Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/23.6T9PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL
REJEIÇÃO DO RECURSO POR IRRECORRIBILIDADE DO DESPACHO RECORRIDO
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO EM PROCESSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 73.º DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/R.G.C.O.
Sumário: 1. A regra da recorribilidade, prevista no artigo 399º do CPP, não é de aplicar subsidiariamente em matéria de recursos no processo por contra-ordenação, na medida em que na legislação específica – o DL 433/82 de 27/10 – estão definidas com exactidão quais as decisões judiciais de que cabe recurso.

2. O nº 1 do artigo 73º do RGCOC apenas permite que se recorra de decisões finais proferidas no processo contra-ordenacional - e só de decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa (decisões finais em forma de sentença na sequência de uma audiência de julgamento, ou decisão final em forma de Despacho, nos termos ao artigo 64º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma).

3. Para o efeito de admissão ou não de um recurso, não está o Tribunal da Relação sujeito à «versão» e qualificação do tribunal a quo, sendo antes livre de ler o despacho recorrido como se entender, à luz da melhor lei.

4. O que se deve fazer, perante um requerimento de desistência da impugnação (equivale à retirada do recurso, na letra da lei), era apenas admitir a retirada desse recurso (verificando se estava em tempo) e extrair certidão do processado relevante para remeter à autoridade administrativa a fim de aí se cumprir, enfim, a decisão que foi por ela proferida (e nunca pelo tribunal), condenando o arguido nas custas da desistência (cfr. artigo 94º/3 do RGCOC), arquivando depois este RCO.

5. Perante uma retirada de um recurso, a decisão da 1ª instância é, em substância, um despacho homologatório dessa retirada, e nada mais, pois não conhece do fundo da impugnação, não cabendo, pois, na letra do artigo 73º/1 do RGCOC, não se constituindo o tribunal, perante essa retirada, na obrigação processual penal de reiterar a condenação proferida pela entidade administrativa, valendo essa decisão inicial tout court, sem necessidade de qualquer validação judiciária.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral:


*

RECURSO Nº 141/23.6T9PMS.C1

Recurso de Contraordenação

Contraordenação estradal

Rejeição do recurso por irrecorribilidade do despacho recorrido

Juízo Local Criminal ...

Tribunal Judicial da Comarca de Leiria



DECISÃO SUMÁRIA

[artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, doravante CPP]


            I - RELATÓRIO
            1. No processo de recurso de contraordenação nº 141/23.... do Juízo Local Criminal ..., foi proferido, em 5 de Maio de 2023, o seguinte despacho judicial (transcrição):

«SENTENÇA
Considerando que o recorrente/arguido AA desistiu do presente recurso de impugnação judicial, confirmo, por meio da presente Sentença, a Decisão proferida pela A.N.S.R., no processo contraordenacional nº...88, que o condenou, pela prática da contraordenação rodoviária prevista e punida pelos artigos 28º, nº1, b), nº5, 27º, nº2, a), nº2, 136º, 138º, 145º, nº1, b) e 147º todos do C.E., em coima paga voluntariamente e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, suspensa na sua execução por 365 dias e à frequência de uma ação de formação no módulo Velocidade durante o período da suspensão.

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Sem custas atenta a posição assumida pelo Recorrerei em requerimento que antecede (artigo 94º, nº3, a contrario do R.G.C.O.).

*
Notifique o Recorrente, incluindo para, em dez dias após o trânsito em julgado desta Decisão, comprovar a inscrição da dita ação de formação, e a Digna Magistrada do Ministério Público, bem assim comunique à Autoridade Administrativa (artigo 70º, nº4 do R.G.C.O.).

*
Proceda ao depósito da sentença (artigo 372º, nº5 do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41º, nº1 do R.G.C.O.).

Outrossim, dou sem efeito a audiência de julgamento agendada para o próximo dia 09 de Maio de 2023.

Desconvoque».

2. Inconformada, a Exmª Magistrada do Ministério Público RECORREU do despacho identificado em 1., assim concluindo (transcrição):


«…

8. Dispõe o artigo 71º, nº 1 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas que: «O recurso pode ser retirado até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no nº 2 do artigo 64º.».

