Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2310/22.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MANUEL CARVALHO RICARDO
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS DO DONO DA OBRA
ADEQUAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA AOS FACTOS A PROVAR
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 662º, Nº2, ALÍNEA D), DO C.P.C
ARTIGO 496º, Nº1 E 388.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A matéria de facto, alegada em sede de articulados, referente a danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelo dono da obra em consequência da realização de uma empreitada deficiente, deve ser selecionada com vista a apurar se tais prejuízos, caso estejam de demonstrados face aos elementos probatórios carreados para os autos, merecem a tutela do direito.

II – A factualidade que diz respeito a defeitos existentes numa determinada obra, quando não resulta de acordo das partes, deve, em regra, ser demonstrada através de prova pericial.

III – Tendo sido alegada a existência de danos não patrimoniais decorrentes das patologias da obra, não podem considerar-se as mesmas não provadas com recurso a um mero critério de normalidade.


(Sumário elaborado pelo Relator )
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

AA, casado, portador do Cartão de Cidadão n.º ...97 ZX 9 e NIF ...98, residente em Rua ..., ... ..., e   

BB, casada, portador(a) do Cartão de Cidadão n.º ... e NIF ...09, residente em Rua ..., ... ...

instauraram no Juízo Local Cível de Leiria acção comum contra

CC (1º réu) e A..., LDA  (2ª ré) CF n .º ...03, com sede em Rua ..., ..., ... ,

pedindo, com base no incumprimento do contrato de empreitada melhor descrito na petição inicial, que os réus condenados a pagar aos autores a título de danos morais a quantia de 6.000,00 € (seis mil euros) e a título de danos patrimoniais, a quantia de 28.930,86 € (vinte e oito mil, novecentos e trinta euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida de juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.


***

Os réus contestaram, sustentando que o réu (pessoa singular) carece de legitimidade substantiva para ser condenado na pretensão supra referida, mais impugnando, de forma motivada, parte da factualidade alegada pelos autores.

Em reconvenção, com fundamento na falta de pagamento de parte do preço decorrente da aludida empreitada, peticionou que:

a) Os autores/reconvindos sejam condenados a pagar à ré/reconvinte, “B..., Ldª”, a quantia de € 8.474,11, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a notificação da reconvenção, e até integral pagamento;

b) Subsidiariamente, caso se venha a julgar total ou parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos autores, que seja seja reconhecido o crédito da reconvinte “B..., Ldª”, no montante de 8.474,11 e, acrescido de juros à taxa legal dos juros civis, desde a notificação aos autores da reconvenção e até integral pagamento, e esse crédito compensado aquele que vier a ser àqueles reconhecido, tudo com as legais consequências.


***

Em sede de réplica, os autores propugnaram no sentido da improcedência da invocada excepção  e do pedido reconvencional formulado pela 2ª ré.


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Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.

***

Em 27/1/2024, após ter sido efectuada audiência final, foi proferida sentença, cujo dispositivo apresenta o seguinte teor:

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal:

- Julgar a acção totalmente improcedente, por não provada e, nessa conformidade, absolver os réus do pedido.

- Julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada em parte e, consequentemente, condenar os autores a pagar à ré a quantia de €4.626,29 (quatro mil seiscentos e vinte e seis euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal dos juros civis sucessivamente em vigor, actualmente fixada em 4%, contados da data da notificação da reconvenção até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.”.


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Não se conformando com a decisão proferida, os autores interpuseram o presente recurso, no qual formulam as seguintes conclusões:        

(…)


**

A réu contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:  

(…)

***

Questões objecto do recurso:

- (…);

- (…);

Alteração da matéria de facto dada como assente e não assente pelo Tribunal a quo;

- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante e caso a sentença impugnada não padeça de nulidade.


***

II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1) A ré é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico, comercialização e instalação de artigos de carpintaria. (acordo)

2) Os autores solicitaram à ré a realização de trabalhos de carpintaria na sua moradia, destinada à sua habitação, nos termos e condições constantes do orçamento datado de 19/09/2019, junto sob documento n.º 1 da contestação, pelo preço global de €14.318,12, com o seguinte teor: (…).

