Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MANUELA FIALHO | ||
Descritores: | BALDIOS INCONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 09/21/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | SÃO PEDRO DO SUL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | LEI 54/2005 DE 15/11 | ||
Sumário: | 1 – Não há lugar á reapreciação da decisão que incidiu sobre a matéria de facto se o recorrente pretende, na sequência da mesma, respostas de conteúdo excessivo. 2 – O acesso ao gozo do baldio, nele se integrando o dos respectivos equipamentos, pressupõe a qualidade de morador da freguesia em que se situa aquele. 3 – Não viola os princípios constitucionais da universalidade ou da igualdade a decisão que nega aos autores o direito a usufruir de águas nascidas e represadas em terreno baldio em virtude de os mesmos não deterem aquela qualidade. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
A... e B..., AA. na acção, residentes na ... Rio de Janeiro, interpuseram recurso da sentença que julgou a acção improcedente. Pedem a revogação da sentença, com condenação dos RR. no pedido. Formulam se as seguintes conclusões, que se resumem: 1 – A rebuscada e arrevesada fundamentação do Tribunal a quo no sentido de fazer soçobrar a pretensão dos AA., sem prejudicar a posição dos RR., não tem qualquer suporte legal ou factual e viola os mais elementares princípios da justiça e do direito. 2 – Os AA., muito embora residam no Brasil enquanto emigrantes... gozam e continuam a gozar de todos os direitos consagrados na Constituição, enquanto cidadãos portugueses, enquanto naturais de ..., São Pedro do Sul, posto que nem renegam a sua nacionalidade, nem foram considerados apátridas, nem foram expatriados ou exilados... pelo que o raciocínio vertido na douta sentença revidenda, nesta parte, é declaradamente inconstitucional (Artº 12º/1, 13º/1 e 14º/1 da CRP). 3 – O caso dos autos, nomeadamente o teor da sentença revidenda, é um claro e incontroverso retracto da denegação da Justiça, envolvendo-se num círculo vicioso que não faculta qualquer solução digna dos dispositivos constitucionais, e até dos direitos universais do homem e do cidadão, que regulam esta matéria. 4 – As únicas águas que ali são susceptíveis de ser utilizadas pelos cidadãos do referido lugar são as que se discutem nos autos, se os naturais do lugar (ou terceiros) emigrados ali pretendem assentar em definitivo a sua vida e para o efeito necessitam de água para construir, ou reconstruir, ou reparar, as suas habitações, mas não as podem utilizar porque, não sendo habitantes do lugar, ou não habitando ali habitualmente, ou desde há muitos anos, se entende que a elas não têm direito... é óbvia a impossibilidade real e prática de se virem ali instalar em definitivo, ou (quanto a terceiros não naturais do lugar) virem para ali constituir família e habitar. 5 – Para além do que resulta dos autos, os AA., que aliás, nasceram no lugar do ..., freguesia de ..., concelho de S. Pedro do Sul, e ali viveram até á idade de cerca de 20 anos, altura em que emigraram para o Brasil, vêm reclamar um direito á fruição e utilização das ditas águas nascidas na Costeira do Balão e represadas no depósito para o efeito existente, por si, enquanto naturais do Lugar do ..., onde têm um imóvel urbano que querem reconstruir e passar ali a habitar em definitivo, mas também enquanto herdeiros no direito a fruição e utilização de tais águas. 6 – O direito às águas é conexo com a habitação, que estava radicado nos direitos patrimoniais, e de uso e fruição do pai da A., sempre se transmitiria a esta enquanto herdeira e titular do prédio urbano, sito no lugar do .... 7 – Ao decidir nos termos em que o fez o Tribunal a quo violou o disposto nos Artº 1385º e 1386º do CC, 12º/1, 13º/1 e 14º/1 da CRP, 1º, 2º, 5º, 6º, 36º, 37º e 38º do Decreto 5787 – III de 10/05/1919; 91º/1-c) e 2º/2 do DL 46/94 de 22/02; 1º/2, 3º/1, 7º/a) e 8º/1 e 2 da Lei 54/05 de 15711; 82º/2-c) e 4º/b da CRP. 8 – Da análise dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, e gravados em suporte magnético, resulta evidente que foram erroneamente julgados os factos levados aos Artº 3º, 10º, 12º, 13º e 17º da BI. 9 – É o que emerge do depoimento das testemunhas C... , D..., E... e F.... . 10 – Face àquela matéria tida por provada na sentença, conjugada com o teor da prova testemunhal gravada, cujos depoimentos se referem supra, e atendendo ao disposto no Artº 659º/3 do CPC, deveria o tribunal a quo ter decidido de outra forma quanto às respostas á matéria de facto, nomeadamente alterando as respostas aos Artº 3º, 10º, 12º e 17º da BI em conformidade, já que da prova documental e testemunhal produzida resulta evidente que houve erro na apreciação da prova (Artº 690º-A/1 e 712ºº do CPC), que importa reparar. 11 – Ao decidir nos termos da douta sentença revidenda o Tribunal a quo violou o disposto nos Artº 659º/3 e 660º/2 do CPC. G... , H... , I... , J...., L..., M...., N... , O..., P... e Q... , residentes no ..., S. Pedro do Sul, contra-alegaram. Defendem, em resumo, que o raciocínio dos AA. falece logo num, primeiro pressuposto, a saber, a inexistência de casa de habitação no ..., propriedade sua e, como tal, atento o fim dado às águas nascidas e encaminhadas a partir da Costeira do Balão, nenhuma violação dos preceitos legais ou princípios constitucionais existe; que se devem manter as respostas aos quesitos e que os AA. não comprovaram serem moradores do .... R... e S... , RR. na acção, residentes no mesmo lugar, não contra-alegaram.