9. Ora, salvo melhor entendimento, no processo porcontraordenação, com a retirada válida e eficaz do recurso da decisão da autoridade administrativa, impõe-se a devolução do processo à autoridade administrativa que aplicou a coima e sanção acessória.

10. Retornado o processo à autoridade administrativa, é perante ela que se processam todos os ulteriores termos.

11. O artigo 119º, al. e) do Código de Processo Penal, aplicável aos autos ex vi do artigo 41º, nº 1 do Regulamento Geral das Contraordenações e Coimas prescreve: “Constituem nulidades insanáveis, que devam ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: “a violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 32.”.

12. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não poderia o Tribunal “a quo” proferir a Sentença proferida nos autos, porquanto, com a “retirada do recurso” por parte do arguido/recorrente, ao Tribunal Recorrido competia, apenas, verificar a validade e eficácia da “retirada do recurso”, devolvendo após os autos à entidade administrativa sem proferir qualquer Sentença ou ordenar o seu cumprimento, ou termos, em que o mesmo deveria ser feito.

13. Ao proferir a Sentença acima aludida pronunciou-se o Tribunal Recorrido sobre matéria que não lhe competia apreciar.

14. Pelo que, salvo o devido respeito, tal sentença padece da invocada nulidade insanável, motivo pelo qual, deverá ser declarada nula e substituída por outra que julgue verificados os requisitos do artigo 71º, nº 1 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas e que ordene a sua devolução à A.N.S.R..

15. Por fim, dispõe o artigo 94º, nº 2 e 3 do Regulamento Geral das Contraordenações e Coimas que: «2. As custas deverão, entre outras, cobrir as despesas efectuadas com: (…) b) As comunicações telefónicas, telegráficas ou postais, nomeadamente as que se relacionam com as notificações; (…). 3. As custas são suportadas pelo arguido em caso de aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória, de desistênciaouderejeição da impugnação judicial ou dos recursos, de despacho ou sentença condenatória».

16. Nos presentes autos foi recebida a impugnação judicial da decisão proferida pela autoridade administrativa e foi designada data para audiência de discussão e julgamento, tendo sido ordenadas as competentes notificações, que foram cumpridas por via postal (artigo94º, nº2,al.b) docitado preceito legal), donde decorreque,salvomelhor entendimento, deveria o arguido ter sido condenado em custas.

17. Não o tendo feito, violou o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 94º, nº 2 e 3 do Regulamento geral das Contraordenações e Coimas, pelo que, deverá a doutaSentença seranulada, também,nesta parte,devendo ser substituída por outra decisão que condene o arguido em conformidade».

            3. O arguido respondeu ao recurso, opinando que o despacho recorrido deve ser mantido na íntegra.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, sendo de parecer que o recurso merece provimento.

            5. Cumpre proferir decisão sumária, na medida em que se entende que deverá ser rejeitado o recurso interposto por se verificar causa que deveria ter determinado a sua não admissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 414º, nº 2, 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea b) do CPP e 73º, nº 1 «a contrario sensu» do DL 433/82, de 27/10, cabendo, assim, especificar sumariamente os fundamentos da nossa decisão (artigo 420º, nº 2 do CPP).

Questão que não pode deixar de se assumir como prévia e, assim, cujo conhecimento oficioso se impõe, sendo indiscutível que a decisão de admissão do recurso de fls 44 não vincula este Tribunal da Relação – artigo 414.º, n.º 3, do CPP.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

1. As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso (que apenas pode incidir sobre matéria de direito).

            No nosso caso, importa apenas saber se o «despacho» recorrido é recorrível nos termos legais do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, doravante RGCOC (aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com última alteração pela Lei nº 109/2001, de 24/12), sendo essa lei especial relativamente às regras gerais do CPP em sede de admissão de recursos penais.

Assim sendo, a regra da recorribilidade prevista no art. 399º, do CPP, não é de aplicar subsidiariamente em matéria de recursos no processo por contra-ordenação, na medida em que na legislação específica – o DL 433/82 de 27/10 – estão definidas com exactidão quais as decisões judiciais de que cabe recurso.

