Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2033/24.2T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: VENDA EM EXECUÇÃO
BEM ONERADO COM HIPOTECA
CADUCIDADE DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – SOURE – JUÍZO DE EXECUÇÃO – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 686.º, N.º 1 E 824.º, N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – De harmonia com o preceituado no art. 824º, nº2, do Código Civil, a venda em execução implica a caducidade dos direitos de reais de garantia que incidem sobre o respectivo bem.

II – A venda de um imóvel em processo de execução fiscal determina, face à norma substantiva atrás aludida, a extinção de uma hipoteca que onerava esse bem.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

Nos autos de execução que A..., S.A. move contra AA, BB, CC, DD, EE e FF

vieram os executados EE e DD deduzir oposição à penhora do imóvel que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...24, alegando, para o efeito, em resumo, que o bem penhorado se encontra na sua titularidade e não responde pela dívida exequenda, por lhes ter sido doado por FF, a qual adquiriu tal imóvel no processo de execução fiscal nº ...66 em que foi executada GG.


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A presente execução foi deduzida com base num documento   que titula um empréstimo contraído pelos executados AA e GG junto do Banco 1..., S.A., os quais constituíram uma hipoteca sobre o referido imóvel, nos termos melhor discriminados no requerimento executivo, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

O Banco 1..., S.A. veio a ser integrado no Banco 2..., S.A. [1], tendo a exequente adquirido por cessão os créditos que decorriam do mútuo supra mencionado.


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Resulta da consulta ao registo predial efectuada pelo Sr. Agente de Execução, cujo suporte documental foi junto aos autos em 17/9/2024, que:

- O imóvel supra identificado, inicialmente propriedade de GG, foi adquirido por FF no âmbito do processo de execução fiscal nº ...66, tendo o registo de aquisição sido lavrado através da AP. ...53 de 17 de Maio de 2017;

- Em 22 de Maio de 2017 (AP. nº157) procedeu-se ao cancelamento da hipoteca voluntária atrás mencionada relativamente à nua propriedade, que pertencia a GG.

- Através da Ap. ...30, de 13 de Junho de 2017, foi inscrita a favor dos opoentes a aquisição do referido imóvel, decorrente de doação efectuada por FF.


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A exequente contestou, sustentando que o imóvel em causa se encontra onerado com uma hipoteca a seu favor, tendo os executados sido chamados aos autos na qualidade de adquirentes do mesmo.

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Em 2/6/2025, a 1ª instância proferiu a seguinte decisão:                                                                                                                                                                                “SANEADOR-SENTENÇA

Inexistem excepções dilatórias ou nulidades que sejam de conhecimento oficioso ou que tenham sido arguidas pelas Partes [art.º 595.º/1/a) CPC].


§

O actual estado dos autos permite o conhecimento total do mérito da causa, pelo que se passará a proferir decisão a conhecer o mérito da Oposição à Penhora (OP).

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Prevê o Código de Processo Civil:

Art.º 784.º (fundamentos da oposição):

“1 - Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:

a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;

b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;

c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.

2 - Quando a oposição se funde na existência de patrimónios separados, deve o executado indicar logo os bens, integrados no património autónomo que responde pela dívida exequenda, que tenha em seu poder e estejam sujeitos à penhora.”.


***

No caso concreto.

O Prédio n.º ...24 – ... é compropriedade [Ap. ...30 de 2017/06/13 - Aquisição] dos Executados DD e EE, os quais adquiririam tal direito por doação de FF.

A FF, por sua vez, tinha adquirido a propriedade do prédio [AP. ...53 de 2017/05/18 - Aquisição] por compra em Processo de Execução Fiscal.

A Exequente invoca no Requerimento Executivo (RE) que é titular de 1 Hipoteca sobre o prédio [AP....57 de 2013/07/17 - Hipoteca Voluntária] que é oponível aos Executados.

Porém, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, assim não é.

Com efeito, o prédio foi objecto de venda executiva no âmbito de Processo de Execução Fiscal em 2017 e não existe notícia que a credora hipotecária tenha reclamado o seu crédito nessa execução.

Deste modo, por força do disposto no art.º 824.º CC, o prédio foi transmitido livre da Hipoteca que beneficiava a Exequente.

Em conclusão, a Penhora [AP....02 de 2024/09/17 - Penhora] realizada nesta Execução incidiu sobre um prédio que não é propriedade da Devedora e que não responde pelo pagamento da dívida exequenda, pois já se extinguiu com a venda executiva a Hipoteca de que beneficiava a Exequente.


§

DECISÃO:

Pelo exposto, o Tribunal decide:

1) Julgar procedente a deduzida Oposição à Penhora.

2) Determinar o levantamento e o cancelamento do registo predial da Penhora [AP....02 de 2024/09/17 - Penhora] realizada nesta Acção Executiva sobre o Prédio n.º ...24 – ....

3) Fixar o valor da Oposição à Penhora em €.42.762,63.

4) Condenar a Exequente no pagamento das custas da Oposição à Penhora.


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Registe e notifique.

Notifique o(a) Sr.(a) AE.

