Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/16.0PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
PENA PRINCIPAL
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 03/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL – CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 43.º, 47.º E 77.º DO CP
Sumário: Não havendo nenhuma norma no CP que regule os termos em que pode ser feita a punição do concurso entre pena de multa de substituição e pena de multa principal, que são penas de espécie diferente, a solução só pode buscar-se no princípio enunciado no art.77.º, n.º 3, do CP, e concluir que aquelas penas devem cumular-se materialmente.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

Pela Comarca de Viseu – Instância Local de Lamego, Secção Criminal – J 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo sumário, a arguida

A.... , nascida em 24 de março de 1979, filha de (...) e de (...) , natural da Roménia, e residente na Rua (...) andar, Vila Nova de Famalicão

imputando-se-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, ambos do Código Penal, e um crime de injúria agravada, previsto e punível pelos artigos 181.º, n.º1 e 184.º, ambos do Código Penal, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 15 de fevereiro de 2016, decidiu julgar a acusação integralmente procedente por provada e consequentemente:

a) Condenar a arguida A... pela prática, e autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo art.143.º, n.º1, e 145.º, n.º1, al. a), e n.º2, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão, substituída por 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros);

b) Condenar a arguida A... pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelo art.181.º, n.º1, e 184.º, ambos do Código Penal, com referência ao art.132º, nº2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa á taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

c) Em cúmulo jurídico condeno a arguida A... na pena única de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 5,00Euros (cinco euros), o que perfaz o montante de €400,00 (quatrocentos euros).

Não se conformando com a sentença proferida veio da mesma interpor recurso o Ministério Público, concluindo do modo seguinte:

1. O presente recurso prende-se com o facto de a sentença recorrida ter efetuado um cúmulo jurídico de penas - como decorre da alínea c) do dispositivo da sentença recorrida - que não se mostra permitido por lei atenta a diferente natureza e espécie das penas aplicadas a cada um dos crimes em causa, como, aliás, resulta do disposto no art.77.º, n.º3, do Código Penal.

2. Com efeito, tendo sido aplicada à arguida uma pena de 2 (dois) meses de prisão, substituída por 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros (cinco euros) - pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada -, e uma pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de 5,00Euros (cinco euros) - pela prática do crime de injúria agravada -, não poderia proceder-se a um qualquer cúmulo jurídico de penas mas sim e tão só ao cúmulo material das mesmas.

3. Isto porque só pode haver cúmulo jurídico de penas entre penas da mesma natureza e espécie, conforme decorre expressamente do estatuído no citado art.77º, nº3, do Código Penal.

4. Ora, uma vez que no caso dos autos a pena principal aplicada ao crime de ofensa à integridade física qualificada é uma pena de prisão, sendo essa substituída por uma pena de multa, e que a pena principal aplicada ao crime de injúria agravada é uma pena de multa não pode proceder-se a cúmulo jurídico de penas, sendo as mesmas cumuladas apenas materialmente (nesse sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 12/12/2006, proferido no processo nº5023/2006-5, o Acórdão da Relação do Porto, de 12/03/2014, proferido no processo nº955/06.1TAPLG-A.P1, e o Acórdão do STJ de 27/04/2011, proferido no processo nº2/03.5GBSJM.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

5. Acresce, como argumento no sentido que defendemos, e para além do que resulta expressamente do citado art.77º, nº3, do Código Penal, a circunstância de serem diferentes as consequências do incumprimento da pena de multa enquanto pena principal e da pena de multa enquanto pena substitutiva da pena de prisão.

6. Efectivamente, enquanto o incumprimento da pena substitutiva da multa (multa como pena de substituição) dá azo ao cumprimento por inteiro da pena de prisão (pena principal), nos termos do art.43º, nº2, do Código Penal, o incumprimento da pena principal de multa dá lugar à substituição por pena de prisão reduzida a 2/3, nos termos do art.49º, nº1, do Código Penal.

7. Ora, tais diferentes consequências sempre teriam de impedir a realização do referido cúmulo jurídico e permitem uma melhor compreensão da razão de ser do que se mostra estatuído no citado nº3 do art.77º.

8. Face a tudo quanto ficou exposto, ao efectuar o referido cúmulo jurídico de penas a sentença recorrida violou o disposto no art.77º, nº3, do Código Penal, termos em que não pode a mesma ser mantida nessa parte.

Termos em que, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que procede à realização de cúmulo jurídico de penas, assim se fazendo Justiça.

