Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5777/22.0T8CBR.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE
PRESSUPOSTOS
REQUERENTE ANTERIORMENTE DECLARADO FALIDO E REABILITADO
“DIREITO AO ESQUECIMENTO” DAS DÍVIDAS
DEVERES DE PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES POR PARTE DOS BANCOS
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 67.º; 70.º, 1 E 335.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 878.º A 880.º E 986.º, 2, DO CPC
ARTIGOS 148.º; 224.º; 238.º E 239.º, DO CPEREF
ARTIGOS 238.º, B); 239.º, 4 E 245.º, 2, DO CIRE
ARTIGOS 3.º; 17.º, 3 E 65.º, DO REGULAMENTO (UE) N.º 2016/679, DE 27 DE ABRIL, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO
ARTIGOS 7.º E 8.º DA CDUE
ARTIGO 12.º DA DUDH
ARTIGOS 26.º, 1, 2 E 4 E 35.º, 1, DA CRP
ARTIGO 3.º DO DL 204/2008, DE 14/10
Sumário: I – Constituem pressupostos do processo especial de tutela da personalidade, hoje previsto nos arts 857º a 880º CPC, a existência de ameaça à personalidade física e moral de pessoa física («ser humano», resultando, consequentemente, excluídas as pessoas colectivas), e a exigência de que essa ameaça seja ilícita e directa.
II – A circunstância do aqui Requerente, declarado falido há mais de vinte anos, ter sido reabilitado ao abrigo dos então arts 238º e 239º do CPEREF, porque o foi nos termos da al c) daquele art 238º, mantendo-se, por isso, devedor do aqui Banco Requerido, não lhe confere o “direito ao esquecimento” dessas dividas, como sucede, de algum modo, no CIRE, em função do instituto da exoneração do passivo restante, tanto mais que não está excluído que o Requerente, apesar de falido, não se pudesse ter apresentado à insolvência e ter beneficiado desse instituto.

III – Nos termos do art 17º/3 do Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, o direito ao esquecimento não prevalece, se, na ponderação de valores a que obriga, se vier a concluir que o prolongamento da conservação dos dados pessoais negativos em causa se revela necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica ou para o exercício de funções de interesse público.

IV – O banco Requerido, tal como os demais bancos, e como resulta do art 3º do DL 204/2008 de 14/10, está obrigado a fornecer à Central de Responsabilidades do BdP (CRC) elementos de informação respeitantes às responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal, dever este a que reside um indiscutível interesse público.

V- Restrições como a recusa de abertura de conta bancária e a negação do recurso ao crédito para adquirir bens ou serviços ou a limitação na escolha do trabalho a desenvolver de acordo com as respectivas qualificações profissionais, contendem com um feixe alargado de direitos de índole pessoal que se mostram reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, incidindo não apenas na capacidade civil, mas também no bom nome e reputação e nos direitos económicos, ligando-se à dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual.

VI – Não obstante, não é a acima referida conduta do Banco Requerido que afecta esses direitos, por isso não se podendo falar de ameaça direta, como é pressuposto do referido art 878º.

VII – Com o que, não há que ponderar se as referidas restrições à capacidade civil se devem ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com a actuação do Requerido junto da CRC.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

           I - AA, instaurou contra o Banco 1..., S.A., processo especial de tutela da personalidade, em que pede a imposição à Requerida de “um comportamento em conformidade com a decretada reabilitação, que não seja socialmente discriminatório e estigmatizante, isto é, não violador dos direitos e capacidades supracitados, fixando-lhe o imediato apagamento dos dados pessoais de acesso público do requerente e, ainda, determinando uma sanção pecuniária compulsória adequada, por cada dia de atraso nesse cumprimento”.

           Invocou, para o efeito, que esteve incurso num processo de falência, na vigência do CPEREF; que, no âmbito desse processo (7671/18....; Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo de Comércio de Coimbra; Juiz ...), levantados os efeitos da falência em relação ao falido, por decisão transitada em julgado em 21/06/2019, foi decretada a sua reabilitação; solicitou o apagamento dos seus dados pessoais junto de entidade financeira, da Banco 2... e do Banco Requerido; fê-lo em nome dos princípios da limitação das finalidades e da limitação da conservação (RGPD), bem como do direito a ser esquecido em linha; este seu direito ao apagamento foi reconhecido e contemplado pela instituição financeira e pela Banco 2..., mas não pelo Requerido; ignorando a reabilitação decretada pelo Tribunal, o Requerido persiste em manter o histórico do registo dos seus dados, apesar de não serem mais necessários para a finalidade para que foram recolhidos e tratados; assim, inibindo significativamente a possibilidade da retoma da sua vida económica-financeira e, desse jeito, apoucando a sua capacidade civil, vendo, assim, diminuída a sua aptidão para adquirir direitos e ficar sujeito a obrigações, em situações tão simples do dia-a-dia como as seguintes - possibilidade de abrir conta em banco; qualquer tipo de compra a crédito; obtenção de cartão de crédito; possibilidade de escolha de emprego em sociedades financeiras/produtos financeiros; qualquer tipo de abertura de processo de crédito; cartão de combustível; plano de saúde; qualquer serviço adquirido com reporte de sociedades financeiras é negado pelo CRC; tudo o que concerne a ligação com sistemas financeiros está vedado- com o que a Requerida atinge o bom nome e reputação do Requerente.

            Juntou certidão da sentença a que alude.

           Tendo sido entendido que a petição inicial se mostrava inepta por ininteligibilidade da causa de pedir, foi decidida a absolvição da instância do Requerido,  em despacho liminar.

           Na sequência da interposição de recurso de apelação pelo Requerente dessa decisão, foi citada a Requerida, tanto para os termos do recurso como para os da causa,  sendo que  na oposição que apresentou requereu  a procedência da excepção da ineptidão da petição inicial e a sua consequente absolvição da instância  e, a assim não se entender, a sua absolvição do pedido.

           Este Tribunal da Relação julgou procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, determinando a sua substituição por decisão de convite ao Requerente para apresentação de nova  petição que contenha a indicação dos dados que tem registados e a exposição das razões pelas quais a recurso à manutenção do registo dos mesmos  o impede de retomar a sua vida económica e de exercer plenamente a sua vida económica e de exercer plenamente o direito à capacidade civil.