* Eis um breve resumo dos autos: A...e B... interpuseram a presente a acção contra os ora RECRDºS. e JUNTA DE FREGUESIA DE ..., na qual concluem por peticionar o reconhecimento do seu direito à fruição e consumo, em igualdade com os demais moradores do Lugar do ..., da água nascida no prédio ‘Costeira do Balão’, e bem assim a condenação de cada um dos Réus no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, do montante de 10 euros por cada dia que, proferida a sentença, os Réus impeçam a ligação ao depósito da água, ou obstem ao respectivo fornecimento. Mais peticionam a condenação dos Réus no pagamento dos prejuízos sofridos pelo atraso na realização das obras, cuja quantificação requerem que se relegue para execução de julgado. Para tanto, vieram os AA. alegar terem nascido e sido criados no Lugar do ..., freguesia de ..., deste concelho de S. Pedro do Sul, e ali residirem sempre que estão em Portugal. Que são donos de uma casa adquirida, por sucessão, pela A. mulher, a qual pretendem reparar tendo em vista o desejo de regressarem a Portugal, concretamente ao Lugar do ..., e aí fixarem-se definitivamente. Que em tal localidade existe um terreno denominado ‘Costeira do Balão’, usufruído em comum, desde tempos imemoriais, pelos habitantes daquela, e que em 1987 estes, conjuntamente com a Junta de Freguesia de ..., procederam ao aproveitamento das águas nascidas em tal terreno. Para o efeito efectuaram obras, incluindo dois depósitos de armazenamento, para cuja realização os habitantes, incluindo familiares dos AA. (irmãos e noras da A.) deram como contributo o esforço do seu labor. Que em função de tal situação logo ficou previsto que também os AA. teriam direito a utilizar a água para a sua casa supra referida. Invocando pretenderem realizar obras de reconstrução e adaptação daquela dita casa, mais alegam os AA. que os Réus se têm recusado, ou têm consentido na recusa (a maioria dos Réus demandados) em permitir que os primeiros efectuem a ligação ao sistema de abastecimento de água (maxime aos depósitos), seja para execução das próprias obras, seja para, concluídas as mesmas, verem satisfeitas as normais necessidades domésticas de água. Contestou o Réu G..., o qual impugnou que os AA. sejam donos de qualquer casa no Lugar do ..., ou que aí pretendam reconstruir seja o que for, além de que, afirma, aqueles já não residiriam ou pernoitariam no ... há mais de 40 anos. Qualificando de baldio o terreno da ‘Costeira do Balão’, negou aquele Réu que os AA. tivessem tido qualquer participação ou intervenção nas obras de captação, armazenamento e distribuição das águas nascidas no dito terreno, como negou que alguma vez o prédio de que os AA. se arrogam proprietários tenha beneficiado de tal água, até porque, mais alegam, em tal prédio somente existiram, como existem em muito mau estado, dois currais. Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido. Também contestaram os Réus H.., MULHER E OUTROS, os quais, em síntese, de igual modo alegam que os AA. já venderam, ainda que não formalmente, o prédio em causa nos autos a terceiro, e que ali, no dito prédio, rectius na respectiva edificação, nunca ninguém habitou. Mais concedendo que a água possa ser distribuída àqueles que venham a habitar a casa que os AA., ou outrem, reconstrua ou adapte, ainda que sob determinado condicionalismo, conclui, porém, pela sua absolvição do pedido, bem como na condenação dos AA. como litigantes de má-fé. Por último contestaram os Réus R.. E MULHER, os quais negam que os AA. tenham qualquer direito às águas em causa, seja porque não dispõem de qualquer título, seja porque não contribuíram, “nem se mostraram disponíveis para o fazerem”, para os gastos que todos os Réus efectuaram em função da concretização do sistema de captação e distribuição de água aos vários domicílios da localidade de ..., seja porque nunca eles – AA. – residiram naquela. Concluem pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido. Responderam os AA., mantendo o alegado. Proferido despacho saneador, foi a JUNTA DE FREGUESIA absolvida da instância por carecer de personalidade judiciária, julgadas as excepções de ilegitimidade suscitadas pelos demais RR., e seleccionada a matéria assente e a controvertida. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo o tribunal julgado a acção improcedente.
