Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/21.4T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: INTERESSE EM AGIR
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
INSCRIÇÃO DE PRÉDIOS OMISSOS NA MATRIZ
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º E 10.º, 3, A), DO CPC
ARTIGOS 58.º E 59.º DA LGT
ARTIGO 48.º DO CPPT
ARTIGO 13.º DO CIMI
ARTIGOS 116 E SEG.S DO CRPREDIAL
ARTIGOS 13.º E SEG.S DA LEI N.º 78/2017, DE 17/8
LEI N.º 65/2019, DE 23/8
Sumário: I-O interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso.

II- Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto, o interesse em agir afere-se não só pela necessidade de tutela jurídica desse direito, como pela adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado.

III-A inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.

Decisão Texto Integral: Proc. Nº  55/21.4T8LSA.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Central Cível de Coimbra-J1.

Recorrentes: AA e BB

Recorrido: CC

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Sílvia Pires

                                        Henrique Antunes


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



RELATÓRIO

AA e BB vieram instaurar a presente acção de apreciação positiva, sob a forma de processo comum, contra CC, pedindo que seja:

a) Declarado que os AA são donos únicos e legítimos proprietários do prédio identificado em 1 da p.i.

b) Ordenado ao Serviço de Finanças e à Conservatória do Registo Predial que actuem em conformidade com o doutamente decidido, designadamente, proceder à inscrição na respectiva matriz e descrição no registo”.

Para o efeito, alegam que são possuidores e proprietários do “prédio rústico sito na .../..., Freguesia e Concelho ..., actualmente omisso na matriz, com área de 613.475,00 m2 (61,3475 ha), a confrontar do Norte com limite da Freguesia ... (...) e N... (construções e empreendimentos urbanos), Sul N..., Poente Limite do Concelho ... (...) e Nascente com DD e N....”, por lhes ter sido doado verbalmente pelos pais da A., de que a A. e R. eram as únicas herdeiras e, com o conhecimento e consentimento para a doação da R.

Alegam que ainda que assim se não entenda, exerceram a posse exclusiva, em nome próprio, sobre este prédio desde o ano de 1975 até aos dias de hoje, na convicção de que são os seus únicos possuidores e proprietários, sobre ele praticando actos de posse de forma ininterrupta, pacifica, pública e de boa – fé, tendo-o adquirido por usucapião.

No que se reporta ao interesse em agir, alegam que o aludido prédio não foi incluído nas avaliações gerais de prédios rústicos ocorrida no concelho ... no ano de 1990 e assim ficou omisso na matriz, com a agravante de o Serviço de Finanças não estabelecer correspondências com artigos da anterior matriz, pelo que se torna necessário que seja ordenada a inscrição do prédio na matriz.


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Citada a R. não contestou.

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Pelo tribunal a quo foi proferido despacho em 06/12/2022, no qual se convidou os AA. a exercerem o contraditório, quanto ao propósito de o tribunal conhecer “ex oficio” da excepção dilatória inominada de falta de interesse de agir dos autores, tendo estes vindo responder a este convite por requerimento datado de 04/01/2023, no qual alegam, em síntese, o seguinte:

atento à informação prestada pelo serviço de Finanças ..., o artigo 7342 não existe na actual matriz, não sendo possível fazer correspondência com algum artigo actual, uma vez que não foi feita em 1990 a correspondência dos novos artigos da matriz com os da matriz existente até essa data.

(…)

Como consequência dessa omissão, sendo certo que a mesma não é suprível junto dos respectivos serviços, a não ser pela via judicial, não podem os AA lançar mão da via notarial através da escritura de usucapião, nem podem recorrer ao processo de justificação na conservatória do registo predial, já que em ambas as situações é obrigatória a existência do artigo matricial.

(…)

Nessa medida, não têm os AA qualquer outra via, senão a judicial para verem reconhecido o seu direito, sob pena de estarem condenados a terem um prédio fisicamente existente, sem nunca o poderem legalizar, passando o mesmo a ser “terra de ninguém”.

(…)

Ao que acresce, que neste momento é obrigatório o cadastro geométrico da propriedade rústica (CGPR), cujo prazo encontra-se em curso, pertencendo o Município ... aos concelhos aderentes ao BUPI, tendo os AA já sido advertidos para a referida cadastração obrigatória.

(…)

Pelo que, é manifesto que os AA têm um interesse em agir, até porque a via judicial é a única que lhes resta, não se tratando de um capricho ou mero interesse vago, já que, se administrativamente ou notarialmente tivesse sido possível a regularização da situação, não tinham os AA recorrido à via judicial, com todos os custos inerentes ao processo.”


