Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/08.0TACTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO MIRANDA
Descritores: CRIME
TRÁFICO DE PESSOAS
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
MEDIDAS EXCECIONAIS E TEMPORÁRIAS
SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA PROVOCADA PELO CORONAVÍRUS SARS-COV-2
DOENÇA COVID-19
Data do Acordão: 02/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU, JUÍZO CENTRAL CRIMINAL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 169.º DO CÓDIGO PENAL, NA VERSÃO DA LEI Nº. 99/2001, DE 25 DE AGOSTO, ARTIGOS 118º., Nº.1 ALÍNEA C) E 119º, 121º., Nº. 3, TODOS DO CÓDIGO PENAL, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 65/98, DE 02 DE SETEMBRO; LEGISLAÇÃO SOBRE MEDIDAS EXCECIONAIS E TEMPORÁRIAS DE RESPOSTA À SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA PROVOCADA PELO CORONAVÍRUS SARS-COV-2 E DA DOENÇA COVID-19.
Sumário: 1 - A prescrição, enquanto causa de extinção da responsabilidade penal, é um instituto de natureza híbrida, simultaneamente processual e material, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicado de forma retroativa aos crimes, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido - artigo 29º. n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º, nº. 4 do Código Penal.

2 - Independentemente da interrupção e suspensão, a lei estabelece que a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar nas circunstâncias previstas no sobredito artigo 121º., nº. 3, do Código Penal.

3 - No caso presente, ressalvado o tempo de suspensão - 3 anos - tendo em conta o prazo normal de prescrição - 10 anos - acrescido de metade – 5 anos - constata-se que o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal é de 18 anos.

4 - A tal prazo acrescerá ainda o período de 160 dias em que o prazo esteve suspenso por força da legislação de combate à pandemia, pelo que, contado esse prazo a partir de 1/01/2006, ainda se mostrava em curso no dia 20/03/2024.

5 - Com efeito, no âmbito da legislação sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, há a considerar os períodos de suspensão dos prazos de prescrição, entre 9 de março e 2 de junho de 2020 - (86 dias) - e entre 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (74 dias) e que abrangeu o procedimento dos autos uma vez que o prazo de prescrição nessa altura ainda não se esgotara.

6 - O Tribunal Constitucional tem reiteradamente enjeitado qualquer inconstitucionalidade da norma contida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, designadamente a violação dos artigos 2º. e 29º. nº. , 1, 3 e 4 da CRP, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 500/2021; 660/2021 e 798/2021 e Decisão Sumária do TC nº 256/2023, in http://www.tribunalconstitucional.pt.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção – Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, que correm seus termos sob o nº. 380/08.0TACTB.C2,  do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Central Criminal – J...,  em que são arguidas, entre outros, AA, BB e CC, foi  proferido despacho de indeferimento da declaração de extinção do procedimento criminal, pela prática, em coautoria, do crime de tráfico de pessoas humanas, previsto  e punido pelo artigo 169.º do Código Penal, na versão da Lei nº. 99/2001, de 25 de agosto.

Inconformadas com esta decisão, dela vieram as arguidas AA, BB e CC, interpor recurso, conjunto, com os fundamentos constantes da respetiva motivação e as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“1.ª Vem o presente recurso do douto despacho ser interposto por ter a juiz “a quo” julgado não se encontrar prescrito o crime de tráfico de pessoas humanas quanto a uma das alegadas vítimas, DD, e que foi imputado às arguidas.

 2.ª O regime competente é o disposto pela Lei 99/01, de 25 de agosto, em face à data de ocorrência do facto em causa, sendo o alegado crime punível com pena de prisão de 2 a 8 anos e que tem como prazo de prescrição o de 10 anos (art. 118.º, n.º 1, alínea b), CP).

3.ª Salvo o devido respeito, as arguidas assim não o entendem.

4.ª Nos termos do artigo 119.º, n.º 1, Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.

5.ª Sendo que, o curso dessa prescrição pode ser suspenso ou interrompido nas situações previstas nos artigos 120.º e 121.º, ambos do Código Penal.

 6.ª Quanto à (in)aplicabilidade dos regimes excecionais constantes da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, relativos à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2, aos processos-crime por factos ocorridos antes da sua vigência, considerou a juiz “a quo” que, seguindo a corrente maioritária, os mesmos terão aplicação in casu, pelo que, o crime relativo à vítima DD não se encontra prescrito.

 7.ª O crime de tráfico de pessoas humanas configura um ilícito de resultado cortado e de execução vinculada, o que supõe, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo objetivo de ilícito, afastando-se a figura do crime continuado.

8.ª Assim sendo, aplica-se o previsto pelo artigo 119.º, n.º 2, alínea a), Código Penal, correndo o prazo de prescrição do procedimento criminal desde o dia em que cessou a consumação do facto.

9.ª Às arguidas foi imputado o crime de tráfico de pessoas quanto às alegadas vítimas EE, FF e DD, o qual se consumou, respetivamente, em 12.05.2008, 22.03.2009 e 09.05.2003.

10.ª Nos termos do artigo 121.º, n.º 3, CP, além de se contabilizar o prazo normal, acrescido de metade, deverá adicionar-se o período de suspensão que se tenha verificado, só se verificando a prescrição do procedimento se este prazo global já tiver ocorrido.

11.ª Sendo o prazo de prescrição de 10 anos, acrescido de metade perfaz 15 anos.

12.ª A este prazo acrescem ainda 3 anos (cf. art. 120.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2 do mesmo artigo, CP), quanto às causas de suspensão da prescrição.

13.ª Aqui chegados, o crime de tráfico de pessoas imputado a cada uma das arguidas prescreverá no prazo de 18 anos.

14.ª Pelo que, quanto à vítima DD, cujo facto se consumou em maio de 2023, o crime prescreveu em 9 de maio de 2021.

