Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/23.2GCLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO FORMULADO PELO ASSISTENTE
FALTA DE NARRAÇÃO DOS FACTOS
NULIDADE
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARADO EXTINTO O PROCEDIMENTO CRIMINAL CONTRA UM DOS ARGUIDOS, POR FALECIMENTO DESTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 118.º, N.º 1, 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E D), 287.º, N.º 2, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: 1. A lei adjectiva penal impõe que o requerimento de abertura de instrução contenha, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, e, sendo a instrução requerida pelo assistente, ao respectivo requerimento é ainda aplicável o disposto no art. 283º, n.º 3, als. b) e d), ex-vi art. 287º, 2, ambos do CPP.

2. Significa tal que, no caso de instrução requerida pelo assistente, o respectivo requerimento terá de conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, sempre que possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada, e a indicação das disposições legais aplicáveis.

3. A falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, fulmina o requerimento de abertura da instrução com a nulidade — arts. 287°, 2, 283°, n° 3, al. b) e 118°, n°1, todos do CPP, pelo que tal requerimento terá de ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução.

4. A nulidade prevista no art. 283°, nº 3, alínea b), com referência ao n° 2 do art. 287°, ambos do CPP, tendo como consequência a rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, é de conhecimento oficioso, pois que, se as causas de rejeição desse requerimento são de conhecimento oficioso e essa nulidade é uma delas, só pode ser, também ela, de conhecimento oficioso.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

            I - RELATÓRIO

           

1. No processo nº 76/23.... (Instrução), do Juízo de Instrução Criminal de Viseu – Juiz ..., recorre o assistente …, do despacho …, que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução (RAI) que havia apresentado na sequência de um despacho de arquivamento de inquérito por parte do Ministério Público.

           

2. O assistente …, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):

1. …

2. …

3. O assistente requereu articuladamente a abertura da instrução nos autos, ali fez constar as razões de facto e de direito, de discordância pela não acusação dos arguidos, e indicou dos atos de instrução pretendidos, os factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, incluindo o lugar, o tempo, a motivação da sua prática, o grau de participação, as circunstâncias determinantes da sanção e a indicação das disposições legais aplicáveis. Tanto que,

4. …
5. A art.º a 38º do RAI começa por evidenciar que o MP. não levou a cabo as diligencias necessárias à obtenção da verdade material, os elementos não tidos em conta, faz considerações quanto ao apuramento dos factos indicando as razões que importariam decisão diversa ao arquivamento dos autos.
6. Posto isto, procede à identificação dos arguidos, das disposições legais aplicáveis e a indicação das provas a produzir e diligências a realizar e descreve sem qualquer dúvida, vários factos, quer quanto ao modo, tempo e circunstâncias da sua ocorrência, quer identificando os autores da prática desses factos fazendo a sua integração/subsunção jurídica e imputandoos aos arguidos, ou seja contem ainda a narração dos factos.
7. …

8. …

9. …
10. …

11. Os elementos objetivos dos ilícitos que se imputam aos arguidos surgem pois descritos nos arts 66 0 a 740 do RAI, os quais se traduzem numa descrição, em jeito de uma acusação alternativa, dos factos integrantes das condutas objetivas que o assistente imputa aos arguidos.

12. …

13. …

14. Porquanto o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução pelo que tendo estes requisitos do RAI sido integralmente respeitados, inexiste fundamento legal para a prolação da decisão recorrida.

…».

            3. Respondeu o Ministério Público, …

                       

            4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer

            5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1.

            Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

            2. O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

            «…

            Veio a assistente requerer a abertura de instrução, por discordar do despacho de arquivamento proferido pela Digna Procuradora, pretendendo que a final seja proferido despacho de pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de dano e de um crime de alteração de marco.

            …

            Da conjugação destes citados artigos conclui-se que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (ou seja os elementos objetivos e subjetivos do tipo) e a indicação das disposições legais aplicáveis ( artº 283º , n.3, al. b) ex vi do artº 287º, nº2 do mesmo diploma).

            Logo, a falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade (artigo 283, nº3 do CPP), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, fixa o objeto do processo ( artº 303º e 309 do CPP).