*** Das conclusões supra exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir: 1ª – Existe erro de julgamento da matéria de facto? 2ª – A sentença sofre de inconstitucionalidade na sua fundamentação? e 3ª – Ocorreu transmissão, aos AA., do direito às águas?
*** Debrucêmo-nos, desde já, sobre a primeira questão que enunciámos, a saber, o erro na apreciação da matéria de facto. No cumprimento do ónus decorrente do disposto no Artº 685º-A/1 do CPC, os Recrtes. indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão. Trata-se de avaliar as respostas dadas aos quesitos 3º, 10º, 12º e 17º, que pretendem ser de provado com redacção que indicam, com base nos depoimentos das testemunhas C..., T..., E... e F.... Os Recrdºs. pronunciaram-se realçando partes dos depoimentos das testemunhas e ainda apelando a documentos juntos aos autos. Nos quesitos em referência indagava-se se: (3º) Quando estão em Portugal os AA. têm a sua morada no dito Lugar do ...? (10º) Com a realização de tais obras[1] desde logo ficou previsto que os AA. teriam direito ao abastecimento de água para a casa do prédio dito em A)[2]? (12º) Os AA. pretendem efectuar obras de reconstrução e adaptação do prédio dito em A), a fim de ali passarem a habitar? (17º) Os AA. já não residem ou pernoitam, há mais de 40 anos, no Lugar do ..., mesmo em tempo de férias? Os quesitos 3º, 10º e 12º obtiveram resposta de não provado. O quesito 17º mereceu resposta de provado que os AA. já não residem, há mais de 40 anos, no Lugar do ..., mesmo em tempo de férias. Propõem os AA. para o quesito 3º a resposta de provado que, tendo morado no lugar do ..., onde são proprietários de uma casa, os AA., quando em Portugal, devido ao facto de aquela habitação estar degradada e necessitar de obras, pernoitam em casa de familiares, quer no ..., quer em X.... Para o quesito 10º, provado que quando foi feito o aproveitamento das águas da nascente e construído o depósito para sua recolha e distribuição aos habitantes do lugar do ..., foi deixado um tubo que se destinava a orientar a água para a casa dos AA., cujos familiares, incluindo pai e sogro, também prestaram a sua colaboração na realização das obras. Para o 12º, provado que os AA. constituíram procurador, a quem encarregaram de pedir as respectivas autorizações camarárias para a realização das obras e a reconstrução da casa, a fim de nela poderem passar a habitar, nem que fosse apenas em tempo de férias, sendo que a casa onde já anteriormente habitaram os anteriores proprietários e outros que ali estiveram de arrendamento, necessita actualmente de obras de reconstrução e reparação a fim de voltar a ser habitável. Finalmente, para o quesito 17º, propõem a resposta de provado que os AA. já vieram de férias, senão algumas, pelo menos duas vezes, ao ..., onde estiveram a residir em casa de familiares, sendo a última vez no ano de 2000, não utilizando a casa por esta não oferecer condições bastantes. Antes de entramos na análise da questão em discussão -avaliar se houve erro de julgamento –, importa que nos detenhamos sobre o possível conteúdo das respostas aos quesitos. A matéria quesitada, ora em causa, veio alegada e traduz quanto se invocava nos Artº 3º, 31º, 5º e 35º da PI, no que concerne aos três primeiros quesitos, e 3º da contestação, no que respeita ao último. Como é sabido, dado vigorar no âmbito do Direito Processual Civil, o princípio do dispositivo, cabe ás partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (Artº 264º/31 do CPC). Por seu turno, e devido ao mesmo princípio, o juiz apenas pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo dos factos notórios e daqueles que tiver conhecimento por virtude do exercício das suas funções ou da consideração oficiosa de factos instrumentais ou circunstanciais oportunamente inseridos na base instrutória (nº 2 e 3). Não estando nós perante factos notórios ou conhecidos do juiz por força das suas funções, ou em presença de factos da natureza dos acima mencionados, ao avaliar a matéria de facto, o tribunal está vinculado aos factos alegados pelas partes, cabendo-lhe dar resposta de provado ou não provado (Artº 664º do CPC). A jurisprudência vem