Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2247/24.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MIGUEL CALDAS
Descritores: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
COMPETÊNCIA MATERIAL
LITISCONSÓRCIO
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32.º, 64.º, 91.º 266º Nº4, 1082.º, AL. D), 1092.º, N.º 1, AL. B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGOS 117.º E 122.º, N.º 2, DA LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO
Sumário: 1. A competência material de um Tribunal é determinada pela estrutura da causa conforme apresentada pelo autor, considerando a relação jurídica material, o pedido e a causa de pedir.

2. Os Juízos de Família e Menores são materialmente competentes para as acções relativas ao estado civil e às relações patrimoniais entre cônjuges/ex-cônjuges, incluindo inventários para partilha do património conjugal, e as questões complexas desse inventário, quando remetidas para os meios comuns e discutidas em acção autónoma, são, igualmente, da competência do Juízo de Família e Menores.

3. O facto de a acção autónoma não ter sido proposta apenas contra a ex-cônjuge e a circunstância ter sido demandada uma terceira pessoa, irmã da ex-cônjuge, em situação de litisconsórcio passivo, não modifica a regra da competência material, uma vez que o cerne da demanda reside nas relações patrimoniais entre o autor e a primeira ré, referentes ao período do casamento.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

AA intentou acção declarativa com processo comum contra BB e CC, na qualidade de cabeça de casal e herdeira, respectivamente, da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, pedindo, a final, a condenação das rés no seguinte:

“1) A reconhecer que todos os bens identificados no artigo 15º desta petição[2] são bens comuns do ex-casal, constituído por A. e pela Primeira Ré e, por via de tal situação, serem restituídos ao A. metade dos mesmos, ou caso se mostre necessário ser a Primeira Ré condenada a relacioná-los no processo de inventário já referido para que os mesmos sejam partilhados;

2) Todos os RR, a reconhecerem o direito de propriedade do A., conjuntamente com a Primeira Ré, por usucapião expressamente invocada sobre o prédio urbano inscrito na matriz com o n.º ...75, da freguesia ..., concelho ..., identificado nesta petição no artigo 19º e 20º do presente articulado;

E, em consequência,

Os RR. serem condenados a reconhecer que, a primeira Ré conjuntamente com o A. são os únicos e exclusivos proprietários e legítimos possuidores do imóvel urbano inscrito na matriz com o n.º ...75, da freguesia ..., concelho ..., e, em consequência ser a Primeira Ré condenada a reconhecer que o mesmo é bem comum do ex-casal e a relacionar tal bem no inventário já mencionado, para efeitos de partilha entre ambos (A. e 1.ª Ré), tudo com as legais consequências;

Julgar qualquer ato de posse que os RR. vêm tentando fazer sobre o imóvel identificado no artigo 19º e 20º desta petição, insubsistente, ilegal e de má fé.

E, em conformidade com a propriedade reconhecida ser o identificado imóvel entregue ao A., uma vez que o direito à habitação também lhe pertence conforme alegado, tudo com as consequências legais.”


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Aduz, em síntese, que foi casado com a 1ª ré, dela se tendo divorciado, e que corre termos inventário para separação de meações – sob o n.º 291/21.... no Juízo de Família e Menores de Pombal – , sendo que, em sede de audiência prévia, nesse inventário, as partes – aqui autor e 1ª ré –, concordaram em remeter para os meios comuns a questão relacionada com a propriedade do imóvel acima aludido nos pedidos, e bem assim remeter para os meios comuns a questão relacionada com os bens móveis existentes no interior daquele imóvel.

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Em contestação/reconvenção as rés pedem que a “acção [seja] julgada improcedente com as legais consequências, admitindo-se a contestação/reconvenção e o A condenado a:

1- Reconhecer as ora RR são legítimas possuidoras e proprietárias dos bens móveis identificado no artigo 15 da p.i, na qualidade de titulares da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD.

2- Reconhecer as ora RR são legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado no artigo 19º da p.i, casa, na qualidade de titulares da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD.

3- Reconhecer que os ora RR adquiriram o prédio, imóvel, referido em 19º da p.i. por usucapião, se outro título não tivessem, na qualidade de titulares da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD”.


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A 1.ª instância suscitou oficiosamente a questão da falta de competência material dos Juízos Centrais Cíveis para a tramitação da acção, tendo sido cumprido o contraditório, sustentando o autor que a competência cabe ao Juízo Central Cível de Leiria, mencionando em abono da sua posição, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2024, Proc. n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1, de 26-10-2020 e Proc. n.º Processo n.º 1029/20.8T8PRD.P1.