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Após foi proferida a seguinte decisão:

i) Julgar “ex oficio” a insuprível excepção dilatória inominada de falta de interesse de agir por parte da autora, e em resultado disso, absolve-se da instância a Ré CC.

ii)Fica consignado que, por despacho proferido, com Refª Citius nº 87561969, de 09/02/2022, pelo Juízo de Competência Genérica ... – Juiz ..., já se fixou aí o valor da causa.

iii)Custas a suportar pelos Autores AA e BB - cf. 527º, do CPC.”


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Não conformados com esta decisão, vieram os AA. interpor recurso, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“I- O tribunal “a quo”, muito sumariamente, afirma que não existia ou existe qualquer litígio entre as partes envolvidas e que aquilo que os Recorrentes pretendem com a presente acção era obter a justificação que lhes permita a inscrição no registo do direito de propriedade sobre o prédio identificado nos autos a seu favor, não tendo interesse em agir.

II- De tal desiderato, discordam os aqui Recorrentes, uma vez que foi peticionado o reconhecimento do direito de propriedade sobre o referido prédio e, como causa de pedir, foi invocada a identificação do prédio, a usucapião, e os factos que consubstanciam a posse que vem sendo exercida pelos Recorrentes, pelo menos desde 1975, sendo certo, que atento à origem do mesmo, existe sempre uma contra interessada, aqui Ré na acção, irmã da Autora.

III - A falta de contestação da Ré, aqui Recorrida, não pode ser tida como falta de interesse de agir por parte dos AA, ou de conflitualidade, já que, como a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido formulado na petição inicial em articulação com a causa de pedir, e não pela posterior postura dos RR., seja ela activa ou passiva, cabe, então, ao caso vertente uma acção comum e não uma acção de justificação (acção registral). (Ac. R.Évora - 504/19.1T8ABT.E1).

IV Ao invés do que tipicamente acontece com a acção de condenação, a acção de simples apreciação não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada. Porém, o autor na acção tem de demonstrar que tem um interesse na obtenção da declaração judicial da existência ou inexistência que pede, pois esta, como qualquer outra acção, supõe a existência de interesse em agir. (vide Ac.R.C - 32/18.2T8MGR.C1)

As acções de simples apreciação são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada. Versam, pois, situações em que se visa, apenas, a certificação do direito. (vide Ac.R.C - 32/18.2T8MGR.C1).

V Enquanto, na epígrafe e no n° 5 do art. 20º CRP a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (n° 5). Não sendo suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção. A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia. Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Cód. Pro. Civil, art. 2°-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4º edição revista, 2007, p. 416).

VI As normas referentes ao processo de justificação notarial, constantes dos arts. 116º e segs. do Cód. Reg. Predial, regulam um processo jurídico simplificado para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial, que visa suprir a falta de documento que comprove o direito real sobre o imóvel (cfr. Ac. do STJ de 18/6/2019, disponível in www.dgsi.pt), sendo certo que tal processo de justificação implica a concordância de todos os interessados, sob pena da contraposição de interesses vir a ser remetida para os meios judiciais (cfr. art. 117º-H, nº 2, do Cód. Reg. Predial).

A falta de contestação da Recorrida, não implica a inexistência de falta de concordância, já que, como resulta dos autos, a mesma vive em ..., e não é pacífico de se deslocar à ... para um processo registral de justificação, o qual, de resto também não é possível pela inexistência de artigo matricial, única e exclusivamente imputável ao serviço de finanças e ao estado português.

VII Pode ver-se o Ac. da R.C. de 7/9/2010, disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, é afirmado o seguinte:

Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs.) para efeitos de registo.

VIII Há por isso erro na Interpretação e Aplicação do Direito.

IX Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 43º n.º 1, 116º, 117º -A n.º 1, 117-H n.º 2 do C.R.Predial. e 92º do C. Notariado, 30º do C.P.C e artigos 20º da C.R.P, entre outros.

Nestes termos e nos melhores de direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que revogue a Sentença proferida, ordenando o prosseguimento dos autos para apreciação da do pedido formulado pelos Recorrentes e consequente condenação da Ré a reconhecer o direito de propriedade invocado pelos Recorrentes, com todas as legais consequências.

Assim se fazendo Justiça!!!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nesta medida, a única questão a decidir consiste em apurar:

a) Se existe interesse dos AA. no uso do processo;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


Os factos relevantes para a decisão da questão em apreço, que é meramente jurídica, constam do relatório elaborado.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


A questão a decidir consiste unicamente em apurar se os AA. têm interesse processual em agir nos presentes autos.

