o que perdeu tal classificação por desafectação tácita e ficou a pertencer ao domínio privado do autor;

b) mais se condenam os réus a demolirem e retirarem do identificado caminho o portão que ali colocaram e que impede a livre circulação e;

c) a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam, ou dificultem a passagem de quem quer que seja, pelo referido caminho.

Mantendo-a quanto ao mais nela decidido.

As custas da acção serão suportadas por autor e réus, na proporção de 25% e 75%, respectivamente, sendo as da reconvenção, a suportar pelos réus, sempre, em, ambas as instâncias.

            Coimbra, 14 de Abril de 2015.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emidio Francisco Santos

Catarina Gonçalves

[1] Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 920 e ss; e E. Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, pág. 342.

[2] No caso dos chamados “bens reservados” (aqueles que são intrinsecamente inaptos para se constituírem como objecto de direitos subjectivos reais na titularidade de particulares - o domínio marítimo, hídrico, geológico e cultural), bastará a qualificação legal para os bens se integrarem na categoria dos bens públicos.

[3] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 880.

[4] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 922/3.

[5] In CJ, Acórdãos Uniformizadores, pág. 115/6.

[6] Os defensores desta orientação consideravam que o art. 380.º do Código Civil de 1867 se mantinha em vigor, resultando do mesmo, conjugado com o artigo 1.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 23.565, de 12 de Fevereiro de 1934, não bastar o uso público para caracterizar a dominialidade pública dos caminhos.

[7] Orientação esta que, no fundo, também considera indispensável, para o reconhecimento da dominialidade pública dum caminho, que o mesmo seja produzido e legitimamente apropriado por ente público, constituindo o uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, mera presunção, ilidivel, da dominialidade.
[8] Em que se dizia: “São públicas as coisas naturais ou artificiais, apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, da quais é lícito a todos individual ou colectivamente utilizar-se, com as restrições impostas pela lei ou pelos regulamentos administrativos

[9] Não conciliando, em termos de grande equilíbrio e razoabilidade, o conceito de vias dominiais e os interesses que levaram à abolição dos atravessadouros, por mais antigos que sejam – cfr. Prof. Henrique Mesquita, in anotação ao Ac STJ de 15/06/2000, RLJ, ano 134, pág. 166 e ss., e ano 135, pág. 62 e ss.

[10] E, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, vol. III, 2.º ed., pág. 281/2: “traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com larga duração terem de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos art. 1383.º 1384.º, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade”; ao que acrescentavam: “sempre que (…) o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do art. 1383.º, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem entrou no domínio público, através de algum dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade”

[11] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 882. Que acrescentava que “só enumerava, no mesmo art. 380.º, coisas que se prestavam ao uso directo e imediato do público, isto é, de onde os particulares extraem uma utilidade concreta e pessoal e sem intervenção necessária dum serviço público; ora além dessas há muitas outras coisas públicas que não é lícito ignorar.”

[12] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 880; que mais à frente, a fls.892, a propósito do art. 1304.º do CC, diz que “ a nossa lei parece supor que o regime da dominialidade é uma série de especialidades em relação à lei civil, de tal modo que na falta delas se aplica desde logo o disposto no C. Civil sobre a propriedade privada. É um erro. “ O regime da dominialidade é autónomo relativamente ao da propriedade particular, do mesmo modo que o direito administrativo o é em relação ao direito civil”.
[13] E em face do que então se dispunha no art. 4./1/e) do ETAF (do DL 129/84).
[14] E estão por isso “abolidos” – 1383.º do CC.
[15] É sempre assim, antevê-se o reparo; se delimitasse pela positiva, se dissesse o que era privado, estaria também a dizer o que não era público.
[16]  A “doutrina” do Assento é – até por traçar a “fronteira” com o atravessadouro – uma espécie de “limiar mínimo” de aquisição do carácter dominial.
[17] Imaginemos que o aqui R. decide colocar uma acção a pedir que um determinado caminho seja declarado “caminho público”; se formos competentes para a reconvenção, então também o seremos para tal acção.
[18] Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 924.
[19] E também 46.º/1 do C. Administrativo, embora se possa sustentar que tal preceito foi tacitamente revogado pelo Lei das Autarquias Locais – DL 100/84, de 29-03.

[20] Em todo o caso, a propósito das Freguesias, resulta também dos art. 6.º e 7.º do DL 34.593 que os “caminhos vicinais” – ligações de interesse secundário e local, assim como os “caminhos municipais” – são “os que normalmente se destinam ao trânsito rural”, o que não parece ser o caso do caminho aqui em causa.
[21] Cfr, v. g, Ac STJ de 13/07/2010, in CJ Online, Ref. 3537/2010.