*

A 28-04-2025 foi proferida sentença, na qual o tribunal a quo decidiu: “Declaro o Juízo Central Cível de Leiria, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para os termos da acção e da reconvenção, e nessa sequência absolve-se as RR BB e CC da instância, e o A. AA da instância reconvencional”.

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            Inconformado com a decisão, o autor recorreu e, nas alegações de recurso, formulou as seguintes conclusões:

“1-O presente recurso tem como objeto a discussão da competência/incompetência absoluta, em razão da matéria, do “tribunal a quo” conhecer a questão relacionada com a propriedade do imóvel (casa de morada de família do Autor e da 1.ª Ré) e bem assim a questão relacionada com os bens móveis existentes no interior daquele imóvel.

2-Os presentes autos tiveram o seu início com a ação declarativa de condenação, pelo Autor, a fim de discutir a pertença da propriedade da casa de morada de família bem como dos bens móveis lá existentes.

3-A discussão nos presentes autos prendeu-se com o facto de, no âmbito do processo de inventário por divórcio entre o Autor e a 1.ª Ré, esta última aquando da apresentação da reclamação à relação de bens afirmou que que o imóvel respeitante à casa de morada de família (prédio urbano inscrito na matriz com o n.º ...75, da freguesia ... e do concelho ...) foi edificado e construído pela mãe da primeira Ré, falecida, sendo assim, segundo o alegado pela primeira Ré na referida reclamação de bens, a casa de morada de família (melhor identificada no artigo 19º e 20º da petição inicial) e respetivo recheio (melhor identificado no artigo 15º da petição inicial apresentada pelo Autor) propriedade da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD.

4-No âmbito da audiência prévia realizada a 12 de Outubro de 2023 no processo de inventário, tendo a primeira Ré mantido a posição quanto à questão da propriedade da casa de morada de família, a Meritíssima Juíza referiu que esta questão deveria ser resolvida em sede própria, tendo as partes acordado em remeter a discussão da propriedade do imóvel para os meios comuns. E, na audiência prévia realizada a 08 de Novembro de 2023, acordou o Autor e a 1.ª Ré em remeter a questão da propriedade do recheio da casa, também, para os meios comuns.

5-Nesta senda, o Autor deu entrada da competente ação no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, mais concretamente, no juízo central cível.

6-Nessa ação e dada a posição assumida pela ex-cônjuge do Autor ( 1.ª Ré na referida ação) no processo de inventário ao alegar que o bem imóvel tinha sido construído pela sua mãe e que os bens móveis lá existentes tinham sido adquiridos por aquela e que a mesma lá habitava, tendo-o adquirido por usucapião, sendo que, com a morte da mãe da 1.ª Ré (a 14.10.2022), a posse continuou na herança por óbito de DD.

7-Para tanto, e dado o alegado pela 1.ª Ré, o Autor ao lançar mão da presente ação declarativa de condenação contra a referida primeira Ré e contra os herdeiros da herança aberta por óbito de DD, que são a 1.ª Ré e a sua irmã (identificada em 3) da petição inicial).

8-E, em súmula peticionou o Autor que tanto a casa de morada de família e os bens móveis lá existentes fossem considerados comuns do Autor e da Primeira Ré, uma vez que o bem imóvel foi adquirido por usucapião e os bens móveis foram adquiridos pelas partes referidas na constância do matrimónio.

9-As Rés contestaram a ação e deduziram reconvenção, mantendo a posição de que o imóvel foi adquirido pelas Rés por usucapião, na qualidade de titulares da herança iliquida e indivisa por óbito de DD e que os bens móveis são, também, propriedade das Rés na qualidade de titulares da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD.

10-O Autor apresentou a competente replica, tendo peticionado pela improcedência do pedido reconvencional, mantendo a posição versada no articulado por si apresentado (petição inicial).

11- Na sequência, o Tribunal a quo declarou-se materialmente incompetente para conhecer da presente ação/reconvenção, atribuindo a competência aos Juízos de Família e Menores, absolvendo as partes da instância.

12- O Tribunal a quo apoiou e sustentou a sua decisão tendo por base, argumentado, sumariamente que o n.º 2 do artigo 122º da Lei 113/2013, de 26 de Agosto (denominada LOSJ) confere aos Juízos de Família e Menores competências que a lei confere aos Tribunais, nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

13- E na perspetiva do tribunal a quo, sendo a presente ação uma consequência do processo de inventário, salvo outra e melhor opinião, entendeu estar perante um dos casos em que as competências legais são conferidas aos Tribunais, no âmbito do processo de inventário.

