Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA TRANSFONTEIRIÇA OU INTERNACIONAL REGULAMENTO COMUNITÁRIO COMPETÊNCIA INTERNACIONAL | ||
Data do Acordão: | 03/17/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 235, 236, 294, 295 CIRE, REGULAMENTO (CE) N.º 1346/2000, DE DE 29 DE MAIO DE 2000, REGULAMENTO (UE) Nº 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 20 DE MAIO DE 2015 | ||
Sumário: | 1 – O “processo particular de insolvência”, previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, tem aplicação apenas e só quando se está perante uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro. 2 – E pressupõe a competência internacional, nos termos do art. 3.º/1 do Regulamento 2015/848, de Tribunais de outro Estado-Membro para o processo principal de insolvência. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – Relatório Tendo sido requerida a insolvência de G (…), pelo credor A (…) veio o devedor, no prazo de 10 dias referido no art. 236.º/1 do CIRE, requerer a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE. Declarado insolvente em 13/07/2018 e prosseguindo os autos, tendo designadamente em vista a requerida exoneração do passivo restante, o Exmo. Juiz considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar de tal pretensão dos insolventes e, entre outras coisas, determinou, no “despacho inicial”, proferido em 07/10/2019, que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível se considere cedido ao fiduciário nomeado; considerando-se rendimento disponível apenas o que exceder, em cada momento, o montante equivalente a 2,5 SMN, sucessivamente vigentes em Portugal.
Despacho este de que a credora P (…) SA apresenta o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outro que “indefira o pedido formulado pelo devedor, quanto à exoneração do passivo restante, por manifesta impossibilidade legal (…)”. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: “ (…) I – No despacho/sentença de que se recorre foi promovido o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente; II – Com base no disposto na al. c), do art. 295.º do CIRE, tal pedido do insolvente deveria ter sido indeferido. III – Do teor de tal despacho resulta que: “Da sentença de declaração de insolvência e de outros elementos constantes dos autos resulta a seguinte factualidade: 1. O Requerente nasceu no dia 28/12/1950, encontrando-se no estado de divorciado de M (…). 2. O Requerente aufere da Segurança Social portuguesa pensão de velhice, que no corrente ano de 2019 tem o valor mensal de € 488,26, e aufere de organismo social francês pensão de reforma no valor mensal de € 1.015,75. 3. O Requerente reside habitualmente em França. 4. Em tal País, o Requerente tomou de arrendamento, com efeitos a partir de 24/01/2019, um apartamento T1, pagando de renda mensal o valor de € 495,00, acrescido do montante de € 60,00 a título de provisão para despesas. 5. O Requerente alega que contribui para o sustento e educação das suas duas filhas estudantes, atualmente residentes com a respetiva progenitora em Portugal. 6. Do certificado de registo criminal atualizado relativo ao insolvente, junto aos autos a fls. 275 vº, nada consta.” IV – De tal factualidade provada, com especial enfâse para o disposto nos n.ºs 3 e 4 acima reproduzidos, resulta que o insolvente tem o seu domicílio em França, pelo que de harmonia com o disposto no art. 294.º do CIRE, estamos perante um processo particular de insolvência. V – Considerando que o insolvente não se encontra a residir em Portugal, o presente processo enquadrar-se-ia no regime do processo particular de insolvência, regime este que está sujeito a determinadas especificidades, sendo uma delas o facto de não lhe serem aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante, conforme o disposto no art. 294º, nº 1 e 295, al. c) do CIRE. VI – A especificidade deste regime determina, na alínea c) do art. 295.º do CIRE, que não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante. VII – Desta forma, o pedido formulado pelo devedor, quanto à exoneração do passivo restante, não poderia ser aceite por manifesta impossibilidade legal.