            Na sequência do convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido, veio o Requerente invocar que os dados pessoais cujo apagamento solicitou consistem na “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, como p.ex., as suas dívidas e os seus créditos, o seu registo e a utilização pelo requerido, como  a sua transmissão ao BdP e a sua inclusão, por último, numa base de consulta de acesso público – Central de Responsabilidade de Crédito – doc. anexo com o n.º 3)”, referindo ter solicitado o apagamento desses dados, «em nome dos princípios da limitação das finalidades e da limitação da conservação (RGPD), bem como do direito a ser esquecido em linha, uma vez, até, que as dividas constantes de informação do requerido ao BdP estão prescritas, prescrição extrajudicialmente invocada junto do Requerido».

           De novo este se pronunciou, salientando que o Requerente exorbitou o convite que lhe foi dirigido ao invocar a prescrição, que, por isso, não deve ser admitida, mas que, de todo o modo, se não verifica, porquanto, como resulta dos leitura conjugada dos arts 326º e 327º/1 CC, o prazo de prescrição se teve por interrompido durante todo o tempo em que decorreu o processo de falência e não passaram mais de 20 anos desde o encerramento daquele processo.

            Foi proferida decisão que teve por inadmissível a alegação da prescrição, vindo a indeferir liminarmente o processo, desta feita, por manifesta improcedência.

            De novo inconformado, apelou o Requerente, vindo a ser julgada procedente a apelação no referente à invocação da prescrição, no mais tendo sido ordenado o prosseguimento dos autos, salientando-se, impor-se, para além do conhecimento da prescrição, a resposta às seguintes questões : «O crédito legitimará as restrições invocadas pelo Autor à sua capacidade? Será inconstitucional a manutenção das restrições decorrentes do Registo da CRC quando ocorreu a reabilitação do falido? A reabilitação terá paralelo (ou deverá tê-lo) com a exoneração do passivo restante e implicar também um reinicio de vida sem as restrições anteriores? Os efeitos alegados no art 10º da petição serão (constitucionalmente) excessivos, num caso como este de reabilitação, apesar de eventualmente fundados em lei?».

 

          Foi realizada audiência de julgamento, e, finda a mesma, foi ordenada a notificação do Requerido para invocar e comprovar determinados elementos que se tiveram por necessários à  decisão da prescrição.

           Para o que releva no presente recurso veio o mesmo juntar os mapas de responsabilidades correspondentes aos créditos elencados no relatório da CRC que constitui o doc nº 1 com a petição aperfeiçoada.

 

           Tendo as partes prescindido de novas alegações, foi proferida sentença, que julgou improcedente a excepção da prescrição e igualmente improcedente o presente processo, absolvendo o Requerido do mesmo.

           II – De novo inconformado, veio o Requerente apelar, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:

           a) O Banco 1... não invoca ou convoca em qualquer direito de igual valência normativa ao do recorrente.

          b) As restrições à capacidade civil (art. 26º, 1 da CRP) estão sujeitas a reserva de lei e não podem ser excessivas, devendo, no caso, respeitar o princípio da proporcionalidade.

           c) Não se verifica, no caso, sequer uma "situação de tensão "entre o direito infraconstitucional do banco e o direito constitucional fundamental do recorrente.

           d)Nunca o direito de valência constitucional cede prioridade ao infraconstitucional do recorrido.

           e) Ao violar um direito fundamental, a conduta do banco, do ponto de vista dos direitos fundamentais é ilícita.

           f) Não há qualquer proporcionalidade entre o direito ou interesse do banco e a "pena de morte civil" imposta ao recorrente.

           g) Recorrente reabilitado por decisão judicial transitada em julgado.

           h) A pretensão do banco, na prática, funciona como uma pena que fere o recorrente, sobre quem recai uma verdadeira capitis deminutio, por perda de capacidade civil plena.

           i) Ofensa à capacidade civil é indissociável da ofensa à sua personalidade moral.

           j) As garantias à capacidade civil são tanto mais importantes quanto é certo que o exercício dos direitos fundamentais, que implique efeitos jurídicos civis, pressupõe aquela capacidade.

          k) Como é possível, então, dar como provado face a um direito alegadamente menor de protecção bancária, que tenha sido recusado trabalho a um cidadão - reabilitado; tenha-lhe sido vedado concorrer a um projecto de criação de emprego próprio, e não considerar estas terríveis sequelas como violação de um direito fundamental à capacidade civil?

           l) Como não considerar estes efeitos como constitucionalmente excessivos, num caso como este de reabilitação, apesar de eventualmente fundados na lei?

           m) Levantados os efeitos da falência e decretada a sua reabilitação, por decisão judicial transitada em julgado em 21.6.2019, isso implica a cessação das limitações a que estava sujeito, passando a estar em condições não só de se poder dedicar ao exercício de uma actividade comercial, como ser membro de uma sociedade civil ou comercial.

           n) A cessação das consequências da falência e a consequente reabilitação acarretam a recuperação de todos os poderes de disposição e administração patrimonial, voltando o falido a deter a capacidade e legitimidade, substantiva e processual, activa e passiva, no que diz respeito na todo o complexo procedimental em que o seu património esteja em causa.

            o) Seria uma contradição nos seus próprios termos declarar-se a reabilitação judicial de um falido e, apesar disso, permitir-se o acesso público ao histórico do registo dos seus dados na Central de Responsabilidades, o que, de facto, inibe a retoma da sua vida económica-financeira, impedindo a reabilitação social completa, transformando a reabilitação num significante vazio.

            p) A reabilitação deverá ter paralelo com actual exoneração do passivo restante e, decorrentemente, implicar um reinício de vida sem as restrições anteriores.

            q) As razões que presidem à consagração do "fresh start" no ClRE são idênticas às que presidiam à reabilitação no âmbito do CPPERF.

           r) Assim, nenhuma razão existe para que o recorrente não adquira o direito a "ser esquecido em linha".

           s) Direito ao apagamento que prevalece, segundo a jurisprudência do TJUE, sobre o interesse público em aceder à informação numa pesquisa sobre o nome dessa pessoa.

            t) A acentuada desproporção entre o "direito/benefício" do banco (credor de um crédito, seguramente, já provisionado por incobrável, vencido vai para 25 anos) e o prejuízo, a lesão, causado no direito fundamental à capacidade civil o recorrente é inquestionável.

            u) Decorre que o banco, despido de "consciência constitucional", ao pretender exercitar um direito menor de "protecção bancária" conflituante com um direito fundamental da valência constitucional do recorrente, fá-lo num exercício abusivo de direito, numa clara violação do princípio da proporcionalidade e da proibição de excesso.

           v) Trata-se, afinal, de um abusivo exercício de um direito infraconstitucional contra um direito constitucional "em termos claramente ofensivos da justiça".