14- Pois que no caso em apreço os factos invocados pelo A. dizem respeito a relações patrimoniais dos cônjuges por causa e no âmbito do casamento e consequências de posterior divórcio, ainda que seja demandada não só a ex-mulher do A. mas uma terceira pessoa, neste caso a mãe daquela, sendo que, ainda assim, será competente o Juízo de Família e Menores e não o Tribunal a quo (juízo central cível).

15-Tendo absolvido as Rés da instância e o Autor da instância reconvencional.

16-Ora, com o devido respeito, e salvo melhor opinião, é nossa singela convicção que andou mal o Tribunal a quo em julgar-se materialmente incompetente para decidir da referida ação declarativa de condenação.

17-A questão da competência dos Juízos Centrais Cíveis ou dos Juízos de Família e Menores para tramitar e decidir as ações declarativas instaurada na sequência da controvérsia ocorrida em inventário após divórcio para se apurar se um bem imóvel e/ou móvel quando está em causa o direito de propriedade sobre esses bens já vem sido amplamente discutida pelos Tribunais, tanto de primeira instância como pelos Tribunais superiores, tendo a jurisprudência amplamente decidido pela atribuição da competência material aos juízos centrais cíveis, tratando-se de ação cujo seu valor seja superior a €50.000,00, como é o caso dos presentes autos.

18- In casu, e como já referido supra, andou mal o Tribunal a quo ao declarar-se incompetente para tramitar esta ação declarativa de condenação em que se discute a propriedade da casa de morada de família e dos bens móveis que fazem parte da mesma.

19- Por forma a corroborar esta situação, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra: “i) Os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar ação declarativa instaurada na sequência da controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para apurar se um imóvel é bem comum do casal ou não, quando está em jogo questão de direito de propriedade sobre esse imóvel, com origem em usucapião ou acessão industrial imobiliária.

i) Os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar ação declarativa instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para apurar se um imóvel é bem comum do casal ou não, quando está em jogo questão de direito de propriedade sobre esse imóvel, com origem em usucapião ou acessão industrial imobiliária.” (Datado de 21.05.2024. Processo n.º 2944/23.2T8LRA. Relator: Moreira do Carmo).

20- Neste mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra: “(…) III – É o que ocorre num caso em que, para se concluir que um bem deverá ser sujeito à partilha, se impõe averiguar, previamente, da aquisição da mesmo, por parte dos ex-conjuges, com base na usucapião e/ou acessão industrial imobiliária, numa, alegada, relação jurídica e factual em que também serão intervenientes terceiros, âmbito em que a competência cabe, por isso, aos juízos cíveis.” (Datado de 10.07.2024. Processo n.º 2566/22.5T78LRA-B.C1. Relator: Arlindo Oliveira).

21- “(…) não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores, a ação, proposta na sequência daquela remessa para os meios comuns, de reconhecimento da contitularidade da Autora no direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis e condenação do Réu à sua restituição.” (Datado de 26.10.2020. Processo n.º 1029/20.8T8PRD.P1. Relator: Mendes Coelho).

22- É entendimento pacífico na jurisprudência que os juízos cíveis são os competentes para dirimir os litígios relacionados com questões de propriedade de um bem, por parte dos ex-cônjuges, com base na usucapião, tendo em conta a relação jurídica e factual em que são, também, intervenientes terceiros, como é o caso, não tendo, assim, aplicação o disposto no n.º 2 do artigo 122º da LOSJ.

23- “Realce-se que o n.º 2 do artigo 122º da LOSJ atribui aos Juízos de família e menores “as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de…divórcio.” (…) Mas se assim é, em termos gerais, daí não se pode extrair a conclusão de que assim será sempre. (….) pois que para se concluir que o bem a, eventualmente, ser sujeito à partilha, o deverá ser, efetivamente, se impõe averiguar, previamente da aquisição do mesmo, por parte dos ex-cônjuges, com base na usucapião e/ou acessão industrial imobiliária, numa alegada, relação jurídica e factual em que serão intervenientes, para além dos ex-cônjuges, terceiros relativamente à partilha de tal bem.

24-Ou seja: estamos perante uma situação que vai para além da partilha de tal bem e cuja averiguação/ resolução se impõe a outros intervenientes processuais que não apenas os ex-cônjuges, o que, tudo, inclui que a competência material para a discussão e decisão dos presentes autos se possa atribuir aos juízes de família e menores. (…) Assim, concluindo, é materialmente competente para a tramitação dos presentes autos, o Juízo Central Cível …, sendo, por isso, de manter a decisão recorrida.” (Acórdão do TRC. Processo n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1. Datado de 10.07.2024. Relator: Arlindo Oliveira).