            A arguida não respondeu ao recurso.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder, devendo a sentença ser alterada em conformidade.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.

Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não houve resposta.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

   Fundamentação

            A matéria de facto apurada constante da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados                                 

1. No dia 14 de fevereiro de 2016, pelas 16h40m, o agente da PSP, B... , quando se se encontrava de serviço ao carro patrulha adstrito ao Departamento das Caldas da Rainha, foi-lhe determinado superiormente para se deslocar à Rua Engenheiro Duarte Pacheco, n.º 15, Caldas da Rainha, por motivos de furto.

2. Já nesse local foi contactada e questionada pelo agente da PSP, B... , a arguida A... , sobre a situação de furto que a envolvia, tendo esta dito que nada havia furtado e que se envolveu em agressões com os proprietários do estabelecimento por estes a terem acusado de ter furtado uns óculos de sol.

3. Questionando o mesmo agente da PSP a arguida sobre se continha consigo algum bem pertença do estabelecimento, bem como algo ilícito, esta recusou-se a cooperar com a PSP, dizendo que era preciso um mandado para verificar se tinha alguma coisa com ela recusando-se também a fornecer a sua identificação quando solicitada. 

4. Tendo a arguida sido informada que teria de ser conduzida à Esquadra a fim de ser identificada, ao ser conduzida ao veículo policial proferiu as seguintes expressões: “ És um grande merdas, porco, polícia de merda e homofóbico”, expressões que repetiu várias vezes, mesmo após ser advertida que estava a incorrer num crime e que poderia ser detida.

5. A arguida ignorou o facto e voltando-se para o agente da PSP B... , já junto à viatura, deferiu-lhe duas palmadas no peito, com violência, pelo que lhe foi dada voz de detenção.

6. Em consequência da agressão perpetrada pela arguida, o ofendido sofreu dores, mas não necessitou de assistência médica.

7. A arguida quis agir como agiu, querendo dirigir ao agente da PSP B... as expressões injuriosas constantes do auto de notícia e molestar o corpo do mesmo, como fez, apesar de saber que o mesmo se encontrava no exercício das suas funções e devidamente uniformizado, com o propósito, conseguido, de atingir a honra, a consideração pessoal e a honestidade profissional daquele e a sua saúde.

8. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.

9. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.

            Factos não provados

            Não há factos dados como não provados.


*

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:

- se a sentença recorrida violou o disposto no art.77.º, n.º3, do Código Penal, ao proceder ao cúmulo jurídico de uma multa aplicada em substituição de pena de prisão, com uma pena de multa aplicada como pena principal.


-

            Passemos ao seu conhecimento

            O Ministério Público defende que o Tribunal a quo violou o disposto no art.77.º, n.º3, do Código Penal, ao proceder-se ao cúmulo jurídico de penas aplicadas à arguida A... , alegando para o efeito, no essencial, o seguinte:

- Decorre expressamente do estatuído no art.77º, nº3, do Código Penal, que só pode haver cúmulo jurídico de penas entre penas da mesma natureza e espécie e o Tribunal a quo aplicou à arguida uma pena de 2 meses de prisão, substituída por 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 - pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada -, e uma pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 - pela prática do crime de injúria agravada.

- Estas são penas de diferente natureza e espécie, como resulta, desde logo, das diferentes consequências do incumprimento da pena de multa enquanto pena principal e da pena de multa enquanto pena substitutiva da pena de prisão, pois enquanto o incumprimento da pena substitutiva da multa (multa como pena de substituição) dá azo ao cumprimento por inteiro da pena de prisão (pena principal), nos termos do art.43º, nº2, do Código Penal, o incumprimento da pena principal de multa dá lugar à substituição por pena de prisão reduzida a 2/3, nos termos do art.49º, nº1, do Código Penal.

- Assim, tal como resulta da jurisprudência, que indica, deveria o Tribunal a quo ter cumulado materialmente aquelas duas penas.

Vejamos.

O relator do presente acórdão tomou já posição sobre esta questão no acórdão de 4 de janeiro de 2006, proferido por este Tribunal da Relação, no proc.º 2592/05, publicado na C.J. ano XXXI, tomo I, pág.41 e seguintes.

O mesmo mereceu a concordância do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, na sua obra “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição, pág.284.

Não vislumbrando razões para alterar a posição ali tomada, passamos a decidir a questão tendo por base aquele acórdão de 4 de janeiro de 2006 e as modificações legais entretanto introduzidas na lei penal.

