Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/24.2TXCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ MATOS
Descritores: MODIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 01/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 118º, 123º, 162º CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 118º, 217º CEPMPL; 20º E 32º, N.º 5, C.R.P.
Sumário: I. A possibilidade de modificação da pena fica restringida aos reclusos condenados que, por consequência da degradação do seu estado sanitário, a manutenção da execução da pena de prisão lhes acarreta grave dano à saúde, à integridade física ou mesmo à vida, sendo certo que nunca será de olvidar a sua dignidade enquanto pessoas, estatuto que, obviamente, continua a ser-lhes reconhecido, não obstante a sua situação de reclusão.

II. Padecendo o recorrente de esclerose múltipla, doença grave, evolutiva e irreversível, por força da qual foi já declarado incapaz para trabalhar desde 2021, está, ainda, por determinar, quais são as decorrências do défice cognitivo secundário aquela patologia apresentado na avaliação neuropsicológica realizada em Março de 2024 e, bem assim, se as mesmas agravam intolerável e inaceitavelmente o sofrimento do arguido, tornando, por tal, injustificável o cumprimento da pena em estabelecimento prisional.

III. Impondo-se carrear para os autos a análise e apreciação dos factos por quem detém especiais conhecimentos, no caso, médicos especialistas em neurologia e psiquiatria, pois só assim pode considerar-se escorreitamente cumprido o principio da investigação.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

Nos autos de Modificação da Execução da Pena de Prisão que seguem termos sob o nº 7/24.2TXCBR no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Tribunal de Execução de Penas de Coimbra/Juiz ... foi decidido indeferir a modificação da execução da pena de prisão por ter sido entendido que não estão preenchidos os requisitos do artigo 118º do CEPMPL bem como considerado que o crime cometido pelo recluso as exigências de prevenção geral e de ordem e paz social são, de forma evidente, obstáculo ao benefício daquele instituto.

Inconformado com o teor de tal decisão, o arguido AA interpôs o presente recurso, que se apresenta motivado e alinha as seguintes conclusões:

1.ª - O recorrente requereu que fosse ordenada perícia psiquiátrica e neurológica, que contenha a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena e as demais diligências legais, artigo 217.º do CEPMPL e a modificação da execução da pena de prisão para que a pena possa ser cumprida na modalidade adequada que se afigura ser com a obrigação de permanência na habitação ou prisão domiciliária só podendo ausentar-se para fins médicos e de saúde.

2.ª - Para tanto, alegou, em síntese, que padece de uma doença grave, evolutiva e irreversível denominada de esclerose múltipla, doença desmielinizante neurológica do foro autoimune, que circunstâncias várias relativas à pessoa do recluso, agravam intolerável e inaceitavelmente o sofrimento e tornam injustificável o cumprimento da pena em estabelecimento prisional, como é o caso do recluso recorrente.

3.ª - Ordenado o cumprimento do disposto no artigo 217º, nº 2, a), nº 3, a), b) e c) do CEP. Na sequência, foi produzido um relatório clínico datado de 5 de agosto de 2024, assinado por médico não especialista da doença que afeta o recluso, que afirma não dispor de “relatórios e de avaliações neuropsicológicas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento da patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC”, sic. Desse relatório inexiste informação se o médico, não psiquiatra, viu o recluso em consulta ou não.

4.ª - O recorrente juntou no seu requerimento inicial de modificação da execução da pena de prisão, aos autos elementos que não foram sequer tidos em conta, nem desconsiderados, no relatório clínico, nomeadamente, o estudo neuropsicológico que identifica as patologias de que ele padece, feito pela Senhora Professora Doutora BB que identifica as patologias de que ele padece e leva à elaboração do relatório, vd. doc. 1, efetuado pela Srª Dr.ª CC, médica da especialidade, identifica a patologia, esclerose múltipla, e conclui do seguinte modo: “Neste caso concreto, é previsível que as condições de vida na prisão venham a provocar um agravamento das dificuldades cognitivas já presentes neste momento; o cumprimento da pena no domicílio é fundamental para retardar a evolução da esclerose múltipla, do requerimento de modificação da pena de prisão, doc. 2, um exame de uma ressonância magnética crânio-encefálica.

5.ª - O recorrente tinha desde o início requerido a realização de perícia psiquiátrica e neurológica no requerimento inicial tendo requerido que o médico que deve efetuar esse exame e elaborar o parecer só podia ser um psiquiatra, e, no caso concreto, seria melhor que fosse o psiquiatra que acompanha o recluso, que sabe como é que ele se encontra e do seu verdadeiro estado.

6.ª - Não foi ordenada a realização desta perícia requerida e foi indeferida a modificação da execução da pena de prisão.

7.ª - A CRP estabelece não um, mas vários comandos que se impõem a todos os processos: o processo tem de ser equitativo, art.º 20º, n.º 4. Ser equitativo significa também que a justiça tem de ser justa. O processo para ser equitativo tem de ser um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”, O artigo 20.º, n.º 4 da CRP, violado na decisão recorrida, consagra o direito a um processo equitativo. Citando o Professor Canotilho, ob. cit., pág. 495, a propósito deste caso diz o seguinte: …Haveria violação do princípio da imparcialidade porque mesmo não perturbando, de facto, a imparcialidade dos juízes, era preciso dar a aparência (“teoria da aparência”) de que o julgamento era verdadeiramente imparcial. Não basta fazer-se justiça; deve parecer que ela é feita (“justice must not only be done; it must be seen to be done”.)

O direito ao processo equitativo está positivado no artigo 20.º da CRP, no artigo 6.º da CEDH, no artigo 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no artigo 10.º da DUDH, artigos violados na decisão recorrida.

8.ª - O recorrente tem o direito de requerer prova que ateste a sua situação real de saúde. Com a expressão direito à prova pretende-se significar a possibilidade real que os sujeitos processuais têm de participar ativamente na produção de prova, quer requerendo a sua admissão no processo quer participando na sua produção.

9.ª - Num processo penal como o português, que é um processo penal o de estrutura acusatória integrado por um princípio de investigação, os sujeitos processuais têm o direito de apresentar e requerer as provas que contribuam ou possam contribuir para o direito a aplicar ao caso concreto, além do poder-dever do Tribunal recorrer a outros meios de prova dos apresentados. Foi assim violado o disposto no artigo 32.º, n.º 5 da CRP.

10.ª - E este direito à prova e estrutura acusatória do processo penal aplica-se em todo o processo, pelo que, estando o arguido a cumprir pena de prisão, tem o direito a provar o seu estado de saúde que implica uma modificação da execução da pena de prisão.