 15.ª Se se considerar pela aplicabilidade do regime excecional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, relativamente à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, acrescendo àquele prazo o total de 87 dias e ainda o de 74 dias, o crime prescreveria em 17 de outubro de 2021.

 16.ª Pelo que, não restam dúvidas de que o crime de tráfico de pessoas humanas relativo à vítima DD se encontra prescrito, devendo ser dado como não provado o facto que consta do seguinte excerto do douto despacho: «Assim, seguindo a corrente maioritária que contempla estes dois períodos de tempo como causas de suspensão do procedimento criminal, conclui-se, salvo melhor opinião, que o crime em questão não se encontra prescrito».

Nestes termos e melhores de direito, requer-se a V. Exas se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido.”

A Magistrada do Ministério Publico respondeu ao recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“III. Em conclusão

 1. O presente recurso vem interposto do despacho que decidiu que o procedimento criminal não se mostra prescrito no que tange às arguidas recorrentes e ao crime de tráfico de pessoas por que foram condenadas.

2. As arguidas consideram que, uma vez que o crime se consumou em 09/05/2003, o prazo máximo de prescrição se atingiu em 09/05/2021, ou, quando muito, em 17.10.2021 (se aplicados os prazos de suspensão da legislação COVID).

 3. A decisão recorrida que decidiu que o procedimento criminal não se mostra prescrito, quer por considerar que o prazo prescricional se iniciou no inicio de 2006 (e não em 09.05.2003), quer por considerar aplicável a legislação/regime excepcional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, mostra-se correcta

4. Desde logo considerando a factualidade dada como provada nesta sede e supra transcrita, que aqui se dá por reproduzida, e o disposto no artigo 119º, nº 2 do Código Penal.

5. E que permite considerar que a data relevante para o início da contagem do prazo prescricional é inícios de 2006 (factos 254 a 266 e factos 1, 6, 7 89 e 90)

6. É aplicável ao caso vertente, a redacção que ao art. 169º do C. Penal foi dada pela Lei 99/01, de 25.08, regime mais favorável às arguidas e, como tal, aplicado em bloco.

7. Pelo que o prazo de prescrição é de 10 (dez) anos, e o prazo máximo de prescrição se atinge quando se completarem 18 anos (10 anos + 5 anos + 3 anos), nos termos do preceituado no artigo 121º, nº 3 do Código Penal (cfr. ainda o artigo 120º, nº 1 b) e nº 2 do Código Penal na redacção da Lei nº 65/98, de 02.09)

8. A questão subjacente ao presente recurso é a de saber em que data deve começar a correr a prescrição no que tange ao crime de tráfico de pessoas

9. Sabendo-se que este se consuma com a prática de qualquer uma das condutas típicas, ainda que não atinja qualquer um dos resultados pretendidos (crime de intenção)

10. O crime de tráfico de pessoas é, pois, mas não só, um crime de intenção na forma de crime de resultado cortado

11. Não se podendo entender que consumando-se o crime com a prática de um primeiro acto e estando o crime consumado, o prazo prescricional comece a correr, independentemente de continuarem a ocorrer actos que integram o crime de tráfico de pessoas

12. A ser assim, se considerássemos uma actuação que perdurasse no tempo, por hipótese, mais de 10 anos, teríamos que concluir (no limite do ridículo) que, independentemente dos actos que integram a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de tráfico de pessoas continuarem a ocorrer para além dos 10 anos, o crime estava prescrito

13. Neste crime a consumação (formal) produz-se em momento diferente da terminação (consumação material) e é o momento da sua consumação material (terminação) que é o relevante para o início da contagem do prazo de prescrição

14. A data relevante a considerar é a constante dos factos dados como provados no douto acórdão do TRC confirmado pelo STJ, ou seja, início de 2006

15. Como ressalta da certidão de trânsito de fls. 11852 e da decisão de 20.03.2024 do TC, o trânsito em julgado, no que tange às arguidas recorrentes, ocorreu em 20.03.2024

16. Pelo que o prazo máximo de prescrição (18 anos) apenas se completaria em 01.04.2024, data posterior ao trânsito em julgado da decisão (20.03.2024)

17. Ainda que não se interpretasse da forma que faz o despacho recorrido a expressão “inícios de 2006”, sempre se concluiria que o procedimento criminal não está prescrito.

 18. Uma vez que se suspendeu também por força do o regime excepcional de suspensão do procedimento criminal decorrente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, num total de 160 dias.

19. Pelo que, ainda que inícios de 2006 signifique o dia 01.01.2006, a consideração deste período de suspensão leva a que se conclua pela não ocorrência do prazo máximo de suspensão.

Porém, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA”

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP,

Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.

II Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, com exceção daquelas que forem de  conhecimento oficioso.

A motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Nesta conformidade, a questão que se suscita no recurso consiste em aquilatar se o procedimento criminal se extinguiu ou não por prescrição.

III A Decisão Recorrida

Com relevância para a decisão da questão enunciada, importa ter presente o teor do despacho recorrido:

“Da apreciação da questão da prescrição do procedimento criminal relativamente ao crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art 169º, do Código Penal (na versão da Lei nº 99/2001, de 25-08).

Baixaram os autos para pronúncia sobre o Requerimento de 12.03.2024 para conhecimento da prescrição do procedimento criminal formulado pelas co-arguidas AA, GG e CC.

Pronunciou-se a Digna Magistrada do Ministério Público, acompanhando de perto o entendimento do Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de se declarar a prescrição relativamente a tal crime desde o dia 01-04-2024.

Apreciando.

Com relevo para a questão a decidir importa considerar o seguinte:

O procedimento criminal pelo crime em questão, na redação dada pela citada Lei 99/01, de 25-08 é punido com prisão de 6 meses a 5 anos (nº1) e de 1 a 8 nos (nº2) e tem como prazo de prescrição o de 10 (dez) anos (art. 118º nº1, al b) do C. Penal).