ainda admitindo respostas de conteúdo restritivo, sempre que não se prove tudo quanto se alegou, ou explicativo, se as circunstâncias impuserem alguma explicação com vista á cabal compreensão da decisão. Porém, nunca as respostas podem apresentar conteúdo excessivo. Ora, o que os Recrtes. pretendem por via deste recurso são respostas absolutamente excessivas relativamente a quanto alegaram. Donde, jamais a resposta aos quesitos em referência, se poderá reportar aos termos pretendidos pelos Recrtes.. É que “as falhas de articulação que não tiverem sido corrigidas ou completadas a montante não podem ser supridas a jusante por via da ampliação da decisão acerca dos pontos de facto controvertidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, 292). As respostas pretendidas, se tivessem, ocorrido, imporiam mesmo a esta Relação que, oficiosamente, as considerasse não escritas, pois se o tribunal der como provado “mais do que aquilo que era objecto de prova, ou algo diverso do que se perguntava, o excesso de resposta não poderá ser considerado” (José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., Coimbra Editora, 663). Ora, considerando que o Tribunal está vinculado ao pedido, conforme decorre do que dispõe o Artº 661º do CPC, e sendo óbvio que o que se pede a este Tribunal é contrário ao regime legal vigente, improcede, sem necessidade de outros considerandos ou de avaliação da prova produzida, a questão em análise.
*** É a seguinte a matéria de facto cuja prova se obteve: A) Sob a ficha 471 da freguesia de ..., encontra-se descrito na CRP de S. Pedro do Sul um prédio aí identificado como urbano, sito ao ..., composto de um pavilhão de dois pisos, com a superfície coberta de 100 mts2 e logradouro com 400 mts2, a confrontar por todos os lados com caminho, correspondente ao artigo matricial 561. B) Pela apresentação 3 de 6.8.97 encontra-se inscrita, a favor da A., no estado de casada com o A. sob o regime patrimonial da comunhão geral de bens, a aquisição, deferida em inventário, do prédio supra descrito em A). C) No lugar do ... existe um terreno, identificado pela denominação ‘Costeira do Balão’, no qual, com habitualidade, os habitantes do Lugar do ... iam buscar lenhas, mato para a cama dos animais e bem assim pedras para muros e outras construções. D) Praticavam tais actos livremente, sem pedir autorização ou licença a quem quer que fosse. E) E desde tempos anteriores à memória dos homens vivos. F) Convencidos que essa utilização lhes assistia, por força do costume, como direito. 1 – Os AA. nasceram no Lugar do ..., freguesia de ..., concelho de S. Pedro do Sul, e ali viveram até à idade de cerca de 20 anos, altura em que emigraram para o Brasil. 2 – Encontram-se emigrados no Brasil. 3 - Cerca do ano de 1985 a comunidade dos habitantes do Lugar do ... decidiu aproveitar as águas existentes no terreno referido em C), para o efeito preparando e limpando uma nascente de superfície. 4 – A qual envolveram num depósito de cimento tendo em vista o armazenamento da água que à nascente afluía. 5 - Derivaram a água assim armazenada para um segundo depósito, situado a cerca de meio quilómetro daquele referido em 4. 6 - Neste depósito encontram-se, desde a sua construção, várias saídas para a ligação dos tubos que conduzem as águas às casas dos moradores do .... 7 - Para a realização das obras referidas em 3 a 6 as famílias moradoras no Lugar do ... contribuíram com o seu próprio trabalho. 8 - Alguns irmãos da A., bem como o pai desta, também contribuíram, com o esforço do seu trabalho, para as obras referidas em 3 a 6. 9 - O prédio referido em A) não dispõe de água própria. 10 – Os Réus não consentem que os AA. procedam à ligação, em benefício do prédio dito em A), ao depósito referido em 5. 11 - O Réu H... não entrega aos AA. as chaves das instalações do depósito, a fim de poderem efectuar a referida ligação. 12 - No que o dito Réu é apoiado pelo demais Réus. 13 - Os AA. já não residem, há mais de 40 anos, no Lugar do ..., mesmo em tempo de férias. 14 - A água nascida e encaminhada a partir da ‘Costeira do Balão’ destina-se somente aos gastos domésticos das casas de habitação do Lugar do ....