25- “(…) não obstante naquele n.º 2 do art. 122º se prever a competência material dos juízos de família e menores para os processos de inventário nele referidos, não se pode com base na sua previsão – (…) – buscar fundamento para extrapolar a competência daqueles mesmos juízos para tais questões. (…) Outra coisa é a competência para questões que, por decisão da autoridade competente e com base na lei (...) devem ser analisadas e decididas fora do inventário, nos meios judiciais comuns. (…) Ora, na busca desta competência material, é efetivamente de reconhecer que não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores que supra se referiram a ação proposta pela Autora, que é, como acima já se explicitou, de reconhecimento da contitularidade do seu direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis que também identifica a condenação do Réu à sua restituição. (…)” (Acórdão do TRP. Processo n.º 1029/20.8T8PRD.P1. Datado de 26.10.2020. Relator: Mendes Coelho).

26- In casu, estando em causa a discussão da propriedade da casa de morada de família bem como dos bens móveis lá existentes, que, tal como alegado pelo Autor, é pertença deste em conjunto com a 1.ª Ré, tendo invocado o instituto da usucapião relativamente à Ré e às representantes da herança por óbito da mãe da 1.ª Ré, quanto ao imóvel. A discussão destas questões, como se expôs, foi remetida a sua discussão para os meios comuns que é o Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, onde o A., e bem, deu entrada da competente ação.

27-Por todo o exposto é possível concluir o seguinte, o tribunal a quo é o materialmente competente para tramitação da ação aqui em causa, uma vez que estamos perante uma ação declarativa que foi instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para se apurar se o bem imóvel e os bens móveis são considerados bens comuns do casal ou não, sendo que, ainda para mais, estamos perante uma questão de propriedade sobre o bem imóvel com origem na usucapião e, assim sendo, e apesar da competência dos juízos de família e menores nos termos do n.º 2 do artigo 122º da LOSJ, a verdade é que, e de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores, in casu, esta faculdade lhe está vedada, sendo competentes os juízos cíveis (aqui em causa, o Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3).

Valor: €63.445,00 (sessenta e três mil quatrocentos e quarenta e cinco euros).

Termos em que, V/Exas. Venerandos Desembargadores, considerando as conclusões que antecedem, acolhendo-as, e revogando o decidido em conformidade, farão a costumada Justiça!”


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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, consistindo a questão a dirimir em indagar se o Juízo Central Cível de Leiria detém ou não competência material para dirimir um litígio relacionado com questões de propriedade de um bem, por parte dos ex-cônjuges, com base na usucapião, tendo em conta a relação jurídica e factual em que são, também, intervenientes terceiros.

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I. Fundamentação de facto.

Com relevo para a decisão do recurso, está provado documentalmente que:

1. Autor e 1.ª ré casaram civilmente em ../../1991, sob o regime da comunhão de adquiridos e catolicamente a 23-12-1995.

2. Por sentença de 05-05-2021, proferida no âmbito do processo n.º 291/21..., Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Família e Menores de Pombal, transitada em julgado em 09-06-2021, foi decretado o seu divórcio.

3. Com vista à partilha de todos os bens comuns do casal móveis e imóveis, o autor instaurou competente processo de Inventário para partilha de bens comuns do ex-casal ao qual coube o n.º 291/21.... que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leira – Juízo de Família e Menores de Pombal.

4. Na conferência de divórcio, realizada no processo n.º 291/21..., o autor e a 1.ª ré referiram que o bem imóvel que constituiu a casa de morada de família – prédio urbano composto por casa de habitação de r/ch, sita na Rua ..., ..., ... ..., da freguesia ... com o valor aproximado de € 68 000,00 – é um bem comum do casal, tal como o recheio da casa de morada de família – constituído por electrodomésticos, mobiliário e utensílios de uso comum, com o valor aproximado de € 5 000,00.

5. A 1.ª ré, aquando da reclamação à relação de bens apresentada pelo autor, no âmbito do processo de inventário n.º 291/21...., veio afirmar que o imóvel respeitante à casa de morada de família foi edificado e construído pela sua mãe e que os bens móveis existentes naquela casa foram adquiridos pela sua mãe, entretanto falecida, sendo, por isso, propriedade da herança ilíquida e indivisa por óbito de DD, da qual são herdeiras as suas filhas (as 1.ª e 2.ª rés).

6. Nas audiências prévias realizadas a 12-10-2023 e 08-11-2023, no âmbito do processo n.º 291/21...., as partes concordaram em remeter a discussão da propriedade do imóvel e do seu recheio para os meios comuns.


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II. Fundamentação de Direito.