- O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado – artigo 119.º, n.º1 do Código Penal.

E nos termos do nº2:

a)Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;

b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;

c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.

(…).

4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.”

No caso presente, o procedimento criminal pelo crime em questão tem como prazo de prescrição, como vimos, de 10 (dez) anos ( art. 118º nº1 do C. Penal ) cujo início remonta ao “início de 2006” (a factualidade que respeita ao crime imputado ás arguidas reportam-se aos factos provados indicados em 256 e 261 a 266), por ter sido nesta altura em que cessou a consumação do crime.

Como é sabido, o curso da prescrição pode ser suspenso ou interrompido nas situações previstas nos artigos 120.º e 121.º, ambos do Código Penal.

O artigo 120.° do Código Penal enumera as causas de suspensão da prescrição, que uma vez cessada faz voltar a correr a prescrição.

A prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou não tendo esta sido deduzida a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo [artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal], e durante o tempo em que vigorar a declaração de contumácia [artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal].

No primeiro daqueles casos, isto é na situação prevista na alínea b) do n.º1 do artigo 120.º do Código Penal, a suspensão não pode ultrapassar 3 anos - artigo 120.º, n.º 2, do CP.

Por seu turno, o artigo 121.º do Código Penal enumera as causas de interrupção da prescrição, sendo que depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição (n.º2).

São causas de interrupção da prescrição a constituição de arguido, a notificação da acusação, a declaração de contumácia, a notificação do despacho que designa dia para a audiência na ausência de arguido - artigo 121.º, n.º 1, alíneas a), b) e d), do CP.

Finalmente, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade - artigo 120.º, n.º 3, do CP.

O regime exposto já vigorava à data da prática do crime em análise e continua a manter-se atualmente.

A Lei 19/2013 de 21/1, veio introduzir uma nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal para o caso de «A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado» (alínea e) ao nº1 do artigo 120º C.P. na redação atualmente em vigor).

Contudo, tal causa de suspensão não tem aplicação ao caso em apreço, uma vez que de acordo com o disposto no artigo 2º nº4 do C.P., às arguidas deverá ser aplicado o regime vigente à data da prática do crime, por ser o mais favorável.

Tendo em conta tudo o acima exposto, conclui-se que o prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado - artigo 119.º n.º 1 do C. Penal (inicio de 2006).

Nos termos do disposto no artigo 121º n.º 3 do Código Penal, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal (10 anos) de prescrição acrescido de metade (5 anos).

A este prazo acrescem 3 anos (art 120º, nº1, al b) e nº2, do Código Penal”.

No caso presente, seguindo a interpretação dada pelo Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto à expressão dada “inicio do ano” (de 2006) como podendo “significar até ao fim do primeiro trimestre”, o procedimento criminal pelo crime imputado às arguidas estaria prescrito (no que se reporta à vítima DD) desde o dia 01-04-2024 - (cfr artigos 118º, nº al b), 119º n. 1 e 121ºn.º3, todos do C.Penal).

Aqui chegados, no nosso modesto entender, importará ainda apreciar uma outra causa de suspensão.

Da questão da (in)aplicabilidade dos regimes excecionais constantes da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro aos processos-crime por factos ocorridos antes da sua vigência.

Por outras palavras, cumprirá agora apreciar se o tribunal deveria contabilizar a causa de suspensão estatuída nos regimes excecionais constantes da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, relativas à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19.

Nesta matéria, como é sabido, por via da entrada em vigor das citadas Leis (resultantes da atividade da Assembleia da República) foram criados novos prazos de suspensão da prescrição, colocando-se assim a questão, que tem dividido a Jurisprudência, de saber se é possível aplicar estes prazos de suspensão a processos pendentes por factos praticados antes da sua entrada em vigor, nomeadamente face ao disposto no art 29º, nº4, da Constituição da República Portuguesa.

Conforme resulta do disposto no art.º 7º, nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março: “A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos”. Acrescentando-se no nº 4 do mesmo diploma legal que “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”.

Por sua vez, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, veio determinar no seu art.º 6º -B, n.ºs 3 e 4, que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.

Na jurisprudência (ainda maioritária) existe a corrente que defende a sua não aplicação (cfr por todos os Acórdãos da RL de 24.07.2020 (processo nº 1286/16.5XSLB.L1-5, relatado pelo Sr. Desembargador Jorge Gonçalves e de 15.12.2022 e processo nº 804/03.2PCALM-A.L1-9, relatado pela Sra. Desembargadora Paula Penha; todos disponíveis in www.dgsi.pt. E ainda Ac RG de 15-12-2022 proc nº 31/20.4IDVRL.G1 relatado pela Sra Desembargadora Florbela Sebastião e Silva (todos disponíveis in www.dgsi.pt ) para quem:

“ (..) as normas contidas na Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e restante legislação emitida ao abrigo do Estado de Emergência, não podem sobrepor-se a tudo quanto temos vindo a referir acerca da natureza substantiva da prescrição e da sua sujeitabilidade à regra da não retroactividade da lei penal in pejus.

A excepcionalidade das situações previstas no artº 19º CRP já se mostra acautelada pelo facto de poder ser decretado um Estado de Sítio ou um Estado de Emergência com a suspensão de alguns direitos constitucionais”.

 (…) Ou seja, não há dúvida que a Lei nº 1-A/2020, e posteriores alterações operadas no âmbito do Estado de Emergência, estabelece uma nova causa de suspensão da prescrição penal.

E a previsão de uma nova causa de suspensão prescricional equivale, para todos os efeitos legais, ao alargamento do prazo prescricional, como se um novo prazo mais alargado tivesse sido contemplado para o mesmo ilícito penal.”