3) No dia 16/03/2020, o autor pagou à ré, por conta desse orçamento, a quantia de €2.000,00, através de transferência bancária. (acordo + recibo n.º 02/75 emitido pela ré com data de 10/03/2022, junto sob documento n.º 1 da petição inicial)

4) No dia 26/06/2020, o autor pagou à ré, por conta desse orçamento, a quantia de €2.000,00, através de transferência bancária. (acordo + recibo n.º 02/76 emitido pela ré com data de 10/03/2022, junto sob documento n.º 2 da petição inicial)

5) Os autores nada mais pagaram aos réus, por entenderem que estes não cumpriram com o acordado. (confissão – artigo 44.º da petição inicial)

6) O orçamento acima referido foi rectificado em 20/08/2020, quanto ao material do rodapé, passando a ter a redacção constante do orçamento junto sob documento n.º 4 da petição inicial e documento n.º 2 da contestação, pelo preço global de €13.786,76, com o seguinte teor: (…).

7) Desde que foram habitar a moradia, desde o dia 23/10/2020, os autores não utilizam a cozinha, por estar inoperacional e inacabada, pois não colocaram a bancada de cozinha, nem o lava-loiças, artigos cujo fornecimento e instalação não está a cargo da ré.           

8) Do projecto 3D referente à cozinha, referido no orçamento, constavam as seguintes imagens, juntas sob documento n.º 3 da petição inicial, que os autores aprovaram, por corresponderem à sua vontade: (…). 

9) Nos móveis de cozinha, os caixotes interiores dos móveis superiores, que se encontram em preto por fora, estão feitos em branco; em consonância com os desenhos em 3D que basearam a elaboração do orçamento, deviam ser de cor preta; nos termos do orçamento fornecido pela ré e aprovado pelos autores, ficou previsto que o interior dos móveis seria em «AG/HDI Laminado Branco».

10) O rodapé dos móveis da cozinha, com um vedante em borracha para aderir ao chão, está aplicado ao contrário, com o vedante de borracha para cima, não cumprindo a sua função. (confissão – artigo 86.º da contestação)

11) Os puxadores dos móveis, em metal, estão a «descascar», por defeito do material de acabamento. (confissão – artigo 87.º da contestação)

12) O acabamento da orla dos móveis apresenta um efeito tipo «ondas». (confissão – artigo 88.º da contestação)       

13) Na casa-de-banho da entrada, o material da orla do topo da porta não é o mesmo do acabamento da porta. (confissão – artigos 90.º e 91.º da contestação)

14) Na porta, falta a fechadura. (confissão – artigo 99.º da contestação)

15) Na lavandaria (à entrada), a orla do topo da porta não é do mesmo material da porta. (confissão – artigos 101 e 102.º da contestação)   

16) Na casa-de-banho da suite, a orla do topo da porta não é do mesmo material da porta. (confissão – artigo 101.º da contestação)

17) A porta está empenada e não fecha devidamente. (confissão – artigo 105.º da contestação)

18) Na casa-de-banho grande, a orla do topo da porta não é do mesmo material da porta. (confissão – artigo 101.º da contestação)

19) No roupeiro do quarto do «closet», algumas prateleiras não estão fixas. Algumas prateleiras estão estaladas. Existem furações e parafusos a mais nuns sítios e a menos noutros. No local de alguns parafusos a madeira está estalada. Os «topos» das prateleiras não têm todos a mesma medida, não coincidem uns com os outros, isto é, não estão em esquadria (algumas prateleiras estão mais para a frente e outras terminam mais atrás, ficando curtas em relação à face do «closet»). As uniões das prateleiras aos caixotes do «closet» têm folgas à vista. As «costas do móvel» não estão fixas à parede. O rodapé está desalinhado, encontrando-se abaulado (numas zonas mais para fora, noutras mais para dentro). Algumas gavetas, nas laterais, roçam na corrediça metálica quando abrem e fecham. As orlas dos topos não estão boleadas.

20) Nas portas dos dois roupeiros, a orla não é do mesmo material das portas. (confissão – artigo 119.º da contestação)

21) As réguas de acabamento que orlam os roupeiros são de material diferente do acabamento das portas dos roupeiros. (confissão – artigo 120.º da contestação)

22) Houve furações iniciais ocultadas com remendos. (confissão – artigo 124.º da contestação)

23) No escritório, a porta dupla de correr oscila e tem folga ao correr para abrir e fechar.

24) No móvel despenseiro, a porta apresenta manchas na face exterior. (confissão – artigo 131.º da contestação)

25) Nas restantes portas da casa, as ferragens deveriam ser condizentes com as maçanetas/puxadores, que são todas pretas, o que não acontece.