A este respeito considerou a decisão recorrida que os AA. não tinham interesse no uso do processo por inexistir qualquer conflito de interesses entre AA. e R., e o uso deste meio processual não tutelar o direito invocado, que consiste na pretensão de inscrição do imóvel na matriz e na sua descrição predial, constituindo o primeiro pedido condição prévia desta pretensão. O tribunal recorrido fundamentou a sua posição considerando que “o pressuposto processual inominado de interesse em agir traduz-se, por um lado, na necessidade do autor de recorrer a juízo para obter a tutela do direito a que se arroga e concretamente de usar a acção escolhida para esse efeito, sendo um pressuposto processual autónomo, que sendo distinto da legitimidade, tem em comum com ela o dever ser aferido objectivamente pela posição alegada pelo autor, e por outro lado, esta necessidade de “usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” não tem de ser uma necessidade absoluta, muito embora também não possa limitar-se a um qualquer interesse por vago e remoto. Terá antes de ser um ponto intermédio entre aquelas duas situações.

Ou seja, uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo e de fazer prosseguir aquela acção em concreto A este propósito refere-se que o interesse em agir pressupõe a idoneidade da providência requerida para a reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação do direito invocado pelo autor”.

Os AA. contrapõem que sendo esta uma acção de simples apreciação positiva, “não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada.” e, por outro lado, que necessitam “da declaração judicial da existência do seu direito, sem a qual, não lhe é possível registar o prédio”, pelo que ao abrigo do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artº 20 nº5 da Constituição, deve ser proferida decisão que declare que os AA. são proprietários deste imóvel.

Apreciando a questão colocada em recurso, o interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso[1], uma vez que nos termos do disposto no artº 2 do C.P.C. (em obediência ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva), a todo o direito deve corresponder uma dada acção.

Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto”, refere ANTUNES VARELA[2], “que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção.” Nesta medida, a “a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave”, decorrente de factores exteriores ao agente, geradores de incerteza quanto ao seu direito. Entre estes factos indica ANTUNES VARELA, a “a firmação ou negação de um facto, o acto material de contestação de um direito, a existência de um documento falso” entre outros. Já a gravidade terá de resultar do prejuízo que a situação de incerteza cause no autor.

As acções em que se visa a declaração e o reconhecimento de um direito de propriedade por usucapião assumem, ao mesmo tempo, natureza declarativa e constitutiva. Neste tipo de acções, cabe à parte que faz uso do processo, o ónus de alegar factos constitutivos do seu direito, a necessidade de tutela jurídica desse direito e a adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado. Ou seja, alegar factos de onde resulte não só o interesse no objecto do processo, mas também no uso do processo.

Assim sendo, existe interesse processual em agir de um determinado autor quando dos factos alegados decorra, no confronto daquele demandado, uma necessidade justificada não só no objecto do processo, mas no processo em si. Como assinala CASTRO MENDES[3]o requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido; mas teria de invocar ainda achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela”.

Quer isto dizer, que os AA. teriam de alegar factos de onde resultasse uma situação objectiva e grave de incerteza do direito que se arrogam, um conflito de interesses com esta R., justificativa da necessidade de tutela realizada por meio desta acção e a que corresponderia equivalente interesse em contradizer por parte da demandada. Não é o caso. Os AA. não invocam um único facto do qual resulte que a R. impugna ou coloca em dúvida por qualquer meio, o direito de propriedade dos AA.

A necessidade de obtenção de tutela jurídica resulta não da dúvida ou incerteza do direito de propriedade dos AA., mas da invocada necessidade de obtenção de título (sentença judicial que declare o direito de propriedade dos AA.) para obter a sua inscrição na matriz e no registo predial.

No entanto, os procedimentos com vista à inscrição de imóveis na matriz predial, são da competência da Administração Tributária, alheios a esta R. e não se inserem na esfera de competência material dos tribunais cíveis, conforme bem elucida a sentença recorrida. 