Citando-se nesse Acórdão o Acórdão da mesma Relação de 25-01-2021, em cuja relatora é a Sra Desembargadora Cândida Martinho, o qual apesar de ter sido prolatado antes do Ac TC nº 500/2021, nele já se escrevia:

“V) Com as medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, criou-se, para além do mais, uma nova causa de suspensão dos prazos da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas nos artigos 120º e 125º do C.Penal, respectivamente.

VI) Em virtude de tal legislação específica, tais prazos ficaram automaticamente suspensos em 9/3/2020, retomando a sua contagem a 3/6/2020.

VII) Tendo-se alargado o prazo de prescrição em 86 dias e, desse modo, a possibilidade da sua punição, é inquestionável que tal mostra-se mais prejudicial para a situação processual dos arguidos, e dai que a sua aplicação deva reservar-se para os factos praticados na sua vigência. (…)”

Assim, para esta jurisprudência, a causa de suspensão prevista em tais regimes excecionais não é aplicável aos processos-crime relativos a factos anteriores à sua vigência.

Além disso, cumpre realçar que o enfoque da salvaguarda (da não afectação da não retroactividade da lei criminal), também, ficou expressa, aquando da sobredita pandemia, nos respectivos Decretos do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18-3 (art.º 5º, nº 1), nº 17-A/2020, de 2-4 (art.º 7º, nº 1) e nº 20-A/2020, de 17-4 (art.º 6º, nº 1).

- Porém, encontramos jurisprudência em sentido contrário, conforme o Acórdão da RL de 11.02.2021, proc nº 89/10.4PTAMD-A.l1-9, relatado pelo Sr. Desembargador Almeida Cabral (in www.dgsi.pt), onde se escreve: “A suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 não se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido, pois o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr.”

E ainda no recente Acórdão da RL de 23.01.2024, proferido no processo nº 143/17.1GLSLB.L1, (in www.dgsi.pt), relatado pela Sra. Desembargadora Sara Reis Marques onde se escreve: “(…) Assim, a aplicação da nova causa de suspensão não viola o art.º 29º da CRP, pois não ultrapassou a necessidade gerada pela situação de crise sanitária que se viveu, nem houve excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional”.

Expostas as duas vertentes jurisprudenciais de sentido contrário, importa referir que, por parte do Tribunal Constitucional, tem vindo estabilizar-se no sentido de não julgar inconstitucional (a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia).

Essa jurisprudência iniciou-se com o Acórdão n.º 500/2021 (relativamente às contraordenações, mas cuja fundamentação começa por concluir que os seus fundamentos também valem no processo penal) e foi sendo sucessivamente reiterada - Acórdãos n.ºs 798/2021 e 226/2023.

Assim, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/2021 escreveu-se que:

“A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19. (…)

É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei  parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.

(…)

Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.

Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. [sublinhado nosso]. (…)

A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja.

Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.

(…)

Por sua vez no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 798/2021 (Disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) escreveu-se que: (…)

“Em suma, concluímos que a suspensão da prescrição prevista nas referidas leis é aplicável aos processos crime em que estejam em causa alegados factos ilícitos praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, como é o presente, e, consequentemente, que esta interpretação, fundada, aliás, em jurisprudência do Tribunal Constitucional não é violadora dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 19.º n.ºs 2 a 8 (em especial o n.º 6), 20.º, n.º 4, e 29.º, da Constituição da República Portuguesa.”

E por último, o Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária nº 256/2023 (in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20230256.html) decidiu:

“ a) Não julgar inconstitucional a norma extraível do artigo 7.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, vigorando até ao termo da situação excecional de infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e doença COVID-19; e, em consequência”.

*

Aqui chegados, por força dos dispositivos legais “supra” citados, foi estabelecido um regime excecional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, introduzido pelo artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, que vigorou sem alterações desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020) – num total de 87 dias – bem como, foi estabelecido um outro regime excecional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, introduzido pelo artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que vigorou sem alterações desde o dia 22 de Janeiro de 2021 (artigo 4.º, da Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 5 de Abril de 2021 (artigo 7.º da Lei n.º 13-B/2021) –num total de 74 dias.

Assim, seguindo a corrente maioritária que contempla estes dois períodos de tempo como causas de suspensão do procedimento criminal, conclui-se, salvo melhor opinião, que o crime em questão não se encontra prescrito.

Notifique. (…)”

IV. Da apreciação do mérito do recurso

As arguidas e ora recorrentes defendem que o procedimento criminal pela prática de um crime de tráfico de pessoas humanas - (quanto à vítima DD) - prevista na Lei 99/01, de 25 de agosto, à data da prática dos factos, que consideram consumado no dia 09/05/03, deve ser declarado extinto por prescrição.

Como é sabido a prescrição traduz-se na renúncia do Estado ao seu direito de punir, ditada pelo decurso de um certo lapso de tempo que apaga a exigência de justiça e, consequentemente, a necessidade de retribuição penal para a satisfazer.

A prescrição, enquanto causa de extinção da responsabilidade penal, é um instituto de natureza híbrida, simultaneamente, processual e material, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicado de forma retroativa aos crimes, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido, artigo 29º. n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e  artigo  2º. nº. 4 do Código Penal.

Havendo sucessão de leis no tempo, impõe-se a aplicação em bloco do regime mais favorável, sendo inadmissível a aplicação simultânea de preceitos pertencentes a regimes penais diferentes.

Como bem assinala a decisão recorrida, do cotejo dos regimes, é de aplicar o regime penal vigente à data da prática dos factos, porquanto se mostra concretamente mais favorável.

As arguidas e ora recorrentes foram acusadas e, posteriormente condenadas, para, além, do mais, pela prática de um crime de tráfico de pessoas, previsto e punido nos termos do artigo 169º. do Código Penal, vigente à data da prática dos factos, o qual é punível com uma moldura penal abstrata de pena de prisão de 2 a 8 anos. 

De harmonia com o disposto no artigo 118º., nº.1 alínea c) do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos.

