Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
641/24.0T8FIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROVA POR ARBITRAMENTO
VERDADE JUDICIAL
INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO
COLISÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – FIGUEIRA DA FOZ – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º, N.º 4 E 34.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
ARTIGO 335.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O art. 34º da C.R.P., no seu nº2, prevê diretamente a possível restrição da proteção do direito à inviolabilidade do domicílio, cometendo à lei a sua concretização e delimitação.

II – Em caso de colisão de direitos – in casu entre o direito à inviolabilidade do domicílio com o direito à busca da verdade num processo judicial / produção de meios de prova visando tal fim – importa proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. art. 335º do C.Civil), nomeadamente ponderando se a produção do meio de prova é, não obstante, relevante, imprescindível, justificada, adequada e proporcionada para o fim em vista.

III – Se se concluir que o decretado arbitramento é relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para apuramento do valor do pedido reconvencional, assim em concreto sobrelevando os invocados direitos fundamentais em presença [a saber, o direito à inviolabilidade de domicílio e o direito à reserva da via privada], justifica-se a compressão destes últimos em detrimento do direito à busca da verdade num processo judicial / produção de meios de prova visando tal fim.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

      Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                *

1 – RELATÓRIO

AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, e CC, peticionando:

1) a condenação das RR na reposição do muro no estado e local em que se encontrava antes da sua demolição, dentro de prazo não superior a 90 dias

Subsidiariamente,

2) caso as RR não procedam à demolição e reposição do muro no prazo indicado, a condenação das RR a pagar as despesas decorrentes da demolição das obras inovadoras efetuadas e da reposição/reconstrução do muro, a executar por terceiro, neste caso, a A, no valor de 10.000,00€, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alega a A. que as RR, sem consentimento da A. (e sem prévia autorização da entidade administrativa), demoliram um muro e construíram um portão na parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal, melhor identificado na p.i., integrado por duas frações autónomas, fração e A e fração B, propriedade (à data) da 1.ª R. e da A, respetivamente, e quintal comum com áreas de afetação exclusiva a cada uma das aludidas frações. Mais alega que tal construção acarreta um prejuízo para a área total do prédio (cedida ao domínico público) e para a respetiva arquitetónica.

De referir que em termos de “Valor da acção”, a A. consignou “10.000,00 euros”.

                                                           *

Por seu turno, as RR contestaram a ação.

Confessam a construção de um muro na propriedade em causa, mas impugnam a demais matéria alegada na p.i., sustentando que tal portão foi construído no muro e dentro do terreno pertencente à fração A (à data, da 1.ª Ré), sem afetar o quintal da Autora, sem cedência de área ao domínio público e sem prejuízo estético.

Mais alegam as RR que, na sequência da constituição da propriedade horizontal, o quintal destinado à utilização da fração A ficou encravado/sem saída para a rua. Por fim, sustentam que o portão construído é necessário à utilização do quintal afeto à fração A.

Nessa sequência, as RR apresentaram pedido reconvencional peticionando, no caso de ser procedente a ação da A., o reconhecimento de uma servidão de passagem entre os portões situados na fração da B, anteriormente utilizados para aceder ao quintal.

No final deste articulado, as RR., em termos de “Valor” grafaram “O da acção”.

                                                           *

Na sequência processual, e depois da admissão do pedido reconvencional formulado, a Exma. Juíza de 1ª instância determinou que as RR. concretizassem o valor atribuído à reconvenção, por tal ser «(…) indispensável à fixação do valor da presente ação nos termos do artigo 299.º, n.º 2 do CPC».

Correspondendo a tal despacho, as RR., aduziram «Nos termos do artigo 302.º, n.º 4 do CPC, as RR atribuem à reconvenção o valor de 10.000,00 €, juntando comprovativo do pagamento da taxa de justiça.»

                                                           *

Foi na sequência proferido despacho atinente a este particular no sentido de «(…) em derradeira oportunidade, ordenar nova notificação das RR para concretizarem o valor atribuído (…)», na medida em que o objetivo processual era «(…) apurar o valor estimado do conteúdo e duração do direito objeto da ação (reconvencional)», logo se advertindo que «Na falta de elementos, impor-se-á a fixação do valor da reconvenção por meio de arbitramento (309.º do CPC)».

                                                           *

As RR. não corresponderam a esta notificação.