Para além das chamadas penas principais legalmente previstas para os crimes constantes da Parte Especial do Código Penal (pena privativa da liberdade ou pena de prisão e pena pecuniária ou pena de multa), prevê ainda o mesmo Código as chamadas penas de substituição.

Penas de substituição são penas concretamente aplicadas em vez das penas principais legalmente previstas para os crimes na parte especial do Código Penal, máxime das penas de prisão.

As penas de substituição devem ser qualificadas como verdadeiras penas autónomas, tendo cada tipo de pena de substituição o seu próprio conteúdo politico-criminal e, em consequência, um regime em larga medida individualizado. 

Entre as penas de substituição em sentido próprio, que se caracterizam, por um lado, pelo seu carácter não institucional ou não detentivo e, por outro, por pressuporem a prévia determinação da pena de prisão, para serem então aplicadas em vez desta, estão agrupadas as penas de suspensão de execução da prisão, de multa de substituição, de prestação a favor da comunidade e de admoestação. - cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime ”, Notícias editorial, pág. 335.

A multa de substituição surge prevista actualmente no art.43.º do Código Penal, nos seguintes termos:

«1. A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável , excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o consentimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no art.47.º

   2. Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º.».

A pena de multa de substituição regulada no art.43.º do Código Penal é dotada de autonomia e de especificidade perante a pena pecuniária especial, pese embora de um ponto de vista político-criminal ambas se situem no terreno da reacção geral contra as penas privativas da liberdade tout court, pois a pena de multa de substituição é pensada como meio de obstar , até ao limite , à aplicação de penas curtas de prisão , até um ano , constituindo um especifico instrumento de domínio da pequena criminalidade. - Prof. Figueiredo Dias, obra citada,  páginas  329 e 361.

As consequências a nível de incumprimento da pena de multa de substituição e da pena de multa principal são diversas: enquanto o não pagamento da multa de substituição leva a que o condenado cumpra a pena de prisão aplicada na sentença, o não pagamento da multa, enquanto pena principal, leva ao cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

Em suma, como diz o Prof. Figueiredo dias, a multa de substituição é “…uma pena diferente da pena de multa enquanto pena principal, que possui um regime próprio e merece, por isso consideração doutrinal e sistemática autónoma” ( Prof. F. Dias, obra citada, pág. 368), não sendo assim exacto dizer-se que a pena de prisão substituída por multa passa a ser pena de multa.

Nem o art.47.º do Código Penal, que regula a pena de multa pecuniária, nem o art.43.º, do mesmo Código, que regula a substituição da pena curta de prisão em multa, fazem qualquer referência ao cúmulo de penas de multa principal  e de multas de substituição.

O art.43.º, n.º 2 do Código Penal, na redacção de 1982, estatuía que « se o crime for punido com pena de prisão e multa, será aplicada uma só multa, equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão.» . Porém , o teor do  n.º 2 do art.42.º do Código Penal, na redacção primitiva , foi eliminado pelo DL n.º 48/95 , de 15 de Março , que reviu o Código Penal.

Das “Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal” (edição do Ministério da Justiça, 1993, pág. 20) consta que, « no que se refere ao n.º 2 do artigo , a Comissão concordou nomeadamente na sua eliminação , de molde a afastar-se a cumulação das penas de prisão e de multa.». Porquanto poderiam subsistir normas penais prevendo penas de prisão e multa complementar, o art.6.º, n.º1 do DL n.º estabeleceu que “ enquanto vigorarem normas que prevejam penas cumulativas de prisão e multa, sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão.”.

O art.77.º, do Código Penal estatui, nomeadamente, a propósito das regras da punição do concurso:

 « 1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da penas são considerados , em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

    2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.».

Resulta destes dois números do art.77.º do Código Penal que se todas as penas parcelares forem de prisão ou todas de multa, isto é, da mesma espécie, há lugar à aplicação de uma pena, em cúmulo jurídico.

O art.77.º, n.º 3 do Código Penal acrescenta, no seu n.º 3, que « Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.».

O n.º 3 do art.78.º do Código Penal, na redacção de 1982, a que corresponde este n.º 3 do art.77.º do Código Penal vigente, tinha a seguinte redacção:

« A pena de multa e a prisão por condenação em alternativa, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 46.º , são sempre cumuladas entre si e com pena de multa.».