11.ª - A doença que o recorrente tem para a poder demonstrar foi-lhe negado o direito à prova da sua doença na medida em que não foi ordenada a realização de perícia médica, por médico psiquiatra, nomeadamente o que o segue, foi feito um relatório médico que é inconclusivo, ou seja, onde se afirma não dispor de “relatórios e de avaliações neuropsicológicas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento da patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC”.

12.ª - Em face deste relatório inconclusivo foi decidido no ponto 25 dos factos dados por provados, que “O estado de saúde e autonomia do recluso não são incompatíveis com a sua manutenção em meio prisional”.

13.ª - Para dar os factos como provados a Mma. Juiz de Direito fundamentou-se nos documentos médicos juntos pelo recluso, na informação clínica oriunda dos serviços clínicos do Estabelecimento prisional, segundo consta da fundamentação da decisão.

14.ª - O documento junto pelo recorrente sob o número 1 com o requerimento de pedido de modificação da execução da pena, corresponde a um relatório clínico que identifica as patologias de o recorrente padece, efetuado pela Sr.ª Dr.ª CC, médica especialista: “Neste caso concreto, é previsível que as condições de vida na prisão venham a provocar um agravamento das dificuldades cognitivas já presentes neste momento; o cumprimento da pena no domicílio é fundamental para retardar a evolução da esclerose múltipla”. Ora este relatório médico diz exatamente o contrário do que se dá como provado. Como é que poderá ter sido tido em conta se o que consta da decisão é precisamente o contrário.

15.ª - O relatório clinico feito pelo Senhor Dr. DD, na sequência do ordenado pela Mma. Juiz de Direito, despacho de 15-07-2024 e que por isso se poderá apelidar de perícia, não se pronuncia sobre o ponto 25, dizendo-se expressamente no Relatório: “não dispondo de relatórios e exames imagiológicos e de avaliações neuropsocológiocas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento de patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC”.

16.ª - Ou seja, a Mma. Juiz de direito não podia decidir contra a perícia que ordenou sem fundamentar a sua divergência com o parecer do perito o que tem como consequência a invalidade da decisão, vício esse que se argui e que deve ser declarado para os devidos efeitos legais. Sendo a perícia inconclusiva ter-se-á de ordenar uma outra que se pronuncie sobre se é previsível que as condições de vida na prisão venham a provocar um agravamento das dificuldades cognitivas já presentes neste momento; o cumprimento da pena no domicílio é fundamental para retardar a evolução da esclerose múltipla do recorrente. Foi violado o disposto no artigo 162.º do Cód. Proc. Penal, aplicado diretamente ou por analogia, sendo que a decisão padece desta invalidade que deverá ser declarada e que deverá determinar a anulação da sentença e a elaboração doutro relatório pericial médico conforme supra.

17.ª - A Juiz não podia dar por assente o ponto 25 uma vez que a perícia não se diz o que se dá por provado, mas antes se afirma que em face dos dados existentes no processo não são possuídos dados suficientes para parecer sobre o agravamento de patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC.

18.ª - Sendo o relatório médico ou perícia inconclusivo não concretizando os elementos estatuídos no artigo 217º, n.º 2 e 3 do CEPMPL conforme foi ordenado ter-se-á, para decidir de forma justa, de ordenar a realização de perícia psiquiátrica e neurológica devendo essa perícia ser feita por psiquiatra, e, no caso concreto, seria melhor que fosse o psiquiatra que acompanha o recluso recorrente, que sabe como é que ele se encontra e do seu verdadeiro estado o que implica a anulação da decisão e que seja ordenada a realização de uma nova perícia conforme requerida.

19.ª - Para decidir como foi decidido era, pelo menos, necessário que o parecer médico fosse conclusivo. Se o próprio médico não tinha a certeza, como é que a Mma. Juiz podia dar por provado o ponto 25? Tem por isso de ser anulado o ponto dado por provado da matéria de facto n.º 25.

20.ª - Consta da decisão recorrida que cumprindo o recluso uma pena de prisão pela prática de crimes e factos graves, pelo que se exige a demonstração de um percurso prisional consolidado, devidamente testado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário.

21.ª - O que releva para o caso sub judice não é a demonstração do percurso prisional consolidado. Independentemente da gravidade dos factos praticados pelo arguido, a verdade é que existe a possibilidade de requerer a modificação da pena de prisão de reclusos, que independentemente do seu passado prisional estar ou não consolidado, sejam portadores de doença grave e permanente ou de idade avançada. No caso dos autos reportamo-nos a doença grave e permanente cuja manutenção do recorrente na prisão venham a provocar um agravamento das dificuldades cognitivas sendo o cumprimento da pena no domicílio é fundamental para retardar a evolução da esclerose múltipla, que como se sabe não tem cura e é uma doença degenerativa.

22.ª - A propósito da prevenção geral dir-se-á que deixou de ser visitada pelos espectrais fantasmas do pelourinho e de uma punição que se queria exemplar para exercer a sua eficácia, sublinhadamente intimidatória, para se estruturar num pensamento positivo, única e simplesmente informado pela reafirmação da validade do bem jurídico violado. E, há-de vincar-se, a repercussão do que precedentemente se manifestou não é meramente semântica. Efetivamente, se a prevenção geral fosse encarada num prisma marcadamente negativo, haveria toda a legitimidade para objetivar o arguido recorrente, tornando-o um paradigma carismático face aos olhos da restante comunidade de que “o crime não compensa”.

23.ª - O enfoque, eminentemente positivo, de tal prevenção obriga a que o arguido seja encarado como um sujeito de uma ação humana que urge sancionar, para que a sociedade historicamente organizada veja reiterada a vigência intrínseca do bem jurídico violado.

24.ª - Não poderá eleger-se como obstáculo intransponível à suspensão de execução da pena as sobreditas razões de prevenção geral, na feição de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias. De facto, uma vez que a factualidade em causa ocorreu até em 2014 e o tempo —- “esse grande escultor”, expressão de YOURCENAR -— também não deixou incólume as finalidades das penas, maxime quanto à prevenção geral: Figueiredo DIAS, Ob. E Loc. Cits. O decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas” — Figueiredo DIAS, Ob. e Loc. Cits.

25.ª - Dever-se-ia inserir a data em que os factos terão ocorrido, em 2014, pelo que atento o decurso de tempo omitida nos factos provados sob o n.º 1 e 2, sendo que tendo decorridos 10 anos sobre a prática do crime, o decurso de um largo período sobre a prática do crime faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já definitivamente apaziguadas ou definitivamente tratadas.