26) O material do topo das orlas é diferente do material das mesmas portas. (confissão – artigo 101.º da contestação)

27) Por email de 04/12/2020, a ré – na pessoa do réu, seu legal representante – comunicou à autora o seguinte: (…).

28) Por email de 16/12/2020, a ré – na pessoa do réu, seu legal representante – comunicou ao autor o seguinte: (…).

29) A ré não procedeu às afinações, correcções e substituições a que aludiu no seu email de 16/12/2020, porque a tanto foi impedida pelos autores, que não o autorizaram.

30) Os autores solicitaram a terceiros novo orçamento para a execução da obra relativa às madeiras da casa, o qual se fixou em €20.479,43 (IVA incluído à taxa legal de 23%), englobando desmontagem de todos os elementos de carpintaria existentes (inclui cozinha), este item pelo valor de €600,00 + IVA, conforme documento n.º 17 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.   

31) Os autores solicitaram a terceiros novo orçamento relativo à realização e montagem de cozinha, o qual se fixou em €4.971,83 (IVA incluído à taxa legal de 23%), conforme documento n.º 18 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.          

32) Os autores solicitaram a terceiros um orçamento para trabalhos de reparação e pintura após substituição de carpintaria, o qual se fixou em €3.480,00, conforme documento n.º 19 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.                                                33) Os réus foram ambos citados para os termos da causa a 08/06/2022, data da assinatura dos respectivos avisos de recepção.

(…)

34) O rodapé dos móveis da cozinha pode ser virado ao contrário, ficando com o vedante em borracha a tocar o pavimento, tal como a ré se comprometeu a fazer, no email enviado a 16/12/2020.

35) A ré aceitou expressamente substituir os puxadores dos móveis da cozinha e comprometeu-se a substituí-los todos, conforme declarado no email enviado a 16/12/2020.

36) As portas da moradia dos autores foram feitas à medida, por imposição do projecto de obra, não sendo portas de medidas standard. O painel para a sua fabricação, escolhido pelos autores, nessa data, não dispunha de orla de material idêntico. Autores e ré nada definiram, previamente à aplicação em obra, quanto à circunstância de o material da orla das portas não ser igual ao material do revestimento destas. Orlas e portas têm um material diferente (as orlas são lisas, enquanto as portas têm um padrão texturado, com uma espécie de veios), mas da mesma cor branca.

37) O orçamento aprovado pelos autores não prevê a aplicação de “pelúcia” na porta da casa-de-banho da entrada, nem em nenhuma das outras portas instaladas na moradia. Esse material não é indispensável ou exigível ao funcionamento das portas fabricadas à medida.

38) Relativamente à porta dupla de correr do escritório, a ré não forneceu, nem instalou o sistema, escondido no interior da parede, por onde a porta dupla corre.

39) Nas portas da casa, as maçanetas e dobradiças inicialmente escolhidas pelos autores não eram de cor preta, mas de cor cinzenta/inox. Em alteração do programa previsto, a ré aceitou colocar puxadores pretos e dobradiças pretas (dobradiças que não havia disponível no mercado nessa cor), sem alterar o respectivo preço. A ré dispõe dessas dobradiças e dos puxadores que ficaram por colocar na sua oficina. Não foram colocadas porque os autores se recusaram a autorizar a ré a fazê-lo.

(…)

40) Autores e ré acordaram que esta não executaria o trabalho previsto no orçamento de instalação do rodapé, tendo apenas fornecido esse material, pelo valor constante do orçamento rectificado em 20/08/2020. (acordo)

41) Autores e ré acordaram em não executar o trabalho previsto no orçamento de fornecimento e instalação da estante na divisão destinada a escritório, com o valor de €790,00. (acordo)

42) A ré emitiu ao autor, com data de 28/02/2022, a factura n.º 02/135, pelo valor total de €12.474,11 (€10.141,55 + IVA à taxa de 23%), junta sob documento n.º 7 da contestação, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido.


***

2.2. Factos não provados.

Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

- O réu, em nome próprio, assumiu perante os autores a responsabilidade pelo cumprimento do acordado.

- Os trabalhos de pintura interior da moradia dos autores ficaram concluídos na Primavera de 2020.

- Autores e réus acordaram que a obra começaria no local em Junho de 2020 e estaria concluída em 31/08/2020.

- Os autores adjudicaram a obra aos réus no dia 09/03/2020.