Está em causa, em síntese, decidir se o Juízo Central Cível detém ou não competência material para julgar a presente causa, sendo certo que, na decisão impugnada, o tribunal a quo considerou que se verifica incompetência material desse Juízo, a qual compete aos Juízos de Família e de Menores.

A competência material para tramitar e decidir as acções declarativas instauradas na sequência da controvérsia ocorrida em inventário, após divórcio, para se apurar o direito de propriedade sobre bens, imóveis e/ou móveis, quando o aquele direito é controvertido, tem sido amplamente discutida pela jurisprudência.

O tribunal a quo, após aludir às normas vertidas nos arts. 117.º e 122.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), decidiu ser materialmente incompetente para ajuizar o litígio, tendo expendido, no que mais releva, que:

“Na situação sub judice os factos invocados pelo A. dizem respeito a relações patrimoniais dos cônjuges por causa e no âmbito do casamento e consequências de posterior divórcio, ainda que seja demandada não só a ex-mulher do A. mas uma terceira pessoa, neste caso a mãe daquela.

Contudo, esse facto não é de molde a alterar a competência, pois que caso não fosse demandada a 2ª R. ab initio como o foi, sempre poderia ser eventualmente admitida a sua intervenção na sequência de pedido reconvencional a deduzir, tendo na hipótese dos autos sido deduzido, tal qual resulta do artigo 266º nº4 do CPC.

Queremos significar que o facto de não ser só demandada a ex-cônjuge não tem relevo para efeitos de competência material, pois que se assim fosse, sempre o A. poderia escolher um Juízo Central Cível em detrimento de um Juízo de Família e Menores, deduzindo um pedido contra outrem que não ex-cônjuge para deste modo contornar as regras da competência material.

Em suma, a existência de duas RR. não altera a regra da competência material, pois que o cerne da demanda são as relações patrimoniais entre A. e 1ª R. por referência ao período do casamento.

Acresce no caso concreto, e tal é por demais relevante, que os interessados do inventário foram remetidos para os meios comuns 1, que não para os Tribunais Comuns, para nesses meios comuns serem apreciadas as questões relacionadas com o imóvel e o recheio dele.

Pelo que não subsistem dúvidas da incompetência material deste Juízo.” (sic).

Divergindo da posição sustentada pela 1.ª instância, o apelante – louvando-se da jurisprudência constante dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-05-2024, Proc. n.º 2944/23.2T8LRA, e de 10-07-2024, Proc. n.º 2566/22.5T78LRA-B.C1, bem como do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-10-2020, Proc. n.º 1029/20.8T8PRD.P1 –, defende, em síntese, que “os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar ação declarativa instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para apurar se um imóvel é bem comum do casal ou não, quando está em jogo questão de direito de propriedade sobre esse imóvel, com origem em usucapião ou acessão industrial imobiliária”, rematando que: É entendimento pacífico na jurisprudência que os juízos cíveis são os competentes para dirimir os litígios relacionados com questões de propriedade de um bem, por parte dos ex-cônjuges, com base na usucapião, tendo em conta a relação jurídica e factual em que são, também, intervenientes terceiros, como é o caso, não tendo, assim, aplicação o disposto no n.º 2 do artigo 122º da LOSJ.

Analisemos, então, o dissídio.

O Código de Processo Civil (CPC), nos seus arts. 64.º (competência em razão da matéria) e 65.º (Tribunais e secções de competência especializada), prescreve que: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” e que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.[3]/[4]

A competência jurisdicional resulta da medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, isto é, do modo como eles repartem entre si o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto de todos os tribunais.

Para que um tribunal possa decidir sobre o mérito de um determinado processo judicial é indispensável, antes de mais, que a acção seja proposta perante o tribunal competente para a sua apreciação, traduzindo-se esse pressuposto processual na susceptibilidade de análise de determinada causa ou litígio, por os critérios determinativos legalmente estatuídos concederem a um tribunal uma medida de jurisdição suficiente para essa avaliação.

Para se fixar a competência do tribunal em razão da matéria deve atender-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em Juízo pelo demandante – a este respeito, cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pp. 74/75, e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379, cuja doutrina permanece actual.

Como ensinava Manuel de Andrade, em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o tribunal, a competência afere-se pelo quid disputatum ou quid decidendum: i.e., a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta – op. cit., p. 91.

Numa outra formulação, para verificar competência de um tribunal há que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo avaliar-se a natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional e, ainda, os factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir.