Não foi apresentada qualquer resposta. Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação A – Os factos pertinentes são os que já emergem do relatório precedente, designadamente, o que se deu como provado na decisão recorrida (transcrito na conclusão III da apelante) e, ainda: - que o presente processo de insolvência se iniciou em 14/08/2017; - que o devedor foi identificado como residindo na rua (…) Pombal, onde, aliás, nos termos do art. 36.º/c) do CIRE, lhe foi fixada residência; - que todos os credores estão localizados em Portugal; e - que não há quaisquer bens localizados no estrangeiro. * B – Quanto ao Direito: O presente recurso decorre, com todo o respeito, dum equívoco da apelante na compreensão do que está previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE. Tais 3 artigos (294.º a 296.º do CIRE) têm (podem ter) aplicação apenas e só quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro; e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal”. Situação esta (de insolvência transfronteiriça ou internacional) em que sempre se confrontaram duas teses – a da universalidade/unidade, que grosso modo sustenta que os efeitos do processo não se limitam ao território onde a insolvência é declarada e que haverá um único processo de insolvência; e a da territorialidade/pluralidade, que sustenta que os efeitos da insolvência estão circunscritos ao território onde a insolvência é declarada, podendo haver uma pluralidade de processos de insolvência – sendo há muito dominante (pelo menos nos Estados-Membros da União da Europeia) a tese da universalidade/unidade, tese esta oportunamente plasmada em instrumentos comunitários, como foi o caso do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/05/2000, de 29 de Maio, e como é o caso do atualmente vigente Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015 (entrado em vigor, em Portugal, em 26/06/2017 – cfr. art. 92.º de tal Regulamento e, por conseguinte, ao caso aplicável). Porém, sem prejuízo do princípio da universalidade/unidade[1] constituir a matriz de ambos os Regulamentos (quer do 1346/2000, quer do atualmente vigente 2015/848), não está consagrado um “modelo puro”, isto é, tal princípio matricial é mitigado pelos princípios da territorialidade/pluralidade. Razão pela qual os Regulamentos em questão, procurando uniformizar o DIP da Insolvência, estabelecem, entre outras, regras respeitantes: - à atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros; - à determinação da lei aplicável; - ao reconhecimento de decisões estrangeiras; - à articulação entre um processo de insolvência principal e um processo de insolvência secundário. Dizendo-se no Regulamento de 2015 (vigente e aplicável): Artigo 3.ª Competência internacional 1.Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros. (…) No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência. 2.No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território. 3.Se for aberto um processo de insolvência nos termos do n.º1, qualquer processo aberto posteriormente nos termos do n.º 2 constitui um processo secundário de insolvência. 4.Um processo territorial de insolvência referido no n.o 2 só pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência nos termos do n.o 1, caso: a) Não seja possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.o 1 em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor; ou b) A abertura do processo territorial de insolvência seja requerida por: i) um credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração, de um estabelecimento situado no território do Estado-Membro em que é requerida a abertura do processo territorial, ii) uma autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está situado, tenha o direito de requerer a abertura de um processo de insolvência. Quando é aberto um processo principal de insolvência, o processo territorial de insolvência passa a ser um processo secundário de insolvência. Dizendo assim respeito – em absoluta e indispensável conformidade e concordância com o direito comunitário vigente – os 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE ao tal processo limitado/secundário[2] (referido nos n.º 2 e 3 do art. 3.º acabados de transcrever) que o matricial princípio da universalidade/unidade consentiu aos princípios da territorialidade/pluralidade. O que significa que o “processo particular de insolvência”, previsto 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, pressupõe a competência internacional, nos termos do art. 3.º/1 do Regulamento, de Tribunais de outro Estado-Membro para o processo principal de insolvência, ou seja, não é por o devedor, a dado passo, residir no estrangeiro, que são aplicáveis os 3 referidos artigos. O que – competência internacional de Tribunais de outro Estado-Membro – não pode ser afirmado no caso, desde logo por não estarmos sequer perante uma situação que tenha ligações com mais do que um Estado-Membro (além de Portugal), designadamente por o devedor ter bens ou credores localizados noutro Estado-Membro. Ademais, no centro da atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros, está o conceito do “Centro de Interesses Principais do Devedor (CIPD)”, sendo que, como se referiu, “no caso de pessoa singular (que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente), presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual”, sucedendo que o aqui devedor/insolvente foi, no início do presente processo, identificado como residindo em Portugal (na rua (…) Pombal), o que a apelante não coloca sequer em crise, dizendo tão só e apenas que o devedor agora reside (por tal constar da decisão sob recurso) em França[3]; ou seja, no início do processo – momento relevante para a fixação da competência – caso porventura estivéssemos perante uma insolvência transfronteiriça, os tribunais portugueses até seriam internacionalmente competentes, nos termos da referida presunção do art. 3.º/1 do Regulamento de 2015, para o processo principal de insolvência, devendo com tal (como processo principal) ser considerado este processo de insolvência[4]. Em síntese, explicado o exato sentido do que está previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, nada é verdadeiramente dito ou invocado que permita qualificar os presentes autos como um “processo particular/territorial/limitado/secundário de insolvência”, não lhe sendo assim aplicável o previsto em qualquer um dos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, mais exatamente, ao contrário do que a apelante pretende, o disposto no art. 295.º/c) do CIRE (segundo o qual, ao processo limitado, “não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante”). É quanto basta para concluir pela improcedência da apelação. * III - Decisão Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela apelante.
Coimbra, 03/03/2020
Barateiro Martins ( Relator ) Arlindo Oliveira Emídio Santos
[1] Segundo o qual, repete-se, o “princípio da unidade” diz que haverá um único processo de insolvência em curso no Estado-Membro onde se situa o centro principal de interesses do devedor (CIPD); e o “princípio da universalidade” diz que o processo de insolvência aberto no Estado-Membro onde se situa o CIPD abrangerá todo o património do devedor e não apenas aquele que se situe no Estado do Foro, bem como todos os credores do devedor, sejam eles do foro ou estrangeiros. [2] Que o CIRE no art. 294.º designa de “processo particular”, mas que no art. 296.º também designa de “processo secundário”. [4] Aliás, hoje, a partir da entrada em vigor do Regulamento de 2015, quando se está perante uma insolvência transfronteiriça, deve o órgão jurisdicional onde é apresentado o pedido de abertura de um processo de insolvência apreciar oficiosamente (cfr. art. 4.º/1 do Regulamento) a sua competência internacional, devendo indicar os fundamentos da sua competência por referência aos n.º 1 ou n.º 2 do art. 3.º do Regulamento. |