            2. Façamos um pouco a história processual dos autos:
2.1. A A.N.S.R. proferiu decisão, no âmbito do processo de contraordenação nº ...88, datada de 2 de Novembro de 2021, tendo condenado o arguido AA pela prática da contraordenação, p. e p. pelos artigos 2º, 27º, nº 2, al. a), 28º, nº 1, al. b), 28º, nº 5, 133º, 136º, 138º, 139º, 143º, 145º, nº 1, al. b) e 147º todos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, suspendendo a sua execução por um período de 365 dias, condicionada à frequência deuma acção deformação no módulovelocidade, devendo esta ser frequentada durante o período da suspensão.
2.2. O arguido pagou voluntariamente a coima (cfr. decisão administrativa de fls 8-v).
2.3. O arguido, inconformado com tal decisão, impugnou-a judicialmente, por carta dirigida à ANSR, datada de 30 de Novembro de 2021.
2.4. Os autos foram remetidos ao Ministério Público, dando entrada nos Serviços em 4 de Abril de 2023.
2.5. Em 12 de Abril de 2023, o Ministério Público apresentou os autos a Juízo.
2.6. Por despacho judicial de 13 de Abril de 2023, foi o recurso admitido e designada data para julgamento.
2.7. Por requerimento de 4 de Maio de 2023, veio o arguido desistir do recurso.

2.8. Em 5 de Maio de 2023, foi proferido o despacho recorrido sob a epígrafe de «SENTENÇA».

3. Vejamos.

3.1. É recorrível o acto judicial apelidado de «sentença» e datado de 5 de Maio de 2023 (cfr. fls 32)?

O artigo 73º do DL nº 433/82 especifica quais as “decisões judiciais que admitem recurso” (epígrafe do artigo).

Trata-se, já o sabemos, de uma enumeração exaustiva.

Dita tal nº o seguinte:

«1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a € 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal».

Na verdade, o nº 1 daquele normativo apenas permite que se recorra de decisões finais proferidas no processo contra-ordenacional - e só de decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa (decisões finais em forma de sentença na sequência de uma audiência de julgamento, ou decisão final em forma de Despacho, nos termos ao artigo 64º, nºs 1 e 2 do RGCOC).

O MP recorre invocando o artigo 73º, nº 1, alínea b) (terá havido, de facto, a condenação do arguido em sanção acessória) do RGCOC.

Já a Mª Juíza recorrida invoca, ao admitir este recurso, e sem qualquer razão, o artigo 73º, nº 1, alínea a)[1] (cfr. fls 44) do RGCOC.

Depois, o nº 2[2] do artigo 73º do RGCOC refere-se, também exclusivamente, a decisões finais [poderá a Relação (...) aceitar o recurso da sentença], o que significa que aquele nº 2 alarga a possibilidade de recurso das decisões finais à hipótese nele prevista: “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”.

Ou seja, a expressão “para além dos casos enunciados no número anterior” significa que das decisões finais - e só das decisões finais, repete-se - pode ainda, excepcionalmente, ser interposto recurso (pelo arguido ou pelo MP) “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”, devendo, neste caso, o requerimento a solicitar à Relação que receba o recurso acompanhar este, antecedendo-o (artº 74º, nº 2 do RGCOC).

No nosso caso, não há invocação desse específico preceito, razão pela qual ele não é aqui aplicável.

Resta-nos, pois, o nº 1 do artigo 73º.

Ao invés do que sucede no processo penal (artº 399º do CPP) a regra é, pois, a da irrecorribilidade no âmbito do direito contra-ordenacional.

A limitação do direito ao recurso (para o Tribunal da Relação) das decisões judiciais proferidas no processo de contra-ordenação colhe a sua justificação na natureza do ilícito de mera ordenação social e das sanções que lhe correspondem (coimas): enquanto os bens jurídicos cuja tutela é confiada aos crimes assumem um mínimo ético, o ilícito de mera ordenação social é eticamente neutro ou indiferente e as coimas têm carácter meramente económico-administrativo.

De facto, estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.

Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.

Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra-ordenação).

Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.