            Normas violadas: arts. 26º, 1 e 4; 13º e 18º, 2 da CRP; art. 334º do C. Civil.

            Termos em que, face ao alegado e concluído, deverão Vs. Exªs. Senhores Juízes Desembargadores, revogar a sentença recorrida e, em consequência, proferir acórdão que reconheça a prevalência do direito constitucional à capacidade civil do recorrente sobre o direito infraconstitucional do banco e, decorrentemente, impor-lhe um comportamento em conformidade com a reabilitação do recorrente, não discriminatório nem violador da sua capacidade civil, fixando-lhe o imediato apagamento dos dados pessoais de acesso público do recorrente e, ainda, determinando uma sanção pecuniária compulsória adequada, por cada dia de atraso nesse cumprimento.

           O Requerido ofereceu contra-alegações, que concluiu do seguinte modo:

           1. Vem o Autor interpor recurso de apelação da sentença proferida nos autos que julgou improcedente a presente demanda.

           2. O Tribunal a quo fez a devida interpretação e aplicação do direito ao caso sub judice, pelo que qualquer outro entendimento que o Recorrente possa avançar nas suas alegações de recurso terá necessariamente de vir a improceder, bem como a sua infundada demanda o foi na sentença recorrida.

           3. Em sede de petição inicial aperfeiçoada o Autor requereu ao douto Tribunal a quo que julgasse a exceção da prescrição do crédito que o Réu tem sobre o Autor. E bem assim o douto tribunal, após uma minuciosa análise de documentação que a sustenta e concluindo como sempre o concluiu o Réu, julgou esta exceção totalmente improcedente.

           4. E, bem assim, apreciou os demais fundamentos invocados pelo Autor com o intuito de vir a obter, por meio de uma sentença judicial, uma vantagem à qual não tem direito.

           5. O Autor funda toda a sua demanda no pressuposto de que a existência de um registo de dívida, de acesso público, na central de riscos do Banco de Portugal configura uma ofensa direta e ilícita, recaindo, portanto, sobre este a prova dos comportamentos ilícitos capazes de ofenderem de forma direta o Autor. O que o Autor não fez.

           6. Isto porque, como acima se disse e bem assim o foi julgado, não se encontrando prescritas as dívidas do Autor, o Réu mantem-se seu credor.

           7. Pelo que, sem mais demoras poderíamos concluir que, de facto, assiste ao Réu (além de ser esta uma obrigação sua) o direito de manter tal registo, uma vez que as dívidas existem e não se encontram prescritas.

           8. Mas acresce que, uma vez improcedente a alegação da prescrição da dívida, o Autor vem pugnando que a reabilitação do falido (que foi proferida no âmbito do processo n.º 7671/18....) é condição bastante para que a existência do registo de dívidas seja considerada ilícita.

           9. Primeiramente, considera o Réu que, com o devido respeito por V. Exas., que é muito, ser de reiterar o que na lei (e não para efeitos dicionaristas) se entende como reabilitação do falido.

           10. Não se poderá esquecer que o Autor não foi declarado insolvente, mas sim, FALIDO, ou seja, ao abrigo das disposições previstas no antigo CPEREF, que previa a cessação dos efeitos da falência em relação ao falido, com a reabilitação do falido e, efetivamente, a reabilitação do Autor foi decretada por despacho transitado em julgado em 3-06-2019.

            11. Ora, em consonância com o disposto nos arts. 238.º, n.º 1, al. d) e 239.º, n.º 1 do CPEREF, podem ser levantados os efeitos da falência em relação ao falido mediante a verificação de determinados pressupostos, sem que isso importe a exoneração, a extinção das dívidas do falido, mas é precisamente essa a vantagem que o Autor pretende obter.

           12. A exoneração do passivo restante (arts. 235.º e ss. Do CIRE) é uma nova oportunidade dada ao devedor para reabilitação da sua vida económica, pois com a conceção da exoneração do passivo restante, extinguem-se, regra geral, todos os créditos sobre o insolvente.

           13. Mas este benefício só é concedido aos devedores que preencham os requisitos legais estabelecidos para o efeito, nomeadamente, os constantes dos arts. 236.º a 238.º do CIRE.

           14. São condições essenciais para ser concedido ao devedor o benefício da exoneração do passivo restante que este, em momento anterior ou atual, mantenha um comportamento pautado pela licitude, pela honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e não só.

           15. É que o instituto da exoneração do passivo restante depende do cumprimento de requisitos bem mais “apertados” do que a reabilitação do falido, sobretudo, num momento inicial de obtenção do despacho inicial de exoneração.

           16. Desde logo, o pedido de exoneração do passivo restante obedece a um momento oportuno no processo (art. 236.º do CIRE) e não pode sê-lo feito a todo e qualquer momento.

           17. E, depois, veja-se que o art. 238.º do CIRE discrimina as circunstâncias capazes de levar ao indeferimento liminar do pedido de exoneração.

            18. E aqui, o Réu questiona: logrou o Autor fazer prova de que o seu comportamento preenche os apertados requisitos estabelecidos no n.º 1 do art. 238.º?

           19. Nomeadamente, logrou o Autor provar que não teve culpa na criação ou agravamento da situação que conduziu à sua falência (al. e)?

            20. Mas mais: o benefício da exoneração apenas será concedido aos devedores que, no período destinado à cessão de rendimentos, cumpram os deveres a que estão obrigados em tal período – art. 239.º do CIRE.

           21. E voltamos a questionar: foi o Autor sujeito ou cumpridor dos deveres que recaem sobre o insolvente para que lhe possa ser concedido o equivalente a um despacho final de exoneração do passivo restante? Logrou o Autor provar que o foi?

           22. Salvo melhor opinião, que sempre será a de V. Exas., não pode o Autor pugnar por obter um benefício como o «paralelo com a actual exoneração do passivo restante», isto é, requerer que, por meio de uma sentença judicial lhe seja reconhecido o direito pleno a um reinício de vida, um fresh start, sem que tenha logrado provar nestes autos que cumpriu e prestou as provas necessárias para o efeito.