            …

            Do crime de alteração de marcos:

            De acordo com o artigo 216 do CP:

            …

            Por seu turno, a noção de marco consta do artigo 202, al.g) do CP.

            …

            Só há punição nos termos do artigo 216 do CP, quando o marco foi colocado no local por decisão judicial, ou com o acordo de quem estava legitimado a dar.

            Desde logo, na situação concreta, o assistente nem sequer alega os elementos objetivo do tipo, nomeadamente não alega a existência de um marco colocado no local por decisão judicial, ou com o acordo de quem estava legitimado para o dar, como exige o artigo 202, al.g) do CP.

            …

            O RAI é completamente omisso no que tange a esse elemento objetivo, motivo pelo qual o RAI deve ser rejeitado.

            Do crime de dano:

            O crime de dano encontra-se previsto no artº 212ºdo CP:

            Dispõe o referido artigo que …

            Além disso, para que se verifique o tipo torna-se, ainda, necessário que o agente tenha atuado com dolo, em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual), não sendo a conduta punida a título de negligência.

            Ora, na situação concreta, e no que tange a este ilícito, o assistente limita-se a afirmar, de modo conclusivo, que os arguidos atuaram com a intenção de destruir, danificar ou desfigurar coisa alheia.

            Contudo, não alega o assistente que a rede, objeto do dano, lhe pertencia.

            …

            Logo, também nesta parte deve o RAI ser rejeitado.

            No caso dos autos, como visto, o RAI é omisso, no que tange a alguns dos elementos do tipo objetivo, essenciais à condenação.

            …

             Tal requerimento não constituiu substancialmente uma verdadeira acusação. O mesmo não imputa factos concretos ao arguido que sejam suscetíveis de constituir crime, nomeadamente não descreve os elementos objetivos do tipo.

            …

            Pelo exposto, nos termos do artº 287º, nº3 do CPP rejeita-se o requerimento de abertura de instrução.

            Custas pelo assistente, requerente da instrução, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

            Notifique».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem o assistente recorrer do despacho judicial que considerou inadmissível o requerimento da abertura de instrução que aquele fez nos autos, rejeitando-o.

O que se vai apenas aqui discutir é saber se o requerimento em causa deveria ou não ter sido recebido, de molde a dar-se início à fase instrutória dos autos, e já não saber se existem indícios suficientes para pronunciar os arguidos pelos crimes tidos por si como indiciados (e na sequência do despacho de arquivamento do inquérito, pelas mãos do Ministério Público).

            A questão em discussão é somente formal – obedece ao não o requerimento de abertura de instrução ao figurino legal?

            3.2. VEJAMOS QUAL O CONTEÚDO DESSE RAI (apenas aqui colocaremos os artigos 66 a 74º do RAI pois tudo o resto são considerações jurídicas a explanar a razão pela qual não se justifica o arquivamento dos autos pelo MP, mas antes a pronúncia dos arguidos):

«(…)

II)   DA ACUSAÇÃO

66.º

No dia 11 de maio de 2023, cerca das 9h00 o assistente deu fé que no seu terreno sito na Rua ... em ..., anexo à sua vivenda, estava recentemente edificado de forma ilegal um anexo consistente em arrumos de alfaias agrícolas.

67.º

Tendo apurado que o arguido …i, por intermédio do arguido …, …, inicioua construçãodaqueleanexo tendo construído o mesmo parcialmente em parte da propriedade do assistente.

68.º

Para esse efeito os arguidos removeram os marcos que delimitavam o seu terreno.

69.º

De igual modo arrancaram cerca de seis metros de vedação em rede de 1.5 de altura e respetiva estrutura de suporte.

70.º

Com a sua conduta apropriaram-se os arguidos de parte de terreno que bem

sabiam ser alheio porquanto é propriedade do assistente.

71.º

Os arguidos agiram de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas por lei. Tanto que,

72.º

Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente ao arrancar o marco com a intenção de apropriação do terreno do Assistente para o arguido AA.