Nos termos do artigo 119º., nº.1 do Código Penal o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.

Resulta, assim, que o elemento preponderante e determinante a considerar é a data da prática do crime, da sua consumação.

Se assim é, cabe referir que, neste campo, é necessário distinguir os crimes instantâneos, dos crimes permanentes, continuados ou habituais.

Nos crimes instantâneos a consumação coincide com a prática do acto criminoso, diferentemente, nos demais a execução prolonga-se no tempo e o momento temporal relevante a considerar é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último acto.

O crime de tráfico de pessoas caracteriza-se como um crime de intenção ou resultado cortado em que a consumação formal ou típica ocorre com o preenchimento integral dos elementos do tipo, ocorrendo a consumação material ou terminação com a verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por diretamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de proteção da norma.

Efetivamente, esta distinção, entre a consumação formal e a consumação material ou a terminação do crime, que representa o desvalor máximo da conduta, é relevante em vários segmentos normativos, por exemplo, em sede de prazo de prescrição do crime (que apenas começa com a terminação do crime, ou ainda naqueles casos em que, antes da terminação, se junta um agente realizando atos ainda relevantes para a consumação material daquele crime (co-autoria sucessiva).

            Argumentam as recorrentes que se mostra decorrido o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal em questão cujo início de contagem se situa no ano de 2003.