- Os autores e o réu acordaram no local, no início de Março de 2020, «ponto por ponto», como deveria a obra ser feita, a escolha dos materiais, os acabamentos e tudo o mais, por forma aos réus satisfazerem a vontade e gosto dos autores.

- O atraso na entrada em obra por parte da ré deveu-se ao facto de o réu ir prometendo dar início à obra, mas não aparecia, nem dava «sinal de vida».

- Os atrasos na obra que provocaram aos autores e sua família prejuízos enormes e grandes dores de cabeça, nos moldes alegados nos artigos 18.º a 30.º da petição inicial, sejam devidos a conduta imputável aos réus.

- Os autores têm vivido numa ansiedade constante desde 23/10/2020, na expectativa de os réus repararem a obra de acordo com o projecto inicial, situação conhecida dos réus.

- Depois de os autores habitarem a casa, os réus pouco ou nada fizeram e o que fizeram, fizeram mal e de forma defeituosa.

- Os réus, com o seu comportamento dado como provado, provocaram aos autores e à sua família nervosismo, inquietude, irritabilidade entre os cônjuges e em cada um “de per si”, não só pelos próprios como também em relação aos filhos menores que, igualmente, estão privados de usar e fruir o imóvel na sua plenitude.

- Os réus, com o seu comportamento dado como provado, causaram sofrimento aos autores, pela situação humilhante e vexatória em que os colocaram enquanto pessoas e pela elevada gravidade dos factos.

- Os autores e a sua família tiveram muitas noites sem dormir.

- Nos móveis de cozinha, todas as portas deviam ter o mesmo acabamento, por dentro e por fora, o que não existe na obra dos autores. O interior das portas dos móveis é de um material de qualidade inferior ao material do exterior das mesmas portas. O móvel onde estão encastrados o forno e o microondas não estão bem feitos e as medidas foram erradas. Os caixotes respectivos não têm as medidas adequadas para esses electrodomésticos, motivo pelo qual, no que respeita ao forno, os réus colocaram um calço para manter direito o forno dentro do móvel.

- Na casa-de-banho da entrada, as duas “promadas” do aro onde corre a porta não estão com o acabamento correcto. Têm a cavidade lateral onde corre a porta à vista e faltam-lhe as “pelúcias” (material de acabamento tipo escovas fininhas colocado no caixilho onde corre a porta para esta não oscilar), sendo o encaixe de alto a baixo da “aduela”. Na “aduela” (lado esquerdo da porta) falta-lhe um “rebaixo” e borrachas para a porta de correr encaixar quando estiver fechada e, assim, encostar e ficar segura. O encaixe é de alto a baixo da aduela. As orlas das portas foram rematadas a pincel, notando-se a tinta.

- Na casa-de-banho da suite, a “aduela” da porta não tem “rebaixo” nem “pelúcia”, estando, por isso, mal acabada, o que faz com que a porta não deslize devidamente, correndo com dificuldade e barulho. A aduela da porta está empenada.

- Na casa-de-banho grande, a orla do topo da porta está mal acabada, a pincel manual, notando-se a tinta. Falta um “rebaixo” na aduela da porta, para que esta encaixe quando está fechada. O trinco aplicado na porta não funciona devidamente – não encaixando na ferragem fixa na aduela – porquanto a porta oscila por falta do rebaixo na aduela (para encaixar, quando fechada) e por falta das pelúcias.

- Nas portas dos roupeiros, todas as orlas têm um péssimo acabamento, porquanto não são da mesma cor das portas dos roupeiros. As portas dos roupeiros não se encontram totalmente direitas, em esquadria, bem como a sua montagem foi mal feita.

- No escritório, a porta que é de correr carece de “pelúcia” e acabamento final. A aduela da porta carece de “rabaixo” para encaixe da porta de correr quando esta está fechada e, assim, poder fechar correctamente.

- No móvel despenseiro, o “contraface” parte interior do móvel, deveria ser igual ao exterior das portas e encontra-se todo manchado. O “corte” das madeiras que fazem as portas para aplicação do puxador (barra metálica, ao alto), ficou mal efectuado e foi pintado com caneta de acetato preta para tentar esconder os vícios. O móvel que foi pensado para condizer com a cozinha onde está colocado, devia ser todo em cor preta e com topos em preto e, ao contrário disto, as portas ao unirem umas com as outras, deixam ver “topos” em branco de alto abaixo.