Sintetizando: é a estrutura da causa, tal como vem configurada pelo autor, a determinar a competência material do tribunal – cf., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-02-2025, Proc. n.º 1372/23.4T8CTB.C1.[5]

Na situação em apreço, analisada a causa de pedir e pedidos formulados na petição inicial, o que está em causa no processo é, como bem refere o autor, conhecer a questão relacionada com a propriedade do imóvel (casa de morada de família do Autor e da 1.ª Ré) e bem assim a questão relacionada com os bens móveis existentes no interior daquele imóvel, não olvidando que os factos invocados pelo A. dizem respeito a relações patrimoniais dos cônjuges por causa e no âmbito do casamento e consequências de posterior divórcio, ainda que seja demandada não só a ex-mulher do A. mas uma terceira pessoa, neste caso a mãe daquela (sic).

Verifiquemos, então, o que resulta da LOSJ.

Inserido na Subsecção I, intitulada “Juízos centrais cíveis”, o art. 117.º (“Competência”) dispõe:

“1. Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

2. Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.

3. São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.”

Por sua vez, o art. 122.º (“Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”) estabelece o seguinte regime:

“1. Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2. Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

Não oferecendo dúvidas que o Juízo de Família e Menores de Pombal é o competente para o inventário para partilha de bens comuns do ex-casal, a questão decidenda consiste em saber se será igualmente competente para a presente acção, uma vez que os pedidos formulados e a causa de pedir subjacente, não deixam de estar relacionados com o processo de inventário e com a partilha a realizar.

Promana do art. 1082.º, al. d), do CPC que o processo de inventário cumpre, entre outras, a função de partilhar bens comuns do casal.

O art. 1092.º, n.º 1, al. b), do CPC, prevê que o juiz deve determinar a suspensão da instância – sem prejuízo do disposto nas regras gerais –, “[s]e, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas”. E o n.º 2 do citado preceito prescreve: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens”.

A respeito deste dispositivo legal, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2020, p. 578 – escrevem: “Tal como também ocorre nas situações previstas no art. 1093.º, apenas se justifica a remessa para os meios comuns, para efeitos da al. b) do n.º 1, quando as dificuldades enfrentadas para resolver as questões referidas emergirem da própria natureza das questões (v.g. ações de estado) ou da complexidade da matéria de factos controvertida (…). O facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito”.

E o tribunal competente para apreciar essas questões, desde já o adiantamos, é o mesmo em que o inventário pende, i.e., o Juízo de Família e Menores.

            Como se dirimiu no recentíssimo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-09-2025, Proc. n.º 1222/25.7T8BRG.S1, cuja solução acompanhamos:

“Em princípio, no inventário serão apreciadas todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem a necessidade de recurso aos meios processuais comuns.

Porém, poderá haver no inventário, casos que revistam uma maior indagação ou complexidade, ou seja, que necessitem de um regime mais aprofundado que se não compadeça com uma maior simplificação da tramitação, havendo então que remeter para os meios comuns, para não reduzir qualquer garantia das partes.

Como consta do Ac. do STJ. de 16-12-1980, in BMJ, nº. 302, pág. 257 «É a necessidade de uma larga, aturada e complexa indagação, que não se compadece com uma instrução sumária, que justifica a remessa das partes para os meios comuns».

Desta feita, a remessa para os meios comuns, em ação autónoma, justificar-se-á pela necessidade de uma maior indagação de factos, pela adoção dos prazos correspondentes a uma ação declarativa, mas não deixa de se tratar de uma ação que tem na sua génese um processo de inventário, o qual, por uma questão de maior garantia para as partes, não se coaduna com o caráter mais simplista e célere que lhe é normalmente peculiar.

A remessa para os meios comuns, só por si, não retira competência aos tribunais de família e menores, especialmente vocacionados para apreciar estas matérias, ou seja, como aludem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, pág.505, Universidade de Coimbra «matérias que contendam com as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado e as especificidades da comunhão conjugal».

A remessa para os meios comuns implica a sua apreciação fora do processo de inventário, mas sem implicar inevitavelmente a sua extrapolação para outro tribunal, ou seja, ser decidido fora do processo de inventário, não significa ser decidido por outro tribunal, alheio ao tribunal onde corre o inventário.

A complexidade da questão motivadora da remessa dos autos para os meios comuns, ou para uma ação autónoma, não deixa de se tratar de uma ação que surge na sequência do processo de inventário, no âmbito dos poderes de competência do tribunal de família.

Face ao disposto no nº. 1 do art. 91º do CPC., o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.

A resolução destas questões integra-se nas atribuições gerais de qualquer juiz, em qualquer processo.

Qualquer questão relacionada com o processo de inventário terá de ser decidida no próprio inventário, ou seja, neste devem ser dirimidas todas as questões controvertidas que se revelem necessárias para proceder à partilha dos bens do dissolvido casal.