Se assim é, a admissibilidade de recurso de decisões interlocutórias no processo contra-ordenacional, não sendo imposta constitucionalmente, estaria mesmo em oposição com a natureza daquele tipo de processo onde impera a celeridade e menor formalismo.

Aliás, se nem todas as decisões finais são recorríveis, por maioria de razão se impõe a conclusão da inadmissibilidade de recurso dos despachos interlocutórios [cfr., entre muitos mais, a decisão do Exmº Presidente da Relação de Évora, datada de 3/11/2004 (Pº 2473/04-1)].

3.2. Analisemos melhor o despacho recorrido para aferir se o mesmo cabe no elenco das decisões impugnáveis por via de recurso em processo contra-ordenacional.

Esta decisão não conhece de mérito relativamente à concreta impugnação suscitada pela defesa. E não o faz pois, nos termos legais, a defesa desistiu da mesma ao abrigo do artigo 71º, nº 1 do RGCOC.

Este despacho não rejeitou a impugnação judicial [logo, não é de aplicar a alínea d) do nº 1 do artigo 73º].

Não decidiu, através do despacho a que alude o artigo 64º, nº 2 do RGCOC, o fundo da causa [logo, não é de aplicar a alínea e) do nº 1 do artigo 73º].

Ninguém foi absolvido [logo, não é de aplicar a 1ª parte da alínea c) do nº 1 do artigo 73º] e nenhum processo foi arquivado pelas razões avançadas na 2ª parte da alínea c) do nº 1 do supracitado normativo.

Nem sequer a coima aplicada nos autos é superior a € 249,40 [logo, não é de aplicar a invocada – pelo despacho que admite este recurso - alínea a) do nº 1 do artigo 73º].

Resta a alínea b) do nº 1.

Acontece que, apesar de nesta condenação dos autos, proferida, não pelo tribunal de ..., mas pela ANSR (entidade administrativa para este efeito), ter existido uma condenação em pena acessória (60 dias de inibição de conduzir, suspensa na sua execução por um ano com condição), a verdade é que o acto processual recorrido não é nem nunca foi uma sentença.

E muito menos foi uma sentença que conheceu do fundo da causa – recorde-se o que atrás se escreveu: o nº 1 do artigo 73º apenas permite que se recorra de decisões finais proferidas no processo contra-ordenacional, mas só de decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa (decisões finais em forma de sentença na sequência de uma audiência de julgamento, ou decisão final em forma de Despacho, nos termos ao artigo 64º, nºs 1 e 2 do RGCOC).

Ora, o que consta de fls 32 não é uma sentença em sentido jurídico [cfr. definição do artigo 97º/1 a) do CPP, aqui aplicável por força do artigo 41º/1 do RGCOC].

A sua autora chama-lhe «sentença».

Mas nós não estamos vinculados à caracterização/qualificação feita pela emitente da decisão, como é bem de ver.

Para este efeito de admissão ou não de um recurso, não está este tribunal de recurso sujeito à «versão» e qualificação do tribunal a quo, sendo antes livre de ler o despacho recorrido como se entender, à luz da melhor lei.

O que deveria ter feito a Mª Juíza, perante o requerimento de desistência da impugnação (equivale à retirada do recurso, na letra da lei), era apenas admitir a retirada desse recurso (verificando se estava em tempo) e extrair certidão do processado relevante para remeter à autoridade administrativa a fim de aí se cumprir, enfim, a decisão que foi por ela proferida (e nunca pelo tribunal), condenando o arguido nas custas da desistência (cfr. artigo 94º/3 do RGCOC), arquivando depois este RCO (cfr. acórdão da Relação do Porto de 21/9/1994, proferido no Pº 9440546[3]).

A decisão da 1ª instância é, em substância, um despacho homologatório de uma retirada de um recurso por parte do arguido, nada mais, pois não conhece do fundo da impugnação, não cabendo, pois, na letra do artigo 73º/1 do RGCOC (assente, mais uma vez, que o nº 2 de tal normativo não foi aqui accionado pela recorrente, agindo sempre o tribunal de recurso, a esse nível excepcional, a reboque desse impulso inicial por parte do arguido ou do Ministério Público).