           23. Pois caso fossem as mesmas exatas razões a presidir ao espírito da exoneração do passivo restante prevista no CIRE as que presidiam à reabilitação no âmbito do CPEREF, teria o legislador contemplado, como veio a suceder no CIRE, os deveres adequados a mostrar a idoneidade de lhe serem concedidos os mesmos benefícios.

            24. O que não sucedeu.

           25. Acresce que, conforme tem vindo o Réu a reiterar sucessivamente, a Central de Risco de Crédito é regulada pelo DL n.º 204//2008, de 14 de outubro e Instrução n.º 17/2018 do Banco de Portugal, nos termos dos quais, sendo o Recorrido entidade participante, está obrigado a fornecer ao Banco de Portugal, com uma periodicidade mensal, os elementos e informações respeitantes às responsabilidades ali previstas.

           26. O não cumprimento das disposições mencionadas faz o Recorrido incorrer na violação do dever de comunicação que sobre si recai, traduzindo-se esta em contraordenação punível com coima – cfr. art. 9.º do DL n.º 204/2008, de 14 de outubro.

           27. Ora, conforme anteriormente se expôs, os créditos/dívidas que o Réu detém sobre o Autor não se encontram prescritas e o Réu mantém-se credor do Autor.

           28. O processo de tutela da personalidade visa a possibilidade de requerer o decretamento de providências adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar ou fazer cessar os efeitos de uma ofensa já cometida – cfr. art. 878.º do Código de Processo Civil.

           29. Ora, atento tudo o quanto se expôs, não se verifica preenchido o primeiro requisito para o decretamento da providencia requerida pelo Autor, isto é, a ofensa direta e a ilicitude da ofensa, na medida em que foram julgados e não impugnados os créditos que o Réu detém sobre o Autor, bem como não veio o Autor provar ter cumprido os pressupostos necessários à concessão do benefício da exoneração do passivo restante, apesar de sucessivamente alegar o paralelo que deve este instituto ter com a reabilitação do falido.

            30. É que a ilicitude da conduta adotada pelo Réu poderia advir de uma das duas seguintes situações: não ter o Réu créditos sobre o Autor ou, ser ilícito que o Réu reportasse os créditos que detém sobre os devedores à CRC.

            31. Se, por um lado, é manifesto que o Réu se mantém credor do Autor (não só porque os créditos não se encontram prescritos, mas porque o Autor não foi exonerado das suas dívidas), por outro, recai sobre o Réu o dever de reportar os créditos que detém sobre todos e quaisquer seus devedores.

           32. Em consequência, a comunicação das dívidas que o réu detém sobre o Autor junto da CRC não traduzem um comportamento ilícito, desproporcionado ou injustificado por parte do Réu, mas o cumprimento do seu dever legal.

            33. Atento o que, não se almeja como poderá ter andado mal o Tribunal a quo ao julgar improcedente a ação por não se encontrarem preenchidos os «pressupostos legalmente exigidos para ser decretada a providência solicitada pelo Requerente, visto que não invocou factos do qual resulte a referida extinção de créditos que impendem sobre si».

           34. Devendo, por suposto, manter-se inteiramente a sentença recorrida por não padecer esta de qualquer juízo de censura que importe a sua revogação.

            III –A - O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:

            1- Em 18/06/1997, a R. permitiu ao A. um descoberto em conta com o n.º ...63, no montante de 34.699,48€, juros no valor de 81.771,55€ e Imposto do Selo no valor de € 3.270,00, sendo o reembolso do saldo em dívida efetuado mediante provisionamento da conta, correspondendo o prazo de pagamento a 26-6-1999.

           2- Em 16/12/1999, A. e R. celebraram um Contrato de Financiamento sob a forma de Crédito em Conta Corrente com o n.º ...02, sendo o capital em dívida de € 231.305,57, juros de € 241.707,90 e Imposto do Selo de € 9.668,32.

           3- Em 07/05/1999, A. e R. celebraram um Contrato de Financiamento sob a abertura de Crédito em Conta Corrente com o n.º ...18, sendo o capital em dívida de € 206.877,89, juros de € 216.342,55 e Imposto do Selo de € 8.653,70.

           4- Os contratos referidos em 2) e 3) foram celebrados por 6 meses, renovável, devendo o reembolso do saldo em dívida ser efetuado no termo do prazo do contrato mediante o provisionamento da conta, havendo a possibilidade de declarar vencimento antecipado das obrigações contraídas, designadamente, entre outras, em caso de insolvência.

            5- O pagamento do valor em dívida referente aos Contratos de Financiamento referidos em 2) e 3) devia ser efetuado até 17-12-1999

            6- A. e R. celebraram os seguintes Contratos de Desconto de Letra:

            6.1. com o n.º ...91 (efeito), celebrado em 27/12/1998, tem o capital em dívida de € 19.951,92, juros de € 22.566,18, Despesas e ISUC de € 297,94 e Imposto do Selo de € 902,64, com vencimento em 27-2-1999;

            6.2. com o n.º ...80 (efeito), celebrado em 22/10/1998, tem o capital em dívida de € 14.963,94, juros de € 17.165,71 e Imposto do Selo de € 686,82, com vencimento em 5-2-1999;

            6.3. com o n.º ...84 (efeito), celebrado em 15/11/998, tem o capital em dívida de € 22.445,91, juros de € 25.623,88 e Imposto do Selo de € 1.024,95, com vencimento em 20-1-1999;

            6.4. com o n.º ...81 (efeito), celebrado em 19/10/1998, tem o capital em dívida de € 12.469,95, juros de € 14.238,95 e Imposto do Selo de € 569,56, com vencimento em 9-1-1999;

            6.5. com o n.º ...88 (efeito), celebrado em 06/11/1998, tem o capital em dívida de € 9.975,96, juros de € 11.427,18 e Imposto do Selo de € 457,09, com vencimento em 6-1-1999.

            7- O reembolso do valor dos contratos referidos em 6) era feito mediante o provisionamento da conta associada aos mesmos com o total do valor em dívida, em uma única prestação, no momento do respetivo vencimento.

           8- Por sentença de 30-5-2000, transitada em julgado em 12-6-2000, no âmbito do processo n.º 467/1999 que correu termos no ... Juízo Cível de Coimbra e, a partir de 1-8-2018, assumiu o n.º 7671/18.... e passou a correr termos no Juízo de Comércio de Coimbra Juiz ..., o aqui A. e mulher, BB, foram declarados falidos.

            9- Em 07/07/2000 o R. reclamou a quantia de 227.186.765$00 (€ 1.133.202,80 - um milhão, cento e trinta e três mil, duzentos e dois euros e oitenta cêntimos), nos autos referidos em 8).