De igual modo,

73.º

Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente ao arrancar a vedação de seis metros de vedação em rede de 1.5 de altura e respetiva estrutura de suporte com a intenção de destruir, danificar ou desfigurar coisa alheia, que não lhes pertencia.

74.º

Deste modo, os arguidos… devemser acusado da prática, cada um, de um crime de alteração de marcos, previsto e punido pelo art. 216.º do Código Penal e/ou de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal».

3.3. Sabemos que o assistente pode requerer a instrução nos crimes de natureza pública e semi-pública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação ou, tendo o MP deduzido acusação, por factos que importem uma alteração substancial dos factos aí narrados – de facto, quando o MP não haja deduzido acusação, ao ofendido, constituído como assistente, resta a dedução de acusação alternativa, consubstanciada no requerimento de abertura da fase da instrução, podendo ainda, em 2ª opção, reclamar hierarquicamente do despacho do MP, nos termos e para os efeitos do artigo 278º, nº 2 do CPP (não o poderá fazer cumulativamente, como é bem de ver – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 24/1/2002 e Acórdão da Relação de Guimarães de 16/10/2006, ambos visualizados em http: www.dgsi.pt).

Estipula o artigo 286º, nº 1 do CPP que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», adiantando o artigo 287º, nº 1 que «A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (...); b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (…)».

O nº 2 do artigo 287º avança ainda que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do nº 3 do artigo 283º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas».

Recuando para este normativo, pensado para os termos da acusação do Ministério Público, lê-se no seu teor, igualmente aplicável ao requerimento para abertura da instrução, que «a acusação contém, sob pena de nulidade:

« (...)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

 (…)

d) A indicação das disposições legais aplicáveis».

O nº 3 do artigo 287º adianta que o requerimento de abertura da fase jurisdicional só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, tendo sido este último o motivo invocado para a decretada rejeição.

Este é o pano de fundo normativo em que nos devemos enredar para a apreciação do presente recurso.

3.4.

O JIC não tem intrínsecas funções investigatórias em sentido técnico-jurídico, sendo antes o seu mister o de comprovar de forma chancelar – porque jurisdicional - uma investigação que foi feita previamente por quem é titular da acção penal.

Deste modo, o artigo 288º, nº 4 estipula que: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o nº 2 do artigo anterior

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do nº 1 do artigo 289º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.

Vários doutrinadores já se têm pronunciado sobre esta «investigação» levada a cabo na fase instrutória de um processo penal.

Germano Marques da Silva opina que (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»

            Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta, no mesmo sentido, «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo».

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289º, nº 1, do CPP, na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32º nº 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP).

Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, contra o qual o assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal peça assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe acusação pública no que aos crimes de natureza semi-pública diz respeito (crime de dano e crime de alteração de marcos).

Verificando-se que o Ministério Público se absteve de acusar, arquivando o processo, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.

            Decidiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004) que «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.»

            A propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, lê-se no mesmo Acórdão:

«(…) a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

           

3.5. Diga-se ainda que se o requerimento para abertura de instrução não contém tais factos e até a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será também inexequível porque se tornará uma fase processual sem objecto, na medida em que o assistente deixou de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se do requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.

De facto, a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (Acórdão do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de rejeitar, por inadmissibilidade legal, atenta a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, omitindo em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (Acórdão do STJ de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3).

Por tudo isto, concluímos que a falta de indicação, no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente, tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório.

           

3.6. É, pois, por todos assumida a importância da delimitação do objecto através do requerimento de abertura da instrução formulado por assistente, o qual consubstancia uma verdadeira acusação alternativa.

E se o requerimento em causa não obedece a tal requisito legal?

Não nos esquecemos que tal requerimento deve conter a indicação dos elementos referidos no artigo 287º, nº 2, particularmente os das alíneas b) e d) do nº 3 do artigo 283º, do CPP, disposição para a qual remete, como vimos, o referido preceito legal.

            De novo, a palavra à doutrina.

Souto de Moura defende que a instrução surge, no CPP, como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados (“Inquérito e Instrução”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.119).