- Nas restantes portas da casa, o seu acabamento foi feito manualmente e no local, a pincel.

- Pese embora as diversas tentativas dos autores no sentido dos réus efectuarem o cumprimento sem defeitos da prestação destes – a obra, os réus pura e simplesmente alhearam-se das suas obrigações para com os autores.

- Os réus pura e simplesmente usaram de má-fé no sentido de enganarem os autores com matérias de menor qualidade que colocaram na obra, contra o que ambas as partes tinham acordado.

- Em toda a obra utilizaram materiais de diferente qualidade.

- Esses vícios da obra – e outros – só são colmatados com a substituição de todas as madeiras colocadas na obra pelos réus.

- Os réus nunca, em momento algum, tiveram intenção de cumprir com o acordado quanto à boa execução da obra e quanto aos materiais.

- Os réus não têm capacidade para efectuar uma nova construção, uma vez que a fizeram defeituosa.

- Os autores vêem-se obrigados a recorrer a uma outra empresa para levar a cabo a obra que os réus deveriam ter executado.


***

2.3. Impugnação da matéria de facto.

(…).


**

Impugnam os recorrentes a decisão proferida sobre a factualidade descrita nos pontos 29 (segunda parte), 37 e 39 (parte final) da matéria assente, mais impugnando parte da decisão que incide sobre o acervo factual não provado.

No ponto 29 é referido que “A ré não procedeu às afinações, correcções e substituições a que aludiu no seu email de 16/12/2020, porque a tanto foi impedida pelos autores, que não o autorizaram.”.

Por sua vez, no ponto 37 é mencionado que “O orçamento aprovado pelos autores não prevê a aplicação de “pelúcia” na porta da casa-de-banho da entrada, nem em nenhuma das outras portas instaladas na moradia. Esse material não é indispensável ou exigível ao funcionamento das portas fabricadas à medida.”.

Por último, no ponto 39 refere-se que “Nas portas da casa, as maçanetas e dobradiças inicialmente escolhidas pelos autores não eram de cor preta, mas de cor cinzenta/inox. Em alteração do programa previsto, a ré aceitou colocar puxadores pretos e dobradiças pretas (dobradiças que não havia disponível no mercado nessa cor), sem alterar o respectivo preço. A ré dispõe dessas dobradiças e dos puxadores que ficaram por colocar na sua oficina. Não foram colocadas porque os autores se recusaram a autorizar a ré a fazê-lo.”.

Vejamos, de forma discriminada, cada um dos pontos que são colocados em crise.


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Ponto 29.


Relativamente à factualidade descrita na segunda parte do ponto 29 – não reparação dos defeitos da obra descrita nos autos em virtude de facto imputável aos autores –, sustentam os apelantes que ocorrem os vícios previstos no art. 615º, nº1, alíneas b) e c), do C.P.C., norma que apresenta a seguinte redacção:

É nula a sentença quando:

(…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;.”.

Compulsada a sentença recorrida, verifica-se, conforme defendem os recorrentes, que o Tribunal a quo não indicou os elementos probatórios em que se baseou para considerar que os autores impediram a ré de reparar os defeitos que a obra dos autos apresenta.

Trata-se de um ponto fulcral no presente litígio, pois só a partir dessa factualidade é que se pode concluir se o atraso na reparação é imputável ao dono da obra, com as consequências previstas no art. 814º, nº1, do Código Civil [1].

Não tendo sido motivada a decisão proferida sobre a matéria de facto no que concerne a este ponto (29), deverá a 1ª instância, atento o disposto no art. 662º, nº2, alínea d), do C.P.C. [2], fundamentar tal acervo factual, analisando criticamente os elementos probatórios que permitam chegar à conclusão que existiu mora por parte dos autores, ora recorrentes.


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Ponto 37.


No ponto 37 faz-se alusão a um determinado material que não foi aplicado na obra dos autos, material esse que os autores consideram essencial e que o Tribunal recorrido considerou irrelevante, com base em depoimentos prestados em sede de audiência final.