           10- Por decisão de 12-11-2002, transitada em julgado em 28-11-2002, os créditos referidos em 9) foram reconhecidos.

           11- Em 23/05/2011, foi proferido despacho a ordenar o arquivamento dos autos.

           12- Por despacho transitado em julgado em 21-06-2019, ao abrigo do disposto nos arts. 238º, n.º 2 e 239º, n.º 2 do CPEREF foi decretada a reabilitação do A.

           13- O A. solicitou ao Réu que comunicasse à Central de Responsabilidades de Crédito a extinção dos créditos que aí constam como pendentes sobre si, o que o mesmo não fez (arts. 6º da p.i. e 31º da contestação).

           14- Em 31-12-2022, do relatório da Central de Responsabilidades de Crédito constava que o A. era devedor ao R. dos seguintes créditos, em incumprimento, num total de € 502.322,53:

           14.1.: € 34.699,48, com início em 18-6-1997 e em incumprimento desde 26-6-1999;

           14.2.: € 199.519,16, com início em 16-12-1999 e em incumprimento desde 17-12-1999;

           14.3.: € 189.296,21, com início em 16-12-1999 e em incumprimento desde 17-12-1999;

           14.4.: € 19.951,92, com início em 26-2-1999 e em incumprimento desde 27-2-1999;

           14.5.: € 14.963,94, com início em 4-2-1999 e em incumprimento desde 5-2-1999;

           14.6.: € 22.445,91, com início em 19-1-1999 e em incumprimento desde 20-1-1999;

           14.7.: € 12.469,95, com início em 18-1-1999 e em incumprimento desde 19-1-1999;

           14.8.: € 34.699,48, com início em 5-1-1999 e em incumprimento desde 6-1-1999.

            15- Em consequência do registo referido em 14), ao A.

           15.1. foi recusada a abertura de conta bancária no Activobank, Banco 1..., Caixa Geral de Depósitos, Bankinter e Santander.

           15.2. estão vedadas aquisições com recurso a crédito;

           15.3. foi recusado trabalho, como gestor de conta, do Banco CTT;

           15.4. está vedado concorrer a um projecto do IAPMEI, no âmbito no Instituto de Emprego, para criação de emprego próprio.

           16- Desde Dezembro de 2020, o A. tem conta de serviços mínimos aberta no Banco CTT.

             B- E julgou não provados os seguintes factos:

           - que, o A. tenha “solicitado o apagamento dos seus dados pessoais junto de entidade financeira, da Banco 2...”, tendo este seu direito ao apagamento sido reconhecido e contemplado pela instituição financeira e pela Banco 2... (arts. 6º e 7º da p.i. aperfeiçoada).

           - e que, em consequência do registo referido em 14), ao A. esteja vedado ser titular de cartão de combustível ou plano de saúde.

            IV – Vistas as conclusões das alegações e no seu confronto com a decisão recorrida, resulta para  decidir no presente recurso, correspondendo ao seu objecto, saber  se  deve prevalecer o direito do Requerente ao esquecimento, na medida em que a razão de ser da reabilitação do falido se deva fazer equivaler ao reinício de vida sem as restrições anteriores, como sucede com a actual exoneração do passivo restante; e, em todo o caso, se a actuação do Banco Requerido junto da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC) implica restrições à capacidade civil do Requerente que se devam ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com aquela actuação, e se deva fazer prevalecer o direito constitucional à capacidade, relativamente ao infraconstitucional  da "protecção bancária".

            As questões em causa – e há que o não esquecer – colocam-se num processo especial de tutela de personalidade, hoje, no âmbito do CPC de 2013, conceptualizado como processo de jurisdição contenciosa, como resulta da sua inserção nos arts 878º a 880º do código actual, em confronto com o que sucedia no CPC anterior, em que a tutela processual dos direitos de  personalidade era obtida no âmbito da jurisdição voluntária – arts 1474º e 1475º -  alteração que, entre o mais, implica que  o tribunal  não possa, como antes, investigar livremente os factos que entenda necessários à boa decisão da causa «sem estar dependente, direta ou indirectamente, da alegação das partes – nº 2 do art 986º CPC» [1].

            Os pressupostos deste processo especial resultam do art 878º, configurando-os esta norma como a existência de ameaça à personalidade física e moral de pessoa física («ser humano», resultando, consequentemente, excluídas as pessoas colectivas), e a exigência de que essa ameaça seja  ilícita e directa.

            É, pois, necessária a verificação de um acto voluntário e ilícito, como já resultaria do art 70º/1 CC, advindo tal acto de conduta do Requerido, não se tornando, no entanto, necessário a existência de danos e de culpa, mas exigindo-se que a ofensa se apresente como directa.                         

            O pedido de providência é dirigido contra o autor da ameaça ou ofensa, e as providências que se requeiram podem constituir-se como posteriores (atenuantes) ou anteriores (preventivas) relativamente à consumação da ofensa.

            Na situação dos autos, está em causa providência atenuante – a ofensa já se consumou e o seu decretamento visa, não a reparação dos eventuais danos já verificados, mas impedir que eles se agravem com a continuação das ofensas.

            Argumenta o Requerido para o afastamento da tutela requerida – depois que foi decidido, com trânsito em julgado, que as dividas do Requerente, junto dele,  resultantes do processo de falência acima identificado se não mostram prescritas – que o referido pressuposto da ilicitude se não verifica, na medida em que, tal como resulta do art 3º do DL 204/2008 de 14/10, está obrigada a fornecer ao Banco de Portugal, nos termos da regulamentação aprovada, todos os elementos de informação respeitantes a responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal, em que se enquadram as referidas na matéria de facto acima elencada.

           Constitui, pois, do ponto de vista do Requerido, um dever, proceder como tem vindo a proceder. Age licitamente ao comunicar as responsabilidades que detém sobre o Requerente à CRC, mesmo depois que o Requerente foi reabilitado nos termos do art 239º do CPEREF, visto que a reabilitação não modificou ou extinguiu os créditos em causa, tendo, consequente e, inerentemente, fundamento para o tratamento dos atinentes dados pessoais do mesmo.

            Entende igualmente o Requerido que a ofensa que o Requerente acusa nos seus direitos de personalidade não se configura como directa – não se deve ao seu comportamento de reporte das responsabilidades do Requerente à CRC, já se viu que lícito, as inibições na retoma da vida económico financeira que o mesmo relata nos autos.