                                                           *

Na Ata da Audiência Prévia realizada de seguida, encontra-se consignado o seguinte relativamente a este particular:

«DESPACHO

Na sequência do nosso despacho de 12-11-2024, impõe-se definir um valor ao pedido reconvencional, ao abrigo do disposto nos artigos 302.º, n.º4, 306.º, n.º 1, 308.º e 309.º, todos do CPC.

No caso dos autos, as Rés pretendem a declaração da existência de uma servidão legal de passagem por forma, caso sejam condenadas, possam aceder à sua fração autónoma através da fração autónoma da Autora e respetivo portão.

Considerando o disposto no artigo 302.º, n.º4 do CPC, na falta de acordo entre as partes quanto ao valor a atribuir à mencionada servidão de passagem, determino o arbitramento, destinado a apurar o benefício do prédio dominante, o encargo sobre o prédio serviente com base na estimativa do proveito e incómodos que der lugar uma servidão de passagem como a pretendida, com eventual repercussão no respetivo património e duração provável.

Para o efeito, nomeio perito a pessoa que vier a ser indicada pela secção, lavrando-se previamente cota com essa nomeação e após notifique ambas as partes nos termos do artigo 467.º, n.º 2 do CPC.

O objeto da perícia com vista ao arbitramento do valor da reconvenção incide sobre o benefício/prejuízo acima elencado. A perícia deve ser concluída no prazo máximo de trinta dias e o Sr. Perito poderá prestar o compromisso legal no próprio relatório a apresentar nos autos.

Antevendo-se a necessidade de o Sr. Perito aceder ao local, deverá o mesmo solicitar à aqui Autora e Mandatário das Rés a articulação oportuna de data para o efeito. Para tanto, disponibilize os contactos disponíveis nos autos para esse efeito.

(…)

Em seguida, foi solicitada a palavra pela Autora, sendo-lhe concedida. No uso da mesma disse o seguinte:

Salvo erro, ao abrigo do disposto no artigo 519.º do CPC, pode a parte invocar violação dos seus direitos fundamentais no que ao objeto da perícia concerne. No caso presente, tratando-se do domicílio da Autora e da sua família, uma vez que o Código Civil permite mais do que um domicílio, tem a Autora e a sua família o direito de recusar a entrada no mesmo ao abrigo do disposto no artigo 18.º do Constituição da República Portuguesa uma vez que a tutela dos direitos fundamentais obriga entidades públicas e privadas.

Sempre com o maior respeito por opinião contrária, uma vez que a Mmª Juiz entende que está em causa o direito de passagem por uma fração, o valor a fixar para o presente pedido reconvencional seria o atribuído a essa fração, sendo, com o maior respeito, desproporcional determinar a violação de domicílio para fixação do valor de um pedido reconvencional abusivo e que viola o regime da propriedade horizontal.

(…)

Concedida a palavra ao Ilustre Mandatário das Rés, o mesmo pronunciou-se nos termos constantes da gravação, defendendo, em suma que deverá ser decidida a perícia com a entrada no jardim da autora.

(…)

*

Após, a Mmª Juiz proferiu o seguinte:

                                                             DESPACHO

Não se ignorando a existência de um conflito de direitos na sequência da perícia agora ordenada, entendo que, caso os elementos dos autos não sejam suficientes para a decisão que se impõe e se afigure necessária uma visita ao exterior da habitação da Autora, nomeadamente à área exterior do quintal, a qual, segundo resulta do registo averbado na respetiva conservatória relativamente à constituição da propriedade horizontal, é parte comum, embora afeta ao uso exclusivo da dita fração da autora, e não se ignorando assim a intromissão em espaço privado, porque afeto à utilização pela Autora, em face da natureza do pedido reconvencional e da finalidade e relevância do valor a atribuir à ação nos termos já indicados no despacho supra, que a eventual necessidade de visitar o local – no seu exterior -, não se afigura desproporcional ao direito que se pretende aqui definir no que concerne à identificação do valor do eventual e alegado direito de servidão de passagem.

Mais se acrescenta que o acesso a tal espaço comum, mas afeto à utilização da fração A deve ser concedido ao abrigo dos princípios da cooperação e da boa-fé processual consagrados nos artigos 7º e 8º do CPC.

(…)

Em seguida, foi novamente solicitada a palavra pela Autora, sendo-lhe concedida. No uso da mesma disse o seguinte:

Não se conformado com o aliás douto despacho uma vez que a propriedade horizontal em causa tem um acesso distinto às áreas comuns, entende a Autora não estar obrigada à observância do princípio da boa-fé e do dever de cooperação para atingir um fim proibido por lei pelo que manifesta a intenção de interpor recurso do douto despacho.