Com relevo para a questão atinente a determinação do início do prazo de prescrição do procedimento criminal, importa atentar na seguinte factualidade consignada como provada no acórdão desta Relação de 16/02/22, confirmado Pelo Supremo Tribunal de Justiça:
 “1) Desde há muito tempo que o arguido HH vem vivendo da exploração sexual de prostitutas, aproveitando-se dos rendimentos que as mesmas obtêm com a prática de atos sexuais remunerados.
 2) Tal atividade surgiu na sequência do envolvimento nesse tipo de atividades por parte do próprio pai, ora também arguido II, com o qual, aliás, respondeu judicialmente no âmbito dos processos n.º 246/93.... da (ex) 2.ª Vara Criminal do Porto (cfr. certidão de fls. 6016 a 6036), e n.º 64/94 do antigo Tribunal de Círculo de Santiago do Cacém (cfr. certidão de fls. 6040 a 6053), pela prática, nos anos de 1992 e 1993, entre outros, de crimes de lenocínio (cfr. certidões de fls. 6016 a 6036 e fls. 6040 a 6053).
3) Mesmo depois de ter sido condenado no referido processo do Tribunal de Círculo de Santiago do Cacém, o arguido HH continuou a explorar sexualmente o ganho das prostitutas, aproveitando-se dos rendimentos que estas obtinham com a prática dos atos sexuais remunerados nos estabelecimentos por si exploradas.
4) Da boate A..., Espanha
5) Fê-lo inicialmente na boate «A...», situada na Calle ..., em JJ – Espanha, localidade fronteira com Portugal (Vilar Formoso), onde o arguido HH explorou essa atividade de forma constante até 22.03.2011, data em que foi preso em Espanha, ressalvados os períodos de anterior reclusão nesse país desde 24.12.2007 até 30.04.2008 e novamente desde 22.02.2010 até 4.03.2010
6) Atividade que o arguido HH ali exerceu desde 20.05.2002 até 16.01.2006 conjuntamente com a arguida KK (ou “Avó”) na gestão diária da boate «A...», exceto no período de 24.02.2003 até 26.12.2003 em que o arguido HH manteve essa exploração, através da sociedade B... SL e desde 16.01.2006 até 4.09.2008 através da sociedade C... SL, sociedades das quais foi gerente o arguido LL e serviam à contratação e legalização da permanência em território espanhol de mulheres que pudessem ali trabalhar (fls.251-2), atuando os três em conjugação de esforços e intentos na exploração do referido estabelecimento.
7) Na gestão diária da boate «A...» ali trabalharam ao tempo, além daqueles, também as arguidas MM (ou NN), ali encontrada a exercer a atividade de alterne em situação de permanência ilegal nos dias 21.05.2003, 21.01.2004 e 23.03.2004 (cfr. fls. 4879), AA (ou “OO”), BB (ou “PP”), CC (ou “QQ”).
 8) Para contratação de mulheres que pudessem vir a trabalhar no(s) estabelecimento(s) que explorava e obter a emissão de vistos de trabalho para obtenção da legalização da sua permanência em território nacional e espanhol, o arguido HH constituiu:
 9) - em 11.2.2002 com o seu sócio/arguido RR (“SS”) a sociedade “D..., Lda” (nipc ...17), com sede na Rua ..., ... (cuja dissolução administrativa foi declarada em 18/08/2008), na qual a arguida TT foi admitida como funcionária desde 23.07.2002 (fls.4678);
(…)
16) Da boate E...
17) Com intenção de alargar a sua atividade com a exploração de outros estabelecimentos, a partir de data indeterminada de 2004, anterior a 3.05.2004, o arguido HH e UU, em conjugação de esforços e intentos, passaram a explorar conjuntamente o estabelecimento denominado boate “E...”, situado em Estrada Nacional n.º ...7, Lugar ... - ..., F....
18) Para o efeito, em 3.05.2004 o arguido HH e VV, representando este de facto a participação da companheira UU, constituíram a sociedade G..., Lda (nipc ...72) com sede na ... nº89, ..., ..., da qual foi gerente o arguido LL, a fim de continuarem a explorar conjuntamente, agora de forma societária, o referido estabelecimento denominado E....
19) Nessa mesma data 3.05.2004, a sociedade G..., nesse ato representada pelo gerente arguido LL, tomou de arrendamento a VV o edifício onde funcionava o dito estabelecimento “E...” –cfr. contrato de fls.6071-4. 20) Contudo, em 2.07.2004 o sócio VV, representando de facto a participação da companheira UU, cedeu a sua quota às arguidas AA (ou “OO”) e BB (ou “PP”) que entram na sociedade G... (fls.2804-6).
21) Nessa sequência 4.8. a partir do dia 2.09.2004, a conta bancária [n.º ...01], que a referida sociedade é titular no Banco 1...., passou a estar associada ao nome das sócias arguidas AA (ou “OO”) e BB (ou “PP”) (cfr. fls. 2741 a 2834 dos autos). 4.9. À semelhança do que ocorreu com a conta bancária n.º ...01 que o arguido HH é titular no Banco 1...., que, a partir do dia 27.08.2005, passou a estar igualmente associada à arguida AA (cfr. fls. 2845 a 2900), para além da autorização que aquele também lhe deu para movimentar a conta bancária (n.º ...00) que possui na Banco 2.... (cfr. fls. 3203 a 3215).
22) Em 31.07.2005, o arguido LL renúncia à gerência desta sociedade, por cuja atividade fez os necessários descontos à segurança social (cfr. docs. apreendidos no APENSO B, ponto 10), passando a gerência a ser exercida pela sócia arguida AA (ata de fls-2813).
(…)
24) Nas sobreditas circunstâncias e tempo referidos, os arguidos HH, BB e AA, estas a partir de 2.07.2004, bem assim o arguido LL enquanto gerente desde 3.05.2004 até 31.07.2005, passaram a explorar, em conjugação de esforços e intentos entre si, no referido estabelecimento a atividade de alterne, prostituição e striptease” ali realizada por várias mulheres.
25) 6.7. O arguido LL e depois a arguida AA, enquanto mantiveram a qualidade de gerentes nos períodos sobreditos estipulavam as regras do funcionamento da boate E... que exploravam, dando ordens às mulheres que ali exerciam o alterne e a prostituição.
26) Algumas dessas mulheres vinham do estabelecimento A... para o efeito, por ordem e vontade do arguido HH e KK (ou “Avó”) que as faziam transportar entre os dois estabelecimentos de modo assegurar a respetiva circulação nomeadamente numa Ford Transit, de matrícula ..-..- DL, registada em nome da sociedade «G...».
 27) Atividade que os arguidos HH, BB e AA ali exerceram até finais de dezembro de 2007, altura em que o arguido HH foi preso em Espanha.
(…)
75) II – DO PAPEL E ATUAÇÃO DE CADA UM DOS ARGUIDO
(…)
89) 4 – Das arguidas KK (ou “Avó”), AA (ou “OO”), BB (ou “PP”), e CC (ou “QQ”).
90) 4.1. As arguidas KK (ou “Avó”), AA (ou “OO”), BB (ou “PP”), e CC (ou “QQ”), todas elas da confiança do arguido HH, desde há muito vêm trabalhando consigo nas boates que explora 4.2. nomeadamente na gestão e funcionamento diário da boate «A...», qualquer uma delas contactava com as mulheres recém-chegadas, informando-as se fosse caso disso dos montantes em dívida e da forma como proceder à sua liquidação, comunicando-lhes o modo de funcionamento e as regras específicas de funcionamento da “casa” e da atividade que ali se desenvolviam (cfr. pontos supra I-17. I-18., I-19.).
(…)
117) III – DAS VÍTIMAS, DO SEU RECRUTAMENTO E SUA SITUAÇÃO
(…)
254) 4.5. DD (id. a fls. 1148)
255) A cidadã brasileira DD foi contatada no Brasil pela arguida TT que lhe tratou do passaporte e lhe entregou o dinheiro para comprar o bilhete da viagem para vir trabalhar para o A..., tudo com o conhecimento e vontade do arguido HH.
256) A referida cidadã brasileira fez então a viagem de avião para o Porto (via Paris), onde chegou no dia 9.05.2003, tendo à sua espera nas imediações do aeroporto o próprio arguido HH que logo a transportou, acompanhado da arguida MM, até ao «A...» que o arguido HH então explorava.
257) Ali chegada foi-lhe dito que a divida da viagem de avião era de 2.500€ acrescida do valor diário de 40€ pelo respetivo alojamento, a descontar na remuneração devida pela atividade de alterne e prostituição ali exercida até se mostrar paga a respetiva divida, segundo as indicações e as instruções que lhe foram dadas pelas arguidas AA, BB e CC, sendo as entradas, tempos e pagamentos pelos clientes da prostituição controlados pela arguida KK (cfr. supra pontos I-17. e I-31.).
 258) Ali sentiu-se atemorizada e sobressaltada pelos episódios de violência do arguido HH para com várias das mulheres que ali trabalhavam, sentido também receio de ser agredida pelo mesmo.
259) Passados cerca de três meses, o arguido HH mandou-a então embora, encontrando-se ao tempo saldada a sua divida.
260) Entretanto foi expulsa de Portugal no final do ano de 2004, ficando interdita de entrar em Portugal com um período de cinco (5) anos.
261) Todavia, volvidos meses, foi contactada para vir trabalhar para o «A...» pelo arguido RR, que já conhecia anteriormente por ter sido com ele que tinha celebrado um contrato de trabalho (fictício) com a «D..., LDA.», com a finalidade da sua legalização tanto em Portugal como em Espanha.
262) Efetuou a viagem em data indeterminada de 2005, aterrando no aeroporto de Barcelona, vindo depois trabalhar para o A....
263) Ali chegada foi-lhe dito que a divida com a viagem ascendia a €2.700, acrescida do valor diário de 40€ pelo respetivo alojamento, a descontar na remuneração devida pela atividade de alterne e prostituição ali exercida até se mostrar paga a respetiva divida, sendo que ao tempo a arguida KK permanecia nas sobreditas funções de controlo e fiscalização dos atos sexuais remunerados ali praticados.
264) Durante este período, chegou a trabalhar três dias na boate «E...», após o que regressou ao A....
 265) Abandonou o «A...», no início de 2006.
266) Em toda essa relatada atuação os arguidos HH, TT, KK, AA, BB e CC, em conjugação de esforços e intentos entre si, bem sabiam e quiseram explorar sexualmente a referida cidadã, transportando-a, alojando-a, acolhendo-a e levando-a a exercer a atividade de alterne e prostituição, bem sabendo e querendo estimular e desenvolver, como era sua intenção, essa prática com o único propósito de obtenção de lucros, sabendo e querendo aproveitar-se da divida da mesma para garantir a submissão e manutenção daquela na atividade que ali desempenhava (…)”.
Da análise do acórdão condenatório resulta que a conduta das arguidas integradora da prática de um crime de tráfico de pessoas, perpetrada sobre a vítima DD, engloba no seu âmbito a prática de uma conduta ilícita que terminou no ano de 2006.
Mais, decorre do recorte factual acima descrito que, no caso, não se logrou provar o momento temporal preciso do último ato que integra a consumação material ou terminação do ilícito em questão ou seja, o momento temporal relevante a considerar para a data do início da contagem do prazo de prescrição.
Daí que, a 1ª. Instância, à falta de melhor concretização desse marco temporal, por não se ter logrado efetuar tal prova, entendeu que o momento relevante para efeitos de contagem do prazo de prescrição ter-se-á de considerar até ao fim do primeiro trimestre.