           Perante estes pressupostos, vejamos, na apreciação da 1ª questão acima evidenciada, se deve prevalecer o direito ao esquecimento sobre o interesse público do que o Requerente intitula de “protecção bancária”, e se, a circunstância da reabilitação do Requerente no âmbito do processo de falência se deve ter como condição suficiente  para esse esquecimento.

           Foi o caso  Google Spain versus Mario Costeja González (estando,  justamente, em causa uma antiga notícia relativa a uma dívida), que implicou, pela 1ª vez, a abordagem do direito ao esquecimento, então realizada pelo Tribunal de Justiça, com base na Directiva 95/46/CE,  e veio a contribuir  para a  elaboração do Regulamento (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, em vigor desde  25 de Maio de 2018, que tem por objectivo a proteção das pessoas singulares no que diz respeito às regras inerentes ao tratamento de dados pessoais e sua livre circulação.

            Para este Regulamento – cfr seu art 3º - entende-se por «dados pessoais», as informações que permitam identificar ou tornar identificável  uma pessoa singular «como, por exemplo, um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular».

            De acordo com o Considerando n.º 65 desse Regulamento, «Os titulares dos dados deverão ter direito a que os dados que lhes digam respeito sejam rectificados e o “direito a serem esquecidos” quando a conservação desses dados violar o presente regulamento ou o direito da União ou dos Estados-Membros aplicável ao responsável pelo tratamento». (…). Em especial, os titulares de dados deverão ter direito a que os seus dados pessoais sejam apagados e deixem de ser objeto de tratamento se deixarem de ser necessários para a finalidade para a qual foram recolhidos ou tratados, se os titulares dos dados retirarem o seu consentimento ou se opuserem ao tratamento de dados pessoais que lhes digam respeito ou se o tratamento dos seus dados pessoais não respeitar o disposto no presente regulamento».

            Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, depois de no seu art 7º referir que toda  pessoa possui o direito de ter assegurado o respeito por suas vidas privadas e que todas  as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos, refere no  art 8º, sob a epígrafe, “Protecção de dados pessoais”,  que  «Todas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito» – nº 1- e que «Esses dados devem ser objecto de um tratamento legal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei»-nº 2.

            Já o art 12.º da Declaração Universal dos Direitos dos Homens preconiza que ninguém poderá sofrer quaisquer interferências no âmbito de suas vidas privadas, ou ataques à sua honra ou reputação.

           A nossa CRP também revela preocupação com esta questão, como resulta do seu  art 35º, onde garante, no nº 1, a todos os cidadãos o direito de acesso de seus dados informatizados,  podendo os mesmos exigir a sua retificação e atualização, bem como o direito de conhecer a finalidade a que se destinam.

            O direito ao esquecimento radica nos chamados  “novos direitos fundamentais de personalidade”, cujo escopo principal é a proteção da intimidade e da privacidade, e consequentemente, a preservação da dignidade da pessoa humana.[2]

           A ideia fundamental, é a de que os factos passados menos abonatórios que não possuam interesse público e actualidade e que possam acarretar danos à vida privada de terceiros devem ser esquecidos.

            Do que já  se vê  que o direito ao esquecimento  pressupõe  uma ponderação de valores, colocando em confronto directo os direitos de personalidade que tutelam a intimidade, a honra, o bom nome, a imagem e a reputação, com o interesse público na divulgação dos factos que possam ferir esses direitos de personalidade, relacionando-se necessariamente, na actual  era informática,  com o sistema de protecção de dados,  podendo implicar, quando prevalecente, a  desindexação de informações a fim de se preservar a personalidade dos envolvidos.

            A ideia não é, no entanto, e necessariamente, a da eliminação de todos os dados e referências de factos ocorridos no passado, apenas evitar a exposição desnecessária e prejudicial de acontecimentos que no presente não tenham já interesse público ou histórico, que não tenham o seu conteúdo atualizado ou ainda que prejudiquem a ressocialização e a regeneração daqueles que pretendem mudar de vida. Nas palavras de Diego Moura de Araújo, muito do direito ao esquecimento radica na possibilidade de ser dada «uma segunda chance àqueles que cometeram ou sofreram alguma falha em momento remoto e pretendem não mais serem estigmatizados por algo que possa denegrir suas imagens ou trazer recordações dolorosas muitas vezes já superadas pelo decurso do tempo».

            É nessa linha que se insere o art 17º do já referido Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, no entanto, tem o cuidado de determinar no seu nº 3,  que o direito ao esquecimento não prevalece se na ponderação de valores se revelar necessário o exercício da liberdade de expressão e de informação; se houver o cumprimento de uma obrigação legal; se houver motivos de interesse público no domínio da saúde pública, para fins de arquivo de interesse público, investigação científica, histórica ou fins estatísticos, bem como para efeitos de declaração exercício ou defesa de direitos em processo judicial.

            O que significa que, «o prolongamento da conservação dos dados pessoais deverá ser efetuado de forma lícita quando tal se revele necessário para o exercício do direito de liberdade de expressão e informação, para o cumprimento de uma obrigação jurídica, para o exercício de funções de interesse público ou o exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento, por razões de interesse público no domínio da saúde pública, para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, ou para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial»

           Do que resulta que o direito ao esquecimento não é absoluto, implicando sempre a ponderação dos interesses colidentes, colisão que implicando interesses iguais ou da mesma espécie deverá ser resolvido em função da aplicação  dos critérios do art 335º CC.

           Por outras palavras, estando em causa a ponderação entre normas de mesma hierarquia (do mesmo status constitucional) há que determinar até que ponto o grau de realização de um direito justifica o grau de sacrifício de outro.

            Particularizemos em relação à situação dos autos.

            O confronto será entre o referido direito ao esquecimento, e o consequente  apagamento dos dados do Requerente referentes às dividas que mantém junto do Requerido  decorrentes do processo de falência,  e o interesse  público que subjaz  à obrigação atrás referida e resultante, no essencial, do art 3 º do DL 204/2008 de 14/10.

           Como é sabido, a CRC (Central de Responsabilidades de Crédito), legalmente enquadrada pelo DL 204/2008 de 14/10, é um sistema de informação gerido pelo BdP, constituído por informação recebida das entidades participantes, nomeadamente instituições de crédito, sobre responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito e por um conjunto de serviços relativos ao seu processamento e difusão.