26.ª - O recorrente além desta não tem mais nenhuma condenação. No relatório social para a modificação da pena de prisão, é expressamente dito que na localidade em que vive, ..., é referenciado como um indivíduo discreto e trabalhador, sem qualquer registo de comportamentos à margem da norma, não sendo identificadas necessidades específicas de reinserção social, sendo que caso “venha a ser modificada a execução da pena o condenado reúne condições de acolhimento no exterior … não sendo de identificar sentimentos de rejeição face à presença do mesmo”. Mas mais, “no meio não se preveem reações negativas à presença do condenado, sendo que os factos ocorreram há cerca de 10 anos e o impacto dilui-se no tempo, pelo que a imagem do condenado é de um indivíduo discreto ao nível social, não havendo referências desabonatórias a seu respeito”.

27.ª - Ou seja, não existe oposição de exigências de prevenção ou ordem e paz social, ao contrário do decidido. E facto é dado a conhecer por banda do relatório e deveriam os factos acima transcritos serem dados por assentes.

- “é referenciado como um indivíduo discreto e trabalhador, sem qualquer registo de comportamentos à margem da norma”,

- “não sendo identificadas necessidades específicas de reinserção social”,

- “no meio não se preveem reações negativas à presença do condenado, sendo que os factos ocorreram há cerca de 10 anos e o impacto dilui-se no tempo, pelo que a imagem do condenado é de um indivíduo discreto ao nível social, não havendo referências desabonatórias a seu respeito”.

Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo ser, em todo o caso anulada a decisão proferida e ordenada a realização da perícia psiquiátrica e neurológica devendo essa perícia ser feita por psiquiatra, e, no caso concreto, seria melhor que fosse o psiquiatra que acompanha o recluso recorrente, que sabe como é que ele se encontra e do seu verdadeiro estado o que implica a anulação da decisão e que seja ordenada a realização de uma nova perícia conforme requerida.

         Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, no sentido da improcedência do recurso interposto, aduzindo as seguintes conclusões:

A) Pelas razões expostas, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a douta decisão recorrida.

B) O Tribunal atendeu a todos os elementos de prova juntos aos autos, nomeadamente os que o recorrente juntou e, ainda, os solicitados nos termos do disposto no art. 217º, nºs 2 e 3 do CEPMPL.

C) A prova realizada, e outra não se revela necessária, demonstra que a situação em causa não preenche os requisitos do regime excepcional de modificação da execução da pena de prisão previstos no art. 118º do CEPMPL.

D) Da leitura e conjugação de todos os relatórios e pareceres juntos ao processo resulta que o recluso cumpre a terapêutica prescrita para as enfermidades de que padece, é seguido nas especialidades que as mesmas exigem e tem autonomia.

E) Este quadro factual não se enquadra em nenhuma das situações previstas no mencionado art. 118º do CEPMPL.

F) E, consequentemente, bem andou o Tribunal «a quo» ao indeferir o pedido de modificação da execução da pena.

         O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra deu Parecer no sentido de que deve ser julgado improcedente o recurso apresentado e, consequentemente, mantida a decisão recorrida.

         Procedeu-se a exame preliminar.

         Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

                           

         A decisão recorrida é do seguinte teor:

            AA, natural de ..., nascido em ../../1977, actualmente em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional ..., veio requerer a modificação da execução da pena de prisão, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 155.º n.º 1, 118.º a 122.º, 216.º e 217.º, todos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade

            Em síntese, invoca padecer de uma doença grave, evolutiva e irreversível denominada de esclerose múltipla, doença desmielinizante neurológica do foro autoimune, estando inválido e já declarado incapaz para trabalhar desde 2021; padece de demência e enquadra-se nas complicações de esclerose múltipla.

            O Tribunal é o competente, cfr. artigos 137.º, n.º 1 e 138.º, n.º 4, al. j) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

            O requerente tem legitimidade, cfr. artigo 216.º, al. a), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, não se impondo diligenciar pela obtenção de consentimento [artigo 217.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade].

            Procedeu-se à instrução dos autos, com junção dos pertinentes relatórios e pareceres, nos termos do artigo 217.º, n.º s 2 e 3 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, não se vislumbrando a necessidade de outras diligências e/ou a junção/produção de outros meios e elementos de prova.

            O Ministério Público emitiu parecer desfavorável, aduzindo os argumentos que antecedem [cfr. artigo 218.º, n.º 1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade].

            Não existem nulidades, excepções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa, mantendo-se a validade e regularidade da instância.

            Tudo ponderado, cumpre decidir.

                                                                           *

            II. – FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:

            Matéria de facto Provada:

            Com relevância e pertinência resultam provados os seguintes factos:

            1. O recluso tem 46 anos e cumpre a pena de 14 [catorze] anos de prisão, à ordem do Processo n.º 120/14...., do Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz ..., pela prática como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 131º e 132º/n.ºs 1 e 2, al. h), do Código Penal.

            2. A condenação assentou, em síntese, nos seguintes factos: na prossecução do seu desígnio de tirar a vida ao EE, o arguido, conduzindo o descrito veículo pesado de mercadorias, alterou o trajecto que deveria fazer em direcção à localidade de ... e decidiu deslocar-se à Rua ..., no sentido norte-sul, ou seja, no sentido Tocha-Ferreira-a-Nova, onde tinha visto o aludido EE, passando a circular no mesmo sentido da faixa de rodagem em cuja berma ele (EE) se encontrava apeado; cerca das 4 horas e 45 minutos dessa mesma madrugada, ao aproximar-se do local onde se encontrava apeado o mencionado EE, o arguido, conduzindo a uma velocidade de cerca de 45 quilómetros por hora, e apesar de ter a via de rodagem livre à sua frente, aproveitando também o facto de o EE estar postado, descontraído e indefeso, de lado para a via onde circulava, guinou o volante do veículo pesado para a direita, atento o seu sentido de marcha; assim, o arguido fez com que o pesado por ele conduzido invadisse a berma da estrada onde se encontrava apeado o EE, embatendo com a frente direita do pesado no corpo do mesmo e também no veículo automóvel de marca “Renault” e modelo ..., mais exactamente na zona esquerda traseira deste veículo, quando o pesado circulava a uma velocidade de aproximadamente cerca de 34 quilómetros por hora; alguns metros antes do embate, o arguido efectuou uma travagem no veículo pesado por si conduzido…, em consequência do embate, o EE foi projectado para a frente, tenho caído no solo e de seguida sido colhido pelo veículo pesado conduzido pelo arguido e arrastado pelo pavimento que compunha a berma do passeio, em terra, durante cerca de 25 metros, desde o local onde ocorreu o embate até àquele onde ficou imobilizado.