E, nesta linha de entendimento, assentou o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal no dia 01/04/04.
Salvo o devido respeito por opinião contrária não perfilhamos este entendimento, não se compreendendo de onde se retiram os “factos” para a limitação “do iter criminis” da  consumação material no último dia do primeiro trimestre - (e não noutro dia desse mesmo primeiro trimestre) -, na medida em que não foi possível apurar o momento temporal exato do último ato nem a análise concatenada do acervo fáctico consignado como provado é suscetível de alicerçar tal juízo.

Neste contexto, apenas podemos afirmar que o início do prazo de prescrição do procedimento criminal situa-se em “dia não determinado” do início do ano de 2006.

Ora, e se assim é, havendo dúvida nesse dia, temos de trazer à colação o princípio in dúbio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o qual tem aplicação em sede de prescrição, amnistia e perdão (v.g. dúvida quanto à data da prática dos factos) – cfr., expressamente neste sentido, Claus Roxin (in “Derecho Processal Penal”, 2000, páginas 111 e 113), atenta a sua relevância em sede de efetivação da responsabilidade penal.

É insofismável que o princípio “in dubio pro reo” compreende um extenso leque de aplicação, envolvendo não só os elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, como também às causas de exclusão da ilicitude, da culpa e da pena, às atenuantes modificativas e, ainda, à prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão suscetível de, objetivamente, desfavorecer o arguido.

Sendo assim, impõe-se concluir que o prazo de prescrição correu a partir do dia 01/01/2006, por força do princípio in dubio pro reo.

O artigo 120º. do Código Penal, com epígrafe “Suspensão da prescrição”, diz-nos:

“1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;

b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;

c) Vigorar a declaração de contumácia; ou

d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;

e) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.

3 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”

Por seu lado, no artigo 121º., do mencionado diploma legal, com a epígrafe “Interrupção da prescrição” pode ler-se:

“1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:

a) Com a constituição de arguido;

b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação para a audiência em processo sumaríssimo; ou

c) Com a declaração de contumácia.

2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.

3 - A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.”

O que distingue os efeitos da interrupção da prescrição dos efeitos da suspensão da prescrição é que, no primeiro caso, iniciando-se o prazo com a prática da infração, ocorrendo uma causa de interrupção, o prazo até aí decorrido fica inutilizado, começando então a correr um novo prazo, enquanto no segundo caso, ocorrendo uma causa de suspensão, o prazo que estava em curso não fica inutilizado, apenas deixa de correr durante o período fixado ou até ao desaparecimento do obstáculo legalmente previsto, voltando a partir daí a correr.

Tendo em conta as disposições reguladoras da prescrição do procedimento acima transcritas, verificamos que o prazo da prescrição do procedimento criminal, atenta a moldura penal abstrata correspondente ao crime, é de 10 anos, artigo 118º., nº1 alínea c) do Código Penal.

Com eficácia interruptiva temos a constituição como arguidas – (ano de 2010) - e a notificação da acusação às arguidas -(ano de 2015) -, sendo que a notificação da acusação às arguidas não apenas interrompeu o decurso do prazo prescricional como tem efeito suspensivo do mesmo.

Em qualquer caso, independentemente da interrupção e suspensão, a lei estabelece que a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar nas circunstâncias previstas no sobredito artigo 121º., nº. 3, do Código Penal.

Este nº. 3 deste artigo 121º. fixa, portanto, o prazo de prescrição através de dois elementos indissociáveis, a saber: o prazo normal de prescrição acrescido de metade; e o tempo de suspensão.

Daí que o prazo máximo de prescrição seja determinado pela soma daquele tempo de suspensão ao prazo normal de prescrição acrescido de metade, independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar.

Assim, no caso que nos ocupa, ressalvado o tempo de suspensão - 3 anos - acrescentarmos o prazo normal de prescrição – 10 anos - acrescido de metade – 5 anos - constatamos que o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal é de 18 anos.

Por fim, coloca-se a questão de saber se deve ser tida em conta a legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República em contexto de combate à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
            A Lei nº. 1-A/2020, de 19 de Março, aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e a doença COVID-19, incluindo entres elas as atinentes a prazos processuais e diligências no âmbito dos processos e procedimentos a correrem termos, para além do mais, nos tribunais judiciais e no Ministério Público (artigo 7.º).
A Lei 1-A/2020, alterada, pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, no artigo 7.º, nºs 3 e 4, determinou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, desde 9 de Março de 2020.
A Lei 16/2020, de 29 de Maio, revogou o artigo 7.º da Lei 1-A/2020, alterada pela Lei 4-A/2020, pondo termo à suspensão dos referidos  prazos de prescrição e caducidade, artigo 8.º da Lei 16/2020, a partir do dia 3 de junho de 2020 os prazos de prescrição e caducidade que haviam ficado suspensos por força da Lei 1-A/2020 retomaram a respetiva contagem.

Posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021 de 1 de Fevereiro, foi aditado o artigo 6º-B nº 3 e 4 da Lei nº 1-A/2020, nos termos do qual voltou a suspender os prazos de prescrição com efeitos reportados a 22/01/2021 até 5/04/2021 (Lei nº 13-B/2021 de 5/4), no total de 74 dias.
Estipula o artigo 6º-B nº 4 que “prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão”.
A jurisprudência tem adotado duas posições distintas quanto à aplicação deste regime de suspensão dos prazos de prescrição aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência: para uns não podem as mesmas ser aplicadas a factos ocorridos anteriormente, já que implica uma aplicação retroativa de tais normas atentatória do princípio da legalidade criminal e, para outros, tratando-se de leis de emergência para acudir a uma situação completamente extraordinária, têm as mesmas aplicação mesmo aos factos ocorrido anteriormente.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente enjeitado qualquer inconstitucionalidade da norma contida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, designadamente a violação dos artigos 2º. e 29º. nº. , 1, 3 e 4 da CRP,  Acórdãos  do Tribunal Constitucional nºs 500/2021; 660/2021 e 798/2021 e Decisão Sumária do TC nº 256/2023, in http://www.tribunalconstitucional.pt .
Com efeito, na Decisão Sumária nº 256/2023 pode ler-se:
“A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 - já o notámos - insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais.
No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais, concretizada através da sujeição dos atos e diligências processuais ao regime das férias judiciais referido no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, e, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020, à regra da suspensão, pura e simples, de todos os prazos processuais previstos para aquele efeito. Para os processos urgentes, começou por estabelecer-se um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos, ainda que com exceções (artigo 7.º, n.º 5, da Lei n.º 1-A/2020), que a Lei n.º 4-A/2020 acabou por modificar, impondo a sua normal tramitação desde que fosse possível assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico.
Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser.
Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal). Já no âmbito dos procedimentos contraordenacionais, o mesmo se verificou, pelo menos, com a prolação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima (artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º do RGCO), a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou qualquer notificação (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do RGCO), a realização de quaisquer diligências de prova (artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do RGCO) e a prolação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima (artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGCO).
É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse - se manteve- o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.
(…)
Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.
Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. [negrito e sublinhado nosso]. (…)
A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja.
Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
(…)
A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu - reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
(…)
“Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.
(…)
Em suma: para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes. [negrito nosso].”

São patentes as razões da pausa transitória imposta à normal marcha dos prazos introduzidas pela legislação temporária e de emergência que decorreu da extrema necessidade de confinamento domiciliário da generalidade da população com vista a dar resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 que, como é sabido, obrigou o mundo a parar e teve reflexos ao nível da administração da justiça e em todos os procedimentos processuais que deixaram de poder ser tramitados com a normal prontidão.

O contexto deste estado de particular exceção justifica a aplicação desta causa de suspensão a todos os procedimentos pendentes e inexiste violação do princípio da confiança dos cidadãos e da comunidade e das expectativas eventualmente criadas a que responde a proibição da retroatividade in pejus, na medida em que a situação absolutamente excecional que levou à sua consagração legal, era imprevisível à data da prática dos factos, e a resposta dada pela Assembleia da República, através das mencionadas normas visou reagir a tal situação de extrema gravidade e excecionalidade.

Também, a sua vigência não excedeu o período temporal durante o qual se verificou o referido condicionamento da atividade nos tribunais e assim, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não se traduz num qualquer excesso ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus
Deste modo, a suspensão da prescrição prevista nas referidas leis é aplicável aos processos crime em que estejam em causa alegados factos ilícitos praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, como é o presente.
Assim, no âmbito da legislação sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, há a considerar os períodos de suspensão dos prazos de prescrição, entre 9 de março e 2 de junho de 2020 - (86 dias) - e entre 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (74 dias) e que abrangeu o procedimento dos autos uma vez que o prazo de prescrição nessa altura ainda não se esgotara.

A data relevante a considerar, como já dissemos, é o início de 2006 – 1/01/2006-, por seu lado, ressalta da certidão de fls. 11852 e da decisão de 20.03.2024 do Tribunal Constitucional, que o trânsito em julgado, no que tange às arguidas recorrentes, ocorreu em 20.03.2024, pelo que, a partir do trânsito em julgado cessa a procedimento criminal, iniciando-se prazos de prescrição da pena.

Ora, em nosso entender, sendo o prazo de prescrição do procedimento de 10 anos, tendo havido factos interruptivos e suspensivos do mesmo, o prazo máximo de prescrição do procedimento é de 18 anos, a tal prazo acrescerá ainda o período de 160 dias em que o prazo esteve suspenso por força da legislação de combate à pandemia, pelo que, contado esse prazo a partir de 1/01/2006,  ainda se mostrava em curso no dia 20/03/2024.

Face ao que vem de dizer-se, concluímos que os recursos não merecem provimento.

V.Decisão
Assim, pelo exposto acordam os Juízes que compõem a 5ª. Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos pelas recorrentes mantendo-se o decidido na 1ª instância nos seus precisos termos.


Custas a cargo das recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, a cargo de cada uma, artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma.

 

 Notifique

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Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que o presente acórdão foi elaborado pela relatora, primeira signatária, e revisto pelas restantes signatárias.

                                               *

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2025

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                                               Maria da Conceição Miranda

                                               Sara Reis Marques

                                               Alcina Costa Ribeiro