(…)»

                                                           *

É com esta decisão que a Autora não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

«I - O objecto do presente recurso, a subir em separado, e com efeito meramente devolutivo, por, de outra forma, se tornar completamente inútil, incide sobre o meio de prova por arbitramento a realizar para determinação do valor do hipotético pedido reconvencional formulado em alternativa pelas RR, para o caso de proceder o pedido da ora A. de demolição de obra de inovação/alteração sem autorização quer do condomínio, quer camarária, decisão tomada em audiência prévia de 19.12.2024.

II - O prédio sito na Rua ... da ... é um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, composto por duas fracções, e uma zona comum que é o quintal, dividido em duas zonas de igual área, afectas ao uso exclusivo da fracção que imediatamente, antecede cada uma delas.

III - Tal prédio urbano foi herdado pela A e pela Ré CC, e chegou à propriedade destas através das partilhas realizadas em inventário judicial, por óbito do Pai da A., Eng. DD.

IV - No inventário judicial, a Ré CC escolheu para si a fracção A. e aceitou a propriedade horizontal tal como tinha sido instituída pelo Pai e Tia, em 2008, pelo que renunciou expressamente aos hipotéticos direitos que tem vindo a invocar. (aliás, nessa altura escolheu a fracção que se encontrava em melhor estado por ter sofrido obras recentes para a constituição da propriedade horizontal)

V - Acresce que não estamos perante dois prédios rústicos encravados pertencentes a donos diferentes, não há prédio serviente, e prédio dominante, existe, isso sim, um único prédio, constituído em regime de propriedade horizontal.

VI - Caso o prédio tivesse natureza rústica, e se encontrasse encravado, sempre teria a Ré reconvinte que exercer o direito sobre o prédio confinante em relação ao qual tal direito se mostrasse menos oneroso, ou seja, em relação aos vizinhos cujos terrenos confinam a Norte e a Nascente.

VII - No caso vertente, conforme resulta das certidões juntas sob docºs nºs 2 e 3,e do registo gráfico da planta de implantação inserido no texto deste recurso (que instruiu o processo camarário para constituição da propriedade horizontal) a fracção B, da recorrente, é composta por é uma habitação tipologia T4, a que foi atribuído o nº de polícia ...8, composta de rés-do-chão, primeiro andar, dependências e logradouro com a área de 155m2 certidão permanente com código de acesso actualizado PP-3092-...51-06...17.

VIII - Por seu turno, a fracção A é composta por habitação tipologia T4, a que foi atribuído o nº de polícia ...8..., composta de rés-do-chão, primeiro andar, dependências e logradouro com a área de 122m2.doc junto com a p.i. sob o n°4, e com código de acesso actualizado PP-3092-...43-06...17.

IX - Ambas as fracções têm acesso directo e independente pela via pública, tudo se passando como se de um condomínio de duas moradias geminadas se tratasse, cada uma com um portão e uma porta da rua independentes.

X - O portão constante da fotografia junta sob documento n°12 com a contestação das RR é o portão de acesso ao edifício e dependências que fazem parte integrante da habitação da A., composta pela fracção B, conforme descrito supra.

XI - A área de habitação da A. (fracção B) tem a separá-la do quintal um segundo portão, sendo que o espaço contido entre esses dois portões é, de acordo com o que consta da certidão, a habitação da A, pois compreende ainda as dependências e o acesso às mesmas, integradas na habitação da fracção A.

XII - Este logradouro, que tem à sua volta as dependências que compõem a fracção, e é através dele que se circula entre o edifício principal e as dependências, pelo que constitui, conforme se pode constatar da descrição, parte integrante da habitação da A., e ora recorrente, (o mesmo sucede com o kigradouro das RR, onde circulam entre o edifício principal e dependências anexas))

XIII - Daqui se conclui que as RR formulam pedido de que lhes seja reconhecida a existência de uma servidão pelo interior da fracção/habitação da A, que fica delimitada pelo portão de acesso ao edifício e à área coberta das dependências que o integram, e pelo portão que dá acesso à área de uso exclusivo da sua fracção, na parte comum do condomínio, que é o quintal, dividido conforme descrito supra em duas zonas de uso exclusivo, na zona posterior de cada uma das fracções.