*** Passemos, então, à análise das demais questões suscitadas no recurso, dando início á discussão que nos permitirá responder se a sentença, na sua fundamentação, fere a Constituição, designadamente os Artº 12º/1, 13º/1 e 14º. Para cabal compreensão, salienta-se que a sentença recorrida, depois de fazer o enquadramento da questão á luz da Lei dos Baldios, tendo concluído que o terreno denominado Costeira do Balão, assume a natureza de baldio, debruçou-se sobre a natureza das águas dali derivadas, para concluir, apoiando-se no disposto na Lei 54/2005 de 15/11 e em jurisprudência dos Tribunais Superiores, que se trata de águas públicas. Nessa medida, concluiu ainda que perante uma tal evidência, os AA. não podem exercer qualquer direito sem que para o efeito estejam munidos da necessária licença ou autorização das competentes entidades públicas. Não está posto em causa o segmento da sentença que qualifica o terreno como baldio ou as águas que ali nascem como públicas. Do mesmo modo, os Recrtes. não se insurgem quanto á circunstância de, dada a natureza pública das águas, deverem munir-se das licenças acima mencionadas. A sentença, analisando, após, a questão à luz do pedido – posto que os AA. pretendem, não uma utilização directa das águas, mas sim usufruir delas depois de canalizadas e represadas –, partindo do pressuposto que o equipamento que viabiliza o sistema de captação e distribuição das águas do baldio pertence ao sector cooperativo ou social, defende que para o mesmo ser possuído e gerido pela comunidade local dos habitantes do Lugar do ..., o seu uso e fruição não poderá deixar de passar por critérios análogos aos relativos à utilização dos baldios. Nessa medida, e tendo-se provado que a água se destina aos habitantes daquele lugar, não tendo os AA. tal qualidade, naufraga a acção. É, segundo entendemos, quanto a esta parte – mas apenas na medida em que o reconhecimento do direito pressuponha a qualidade de morador – que os Recrtes. se insurgem invocando a Constituição da República Portuguesa e muito concretamente as normas acima citadas. Sem razão, porém. Na verdade, a sentença não coarcta qualquer direito aos AA. fundando-se na circunstância de eles serem emigrantes e apontando para eles, por causa dessa qualidade, qualquer forma de discriminação. A sentença o que faz é o enquadramento da pretensão à luz do regime jurídico aplicável aos equipamentos em causa, retirando dali consequências quanto ao pedido. A sentença diz muito concretamente que estando em causa usufruir das águas depois de canalizadas e represadas num depósito para o efeito existente, construído através do contributo dos habitantes do Lugar do ..., sendo tal equipamento possuído e gerido pela comunidade, aplicam-se-lhe os ditames que esta definiu. Daí que, tendo-se provado que a água nascida e encaminhada a partir da Costeira do Balão e armazenada e distribuída a partir de um dos depósitos existentes naquele Lugar, destina-se somente aos gastos domésticos das casas de habitação do Lugar do ..., não sendo os AA. ali moradores ou proprietários de alguma casa de habitação, a água não se lhes destina. Ora, vigorando embora, no nosso ordenamento jurídico, os princípios da universalidade – todos os cidadãos têm todos os direitos e deveres – e da igualdade – todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres –, “há direitos que não são de todas as pessoas, mas apenas de algumas categorias, demarcadas em razão de factores diversos” que podem ser relativos a determinadas situações (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 112). Posto é que no seio de cada categoria todos tenham iguais direitos. Por outro lado, e quanto á invocada violação do Artº 14º da CRP – protecção de portugueses no estrangeiro – convém não esquecer que a extensão a tais cidadãos dos mesmos direitos e deveres dos portugueses em Portugal, tem “por limite a incompatibilidade do exercício de certos direitos e da sujeição de certos deveres com a ausência do país” (ídem, 129). Assim, é necessário encontrar forma de compatibilizar os direitos atribuídos a uns com os dos outros, desde logo não se violando tal normativo se se fizer depender a atribuição de um direito da qualidade de morador. É que, como é sabido, não existem direitos absolutos. Donde, falece a argumentação dos Recrdºs ao apontar á sentença a violação da CRP, designadamente os princípios da