Para este autor, sendo requerida a instrução, se o assistente não delimitar o campo factual de incidência, a instrução não deixará de ser inexequível (ob. cit., p. 120, nota).

            Também se questionou se a remissão para o artigo 283º, nº 3, compreende a cominação de “nulidade” para o requerimento instrutório, debatendo-se a natureza dessa nulidade.

E também se debate se a omissão da narração dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a mencionada nulidade, não será um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos previstos no nº 3 do artigo 287º do CPP.

Neste âmbito, questiona-se a interpretação do conceito de inadmissibilidade legal como causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução.

            Em qualquer caso, é indubitável que não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309º, nº1.

            Defendeu-se, em certa altura, a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente.

            O STJ resolveu a questão, tendo fixado jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» (Acórdão do STJ nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no D.R., I Série, de 4 de Novembro de 2005).

            Neste aresto, salienta-se que o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4º do CPP. 

A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 311º, nº 2, alínea a), e nº 3, alínea b), do CPP.

Voltemos ao Acórdão do STJ atrás citado:

«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada - o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.

            (…)

            O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508º, nº 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra».

            Há que referir ainda que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 389/2005, de 14 de Julho de 2005 (DR, II, de 19 de Outubro de 2005), decidiu não ser inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 287º e 283º do CPP, segundo a qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes - «Desde logo, a Constituição, a par da consagração de todas as garantias de defesa do arguido (artigo 32º nº 1), determina que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (artigo 32º, nº 7). É, pois, constitucionalmente reconhecida uma ampla margem de conformação legislativa da posição processual do assistente (ofendido) que inviabiliza uma abstracta equiparação entre o estatuto do assistente e o do arguido.

Tal diferenciação é naturalmente reconhecida pela jurisprudência constitucional, que reiteradamente tem realçado, a propósito de várias questões relacionadas com o estatuto do assistente, a diferença entre as posições processuais dos dois sujeitos do processo penal

Assim, o que é afirmado a propósito das garantias de defesa do arguido não tem necessariamente aplicação tratando-se do assistente, pelo que a jurisprudência invocada pelo ora recorrente não tem pertinência significativa nos presentes autos.

            (…) No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída (possibilitar a abertura da instrução, fixando o respectivo objecto). Trata-se, nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto anterior).

Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”».

Também o mesmo Tribunal Constitucional decidiu em 2011 (Acórdão nº 636/2011, de 20/12/2011 -DR, II-Série, nº 19, de 26.1.2012 “não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos nºs 2 e 3 do artigo 287º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo nº 2 do artigo 287º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no nº 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)”.

Neste plano, em que a jurisprudência tem trilhado plurifacetados caminhos – apelando à nulidade de conhecimento oficioso (Acórdão da Relação de Guimarães, de 17 de Maio de 2004, processo 777/04-1), à nulidade por falta de objecto (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006, processo 60/03.2TANLS.C1), à inexistência (Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 2006, processo 7649/05-5.ª), à equiparação a acusação manifestamente infundada (Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2006, processo 0611178) –, conclui-se que todos eles conduzem ao mesmo fatal e incontornável resultado: a rejeição do requerimento.

Com a prevalência do entendimento de que o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer convite ao aperfeiçoamento, afigura-se-nos que o conceito de inadmissibilidade legal não pode, pois, deixar de abranger o caso de instrução requerida por assistente cujo requerimento não contenha uma descrição factual susceptível de integrar os elementos do tipo criminal que o requerente entenda ter sido preenchido.

Por isso, o requerimento é nulo, o que se reconduz à situação de inevitabilidade da rejeição do requerimento em causa por inadmissibilidade legal da instrução.

Quer isto dizer que nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia, só havendo que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissibilidade da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissibilidade de actos processuais em geral.

3.7. Situada a questão, haverá, agora, que atentar na narração dos factos tal como foi levada a efeito pelo assistente, e ora recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, tendo em vista determinar se nos encontramos, ou não, perante uma situação de falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática dos dois crimes em apreço e consequentemente, se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, conforme se decidiu no despacho recorrido.