Após trânsito em julgado, notifique o(a) Sr.(a) AE para que dê cumprimento à Decisão.”


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Não se conformando com a decisão proferida, a exequente interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:    

Entendo o Tribunal a quo que “A Exequente invoca no Requerimento Executivo (RE) que é titular de 1 Hipoteca sobre o prédio [AP....57 de 2013/07/17 - Hipoteca Voluntária] que é oponível aos Executados.

Porém, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, assim não é.

Com efeito, o prédio foi objecto de venda executiva no âmbito de Processo de Execução Fiscal em 2017 e não existe notícia que a credora hipotecária tenha reclamado o seu crédito nessa execução.

Deste modo, por força do disposto no art.º 824.º CC, o prédio foi transmitido livre da Hipoteca que beneficiava a Exequente.

Em conclusão, a Penhora [AP....02 de 2024/09/17 - Penhora] realizada nesta Execução incidiu sobre um prédio que não é propriedade da Devedora e que não responde pelo pagamento da dívida exequenda, pois já se extinguiu com a venda executiva a Hipoteca de que beneficiava a Exequente.”

Conforme resulta dos autos o imóvel objecto de penhora e de oposição - prédio urbano sito na Rua ..., em ..., registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº...24, inscrito na matriz sob o art. ...49 urbano – foi vendida a nua propriedade em sede de execução fiscal no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º º ...66, que correu os seus termos no Serviço de Finanças ..., contudo tal venda não corresponde a totalidade do imóvel, apenas à nua propriedade.

- Resulta da Certidão emitida pelo respectivo Serviço de Finanças que a venda corresponde à nua propriedade da executada GG, ou seja, a totalidade da propriedade do imóvel não foi vendida.

- Em sede de certidão permanente do imóvel e, na sequência da referida venda alegada pelo Embargante, o que foi cancelado relativamente à nossa hipoteca - AP....57 de 2013/07/17 – foi o cancelamento parcial da hipoteca – “Cancelada quanto à nua propriedade, que pertencia a GG”.

- Deste modo, mantém-se em vigor parte da hipoteca, que não foi paga, persistindo a sua manutenção activa.

- O Banco Originador não emitiu qualquer cancelamento ou distrate referente à parte da hipoteca em vigor, uma vez que o que ocorreu com a venda da nua propriedade em sede de execução fiscal foi um cancelamento parcial e não da totalidade da hipoteca, persistindo ainda valores a liquidar.

- O Tribunal a quo entendeu que “Deste modo, por força do disposto no art.º 824.º CC, o prédio foi transmitido livre da Hipoteca que beneficiava a Exequente”.

- Ora, salvo melhor entendimento e, na sequência do ora exposto pela Recorrente, não foi isso que sucedeu, estamos perante um cancelamento parcial da hipoteca, pelo que o pagamento da dívida exequenda persiste.

- A compradora - EE – adquiriu a nua propriedade do imóvel, que se encontra onerado com outros encargos e, nessa senda foi chamada aos autos, uma vez que não detém a propriedade plena do referido imóvel.

- Mais, além disso as restantes hipotecas registadas também foram parcialmente canceladas, mas não na sua plenitude, existindo valores por liquidar em relação às mesmas, tendo os restantes credores reclamar os seus créditos nos presentes autos.

- Do mesmo modo, a ora Recorrente não entende a seguinte pressuposto para a decisão proferida: “Em conclusão, a Penhora [AP....02 de 2024/09/17 - Penhora] realizada nesta Execução incidiu sobre um prédio que não é propriedade da Devedora e que não responde pelo pagamento da dívida exequenda, pois já se extinguiu com a venda executiva a Hipoteca de que beneficiava a Exequente.”

- Efectivamente a Devedora não é proprietária, é certo, mas a verdade é que a devedora GG, onerou todos o imóvel com reserva de doação e direito de uso e habitação, sem conhecimento e autorização do banco.

- Tal acto foi praticado em clara infração da cláusula quinta, da secção II, das condições gerais do documento complementar da escritura de mútuo que refere: “O banco poderá considerar antecipadamente vencidas e exigíveis todas as obrigações emergentes do presente contrato, exigir o seu cumprimento imediato e promover a execução das garantias se b) os imóveis ora hipotecado vierem a ser alienados, permutados, onerados, arrendados ocupados total ou parcialmente, sem autorização expressa do Banco.”

- Em 13/06/2017 a Executada GG fez uma doação do imóvel melhor identificado na alínea a) do artigo 12 – casa para habitação descrita na CRP ... sob o n.º ...19, (Ap. ...30 de 2017/06/13).

- Aos seus filhos menores, DD e EE, constituindo o direito de uso e habitação para a sua mãe FF.

- Face ao exposto, tanto a devedora original como os restantes titulares inscritos em sede de registo, foram chamados à execução, uma vez que se o titular do bem hipotecado for um terceiro em relação à dívida exequenda, a execução, em relação a eles, esgota-se com a execução do bem hipotecado até ao valor assegurado no registo da hipoteca e, havendo ainda crédito exequendo por satisfazer, só pode prosseguir quanto a ele contra os seus devedores.