            3. O condenado encontra-se ininterruptamente preso desde 27.12.2023; o meio da pena está previsto para o dia 27.12.2030; os dois terços da pena para o dia 27.04.2033; os cinco sextos da pena para 27.08.2035 e o termo da pena para 27.12.2037.

            4. O recluso cumpre pena de prisão pela primeira vez.

            5. O recluso apresenta diagnóstico de esclerose múltipla com seguimento em consulta hospitalar de neurologia.

            6. Trata-se de uma doença grave, evolutiva e caracterizada pela sua irreversibilidade.

            7. O recluso cumpre a terapêutica prescrita na ULS Baixo Mondego.

            8. Durante a sua permanência no Estabelecimento Prisional ... apresentou um episódio com sintomatologia compatível com surto de esclerose múltipla, tendo sido encaminhado ao serviço de urgência, onde após avaliação, tal hipótese foi afastada.

            9. Apresentou até à data seguimento regular em consulta de clínica geral, psiquiatria e psicologia, tendo iniciado terapêutica para controlo da ansiedade e sintomatologia depressiva.

            10. Na avaliação neuropsicológica realizada em Março de 2024 o recluso apresentava défice cognitivo secundário à patologia de que sofre e sintomatologia depressiva (já orientada e medicada).

            11. O recluso AA pretende integrar o agregado familiar composto pela esposa, que se encontra reformada por invalidez e os dois filhos do casal de 8 e 5 anos de idade.

            12. O condenado tem, ainda, duas filhas gémeas, de anterior relação, que contam 14 anos de idade e vivem com a mãe na Suíça.

            13. O agregado beneficia de boas relações familiares, estando a família disponível para o acolher e apoiar no regresso ao seio familiar. Nas proximidades da habitação residem ainda outros familiares, nomeadamente, os pais do condenado que estão, de igual modo, disponíveis para o apoiar.

            14. Os factos que estiveram na origem da condenação afectaram toda a família, contudo permanece uma relação gratificante entre o recluso e a esposa.

            15. O agregado habita uma moradia tipologia 4, composta por r/ch e 1º andar, com boas condições de habitabilidade. A habitação é circundada por um jardim na parte da frente e um quintal nas traseiras, onde existe ainda uma garagem e piscina. A habitação está situada em espaço rural e tem condições de habitabilidade e conforto.

            16. As despesas do condenado são asseguradas pelos rendimentos do casal, provenientes das pensões de invalidez de AA, no valor de 1130,00€ de França e 702,00€ de Portugal, tem ainda um complemento que recebe de três em três meses de 1300,00€ e a penão de invalidez auferida pela esposa, no valor de 663.00€ de França.

            17. O recluso AA dispõe de competências para avaliar a gravidade do seu comportamento, verbalizando um juízo crítico adequado sobre as consequências da prática delituosa.

            18. A condenação teve um impacto bastante significativo na vida do condenado, nomeadamente ao nível familiar considerando que era o apoio da mulher (que apresenta limitações físicas, por deficiência num dos membros superiores, em sequência de acidente) e nos cuidados aos filhos.

            19. No Estabelecimento Prisional ... tem vindo a manter comportamento adequado aos normativos internos, encontra-se presentemente alocado na ala C, designada do respeito.

            20. Frequentou o 10º ano de escolaridade de Janeiro de 2024 até final do ano lectivo, o que fez com assiduidade, pontualidade e bom aproveitamento.

            21. Devido aos seus problemas de saúde está inativo, embora tenha estado a frequentar a escola e se envolva em todos os projetos socioculturais que surgem e participa nas actividades ocupacionais promovidas pelo Estabelecimento Prisional.

            22. Recebe visitas dos familiares.

            23. Tem cuidado com a imagem e relacionamento interpessoal, mantendo contacto cordial e linguagem ajustada com os vários interlocutores.

            24. Até ao momento, ainda não beneficiou de medidas de flexibilização.

            25. O estado de saúde e autonomia do recluso não são incompatíveis com a sua manutenção em meio prisional.

                                                                                       *

            Inexistem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão de mérito, não se provando facto contrário nem que estivesse em contradição com a factualidade elencada.

                                                                                                    *

            III.- Motivação da matéria de facto:

            A convicção do tribunal no que respeita à matéria de facto provada resultou da certidão da decisão condenatória e respectivo despacho homologatório de liquidação de pena, junto ao apenso A, da ficha biográfica do recluso, do teor do relatório da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, nos documentos médicos juntos pelo recluso, na informação clínica oriunda dos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional e no relatório/parecer do Senhor Director do Estabelecimento Prisional.

                                                                                                    *

            IV. - FUNDAMENTOS FÁCTICO-CONCLUSIVOS E JURÍDICOS

            Nos termos do previsto no artigo 118.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade:

            “Pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:

            a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;

            b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou

            c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.”.

            Nos termos do disposto no artigo 119.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade:

            “1 - A modificação da execução da pena depende sempre do consentimento do condenado, ainda que presumido.

            2 - Há consentimento presumido quando a situação física ou psicológica do condenado permitir razoavelmente supor que teria eficazmente consentido na modificação se tivesse podido conhecer ou pronunciar -se sobre os respectivos pressupostos.”

            Assim, são pressupostos formais da concessão da modificação da execução da pena: - que o condenado se encontre numa das situações previstas nas alíneas do artigo 118.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade; - que o condenado consinta na modificação da execução da pena nos termos do artigo 119.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

            Por seu turno, é requisito substancial (ou material) da modificação da execução da pena que a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, e nesta parte, impõe-se realçar que os factos praticados pelo arguido são de extrema gravidade.

            Da leitura do acórdão condenatório resulta que o recluso cumpre pena de prisão pela prática de crime e factos graves, pelo que se exige a demonstração de um percurso prisional consolidado, devidamente testado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário, que não é o caso do arguido, que aliás, iniciou há menos de um ano a pena de 14 anos de prisão, sendo certo que, as necessidades de prevenção geral são elevadíssimas e naturalmente seria incompatível com a defesa e a ordem da paz social.

            Sem embargo, no que se reporta aos pressupostos formais do deferimento da modificação da execução da pena, o recluso padece de doença podemos dizer de irreversível, porém, não se encontra dependente do apoio de terceira pessoa para a sua actividade do dia-a-dia, bem como para os cuidados médicos de que carece, encontrando-se medicado, com assistência médica e clinicamente estável.

            Por seu turno, apesar da avaliação positiva quanto às condições habitacionais e suporte económico e apoio familiar, a verdade é que, dos elementos constantes dos autos e da avaliação efectuada, afere-se que a reclusão do arguido corresponde a uma situação normal de execução da pena privativa, sem dados dignos de realce para o fim em vista pelo recluso.