universalidade e igualdade a que se reportam os Artº 12º/1, 13º/1 e 14º. Acresce a esta argumentação que a própria noção de comunidade local para efeitos de aplicação da lei dos baldios pressupõe a qualidade de morador. Na verdade, os baldios são possuídos e geridos por comunidades locais, entendendo-se como tal o universo dos compartes (Artº 1º/1 e 2 da Lei 68/93 de 4/09). Por sua vez, compartes são os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio. Conforme explica Jaime Gralheiro, a expressão comunidade local, resultante da Constituição de 1976, tem como objectivo “dar conteúdo jurídico ao conjunto de pessoas que, historicamente, andavam no uso e posse dos baldios e os consideravam como seus, por os terem recebido daqueles que, antes deles, foram, naquele local, e que lhes deram semelhante utilização, sendo sua obrigação transmitir tal direito de todos aqueles que depois deles viessem” (Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 10). É que “os baldios são bens comunitários, afectos à satisfação das necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa ou parte dela e cuja propriedade pertence à comunidade” (ídem, 53). É, assim, claro, que o direito ao uso e fruição do baldio, em todas as suas componentes, designadamente os equipamentos, pressupõe a qualidade de comparte, ou seja, morador. Como bem salienta a sentença, os AA. não são moradores, o que resulta claramente evidenciado na matéria de facto cuja prova se obteve (factos 2 e 13). Desta forma, e não se verificando o pressuposto que levaria à possibilidade de uso e fruição do baldio, o raciocínio expendido na sentença em nada fere a CRP.
*** Partamos, então, para a análise da última questão – a transmissão, aos AA., do direito às águas, questão que há-de pressupor, desde logo, que as águas tenham natureza privada, o que os Recrtes. não afirmam, nem discutem, não obstante a sentença ser clara quando qualifica as águas nascidas em terreno baldio como águas públicas. Defendem os Recrtes. que o direito ás águas é conexo com a habitação radicada no pai da A., pelo que sempre se transmitiria a esta enquanto herdeira e titular do prédio urbano mencionado nos autos, invocando a violação do disposto nos Artº 1385º e 1386º do CC e diversas normas do Dec. 5787-III de 10/05/1919, DL 46/94 de 22/02 e Lei 54/2005 de 15/11. Comecemos por lembrar que da matéria fáctica cuja prova se obteve não resulta qualquer situação de posse ou propriedade de alguma casa de habitação que possa ter sido transmitida à A. por via sucessória. Nenhum facto dá disso notícia. O acervo fáctico constante dos autos revela apenas que os AA. têm inscrita a seu favor, a aquisição, deferida em inventário, de um prédio urbano composto de um pavilhão de dois pisos. Tal matéria é manifestamente insuficiente para concluir pela existência de alguma casa de habitação transmitida aos AA. por via sucessória. Donde, não se vê como alicerçar a tese que propugnam, de transmissão do direito ás águas por força da aquisição da habitação cuja existência não provaram e, diga-se em abono da verdade, nem sequer alegaram. O que os AA. alegaram foi a aquisição por via sucessória de uma casa (Artº 5º e 6º da PI), nunca tendo mencionado que a mesma se destinava a habitação. Não merece, pois, outro tipo de comentários a questão em análise, visto não virem, sequer, alegados os pressupostos que poderiam levar á conclusão pretendida, pelo que nos dispensamos de analisar a questão á luz das invocadas normas do CC ou demais diplomas avulsos mencionados no recurso. Não podemos, contudo, deixar de mencionar, que, sendo os baldios bens comunitários afectos aos fins acima referidos, cuja propriedade pertence, como já se disse, á comunidade, a qualidade de comparte não se herda, nem se transmite por qualquer forma. Esta é uma qualidade que pressupõe uma outra – a de morador.
Finalizando, dir-se-á apenas que, sendo o objecto desta acção a condenação dos RR. no reconhecimento do direito dos AA. a fruir e consumir as águas nascidas na Costeira do Balão e represadas no depósito para o efeito existente, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura fundada na alegação em análise, improcede o recurso.
* *** * Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a sentença recorrida. Custas pelos Recrtes.. Notifique.
* PAULO TÁVORA VÍTOR FERNANDO NUNES RIBEIRO
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