          E tem como objectivo apoiar as entidades participantes na avaliação do risco de concessão de crédito.

           Para o efeito, estas entidades podem aceder à informação agregada das responsabilidades de crédito de cada cliente, ou potencial cliente (quando tenha ocorrido um pedido de concessão de crédito ou mediante autorização do mesmo) relativamente ao conjunto do sistema financeiro.

           Mas o objectivo é mais vasto, pois que a informação sobre responsabilidades de crédito pode ser usada pelo BdP para efeitos de supervisão das instituições financeiras, análise da estabilidade do sistema financeiro, compilação de estatísticas e de realização de operações de politica monetária e de crédito intradiário.

            Desde o momento em que estes objectivos só são conseguíveis em função do cumprimento do acima referido dever das entidades participantes, a informação destas contém um indiscutível interesse público legítimo, tendo de se considerar, absolutamente lícito.

            Acresce que, como acima se viu, decorre do mencionado art 17º do Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, que o direito ao esquecimento não prevalece se na ponderação de valores necessária intervier o cumprimento de uma obrigação legal, mais a mais, de inegável interesse público.

           O que significa que por esta via o A. não tem  direito  ao pretendido esquecimento, com o consequente apagamento dos seus dados pessoais no referente  às dividas que mantém junto do Requerido depois do encerramento do processo de falência.

           O que não muda, ainda que tenha existido sentença de reabilitação do  Requerente enquanto falido – transitada em julgado em 21/6/2019 - ao abrigo dos então arts 238º e 239º do CPEREF, visto que a reabilitação que o mesmo obteve, o foi nos termos da al c) daquele art 238º - «pelo decurso de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão que tiver apreciado as contas finais do liquidatário» - e não  ao abrigo da al b) desse dispositivo - «depois do pagamento integral ou da remissão de todos os créditos que tenham sido reconhecidos» .

           Entende o Requerente, não obstante, que, não tendo sido, enquanto falido, indiciado pela prática de infracções penais referidas no art 224º do então CPEREF – insolvência dolosa, negligente e favorecimento de credores -  caso em que, segundo o art 239º/1, a reabilitação dependeria da extinção  dos efeitos decorrentes dessa indiciação – e tendo beneficiado da referida sentença de reabilitação, com o que deixou de estar sujeito às limitações constantes do art 148º do CPEREF –  inibição para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa – tendo, por assim ser, recuperado todos os poderes de disposição e administração patrimonial, a sua posição, para o efeito que está em causa no pedido dos presentes autos, se deverá fazer equivaler à do insolvente que haja beneficiado da exoneração do passivo restante, devendo ser-lhe admitido um reinicio de vida sem as restrições resultantes das dividas decorrentes da falência.

           Não se vê, no entanto, que possa estabelecer-se qualquer equivalência ou sequer paralelo entre as referidas posições.

           È que a exoneração do passivo restante implica muito mais  do que a reabilitação do falido, ficando dependente de um exigente procedimento por parte do insolvente  durante um período, primeiro, previsto como de cinco anos, hoje, apenas de três,  que o legislador entendeu adequado para «viabilizar uma razoável satisfação dos créditos sobre a insolvência» [3] . Quer dizer o fresh star que o instituto em causa permite não se alcança sem um sensível esforço do insolvente e sem uma satisfação ponderada dos créditos sobre a insolvência.

           Trata-se de um instituto nascido da preocupação com que os legisladores  passaram a percepcionar  o sobre-endividamento enquanto causa  de graves problemas sociais e simultaneamente, enquanto consequência, em grande medida, da “democratização” do crédito fomentada pelos actuais regimes político económicos do mundo ocidental e que constitui factor do crescimento em que assentam, entendendo, por isso,  deverem passar a  assumir a prevenção e a possível reabilitação económica do insolvente particular.

           Nesta óptica, surgiram essencialmente dois modelos para lidar com este fenómeno: o do “fresh –start”, que encara o sobre endividamento como um risco natural da economia de mercado,  entendendo que o consumidor que recorre ao crédito e que é mal sucedido, sendo e devendo manter-se como um agente económico activo, não deve ser excessivamente penalizado, antes o seu insucesso deve ser também suportado pelos credores que encaram, aliás, o sobreendividamento como um risco antecipado e calculado - por isso são pagas as dívidas possíveis e perdoadas as restantes; e o da reeducação, em que os indivíduos são encarados, não já como agentes económicos activos interferindo numa actividade que se faz com risco, mas essencialmente como vítimas de um sistema de fácil e apelativo acesso ao crédito, merecendo ser ajudados, quando as circunstâncias que conduziram às suas dificuldades económicas sejam imprevisíveis e não intencionais.

O CIRE terá absorvido características de um e outro destes sistemas, mas, de sobremaneira, no de “fresh-start”, claras no instituto da exoneração do passivo restante.

Trata-se de um mecanismo que é sempre dependente do pedido expresso do insolvente, e implica a cessão, do que venha a considerar-se como o seu rendimento disponível, aos credores, por intermédio de um fiduciário, perdurando essa cessão durante o prazo (fixo) de cinco anos (agora três) subsequentes ao encerramento do processo de insolvência.

Implica por parte do insolvente o cumprimento de uma série de deveres destinados a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para a referida cessão aos credores – cfr art 239º/4 - de tal modo que, quando o mesmo incumpra, culposamente, ou com negligência grave os deveres estabelecidos para esse período de cessão, o juiz poderá declarar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. 

Traduz-se, como o nome indica, da liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência  nos referidos cinco, hoje, três, anos, posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente (exceptuando-se o passivo que corresponda a créditos por alimentos, por indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamadas nessa qualidade, dos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra ordenações e dos créditos tributários - cfr nº 2 do art 245º CIRE).

Do que se veio de dizer, fácil é concluir que a reabilitação do falido não  corresponde à exoneração do passivo restante, nem em função do esforço que exige ao falido nem, apesar de tudo, na extinção, ainda que muito limitada, dos créditos sobre a insolvência a que conduz.

Consequentemente, não há paralelo possível entre os mecanismos em causa  - as razões que presidem à consagração do fresh star na insolvência  não são idênticas às que presidiam à reabilitação do falido no âmbito do CPEREF, ao contrário do que o apelante o refere nas conclusões p) e q) .