XIV - Ao determinar a realização de produção de prova por arbitramento para avaliação desse hipotético direito, ainda que apenas na zona de uso exclusivo de ora A. e recorrente, por ser parte comum, não teve o Tribunal "a quo" presente que para aceder a essa zona teria de violar o domicilio da mesma A., pois o acesso é feito pelo interior da habitação da A. e recorrente.

XV - A área situada entre o portão que permite acesso ao edifício habitacional, e dependências contiguas, e o portão situado a nascente desse logradouro, que dá acesso à zona do quintal de uso exclusivo da A. é parte integrante da habitação consoante certidão permanente cujo código de acesso actualizado se encontra indicado supra.

XVI - Sucede que também qualquer alteração na zona comum de uso exclusivo viola o disposto no art 1415° do Código Civil.

XVII -  Conforme Ac TRL de 3.05.1974, BMJ 237°, 300..." o art° 1550°, nº 1 do Código Civil não reconhece o poder legal de constituição de uma servidão de passagem sobre prédio urbano"...

XVIII - Conforme acórdão do TRP de 31.05.2007, proc 0732912, dgsi.Net

..."No incidente de verificação do valor da causa, só deve ser ordenada a produção de prova através de arbitramento quando a mesma se revelar estritamente necessária,..."

XIX - Atento o disposto no art 417°, nº 3 a) e b) do CPC actual (anterior art 519°do CPC de 1961) e a excepcionalidade da situação e a ilegalidade do pedido reconvencional, deveria o Tribunal "a quo" ter optado por outra solução, em obediência ao entendimento jurisprudencial já citado, e ao princípios de equidade e imparcialidade.

XX - Conforme pode ler-se no sumário do recº 4348/19.2T8.ALM-A.L1-7, de 02.02.21, tirado por unanimidade em sede de recurso de apelação, relatado pelo Sr. Desembargador Dr. Carlos Oliveira,

…”

1. 0 direito a um processo equitativo (Art. 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, sendo nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações (Art. 32.º n.º 8 da Constituição) e que constituam uma violação aos direitos à palavra e à reserva da vida privada, consagrados no Art. 26.º n.° 1 da nossa Lei Fundamental.

2. Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são materialmente proibidos, seja em processo penal, seja em processo civil, impondo-se a aplicação neste último das correspondentes normas estabelecidas naquele sobre proibição de prova.

3. O nosso sistema legal de proibição de prova ilícita dá clara prevalência aos direitos pessoais quando estes são violados através de métodos de prova proibidos.

…”

XXI - Como sublinha ainda o Prof. VIEIRA DE ANDRADE, "haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta."

XXII - No caso vertente, não estamos perante direitos iguais, tanto mais que o que as Rés reconvintes, com manifesto abuso de direito pretendem é atravessar pelo interior da habitação da aqui recorrente, que é composta por edifício principal e dependências, sendo o logradouro o espaço de ligação entre todas essas dependências.

XXIII - Consequentemente, o Tribunal "a quo", ao determinar a realização da diligência, incorreu no douto despacho ora sob recurso, em violação do disposto no art 417°, nº 3 alínea a) e b) do CPC, do direito à inviolabilidade de domicílio consagrado no art° 34° da CRP e artº 8º da Convenção, do direito à reserva da via privada previsto no art 26, nº 1 da CRP e do direito de propriedade previsto no art 65° da CRP, bem como do disposto no artº 1415°, 1, 1550°, 335° e 70°, todos do Código Civil.

XXIV - Ao invés, deveria o Tribunal "a quo" ter rejeitado por inadmissibilidade legal o pedido reconvencional, ou, se assim não entendesse, deveria ter relegado a fixação de tal valor para momento posterior à produção de prova, a efectuar, se necessário com realização de prova por inspecção judicial, desse modo assegurando o respeito pelos direitos fundamentais da A. e sua família, e o direito desta a um processo justo e equitativo previsto no artº 20º, n° 4 da CRP.,

XXV - Deveria ter decidido com respeito pelo disposto no artº 17º, nº 3 a) e b) do CPC, abstendo-se de determinar a realização de prova por arbitramento com violação do direito à inviolabilidade de domicilio da A. e família, e deveria ter considerado legítima a oposição manifestada pela A. por ser legal, ao invés de a exortar a cumprir com um dever de colaboração que viola o seu direito de resistência, ínsito no artº 21º da CRP.