Está em causa um crime de alteração de marcos, previsto e punido pelo disposto no artigo 216º, nº 1 do CP, e um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1, do mesmo diploma, imputados aos dois arguidos (há agora a informação nos autos de que um deles faleceu).

Para o tribunal recorrido, a peça RAI:

· Quanto ao crime de alteração de marcos:

o o assistente nem sequer alega os elementos objetivo do tipo, nomeadamente não alega a existência de um marco colocado no local por decisão judicial, ou com o acordo de quem estava legitimado para o dar, como exige o artigo 202, al.g) do CP.

o De facto, só há punição nos termos do artigo 216 do CP, quando o marco foi colocado no local por decisão judicial, ou com o acordo de quem estava legitimado a dar.

o O RAI é completamente omisso no que tange a esse elemento objetivo, motivo pelo qual o RAI deve ser rejeitado.

· Quanto ao crime de dano:

o o assistente limita-se a afirmar, de modo conclusivo, que os arguidos atuaram com a intenção de destruir, danificar ou desfigurar coisa alheia.

o Contudo, não alega o assistente que a rede, objeto do dano, lhe pertencia.

o Tal é um elemento objetivo do tipo de dano, sendo, ainda um elemento, para aferir da legitimidade para apresenta queixa.

o Não alega o assistente a propriedade da rede, nomeadamente se a mesma lhe pertence.

o Da leitura do RAI tal elemento é completamente omisso.

o Desconhece o Tribunal, pela leitura do RAI a quem pertence a rede.

o Logo, também nesta parte deve o RAI ser rejeitado.



O assistente, in casu, no requerimento de abertura de instrução, olvida, de facto, estes dois elementos objectivos de ambos os delitos.

Comecemos pelo tipo de crime previsto no artigo 216º do CP.

No requerimento a que se alude não é concretizada, em termos fácticos, a descrição objectiva do dito crime de alteração de marcos.

E como bem decidiu a Relação de Évora de 2.10.2018 (Pº 7/16.6GDMRA.E1):

«I. Marcos para efeitos da incriminação prevista no artº 216 nº 1 do CP, ex vi artº 202 al.ª g) do mesmo diploma, exigem que a sua colocação tenha sido operada por força de decisão judicial ou por acordo de quem esteja legitimamente autorizado, ou seja, os donos das propriedades confinantes;

II. Tal não se verifica e, por consequência, o arguido não deve ser pronunciado pela prática daquele crime se no requerimento de abertura da instrução o assistente se limita a alegar, a tal respeito, que dias antes havia colocado os marcos na extrema da propriedade de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral e um levantamento topográfico».

Doutrinalmente, tem-se entendido, e bem, que «(…)Vedações ou sinalizações ilegais ou ilegítimas, ou não decretadas judicialmente ou determinadas por acordo, não encontram proteção neste tipo de crime» - cfr. Damião da Cunha, anotação ao artigo 216º do Código Penal, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, volume I, GesLegal, 2.ª edição, Julho de 2022, parágrafo 11, páginas 340 e 341.

Ou seja, o tipo objectivo pressupõe que o concreto marco tenha sido posto por decisão judicial ou com o acordo de quem esteja legitimamente autorizado para o dar – artigos 202º, alínea g) e 216º, ambos do CP.

Ora, lido o RAI, nos seus artigos 66º a 74º (a parte que interessa pois é aí que estão Factos e Incriminação), tal facto não consta da narrativa fáctica.

Quanto ao crime de dano, também tem toda a razão o despacho recorrido.

Não resulta da narrativa factual do RAI (artigos 66º a 74º) que o assistente seja o dono da vedação danificada e que, como tal, tivesse legitimidade para apresentar queixa.

Como bem afere o MP de 1ª instância, «a vedação em causa, face ao requerimento de abertura de instrução, poderia pertencer a qualquer outra pessoa que não os arguidos – podia inclusivamente pertencer aos inquilinos do assistente».

A quem pertence a vedação (rede)? Não estamos a falar do terreno mas da rede!

Ignora-se do texto literal do RAI.

Sem isso (descrição de que se trata de coisa alheia ao agente do crime), não há crime.