Nesta medida, nem os AA. têm interesse em agir, nem a R. tem qualquer interesse em contradizer. A sua posição como R. nesta acção é meramente aparente, pela inexistência de alegação de qualquer facto que indique um conflito de interesses. É assim forçoso concluir, como a primeira instância que “visto o pedido e a respectiva causa de pedir concreta nos termos explanados atrás, é inegável que os autores justificam a instauração da acção tão somente apenas na circunstância de os autores serem os únicos e legítimos proprietários e possuidores do imóvel descrito atrás, por via da sua aquisição originária, por usucapião, e ao mesmo tempo, na circunstância de não possuírem um título que lhes permita legalizar a sua propriedade nas Finanças e na Conservatória do Registo Predial, em virtude de o prédio ter ficado omisso na matriz predial, na avaliações gerais de prédios rústicos ocorrida no concelho ... no ano de 1990, com a agravante de o Serviço de Finanças não estabelecer correspondências com artigos da anterior matriz (e em relação a cuja acção de mera apreciação positiva a ré não ofereceu contestação). Disto resulta que os autores não aduzem aí, de todo, na petição inicial corrigida qualquer motivo sério/conflito de interesses existente entre eles e a ré que justifique que recorram aos meios judiciais (ou seja, instaure a presente acção de apreciação positiva) de modo a obter a tutela judicial”.

Acresce que, ao contrário do que invocam os AA. que diga-se, apenas recorrem da decisão quanto ao primeiro pedido formulado e já não quanto ao pedido para que este tribunal ordenasse “ao Serviço de Finanças e à Conservatória do Registo Predial que actuem em conformidade com o doutamente decidido, designadamente, proceder à inscrição na respectiva matriz e descrição no registo”, esta pretensão é inócua quanto à pretensão contida nessa alínea e que é afinal invocada como constituindo a causa da necessidade de tutela dos AA.  

Conforme referido, a inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.

Nestes termos e conforme consta dos artºs 13 e segs da Lei 78/2017 de 17 de Agosto e dos artºs 58, 59 da Lei Geral Tributária (LGT) e 48 do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 13 do Código Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), deve ser entregue pelo requerente para inscrição de prédio omisso na matriz os seguintes elementos:

a) Representação gráfica georreferenciada (RGG) elaborada por técnico habilitado, que substitui o levantamento topográfico (conforme documentos de instrução do pedido no BUPi que constam do anexo I);

b) Declaração de participação de inscrição de prédio rústico omisso, com aceitação dos limites do prédio de, pelo menos, um confinante, devidamente identificado com o NIF e a indicação do artigo matricial do seu prédio, a fim de que seja assegurada a existência do prédio a inscrever (conforme modelo do anexo II).

(…) para a inscrição matricial de prédios rústicos omissos situados em concelhos em que já vigore o Sistema de Informação Cadastral Simplificado, a declaração do sujeito passivo deve ser acompanhada da RGG do prédio a inscrever, que substituirá o levantamento topográfico, e de declaração de aceitação de, pelo menos, um dos proprietários confinantes.

Só se dispensará a declaração de, pelo menos, um dos confinantes se a RGG tiver sido validada (conforme art.º 7.º da Lei n.º 65/2019, de 23 de agosto, e do art.º 10.º do Decreto Regulamentar n.º 9-A/2017, de 3 de novembro, na sua atual redação), o que significa que todas as estremas devam estar desenhadas e confirmadas pelos proprietários confinantes sem qualquer sobreposição. Se a RGG estiver validada com reservas o interessado deve juntar ao processo a declaração de, pelo menos, um confinante, não se dispensando neste caso esta formalidade. A declaração para inscrição de prédio rústico omisso, acompanhada dos referidos elementos instrutórios, terá como resultado a inscrição do prédio, com a atribuição do correspondente artigo matricial, ainda que condicionado à fixação do valor patrimonial tributário, nos termos dos artigos 31º e seguintes do CIMI, e à conclusão dos procedimentos especiais consagrados no SICS, aplicando-se para o efeito o previsto no n.º 2 do artigo 24.º da Lei n.º 78/2017, de 23 de agosto.” [4]

Decorre do exposto que não existindo qualquer litigiosidade em relação ao direito de propriedade invocado pelos AA. e não sendo esta a providência adequada à tutela do seu direito (que consiste afinal na inscrição do imóvel na matriz predial e posterior descrição no Registo Predial, a obter posteriormente à inscrição, mediante o processo de justificação previsto no artº 116 e segs do C.R.Predial), cumpre declarar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.
 

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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta relação, em julgar improcedente o recurso interposto pelos AA., confirmando a decisão recorrida.
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As custas do recurso fixam-se pelos AA. (artº 527 nº1 do C.P.C.)

Coimbra 27/06/23



[1] Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, pág. 179 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Almedina 1997, pág. 230.
[2] Ob. cit., págs. 186/187.
[3] CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II Vol., AFDL, 1987, págs. 232 e segs.
[4] Orientação Técnica nº 1/BUPi [AT-eBUPi] | INSCRIÇÃO DE PRÉDIOS RÚSTICOS OMISSOS, Autoridade Tributária Aduaneira.