Termos em que, Venerandos Desembargadores, após ser admitido, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido, por contrário ao disposto no art 417°, nº 3 b) do CPC, e demais preceitos citados nas conclusões da motivação de recurso, assim se fazendo INTEIRA JUSTIÇA!»

                                                           *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

           2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- desacerto do despacho que determinou a realização de prova por arbitramento para fixação do valor do pedido reconvencional.

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante para o conhecimento do presente recurso, é, no essencial, a que consta do Relatório antecedente.

*

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A questão que importa solucionar no presente recurso consiste é a que se traduz no alegado desacerto do despacho que determinou a realização de prova por arbitramento para fixação do valor do pedido reconvencional.

No requerimento inicial a Autora indicou o valor para a ação de € 10.000,00 (dez mil euros), valor que é correspondente ao pedido formulado atinente às despesas decorrentes da demolição das obras inovadoras efetuadas pelas RR., e da reposição/reconstrução do muro em que as obras tiveram lugar, a executar por terceiro.

As RR., após convite, quanto à sua pretensão de declaração da existência de uma servidão legal de passagem por forma a que, caso fossem condenadas, pudessem aceder à sua fração autónoma através da fração autónoma da Autora e respetivo portão, limitaram-se a indicar que “Nos termos do artigo 302.º, n.º 4 do CPC, as RR atribuem à reconvenção o valor de 10.000,00».

Neste conspecto, depois de ter preliminarmente sublinhado que o valor da ação/reconvenção não podia ser arbitrariamente fixado, a decisão recorrida invocou que o arbitramento determinado estava «(…) destinado a apurar o benefício do prédio dominante, o encargo sobre o prédio serviente com base na estimativa do proveito e incómodos que der lugar uma servidão de passagem como a pretendida, com eventual repercussão no respetivo património e duração provável.»

Que dizer?

Temos presente que a servidão cria um direito em benefício do prédio dominante (fração “A”) e um encargo sobre o prédio serviente (fração “B”), sendo que o valor daquele direito determina-se pela maior estimativa dos cómodos a que der lugar.

Assim, para a fixação do valor do direito de servidão, há-de atender-se ao proveito ou comodidade que para o prédio dominante representa a existência da servidão, computando-se tal proveito ou comodidade.

Por outro lado, de acordo com a própria “natureza das coisas”, o valor das ações que se reportem a direitos reais menores determina-se atendendo, em concreto, às utilidades proporcionadas ao seu titular (benefícios ou utilidades com eventual e direta repercussão no respetivo património) e à sua duração provável (cf. art. 302º, nº 4 do n.C.P.Civil).[2]

Donde, no caso ajuizado, para consubstanciar o conteúdo e duração provável do invocado direito de servidão das RR. (art. 302º, nº 4 do n.C.P.Civil), importa(va) apurar, sobretudo, o proveito ou comodidade que para o prédio dominante das RR. representaria a existência da servidão cujo reconhecimento as mesmas intentaram ver reconhecido com o pedido reconvencional que deduziram.

Ora se assim é, e na medida em que se desconhece materialmente a dimensão (extensão e grau) do proveito ou comodidade que para o prédio dominante das RR. representaria a existência da servidão – desde logo por não ter sido alegada em termos quantificáveis ou suscetíveis de fundar um cálculo! –, cremos que se encontra perfeitamente justificada ab limine a opção de determinar a realização de prova por arbitramento para fixação do valor do pedido reconvencional (cf. art. 309º do mesmo n.C.P.Civil).

Dito isto, vejamos agora da razão que assistirá à A./recorrente em alegar que essa diligência do arbitramento não era “estritamente necessária”, e bem assim que a mesma se traduz na violação de direitos fundamentais da mesma (mais concretamente do direito à inviolabilidade do domicílio, consagrado no art. 34º da Constituição da República Portuguesa[3] e art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), donde ser um meio de prova materialmente proibido, sob pena de não estar a ser prosseguido um processo equitativo (garantia constitucional ex vi do art. 20º, nº4 da mesma C.R.P.).

Quanto ao argumento de a diligência do arbitramento não ser “estritamente necessária”, salvo o devido respeito, a A. não fundamenta minimamente uma tal alegação, posto que não aduz como e por que via poderia atingir-se o objetivo em vista – cálculo do proveito ou comodidade que para o prédio dominante das RR. representaria a existência da servidão – em alternativa/substituição do meio de prova “arbitramento”!