            O recluso em meio prisional tem tido o acompanhamento clínico e médico necessários e dos elementos constantes dos autos, não se evidencia um agravamento significativo da sua situação de saúde durante o cumprimento da pena e a avaliação médica junto aos autos não remete para a incompatibilidade da permanência do arguido em meio prisional.

            Em face do exposto, os problemas de saúde apurados, não são de molde a concluir que o condenado se encontra, presentemente, na situação em que o seu estado de saúde se mostra incompatível ou desaconselhável com a execução da pena em meio prisional.

            Como tal, na senda do doutamente promovido pela digna Procuradora da República do Ministério Público, forçosa é a conclusão do não preenchimento dos pressupostos legais para a modificação da execução da pena de prisão, pelo que, indefere-se a pretensão do condenado AA, por não estarem reunidas as condições para que seja aplicada a requerida modificação da execução da pena.

            Condeno o recluso no pagamento da taxa de justiça pelo mínimo legal.

                                                                                                    *

            V. – DECISÃO:

            Em face de todo o exposto:

            a) Decido indeferir o pedido de modificação da execução da pena de prisão [na modalidade de regime de permanência na habitação] requerida por AA, e em consequência, determinar a manutenção da execução da pena de prisão de 14 [catorze] anos de prisão, à ordem do Processo n.º 120/14...., do Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz ....

            b) Condeno o recluso no pagamento da taxa de justiça pelo mínimo legal [artigos 153.º e 154.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, 513.º, 514.º e 524º do Código de Processo Penal e Tabela III de reporte ao artigo 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais [processo especial, com ou sem oposição, consoante o caso], acrescida dos encargos previstos no artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais e custos processuais referidos no anexo I ao artigo 15.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril], sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que possa beneficiar.

            c) Registe, notifique e comunique [Ministério Público, Recluso, Ilustre Mandatário e Estabelecimento Prisional].

                                                           *

DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Fazendo presente a norma do artigo 412º, nº 1 do Código do Processo Penal o objecto da lide recursal é fixado na motivação, onde são ancorados os seus fundamentos específicos e delimitado pelas conclusões, como síntese da respectiva fundamentação, sem prejuízo das questões que ao Tribunal ad quem incumba conhecer oficiosamente (como sejam os vícios enunciados no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal, as nulidades da sentença gizadas no artigo 379º, nº 1 e 2 do Código do Processo Penal e as nulidades que não devam ser consideradas sanadas face aos consignado nas disposições conjugadas dos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1 do Código do Processo Penal)[1] [2]

Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente AA, a questão que se apresenta a decidir é, pois, a seguinte:

. Impugnação da decisão por violação do direito ao processo equitativo, nos termos prevenidos no artigo 20º da Constituição da Republica Portuguesa, artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e das garantias a que dá corpo o artigo 32º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa;

. Impugnação da decisão, por erro de direito, por preterição das exigências firmadas no artigo 162º do Código do Processo Penal;

. Impugnação da decisão, por erro de interpretação e aplicação do artigo 118º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

                                                                       *

           

DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

Apreciando a lide recursiva apresentada pelo arguido AA verificamos que o mesmo começa por impugnar a decisão recorrida aludindo a que, na sequência do seu pedido de modificação de execução da pena de prisão, veio requerer que fosse ordenada perícia psiquiátrica e neurológica, que contivesse a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença de que é portador, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico que lhe é prestado bem como a modalidade adequada de modificação da execução da pena e as demais diligências legais e a modificação da execução da pena de prisão para que a pena possa ser cumprida na modalidade adequada que, no seu entender, se afigura ser com a obrigação de permanência na habitação ou prisão domiciliária, só podendo ausentar-se para fins médicos e de saúde.

Alude a que, para tal, alegou, em síntese, que padece de uma doença grave, evolutiva e irreversível denominada de esclerose múltipla, doença desmielinizante neurológica do foro autoimune, estando inválido e já declarado incapaz para trabalhar desde 2021, que circunstâncias várias relativas à pessoa do recluso, agravam intolerável e inaceitavelmente o sofrimento e tornam injustificável o cumprimento da pena em estabelecimento prisional, como é o caso do recluso recorrente.

Dá nota que, com o seu requerimento inicial de modificação da execução da pena de prisão, fez juntar o estudo neuropsicológico feito pela Senhora Professora Doutora BB que identifica as patologias de que padece e leva à elaboração do relatório, efectuado pela Senhora Dr.ª CC, médica da especialidade, identifica a patologia, esclerose múltipla, e conclui do seguinte modo: “Neste caso concreto, é previsível que as condições de vida na prisão venham a provocar um agravamento das dificuldades cognitivas já presentes neste momento; o cumprimento da pena no domicílio é fundamental para retardar a evolução da esclerose múltipla, do requerimento de modificação da pena de prisão, bem como, um exame de uma ressonância magnética crânio-encefálica.

Mais aduz que, na sequência do cumprimento do disposto no artigo 217º, nº 2,  a), nº 3, a), b) e c) do CEP veio a ser produzido um relatório clínico datado de 5 de Agosto de 2024, assinado por médico não especialista da doença que afecta o recluso, que afirma não dispor de “relatórios e de avaliações neuropsicológicas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento da patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC”, sendo que nesse relatório inexiste informação se o médico, não psiquiatra, viu o recluso em consulta ou não.

Outrossim alude a que os elementos que juntou com o requerimento inicial não foram sequer tidos em conta, nem desconsiderados, no relatório clínico, nomeadamente, o estudo neuropsicológico feito pela Senhora Professora Doutora BB, nem o exame de uma ressonância magnética crânio-encefálica.

Acrescenta que, não obstante ter requerido a realização de perícia psiquiátrica e neurológica no requerimento inicial, o que voltou a requerer quando viu o relatório médico junto aos autos, posto que solicitou o médico que devia efectuar tal exame e elaborar o parecer só podia ser um psiquiatra, e, no caso concreto, seria melhor que fosse o psiquiatra que acompanha o recluso, que sabe como é que ele se encontra e do seu verdadeiro estado, tal não foi ordenado e indeferida a modificação da execução da pena de prisão.

Sendo certo, conforme adianta, o recorrente tem o direito a requerer prova que ateste a sua situação real de saúde, posto que à luz do disposto no artigo 20º, nº 4 da Constituição da Republica Portuguesa, o processo para ser equitativo tem que ser um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, o que não ocorreu.

Ademais, aduz, tem o direito à prova, isto é a possibilidade real de participar activamente na produção da prova, quer requerendo a sua admissão, quer participando na sua produção, tendo ocorrido, assim, a violação do disposto no nº 5 do artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa.