*

Segundo a decisão recorrida, a instrução foi julgada inadmissível porque do requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente não se extrai um quadro factual que contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, uma vez que do mencionado requerimento são olvidados estes dois elementos objectivos imprescindíveis à sorte da instrução requerida.

E só podemos secundar tal conclusão.

Acresce que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.

Cumpre-nos notar que o requerimento de abertura de instrução, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, como na situação sob recurso, equivale a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo, pois, ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar ao arguido.

Diga-se ainda que seria nula uma decisão instrutória que pronunciasse um arguido por factos não alegados pelo assistente ou que em relação a estes configurasse uma alteração substancial, nos termos do disposto no art° 309°, nº 1, do mesmo diploma legal.

A acusação e a pronúncia fixam, pois, o objecto do processo e é imodificável até ao julgamento.

De facto, se fosse o MP a acusar assim um arguido, o destino dessa peça seria o seu não recebimento.

Porque tratar diferentemente esta peça do assistente, então?

E não se diga que compete ao Juiz de Instrução pronunciar a final um arguido.

Exactamente porque o JIC só o faz com base em factos que devem ser rigorosamente delineados no RAI, não competindo a tal Juiz colmatar as lacunas factuais do assistente, aqui a «parte acusadora».

Há que incutir rigor processual, não primando, pois, por tal qualidade a peça do assistente.

Como bem conclui a decisão sumária emitida por este tribunal, no Pº 135/10.1TALSA.C1:

«Por conseguinte, irrepresentando-se-lhe (do RAI) o indispensável conteúdo e virtualidade acusatória por bem-definida conduta jurídico-criminal – essencial à delimitação do objecto processual e da decisão-instrutória –, deixou-se esvaziada de sentido prático-jurídico a respectiva fase processual, assim incontornavelmente votada ao malogro, e, logo, à inexequibilidade, pela impossibilidade de realização do visado/legal desiderato de comprovação judicial da pretensa indiciação da dolosa e voluntária autoria comissiva de concreto/demarcado, típico, ilícito e culposo acto comportamental-criminal de tal cidadã, e à consequente determinação da pessoal sujeição a referente julgamento, nos seus precisos limites, já que, como supra se esclareceu, qualquer eventual complementarização descritivo-factual que em hipotética pronúncia fosse operada pelo juiz de instrução a inquinaria com o vício processual de nulidade, em conformidade com o postulado no artº 309º, nº 1, do CPP, com referência ao conceito normativo ínsito no preceito 1º, al. f), do mesmo compêndio».

3.8. Face ao exposto, estamos em crer que o RAI apresentado pelo assistente não obedece ao que se estatui no art. 287º, nº 2, do CPP, pois é manifesto que, contrariamente ao exigido art. 283º, nº 3, al. b) e d) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente os arguidos pelos crimes que lhes imputa.

Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação ao único arguido vivo de uma pena ou medida de segurança pelo aludido crime.

Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo [cf. art. 283º, nº 3, als. b) e d), aplicável ex vi art. 287º, nº 2, ambos do CPP], sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.

Deve, pois, ser totalmente rejeitado, nos termos do art. 287º, nº 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução, o que foi, e bem, feito pelo tribunal recorrido.

3.10. Conclui-se, assim, sem necessidade de mais considerações, que o recurso não merece provimento, não deixando esta Relação, por ter tido conhecimento de um facto notório (morte de um dos dois arguidos – cfr. fls 195-v), de declarar extinto o procedimento criminal movido contra o falecido BB, nos termos impostos pelas normas dos artigos 127º e 128º do CP.

            III – DISPOSITIVO       

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:

· JULGAR extinto o procedimento criminal movido ao arguido …, falecido em … (cfr. fls 195-v), nos termos dos artigos 127º, nº 1 e 128º, nº 1, do CP;

· NEGAR provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo assistente [artigo 515º, nº 1, alínea b) do CPP], fixando em 4 UCs a taxa de justiça (tabela III anexa ao RCP).


 Coimbra, 6 de Novembro de 2024

(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26/8, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra

Adjunto: Sara Reis Marques

Adjunto: Alexandra Guiné