Na verdade, limita-se a invocar que a reconvenção não deveria ter sido admitida, por infundamentada legalmente.

Sucede que a assim entender, só pela via recursiva poderá afrontar uma tal situação, não sendo essa invocação relevante nem pertinente para efeitos de impugnar a decisão que considerou necessária/imprescindível a realização de prova por arbitramento para fixação do valor do pedido reconvencional.

Vejamos, de seguida, da argumentação centrada no direito à inviolabilidade do domicílio.

Neste particular, salvo o devido respeito, logo entendemos ser de contrapor que a diligência do determinado arbitramento nem sequer contende com os invocados direitos à reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade do domicílio.

Atente-se que a A./recorrente invoca relativamente à fração “B” em causa que «(…) a casa é segunda habitação da família da A., marido, filho e família deste»[4], e, por outro lado, referindo que as RR. peticionam [em via reconvencional] o reconhecimento da existência de uma servidão “pelo interior da fracção/habitação da A.”, que implica “passar pelo interior da dependência a que o portão dá acesso, e pelo logradouro”, mais concretamente numa área entre dois portões existentes, «(…) sendo o logradouro o espaço de ligação entre todas essas dependências».  

De referir que confrontando o “registo gráfico”/“Planta de Implantação” junto a págs. 8 das alegações de recurso, é possível constatar que o “logradouro “ em causa é uma área descoberta, e que apenas existe uma dependência coberta que seria atravessada pela servidão, que é a que fica imediatamente franqueada pelo portão de acesso a partir da via pública.

Ora, admitindo-se que assim seja efetivamente, isto é que a fracção “B” em causa seja a “segunda habitação” da A., já quanto a concreta área/zona espacial de eventual implantação da “servidão” ajuizada, e sobre a qual incindirá naturalmente o decretado arbitramento, entendemos que não seria à partida protegida pela proteção conferida à inviolabilidade do domicílio.

É que a proteção do “domicílio”, tal como consagrado no art. 34º da C.R.P., visa concretizar (tornar concreto) o direito à reserva da intimidade da vida privada.[5]  

Ora, procurando descortinar o sentido jurídico-legal do que se pode e deve entender por “domicílio”, importa desde logo ter presente o que resulta do Código Civil, a saber, do art. 82º deste normativo, cujo nº1 determina que «a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles».

Assim, “domicílio”, para efeitos civis, será entendido como a ligação entre a pessoa e um determinado lugar, juridicamente relevante para o exercício de direitos e o cumprimento de obrigações.[6]

Temos presente que, apesar de existirem divergências, a doutrina mais autorizada sustenta uma amplitude do conceito jurídico-constitucional de “domicílio” mais alargada.

Nesta linha de entendimento, refere-se que «(…) tendo em conta o sentido constitucional deste direito tem de entender-se por domicílio desde logo o local onde se habita, a habitação, seja permanente seja eventual, seja principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas certamente incluindo também as habitações precárias, como tendas, «roulottes», embarcações), abrangendo também a residência ocasional como o quarto de hotel) ou ainda os locais de trabalho (escritórios, etc.); dada a sua função constitucional, esta garantia deve estender-se quer ao domicílio voluntário geral quer ao domicílio profissional (CCivil art.82º e 83º)».[7]

A esta luz, uma residência “secundária” como é a da A. estaria abrangida no conceito de “domicílio” para este efeito.

Só que não nos parece que o âmbito de proteção da norma deva abranger necessariamente o “logradouro” desse “domicílio”, o qual na circunstância é uma área exterior, maioritariamente descoberta e de “passagem”, nos termos já vistos, sendo que é este “logradouro que está diretamente em causa.

Mas ainda que assim se não entenda, uma outra ordem de razões é de invocar para concluir no mesmo sentido – que na circunstância não é de aplicar a proteção conferida à inviolabilidade do domicílio.

Na verdade, é o próprio art. 34º da C.R.P. a prever diretamente a possível restrição da proteção, cometendo à lei a sua concretização e delimitação.

Assim, a inviolabilidade do “domicílio” de qualquer cidadão não é um direito absoluto, pois a C.R.P. permite que o legislador ordinário fixe os casos do seu afastamento.[8]

Será o caso duma colisão de direitos – in casu com o direito à busca da verdade num processo judicial / produção de meios de prova visando tal fim.