         Vejamos

         A decisão recorrida foi prolatada, no seguimento dos ditames normativos a que dão corpo os artigos 216º e seguintes da Lei nº 115/2009 de 12/10, e cumprido todo o formalismo legalmente aplicável, com vista à eventual modificação da execução de pena de prisão do arguido AA.

         Estipula o artigo 217º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, sob a epigrafe “Apresentação e instrução do requerimento” que:

         1 - O requerimento é dirigido ao juiz do tribunal de execução das penas, que, fora dos casos de consentimento presumido, providencia pela imediata notificação do condenado, quando não seja o requerente, para que preste o seu consentimento, aplicando-se correspondentemente o disposto quanto ao consentimento para a liberdade condicional.

         2 - Obtido o consentimento expresso ou havendo ainda que comprovar-se o consentimento presumido, o tribunal de execução das penas promove a instrução do processo com os seguintes elementos, consoante se trate de recluso com doença grave e irreversível, com deficiência ou doença grave e permanente ou de idade avançada:

         a) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena;

         b) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de deficiência ou da doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena; ou

         c) Certidão de nascimento e parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena.

         3 - Em todos os casos o requerimento é ainda instruído com:

         a) Relatório do director do estabelecimento relativo ao cumprimento da pena e à situação prisional do condenado;

         b) Relatório dos serviços de reinserção social que contenha avaliação do enquadramento familiar e social do condenado e, tendo por base o parecer previsto no número anterior, das concretas possibilidades de internamento ou de permanência em habitação e da compatibilidade da modificação da execução da pena com as exigências de defesa da ordem e da paz social;

         c) Parecer de médico do estabelecimento prisional quanto à impossibilidade de o condenado conhecer os pressupostos de modificação da execução da pena ou de se pronunciar sobre eles, sempre que haja de comprovar-se o seu consentimento presumido.

        

         Não deixando o legislador de curar, no artigo subsequente, sob a epígrafe “Tramitação subsequente”, que

          1 - Finda a instrução, o processo é continuado com vista ao Ministério Público, se não for este o requerente, para, no prazo máximo de dois dias, emitir parecer ou requerer o que tiver por conveniente.

         2 - Havendo o processo de prosseguir, o juiz pode ordenar a realização de perícias e demais diligências necessárias, após o que decide no prazo máximo de dois dias.

         Tal procedimento trata de dar corpo à disciplina normativa do artigo 118º do mesmo diploma do qual ressuma, sob a epigrafe “Beneficiários”, que

         Pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:

         a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;

         b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou

         c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.

         Ressalta da leitura do firmado instituto, desde logo, o seu caracter excepcional, na medida em que a possibilidade de modificação da pena fica restringida a reclusos condenados que se encontrem gravemente doentes, com patologia evolutiva e irreversível e já não respondam às terapêuticas disponíveis (al. a), assim como àqueles que sendo portadores de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional (al. b); e, bem assim, aqueles com idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena (al. c).

         Vale tudo por dizer, assim, que a sua aplicabilidade fica restringida aos reclusos condenados que, por consequência da degradação do seu estado sanitário, a manutenção da execução da pena de prisão lhes acarreta grave dano à saúde, à integridade física ou mesmo à vida, sendo certo que nunca será de olvidar a sua dignidade enquanto pessoas, estatuto que lhe, obviamente, continua a ser-lhes reconhecidos, não obstante a sua situação de reclusão.[3]

         Joaquim Boavida[4], a propósito desta matéria, afirma mesmo que “nenhum outro instituto enfatiza melhor a questão essencial do fundamento, necessidade e razoabilidade da execução da pena de prisão”, lançando mesmo mão do estatuído no artigo 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, onde se acha prevenido que “Todos os indivíduos privados da sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana”.

         Principio este que é uma das traves-mestras da proclamação de Portugal enquanto República soberana, visto que no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa achamos consagrado que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

         Volvendo ao caso dos autos é de concluir que, na sequência do requerimento apresentando pelo arguido, ora recorrente, foi dado cumprimento às exigências firmadas no artigo 217º, nº 2, alínea a) e nº 3, alíneas a), b) e c) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, em virtude do qual vieram a ser juntos aos autos:

         . Relatório Social elaborado pela DGRSP para a modificação da pena de prisão;

         . Relatório elaborado pelo Técnico Gestor do Estabelecimento Prisional ... com a ficha biográfica do recluso;

         . Relatório clinico do medico do Estabelecimento Prisional ...;

         . Parecer do Director do Estabelecimento Prisional ....

         Na sequência da junção do aludido Relatório clinico, o arguido, ora recorrente, solicitou a elaboração de tal exame por psiquiatra, e, no caso concreto, pelo psiquiatra que acompanha o recluso, uma vez que o mesmo sabe como é que ele se encontra e do seu verdadeiro estado, diligência esta que não foi ordenada.

         O aludido Relatório Clinico, datado de 5 de Agosto de 2024, subscrito e assinado, pelo medico DD (OM ...57), apresenta o seguinte teor:

        

         “O utente FF, nº mecanográfico ...23/...31, detido no Estabelecimento Prisional ..., de acordo com os registos existentes, apresenta diagnostico de esclerose múltipla com seguimento em consulta hospitalar de neurologia, tratando-se de doença grave, evolutiva, caracterizada pela sua irreversibilidade. Até à data, cumpriu a terapêutica prescrita na ULS Baixo Mondego que procura prevenir o aparecimento de novas crises. Apresentou durante a sua estadia no EPC, um episodio com sintomatologia compatível com surto de esclerose múltipla, tendo sido encaminhado ao serviço de urgência onde, após avaliação por neurologistas, tal hipótese foi afastada. Apresentou até à data, seguimento regular em consulta de Clinica Geral, Psiquiatria, Psicologia, tendo iniciado terapêutica para controlo da ansiedade e sintomatologia depressiva.

         De acordo com a avaliação neuropsicológica realizada em Março do presente ano, apresentava défice cognitivo secundário à patologia de que sofre e sintomatologia depressiva (já orientada e medicada).

         Não dispondo de relatórios de exames imagiológicos e de avaliações neuropsicologicas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento da patologia/sintomatologia secundária ao ingresso e estadia no EPC.

         Por ser verdade, emito e dato o presente relatório”

         O requerimento apresentado pelo arguido, ora recorrente AA que se traduz num pedido de modificação da execução da pena de prisão estriba-se na circunstância de padecer de esclerose múltipla, doença grave, evolutiva e irreversível, por força da qual foi já declarado incapaz para trabalhar desde 2021 e por apresentar, em estudo neuropsicológico realizado em Março de 2024, deterioração das funções cognitivas, dado que lhe foi encontrado defeito cognitivo atingindo atenção, funções executivas, iniciativa, memória, compreensão verbal, cálculo mental, o que se reconduz a demência.