O tribunal competente para conhecer dos incidentes que se levantem deve dirimir todas as questões suscitadas e controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária (cfr. O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, Almedina, pág. 49).”.

Reverendo ao caso em análise o que está em causa é verificar a quem pertence a propriedade do imóvel e dos bens móveis existentes no interior daquele imóvel, sendo que é demandada não só a ex-mulher do autor, mas uma terceira pessoa, neste caso a mãe daquela.

Porém, como sustentou o tribunal a quo, entende-se que essa circunstância não tem a virtualidade de alterar a competência material, pois mesmo que não tivesse sido demandada ab initio a 2.ª ré, ela sempre poderia ter intervenção no processo, designadamente na sequência do pedido reconvencional, ex vi art. 266.º, n.º 4, do CPC.

Destarte, o facto de não ter sido proposta a acção apenas contra a ex-cônjuge e a circunstância de serem demandadas duas rés em litisconsórcio não modifica a regra da competência material, ponderando que o cerne da demanda são as relações patrimoniais entre autor e a 1.ª ré por referência ao período do casamento.

Ou seja, os Juízos de Família e Menores além de serem materialmente competentes para o inventário para partilha do património conjugal, também o são para discutir, em acção autónoma, as questões complexas desse inventário, quando remetidas para os meios comuns, e o facto dessa acção autónoma não ter sido proposta apenas contra a ex-cônjuge, tendo sido demandada uma terceira pessoa – a sua irmã – em situação de litisconsórcio passivo, não modifica a regra da competência material, uma vez que o cerne da demanda reside nas relações patrimoniais entre o autor e a 1.ª ré, referentes ao período do casamento.

Divergimos, por conseguinte, e salvo o devido respeito, da solução do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-07-2024, Proc. n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1, que entendeu que não haverá competência material do Juízo de Família e Menores “se a situação decidenda vai para além da partilha de determinado bem e cuja averiguação/resolução se impõe a outros intervenientes processuais (não apenas os ex-cônjuges), o que exclui a competência material daqueles juízos” (sic).

A decisão de remessa para os meios comuns foi tomada no próprio processo de inventário e, caso assim não tivesse sido entendido, a competência para decidir a questão sempre se manteria no Juízo de Família e Menores.

Se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário, designadamente, que a competência dos Juízos de Família e Menores se cingia aos termos estritos do processo de inventário e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, caso envolva outros intervenientes processuais – que não o ex-cônjuge –, tê-lo-ia dito, o que não fez.

Retomando as palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-09-2025, Proc. n.º 1222/25.7T8BRG.S1:

“Do art. 122.º da LOSJ não se extrai qualquer limitação de competência aos juízes de família, pois, se fosse intenção do legislador que a competência destes se circunscrevesse estritamente ao processo de inventário, tê-lo-ia assumido expressamente, o que não fez.

Mas também, não se afigura a necessidade de recurso a qualquer interpretação extensiva, pois, o preceito estabelece, em termos gerais, as competências dos juízos de família e menores, precisamente no que se reporta a processos de inventário instaurados em consequência de divórcio.

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. n.º 3 do art. 9.º do Código Civil).

Com diferente entendimento identificamos o acórdão deste STJ, de 16-1-2025, in www.dgsi.pt., quando alude «Carecer de fundamento uma interpretação extensiva da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no seu âmbito as ações declarativas, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência da ação de divórcio».

Dir-se-á, ainda, que de acordo com o princípio da especialização, que norteia o nosso sistema judiciário, os tribunais de família e menores, estarão melhor posicionados para conhecer das matérias inerentes às questões da partilha dos bens do casal, imprimindo uma maior celeridade ao processado, ainda que relativamente a estas questões possam também surgir situações de maior complexidade.

Aqui chegados, urge retirar como ilações que, os Tribunais de Família e Menores são competentes para tramitar os processos de inventário para partilha de bens comuns na sequência de processo de divórcio.

De igual modo, os mesmos tribunais são competentes, em razão da matéria, para conhecer de ações autónomas, resultantes da remessa para os meios comuns, relativamente a questões suscitadas no processo de inventário e respeitantes à partilha dos bens do ex-casal, ou seja, de matérias que lhe incumbe apreciar.

Neste sentido, nomeadamente, Acs. da R.C. de 16-5-2023, 4-5-2021, 10-10-2024, 10-7-2024, todos in www.dgsi.pt.

Sendo a competência de atribuir ao Tribunal de Família e Menores, o Juízo Central Cível, não dispõe de competência, em razão da matéria, para conhecer do litígio”.