Consabidamente, face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. art. 335º do C.Civil), nomeadamente ponderando se a produção do meio de prova é, não obstante, relevante, imprescindível, justificada, adequada e proporcionada para o fim em vista.

Discorrendo sobre esta questão, já foi sustentado o seguinte:

«(…) o regime dos direitos, liberdades e garantias não proíbe de todo a possibilidade de restrição, por via de lei, do exercício dos direitos, liberdades e garantias, mas submete tais restrições a vários e severos requisitos. Para que a restrição seja constitucionalmente legítima torna-se necessária a verificação cumulativa das seguintes condições:

a) que a restrição esteja expressamente admitida (ou, eventualmente, imposta) pela Constituição (nº2. 1ª parte do artigo 18º);

b) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (nº2 in fine);

c) que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo (nº2, 2ª parte);

d) que a restrição não aniquile o direito em causa, atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito (nº3 in fine).»[9]

Tendo presente estes ensinamentos, entendemos que é de concluir precisamente no sentido de que a restrição do direito à inviolabilidade do domicílio na situação vertente afim de ter lugar o decretado arbitramento, é legítima porque ocorre a verificação cumulativa das condições vindas de enunciar, mais concretamente porque apenas circunscrita a esse fim do arbitramento e porque não fica aniquilado o direito em conflito [à inviolabilidade do domicílio], na medida em que o conteúdo essencial da proteção conferida ao direito à reserva da intimidade da vida privada não é atingido por uma tal diligência, enquanto naturalmente circunscrita à área/zona espacial de eventual implantação da “servidão” ajuizada.[10]

Ademais, salvo o devido respeito, e a contrario, só considerando lícito e legítimo o decretado arbitramento é que estará a ser efetiva e materialmente prosseguido um processo equitativo (garantia constitucional ex vi do art. 20º, nº4 da mesma C.R.P.)…

O que tudo serve para dizer que o decretado arbitramento é relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para apuramento do valor do pedido reconvencional, assim em concreto sobrelevando os invocados direitos fundamentais em presença [a saber, o direito à inviolabilidade de domicílio e o direito à reserva da via privada], justifica-se a compressão destes últimos em detrimento do direito à busca da verdade num processo judicial / produção de meios de prova visando tal fim.[11]

Nestes termos improcedem as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.  

          Custas nesta instância pela Autora/recorrente. 

                                                                                                                         *

                                         Coimbra, 30 de Setembro de 2025  

                                                           Luís Filipe Cravo

                                                              Fonte Ramos

                                                            Carlos Moreira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fonte Ramos
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
 
[2] Neste sentido vide CARLOS LOPES DO REGO, in “Comentários ao CPC”, Vol. I, 2ª edição, 2004, Livª Almedina, a págs. 297.
[3] Doravante “C.R.P.”.
[4] Com destaque da nossa autoria.
[5]A inviolabilidade do domicílio é a condição essencial ao exercício do direito à reserva da intimidade”, na feliz expressão constante de tese de mestrado sobre esta temática, acessível em  https://www.mprfadvogados.com/downloads/artigos/DOMICILIO.pdf.
[6] Sendo certo que o “domicílio” constitui uma das três situações jurídico-espaciais da pessoa, a par do “paradeiro” (mera situação de facto, criada pela presença física, em cada momento, num dado lugar), e da “residência”.
[7] Assim J.J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa– Anotado, 3ª Edição, Coimbra Editora.
[8] O nº 2 desse art. 34º prevê que «a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e nas formas previstas na lei».
[9] Vide autores em obra e local citados na precedente nota [8], ora a págs. 149.
[10] Referem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, a págs. 761) que: «Dentro do conceito de domicílio devem ainda ser integrados os espaços mistos que, além de servirem de domicílio, servem ainda para o exercício de uma determina profissão (consultórios médicos, escritórios, oficinas de artesanato, etc...). No entanto, é lícito perguntar se tais espaços integrados no domicílio devem gozar da totalidade da tutela constitucional oferecida ao domicílio. A resposta a esta pergunta está no nível de abertura ao exterior desses locais: quanto maior for essa abertura, mais esse local se afastará da possibilidade de equiparação total ao domicílio, diminuindo, consequentemente, a protecção constitucional que lhes é conferida.»
[11] Mais aprofundadamente sobre esta questão e sobre o que designa por “provas ilícitas relativas”, vide CARLOS CASTELO BRANCO, in “A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?”, Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, a págs. 291-299.