O mais que o Requerente/apelante poderia referir em abono da sua situação, seria  a circunstância, óbvia, de não ter podido usar do mecanismo em causa por então o mesmo não existir, mas, na realidade, não se vê que ao mesmo não tivesse sido possível, após a entrada em vigor do CIRE, e decorridos que se mostrassem os 10 anos a que se reporta o art 238º al b) desse Código sobre a declaração da falência ou da reabilitação, apresentar-se à insolvência e requerer o beneficio da exoneração do passivo restante.

            Pondere-se agora a segunda questão objecto do recurso - se a actuação do Banco Requerido junto da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC) implica restrições à capacidade civil do Requerente que se devam ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com aquela actuação, e se, por assim ser, se deve fazer prevalecer o direito constitucional à capacidade relativamente ao infraconstitucional  de "protecção bancária".

            Estão em causa as consequências a que se reporta o facto 15 - foi recusada ao Requerente  a abertura de conta bancária no Activobank, no Banco 1..., na Caixa Geral de Depósitos, no Bankinter e no Santander;  estão-lhe vedadas aquisições com recurso a crédito; foi-lhe recusado trabalho, como gestor de conta, do Banco CTT; está-lhe vedado concorrer a um projecto do IAPMEI, no âmbito no Instituto de Emprego, para criação de emprego próprio.

Refere o art 26º/1 da CRP que «A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, a imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação». Estabelecendo  o nº 2 que, «A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias a dignidade humana, de informações relativas as pessoas e famílias» . E o nº 4 refere que « (…) as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei (…) ».

Como é sabido, na capacidade civil distingue-se a de gozo e a de exercício.

A capacidade de gozo de direitos corresponde à capacidade jurídica e é inerente à personalidade jurídica.  «Fala-se de capacidade jurídica para exprimir a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas» [4]. È, afinal, o que resulta do art 67º do CC - «as pessoas podem ser sujeitos de quaisquer relações jurídicas, salvo disposição legal em contrário, nisto consiste a sua capacidade jurídica».

Já a capacidade de exercício ou capacidade de agir, e ainda nas palavras de Pais de Vasconcelos[5], «é a idoneidade para actuar juridicamente, exercendo direitos ou cumprindo deveres, adquirindo direitos ou assumindo obrigações, por acto próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador, isto é, um representante escolhido pelo próprio representado».

Em face destes conceitos, não repugna que se enquadrem como restrições à capacidade civil, a recusa de abertura de conta bancária e a negação do recurso  ao crédito para adquirir bens ou serviços, estando em causa negócios jurídicos básicos, como o é, a abertura de uma conta ou o recurso a crédito; também a limitação na escolha do trabalho a desenvolver de acordo com as respectivas qualificações profissionais, constitui constrangimento muito sério e grave para a qualidade de vida económica, financeira e social.

  As restrições implicadas no facto 15 da matéria de facto contendem, indiscutivelmente, com um feixe alargado de direitos de índole pessoal, que se mostram reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, incidindo não apenas na capacidade civil, mas também no bom nome e reputação, e nos direitos económicos, ligando-se à dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual.

Enquanto restrições à capacidade civil que são, a sua admissibilidade constitucional dependerá de lei que as preveja, de acordo com o disposto no nº 4 do já referido art 26º da CRP, tanto mais que segundo o nº 2 desta norma, também acima transcrita, «A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas as pessoas e famílias».

Sucede que, quem, porventura, poderá ter utilizado abusivamente e de forma contrária à dignidade humana as informações decorrentes da CRC referentes às dividas do aqui Requerente, não é o Requerido, mas as entidades mencionadas no facto 15.

           O que poderá suceder, relativamente aos bancos, não, exactamente porque não ajam ao abrigo de lei – pois, como entidades participantes, podem aceder à informação agregada das responsabilidades de crédito de cliente potencial justamente para procederem à  avaliação do risco de concessão de crédito – mas, porque, porventura, ajam excedido nesse  procedimento a finalidade a atingir.

Mas ao Requerido não podem imputar-se os factos em causa, porque a sua conduta não é ilícita e tão pouco causa direta dos mesmos.

Tornando-se, por isso, desnecessário ponderar se as referidas restrições à capacidade civil do Requerente se devem ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com a actuação do Requerido junto da CRC.

Sempre se dirá, no entanto, que não seria porque as dividas do Requerente ao banco Requerido foram contraídas há mais de 25 anos,  e porque estão em situação de manifesto incumprimento há mais de 20, e são  muito pequenas, ou mesmo insignificantes as  respectivas expectativas de recuperação, que deixa de ser necessário, adequado e racional, em função dos objectivos a atingir pela CRC– sendo que a necessidade, adequação e racionalidade, constituem os três vectores em que se analisa o principio da proporcionalidade [6] - o seu reporte mensal à mesma e o registo pelo Requerido dos dados inerentes.

Donde se conclui pela improcedência dos pedidos no presente processo, devendo,  por isso, confirmar-se a sentença recorrida.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

                                                          

                      Coimbra, 21 de Maio de 2024
(Maria Teresa Albuquerque)
(Luís Ricardo)
(Pires Robalo)

(…)

               [1] - Cfr  Mª dos Prazeres Beleza, «O Processo especial de tutela da personalidade no CPC de 2013», onde se manifesta – p. 72 - no sentido de que a deslocação da tutela processual dos direitos de personalidade da jurisdição voluntária para a contenciosa «não terá sido a melhor opção, porque afasta a aplicação de regras que me parecem manifestamente adequadas à melhor tutela dos direitos em causa».

               [2] - Na subsequente exposição referente ao “direito ao esquecimento” acompanhar-se-á a tese de mestrado em Ciências Jurídico-Civis de Gisele Amaral, «Da Defesa da Personalidade e o Direito ao Esquecimento», disponível na internet 
                [3]  - «Colectânea de Estudos sobre a Insolvência – A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares», Luís Carvalho Fernandes, p 300.
                [4] - Pais de Vasconcelos, «Teoria Geral do Direito Civil», 4ª ed, p 194
                [5] - Obra referida, p 195, 220 e 221
                [6] - «Constituição Portuguesa Anotada», de Jorge Miranda /Rui Medeiros, Tomo I, 2005, p 162/163

Quanto à necessidade, referem: «A necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido que imponha intervenção ou decisão; equivale à exigibilidade desta intervenção ou decisão. A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objectivo almejado, se destina ao fim contemplado pela norma, e não a outro; significa, pois, correspondência de meios a fins. A racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu implica justa medida: que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos); que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido – nem mais, ou menos».