         Razão por que, conclui, as circunstâncias várias relativas à pessoa do recluso, agravam intolerável e inaceitavelmente o sofrimento e tornam injustificável o cumprimento da pena em estabelecimento prisional.

         Juntamente com tal req uerimento o arguido, ora recorrente fez a junção de relatório de especialidade e um exame de ressonância magnética crânio-encefálica.

         Para o cabal conhecimento e decisão do procedimento de modificação de execução de pena de prisão relativa ao arguido, aqui recorrente AA é cristalino que importa carrear para os autos, além do que foi o contributo já aduzido com o requerimento inicial, a realização de perícia a levar a preceito por médicos da especialidade de neurologia e psiquiatria, na medida em que os factos alegados e que importam à decisão a proferir demandam um especial conhecimento cientifico daquelas especialidades médicas.

         Com efeito não obstante ser pacifico que o arguido, ora recorrente, padece de esclerose múltipla, doença grave, evolutiva e irreversível, por força da qual foi já declarado incapaz para trabalhar desde 2021, está, ainda, por determinar, quais são as decorrências do défice cognitivo secundário aquela patologia apresentado na avaliação neuropsicológica realizada em Março de 2024 e, bem assim, se as mesmas agravam intolerável e inaceitavelmente o sofrimento do arguido, tornando, por tal, injustificável o cumprimento da pena em estabelecimento prisional.

         Perícia que, como salienta Germano Marques da Silva[5] se trata da “actividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.”

         Diligência esta que, como ressuma das análise dos autos, foi requerida pelo arguido, ora recorrente (e em dois momentos distintos do procedimento) e, sempre deve ser levada a preceito “quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”, tal como estipula o artigo 151º da lei adjectiva penal.

         Ademais é o próprio Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade que, no seu artigo 218º, nº 2, prevê que o juiz, caso o processo seja de prosseguir, “pode ordenar a realização de perícias e demais diligências necessárias (…)”

        

         É flagrante, pois, que a actividade jurisdiscional se mostra desguarnecida do cumprimento escorreito dos princípios básicos do procedimento penal português ao ter omitido a realização de tal diligência que, independentemente de ser requerida, sempre teria de ser levada a preceito, face à natureza do objecto do processo, por se mostrar imprescindível à boa decisão do procedimento.

        

         Ademais se, numa primeira análise, parece ser sido dado cumprimento ao formalismo divisado no artigo 217º, nº 2 e 3 do Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdades, certo é que se firmarmos o teor do Relatório Clinico, teremos de concluir em sentido inverso: é que, ao invés do exigido na lei, é o próprio clinico do estabelecimento prisional que declara que “não dispondo de relatórios de exames imagiológicos e de avaliações neuropsicologicas anteriores, não possuo dados suficientes para parecer sobre o agravamento da patologia/sintomatologia secundário ao ingresso e estadia no EPC.”

         Mas, ainda, que assim não fosse, como já deixámos dito, tratando-se de doença do foro neurológico, é escorreito que o decisor faça carrear para os autos a análise e apreciação dos factos por quem detém especiais conhecimentos, no caso, médicos especialistas em neurologia e psiquiatria, pois, só, assim, pode considerar-se escorreitamente cumprido o principio da investigação – principio este que, perspectivado no que à aquisição e valoração da prova implica, que a condução e esclarecimento da matéria factual não pertence apenas aos sujeitos processuais – que não “partes” – mas ainda, e em primeiro lugar e como última instância, ao julgador.

Isto é, a actividade jurisdicional não se limita ao controlo da legalidade dos actos, como ainda sobre o magistrado impende, como salienta Jorge Figueiredo Dias[6] “o dever de investigação judicial autónoma da verdade”, pois só assim “se compreende que não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de afirmar, contradizer e impugnar; como, igualmente, que se não atribua qualquer eficácia à não-apresentação de certos factos ou ao «acordo», expresso ou tácito, que se formaria sobre os factos não contraditados.”

         Trata-se de uma arquitectura adjectiva que, em todo o procedimento, visa a verdade material, que implica, na síntese assertiva do Professor Castanheira Neves[7] “a decisiva consequência de não poder fundar-se o juízo probatório senão na prova efectiva dos factos”.

         Por outro lado, como ressuma das análise dos autos, o arguido, ora recorrente requereu a realização dessa perícia neurológica e psiquiátrica, quer aquando da apresentação do requerimento inicial, quer no momento em que teve conhecimento da junção ao autos do Relatório Médico subscrito pelo clinico do Estabelecimento Prisional ... no exercício de um direito que lhe advém do próprio estatuto consignado na lei adjectiva penal, nos termos do artigo 61º, nº 1, alínea g), direito esse que prespassa, igualmente como uma das garantias vigentes no artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa.

Ademais tal atitude processual redunda numa violação grosseira do artigo 20º da nossa Lei Fundamental, do artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem tal conta do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, posto que coloca em crise o principio do processo equitativo.

O principio do processo equitativo, que é uma das marcas do estado de Direito, e acha consagração do artigo 20º, nº 4 da nossa Lei Fundamental vem estabelecer um limite na escolha da concreta estruturação do processo.

J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[8] salientam que “o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva.”

Na densificação do conceito de processo justo a jurisprudência do Tribunal Constitucional também utilizando os parâmetros vertidos na Lei Fundamental, nomeadamente quanto à organização e disciplina do processo, têm vindo a pronunciar-se, de modo profícuo acerca das diversas dimensões deste conceito.

O acórdão nº 260/17 do Tribunal Constitucional[9] é escorreito quando à dimensão do processo equitativo a que, ora nos atemos.

Fica ali condignado que “a garantia do processo equitativo comporta também uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os actos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual. Com efeito, o processo surge como imperativo segurança jurídica ligado a duas exigências: a determinabilidade da lei e da previsibilidade do direito. O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequencia dos actos que formam o processo esteja pré-destinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com, previsibilidade, que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar com certo tipo de decisão final. Os dois elementos são indissociáveis: a previsibilidade das consequências da pratica dos actos processuais pressupõe que as normas processuais sejam claras e suficientemente densas, atributos sem os quais ficará violado o principio da segurança jurídica.

Assim, um processo equitativo é também um processo previsível. Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de actos a praticar, bem como as formalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da acção, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porem, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais.

É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas acções, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir.”