Para além do aresto citado, vejam-se, em sentido idêntico, os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra:

– Acórdão de 04-05-2021, Proc. n.º 592/20.8T8PBL.C1: “Os juízos de família e menores são competentes em razão da matéria para tramitar a acção declarativa instaurada na sequência de decisão proferida no sentido de suspender o processo de inventário pendente em Cartório Notarial e de remeter os interessados para os meios comuns relativamente a determinadas questões concretas suscitadas naquele processo”;        

– Acórdão de 16-05-2023, Proc. n.º 612/22.1T8CTB.C1: “1. Destinando-se o processo de inventário, nomeadamente, à partilha dos bens comuns do casal [art.º 1082º, alínea d), do CPC] e sendo da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial [art.º 1083º, n.º 1, alínea b), do CPC], à remessa para os meios comuns prevista no art.º 1092º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CPC, determinada, por exemplo, por juízo de família e menores no âmbito de processo de inventário subsequente a divórcio, que nele tramita, subjaz a necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto. / 2. Exercendo os juízos de família e menores as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ), a remessa para os meios comuns (ou ação comum) significa, tão só, lançar mão de forma ou meio que permita uma mais larga e avisada indagação e discussão de uma mesma matéria que se considerou não poder/dever ser incidentalmente apreciada e decidida no próprio processo de inventário apenso. / 3. O Juízo de Família e Menores é materialmente competente para a tramitação e o conhecimento da questão a dilucidar - além das inerentes (e comuns) garantias processuais e probatórias, intervém o Juízo especialmente vocacionado para apreciar, entre outras, matérias que contendam com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” e os “três patrimónios” convocados na ponderação dessa realidade”;

Sufragando a doutrina dos Acórdãos indicados, concluímos, como é de concluir, que a competência material para a apreciação da presente acção pertence, no caso, ao Juízo de Família e de Menores de Pombal, de acordo com as disposições combinadas dos arts. 64.º do CPC, e 40.º, n.º 1, e 122.º da LOSJ, razão pela qual, na situação vertente, se verifica a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo Central Cível de Leiria, o que consubstancia uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, implicando a absolvição da instância, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 96.º, al. a), 97.º, 99.º, n.º 1 e 577.º, al. a), todos do CPC.

Atendendo ao decaimento é o apelante responsável pelas custas deste recurso – cf. arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.


*

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do CPC): (…).

Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação mantendo a decisão recorrida que declarou a incompetência material do Juízo Central Cível de Leiria para julgar a acção e a reconvenção.

Custas pelo autor/apelante.


Coimbra, 11 de Novembro de 2025

Luís Miguel Caldas

Emília Botelho Vaz

Hugo Meireles.



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadoras adjuntas: Dra. Emília Botelho Vaz e Dr. Hugo Meireles.
[2] É o seguinte o teor do art. 15.º da petição inicial:
“(…) o A. discrimina os bens existentes como comuns do ex-casal, os seguintes:
1- Um conjunto de três sofás em tecido ---------------------------------------- €250,00;
2- Uma mesa de centro em madeira ------------------------------------------- €150,00;
3- Duas mobílias de quarto (cama, mesas de cabeceira e roupeiro) - €1000,00;
4- Uma sapateira em madeira castanha ------------------------------------ €300,00;
5- Um Frigorifico ------------------------------------------------------------------ €200,00;
6- Móveis de cozinha constituídos pro vários armários, mesas e cadeiras -------------------------------------------------------------------------------------------- €700,00;
7- Forno de encastrar -------------------------------------------------------------- €300,00;
8- Máquina de lavar a louça---------------------------------------------------- €250,00;
9- Placa de fogão a gás ----------------------------------------------------------- €150,00;
10- Mesa de Hall de entrada -------------------------------------------------- €125,00;
11- Uma mobília da sala de jantar -------------------------------------------- 450,00;
12- Cortinados e decoração das salas e quartos (candeeiros e objetos decorativos) --------------------------------------------------------------------------------------------- €250,00;
13- Móvel de bar -------------------------------------------------------------------- €350,00;
14- Um compressor ----------------------------------------------------------------- €250,00;
15- Um berbequim ------------------------------------------------------------------ €50,00;
16- Um motosserra ------------------------------------------------------------------ €70,00;
17- Cobertores, colchões e edredões ---------------------------------------------- €200,00;
Tudo no valor total de € -------- €5.045,00 (cinco mil e quarenta e cinco euros).
[3] O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais ou comuns é constitucionalmente definido por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme se alcança da leitura concatenada dos arts. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da LOSJ.
[4] Segundo Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, 1999, pp. 31/32: “A competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal”.
[5] Acessível em https//www.dgsi.pt, tal como os demais que se mencionarem neste Acórdão.