Debruçando-se sobre as regras do concurso das penas parcelares de espécies diferentes na vigência do n.º 3 do art.78.º do Código Penal, na redacção de 1982, dizia o Prof. Figueiredo Dias, que « Se as penas parcelares forem de diferente espécie, o direito vigente abandona entre elas o sistema da pena única (e portanto da pena conjunta e do cúmulo jurídico) para seguir na essência um sistema de acumulação material: a pena de prisão e a pena de multa são sempre, nos termos do art.78.º -3, cumuladas entre si; …” – cfr. obra citada, pág. 289.

Mais considerou, que o abandono do sistema da pena única e dos princípios da pena conjunta e do cúmulo jurídico em caso de concurso de penas de espécie diferente era injustificável, pelo que no Projecto de Revisão do Código Penal  propôs  que o texto do agora art.77.º, n.º 3 do Código Penal  passasse a ser o seguinte: « Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa , será aplicável uma única pena de prisão , de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se os de multa convertidos em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.» - cfr. “Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal” , edição do Ministério da Justiça ,  1993 , pág. 84.

Essa alteração não passou para o actual n.º 3 do art.77.º do Código Penal , porquanto, no dizer do Cons. Maia Gonçalves, « Tratava-se de um critério revestido de alguma dureza, que só encontrava justificação porque mantinha o sistema da pena conjunta.

Abandonada a solução proposta pela CRCP, ficou bem clarificado no texto que se mantêm as penas de prisão e de multa , aplicando-se a cada uma delas , para a  formação da pena única ,os critérios estabelecidos nos números anteriores». – cfr. “Código Penal  Português anotado”  , 8ª edição ,pág. 374. Esta é, também a posição expressa pelos Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, no “Código Penal” , 1º Volume , Rei dos Livros , 1995 , pág.  608.

Efectivamente, do texto do n.º 3 do art.77.º do Código Penal, afastada que foi a proposta constante do Projecto de Revisão,  não resulta expressa a possibilidade de cumulação jurídica entre  penas de prisão e de multa, que são penas de espécie diferentes. Como tal não podem essas penas de espécie diferentes ser objecto de cúmulo jurídico entre si. 

Em sentido diverso, criticando a posição do Dr. Paulo Dá Mesquita ( “ O concurso de Penas” , edição C.E.,  pág. 28) que considera que a pena de multa principal e pena de multa em substituição devem ser cumuladas materialmente,  defende o Dr. Nuno Brandão ( “RPCC”, ano 15, n.º 1, nota 26 , pág.135 ) que mesmo perante penas parcelares de prisão e de multa deve hoje proceder-se ao cúmulo jurídico , com aplicação de uma só pena de prisão, depois  de previamente se converter a pena de multa em prisão por aplicação analógica do art.49.º, n.º 1 do C.P.

Não havendo nenhuma norma no Código Penal que regule os termos em que pode ser feita a punição do concurso entre pena de multa de substituição e pena de multa principal, que são penas de espécie diferente, a solução só pode buscar-se no princípio enunciado no art.77.º, n.º 3 do Código Penal e concluir que aquelas penas devem cumular-se materialmente.

Sobre as diferenças entre a pena principal de multa e a multa de substituição pronunciou-se o S.T.J., nos seus acórdãos n.ºs 8/2013 (D.R., 1.ª série, n.º 77, de 19 de Abril de 2013) e  12/2013 (D.R., 1.ª série, n.º 200, de 16 de Outubro de 2013) e, no sentido ora pugnado, decidiram, mais recentemente, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29-06-2016, proc. n.º 31/15.6T9FND.C1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-03-2014, proc. n.º 955/06.1TAFLG-A.P1.        

Face ao que deixámos exposto sobre penas de diversa natureza e o princípio resultante do n.º 3 do art.77.º do Código Penal, entendemos que a arguida A...  não deveria ser condenada numa pena única, em cúmulo jurídico.

A pena de 60 dias de multa, em substituição da pena de prisão, e a pena de 90 dias de multa, como pena principal, deviam ter sido cumuladas materialmente, pelo que não pode manter-se a pena única de 80 dias de multa, fixada em cúmulo jurídico. 

Procede, nestes termos, o recurso interposto pelo Ministério Público.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, revogando-se a douta sentença recorrida na parte em que operou o cúmulo jurídico das penas aplicadas à arguida A... , decide-se cumular materialmente a 60 dias de multa à taxa diária de €5,00, resultante da substituição da pena de 2 meses de prisão, e a pena de 90 dias de multa á taxa diária de € 5,00, que lhe foram aplicadas, respectivamente, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de injúria.

Sem custas.


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).                                                                               

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Coimbra, 29 de março de 2017

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro – adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458.º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.