- A penhora do imóvel nos presentes autos foi efectuada em concordância com a lei, por incindir sobre imóvel que garante um crédito que até à presente data não foi pago na totalidade, independentemente de quem é proprietário do bem.

- No caso em apreço, os restantes embargantes foram chamados a intervir nos autos na sequência de aquisição por doação, encontrando-se este imóvel onerado com hipoteca a favor da exequente e de acordo com o disposto no art. 54º, nº 2, do Código de Processo Civil (vide ainda a regra prevista no art. 818º do Código Civil), que admite expressamente que a mesma possa ser instaurada contra os adquirentes do imóvel dado em garantia real (no caso, hipoteca), quando o exequente pretenda fazer valer a garantia.

- Os embargantes foram chamados à presente execução na qualidade de adquirentes do imóvel, independente de quem tenha doado o imóvel a quem, uma vez que a hipoteca subsiste, bem como a dívida.

- Sucede é que relativamente aos embargantes, enquanto meros adquirentes do imóvel penhorado na execução e dado em hipoteca à exequente, apenas pode responder nessa execução com base nesse mesmo imóvel. Ou seja, a sua responsabilidade executiva limita-se a esse imóvel e nada mais, e apenas relativamente às garantias inerentes à hipoteca em questão que continua em vigor ainda que com o cancelamento parcial.

- O seu chamamento aos autos, funda-se na natureza jurídica da hipoteca, prevista no artigo 686.º do Código Civil como uma garantia especial das obrigações.

- Trata-se de uma garantia caracterizada pela natureza dos bens sobre os quais pode incidir (artigo 688.º CC), e pela obrigatoriedade do registo, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (artigos 687.º CC), sendo um direito acessório do direito de crédito que garante, daí que não possa constituir-se ou subsistir sem a obrigação, e extinguindo-se pelas causas previstas no artigo 730.º do CC.

- Deste modo e, uma vez aqui chegados, verifica-se, de acordo com os preceitos legais invocados que o Recorrente tem título executivo válido relativamente aos embargantes, sendo admissível a penhora do imóvel em causa para satisfação do crédito exequendo, pelo que não existe fundamento legal à oposição à penhora apresentada.

- Face ao exposto, a Sentença de que se recorre ser revogada, devendo ser proferida nova sentença, devendo ser determinada a manutenção da penhora registada e o prosseguimento dos autos nos termos referidos no presente recurso.”.


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Os executados contra-alegaram, pronunciando-se no sentido da manutenção da sentença recorrida.

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Questão objecto do recurso: subsistência da hipoteca a que a exequente faz referência nas alegações.

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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Fundamentação de facto.

Com interesse para a apreciação do presente recurso, importar considerar a tramitação processual e a factualidade que vem descrita no relatório antecedente.


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2.2. Enquadramento jurídico.

Como é sabido, a hipoteca constitui um direito real de garantia [2] que, face ao disposto no art. 824º, nº2, do Código Civil, caduca com a venda do bem sobre o qual o mesmo (direito) incide [3].

No caso vertente, como salientou o Tribunal recorrido, o imóvel penhorado a que se reporta a presente oposição foi vendido no âmbito de um processo de execução fiscal, o que significa, indiscutivelmente, que a hipoteca em causa se extinguiu [4].

Não tendo a dívida exequenda sido contraída pelos opoentes e encontrando-se o imóvel em causa na sua titularidade – em virtude da doação atrás mencionada –, é manifesto que o referido bem não deveria ter sido penhorado, atento o preceituado no art. 735º, nº1, do C.P.C [5]., e nos arts. 817º [6] e 818º [7] do Código Civil.

Em face do exposto, sendo absolutamente evidente que o recurso não merece provimento, deverá manter-se a decisão recorrida, com as consequências legais.


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III – DECISÃO.

Nestes termos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


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Havendo indícios de litigância de má fé por parte da exequente/apelante, atento o disposto no art. 542º, nº2, alínea a), do C.P.C., notifique as partes para se pronunciarem sobre essa matéria.         

Coimbra, 11 de Novembro de 2025

(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Emília Botelho Vaz

(1ª adjunta)

Cristina Neves

(2ª adjunta)



[1] Cf. informação disponibilizada em https://www.bportugal.pt/comunicado/comunicado-do-banco-de-portugal-sobre-venda-do-Banco 1....
[2] Cf. art. 686º, nº1, do Código Civil, cujo teor é o seguinte. “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.”.
[3] Art. 824º, nº2, do Código Civil: “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.” – o sublinhado é nosso.
[4] O art. 260º do Código de Procedimento e Processo Tributário dispõe que “O levantamento da penhora e o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil, serão ordenados pelo órgão da execução fiscal se anteriormente não tiverem sido requeridos pelo adquirente dos bens”.
[5] Art. 735º, nº1, do C.P.C.: “Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.”.
[6] Art. 817º do Código Civil: “Não sendo a obrigação voluntàriamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo.”.
[7] Art. 818º do Código Civil:O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado.”.