Já no que atende ao artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o enunciado do acesso ao direito e à justiça, destina-se a assegurar aos indivíduos, independentemente da jurisdição à qual estejam submetidos, os instrumentos necessários para a defesa dos seus interesses contra ameaças, abusos e desvios de poder, bem como a reparação ou compensação dos danos suportados.[10]

Já numa conclusão assertiva, após longa análise da jurisprudência da TEDH, Paulo de Sousa Mendes[11], alude a que para aquela instância “o principio do processo equitativo espraia-se por múltiplas dimensões, a saber e entre outras: o acesso à justiça, a assistência jurídica e judiciária em matérias penais e cíveis, a presunção de inocência, o direito ao silêncio, a celeridade processual, a lealdade processual, a igualdade de armas, a informação ampla acerca da acusação e das provas, a tradução das peças processuais para a língua do arguido e o direito a um interprete, o direito ao confronto e ao contraditório, o juiz natural, a presença em tribunal do arguido, as proibições de prova, a independência e a imparcialidade dos tribunais, a publicidade do julgamento, a taxa de justiça, o tribunal de júri, a fundamentação dos despachos e sentenças judiciais, o direito ao recurso, etc.”

Imperativo este, ainda, consagrado a quem detém cidadania europeia, por virtude do consagrado no já aludido artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, posto que como alinha Maria José Rangel de Mesquita[12] onde o “direito a um tribunal imparcial (right to a fair trial ou droit à um tribunal impartial) na versão oficial da Carta em língua inglesa e francesa), consagrado no 2º paragrafo, primeira parte do artigo 47º, por um lado, baseia-se no teor do nº 1 do artigo 6º da CEDH e, por outro, reflecte a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual o direito a um processo equitativo enquanto principio fundamental do direito da União deve ser respeitado em todos os processos, incluindo de caracter administrativo.”

Vale tudo por dizer, assim, que a omissão de tal diligência redunda em invalidade.

Importa, agora, que seja tomada posição quanto à natureza de tal invalidade.

Repassa do que fica assente no artigo 118º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe de “Principio da legalidade”, que:

1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.

3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.

Razão por que, vista a plêiade de invalidades a que dá corpo a nossa lei adjectiva penal, alinhamos a nossa posição por Manuel Maia Gonçalves[13] que peremptoriamente afirma que “em matéria de nulidades o Código apresentou inovações de relevo relativamente ao direito anterior, estabelecendo, antes de mais, através do principio da legalidade que neste artigo encabeça o titulo das nulidades, que só há nulidade dos actos quando for expressamente cominado por lei”, ou de outro modo dizendo “entre um sistema de numerus apertus, que priviligia a justiça processual em detrimento da justiça material (ainda que isso possa pôr em causa o resultado final, o processo tem que ser imaculado) e um sistema de numerus clausus que, inversamente, privilegia a estabilidade e a bondade do veredicto final (dentro de certos limites, é claro, ele aceita alguns desvios na metodologia que a ele conduziu), o legislador optou pelo segundo (principio da legalidade ou da tipicidade das nulidades)” vindo, pois, a concluir-se que “se as nulidades estão sujeitas a um rigoroso regime de numerus clausus, já para as irregularidades vale o regime oposto (numerus apertus)”[14]

Vale tudo por dizer, consequentemente, que escamoteamos estar perante a existência de nulidade, quer insanável e de conhecimento oficioso ou sanável e dependente de arguição, posto que na panóplia legal não se decifra qualquer regra que comine como nulidade a omissão de diligencia necessária; antes sim, perante um acto irregular, nos termos consignados no artigo 123º, nº 2 do Código do Processo Penal.

Previne o artigo 123º do Código do Processo Penal, sob a epígrafe de “Irregularidades”, que

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

Com efeito a Meritíssima Juiz “a quo” ao omitir a realização da perícia neurológica e psiquiátrica cometeu uma irregularidade, acto irregular esse que tem a virtualidade de influir na decisão da causa, omissão essa que, como já demos conta, redunda, também, na violação das garantias do arguido, plasmadas no artigo 32º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa bem como numa violação, e grosseira, do processo equitativo a que dá corpo o artigo 20º da Constituição Portuguesa, do artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem tal como do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Com efeito sem que seja praticado tal acto nenhuma decisão jurisdicional acerca do pedido de modificação da execução da pena de prisão poderá ser firmada com correcção e respeito à verdade material, tendo em consideração o objecto do processo, encontrando-se, consequentemente, este Tribunal ad quem impossibilitado de se pronunciar acerca das outras questões apresentadas na lide recursal.

Destarte é imperativo ordenar a reparação da falada irregularidade, ficando prejudicado o conhecimento das outras questões trazidas na lide recursal.

Vale tudo por dizer, assim, que se ordena a reparação de tal irregularidade, declarando a invalidade, ainda, de todos os actos subsequentes à junção dos documentos na sequência do cumprimento do artigo 217º, nº 2, alínea a) e nº 3, alíneas a), b) e c) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

           

                                                           *

DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, julgam inválida a decisão recorrida por ocorrência de irregularidade a que alude o artigo 123º, nº 2 do Código do Processo Penal e, em consequência, ordenam a remessa dos autos à 1ª instância, com vista à realização de perícia medica neurológica e psiquiátrica ao arguido e demais diligências que se afigurem úteis e necessárias com vista à realização dos ulteriores actos processuais e prolação de decisão.

Sem custas.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.


                                        Coimbra, 8 de Janeiro de 2025                                                             


                                       Maria José dos Santos de Matos

                                       Maria de Fátima Calvo

                                        Helena Lamas


                                                      


[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Neste sentido se pronunciou o Tribunal de Execução das Penas do Porto no Processo nº 462/17.7TXPRT-A, cujo teor não sabemos se foi publicado.
[4] A Flexibilização da prisão: Da reclusão à liberdade. Coimbra, Almedina, 2018.
[5] Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, 2002, Verbo, pág. 197
[6] Direito Processual Penal I, 193.
[7] Sumários de Processo Criminal, 43 e 44 e 51 e segs.
[8] Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, página 415.
[9] Acórdão contemplado no e-book consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/reserved/ebook_html5/tc_acordaos_0099/256/

[10] Catarina Santos Botelho, A Tutela Directa dos Direitos Fundamentais – Avanços e recuos na dinâmica garantística das justiças constitucional, administrativa e internacional. Coimbra, Almedina, 2010, p. 316
[11] Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, Vol. II, página 1058 e seguintes.
[12] Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, coordenada por Alessandra Silveira e Mariana Canotilho, Almedina, página 542.
[13] Código de Processo Penal Anotado, 16ª edição, Almedina, 301
[14] Comentário Judiciario do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 1210, 1211.