Quando se fala em sentença neste normativo refere-se a lei e sempre a uma decisão de fundo que conheça do recurso intentado (dos seus termos e alegações).

Aqui nada disso existiu – apenas se constatou que a retirada do recurso era legal e tempestiva, não se constituindo o tribunal, perante essa retirada, na obrigação processual penal de reiterar a condenação proferida pela entidade administrativa, valendo essa decisão inicial tout court, sem necessidade de qualquer validação judiciária.

Se assim é, esta decisão de fls 32 não cabe no elenco das decisões recorríveis, à luz deste RGCOC.

Não deixa é de ser irónico o facto de, a conhecer-se este recurso, ele só teria de ser considerado procedente pois o desenho processual avançado pelo MP na sua peça recursiva é o correcto.

Não sendo recorrível o despacho de fls 32, cai por terra também a possibilidade de se emendar a decisão aí tomada quanto à não condenação do arguido «desistente» em custas, pois o despacho vale no seu todo - se ele não é recorrível, não pode este tribunal sindicar qualquer um dos seus segmentos.

3.3. Em sumário, diremos:
1. A regra da recorribilidade, prevista no artigo 399º do CPP, não é de aplicar subsidiariamente em matéria de recursos no processo por contra-ordenação, na medida em que na legislação específica – o DL 433/82 de 27/10 – estão definidas com exactidão quais as decisões judiciais de que cabe recurso.
2. O nº 1 do artigo 73º do RGCOC apenas permite que se recorra de decisões finais proferidas no processo contra-ordenacional - e só de decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa (decisões finais em forma de sentença na sequência de uma audiência de julgamento, ou decisão final em forma de Despacho, nos termos ao artigo 64º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma).
3. Para o efeito de admissão ou não de um recurso, não está o Tribunal da Relação sujeito à «versão» e qualificação do tribunal a quo, sendo antes livre de ler o despacho recorrido como se entender, à luz da melhor lei.
4. O que se deve fazer, perante um requerimento de desistência da impugnação (equivale à retirada do recurso, na letra da lei), era apenas admitir a retirada desse recurso (verificando se estava em tempo) e extrair certidão do processado relevante para remeter à autoridade administrativa a fim de aí se cumprir, enfim, a decisão que foi por ela proferida (e nunca pelo tribunal), condenando o arguido nas custas da desistência (cfr. artigo 94º/3 do RGCOC), arquivando depois este RCO.
5. Perante uma retirada de um recurso, a decisão da 1ª instância é, em substância, um despacho homologatório dessa retirada, e nada mais, pois não conhece do fundo da impugnação, não cabendo, pois, na letra do artigo 73º/1 do RGCOC, não se constituindo o tribunal, perante essa retirada, na obrigação processual penal de reiterar a condenação proferida pela entidade administrativa, valendo essa decisão inicial tout court, sem necessidade de qualquer validação judiciária.

                III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, decide-se, sumariamente, REJEITAR o recurso intentado pelo Ministério Público, por se considerar o despacho de fls 32 como irrecorrível [artigos 414º, nº 2, 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea b) do CPP].

            Sem tributação (cfr. artigo 420º/3 a contrario sensu do CPP).

Notifique.


Coimbra, 6 de Setembro de 2023

 (Consigna-se que a decisão foi elaborada e integralmente revista pelo signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)



Relator: Paulo Guerra


[1] A coima, aliás já paga, é inferior aos ditos € 249,40 (cfr. fls 1).
[2] «2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.»
[3] «I- No processo por contra-ordenação, com a retirada válida e eficaz do recurso da decisão da autoridade administrativa, impõe-se a devolução do processo à autoridade administrativa que aplicou a coima.
II - A autoridade administrativa só pode revogar a decisão que aplicou a coima, até ao momento do envio do processo ao tribunal por efeito do recurso interposto, a partir do qual o processo fica afecto à jurisdição desse tribunal; se o recurso é retirado, volta a autoridade administrativa a poder rever a sua decisão que aplicara a coima;
e, retornado o processo à autoridade administrativa, é perante ela que se processam todos os termos conducentes ao pagamento da coima.

(…)».