A 1ª instância, a propósito dos defeitos da obra que considerou não provados, exarou a seguinte motivação:

Os vícios e/ou desconformidades dados como não provados resultaram da insuficiência de concretização e de densificação da prova produzida sobre essa matéria, por não se evidenciarem de forma clara e nítida da prova documental junta, bem como por não serem corroborados, em termos concludentes, pelos depoimentos das testemunhas indicadas pela autora, que apenas os aludiram de forma vaga, genérica e conclusiva, sendo que o depoimento de sinal contrário prestado pelas testemunhas arroladas pela ré lançou a séria dúvida sobre a sua verificação – vide o acima explanado a respeito das «pelúcias» e do sistema de correr das portas do escritório, extensível às outras portas com idêntico sistema (das casas-de-banho da entrada, da casa-de-banho da suite e da casa-de-banho grande). Dúvida esta que, por versar sobre facto constitutivo do direito invocado, é resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, no caso, os autores – artigos 342.º, n.º s 1 e 3 e 346.º do Código Civil e 414.º do Código do Processo Civil.”.

Não podemos concordar com as considerações tecidas a propósito do acervo factual (não provado) que se refere a patologias existentes na obra, pela seguinte ordem de razões.  

Em primeiro lugar, a insuficiência de “densificação” ou de “concretização” não diz respeito à prova ou a elementos de prova, mas sim a matéria de facto, sendo que o Tribunal recorrido, caso entendesse insuficiente a exposição que as partes efectuaram em sede de articulados deveria ter feito uso da faculdade prevista no art. 590º, nº4, do C.P.C. [3], tudo sem prejuízo do uso da prerrogativa a que alude o art. 5º, nº2, alínea b), do mesmo Código [4].

Em segundo lugar, em matérias como aquela que se discute nos autos, não parece fazer muito sentido alicerçar unicamente a decisão sobre a matéria de facto em elementos testemunhais, considerando as fragilidades que este meio de prova habitualmente apresenta, seja porque os depoentes desconhecem a factualidade sobre a qual se pronunciam, seja porque relatam aquilo que a própria parte lhes referiu.

O elemento probatório que consideramos relevante  é a perícia, a qual não foi realizada no caso vertente.

Deste modo, sem prejuízo da matéria que se encontra assente por acordo das partes em sede de articulados, deverá a 1ª instância ordenar a realização de uma perícia, com vista a apurar que patologias a obra apresenta, o prazo para a respectiva reparação e o custo da realização dos trabalhos


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Ponto 39.


Relativamente ao ponto  39, constata-se que o vício existente é o mesmo que se referiu a propósito do ponto 29, ou seja, é mencionado que os autores não autorizaram a ré a colocar determinados materiais na obra (dobradiças e puxadores), mas não é indicado qualquer elemento probatório que permita alicerçar tal factualidade.    

Deverá, pois, a 1ª instância motivar, de forma crítica, o acervo factual em causa.


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Impugnam, ainda os apelantes a decisão proferida sobre a factualidade não provada, concretamente no que diz respeito a defeitos existentes nos móveis da cozinha, em casas de banho [5], closets e roupeiros, bem como no que diz respeito a danos de carácter não patrimonial que os recorrentes alegadamente sofreram [6].

Paralelamente, impugnam a mesma decisão no que se refere à data acordada para a conclusão da obra [7].        

No que diz respeito a patologias, são válidas as considerações que atrás expendemos a propósito da necessidade de realização de uma perícia, sendo que no que diz respeito a prejuízos na esfera não patrimonial importa analisar a motivação que a sentença recorrida integra.

O teor da respectiva fundamentação, a propósito desta matéria, é o seguinte:

Outrossim, considerou-se não provado o conjunto de factos relacionados com o estado de ansiedade vivenciado pelos autores desde que foram habitar a moradia, na expectativa de a ré efectuar as reparações da obra de acordo com o projecto inicial, nervosismo, inquietude, irritabilidade, sofrimento, situação humilhante e vexatória, com muitas noites sem dormir, por a factualidade dada como provada, numa leitura conjugada e objectiva, no específico quadro da situação em apreço e do impacto que tem na afectação da funcionalidade da habitação, à luz de um critério de normalidade, não ser apta a produzir alterações de tamanha monta no estado emocional dos autores.”

Relativamente a este ponto não podemos concordar com as conclusões a que o Tribunal recorrido chegou.

Com efeito, a 1ª instância, baseando-se num alegado “critério de normalidade”, entendeu que a situação referente ao imóvel dos autos (defeitos que o mesmo apresenta) não é de molde a gerar ou criar um estado de ansiedade nos ora apelantes, considerando, por isso, não provado o conjunto de factos que foram alegados a este propósito.

Ora, o que a normalidade da vida nos ensina é que neste tipo de situações – atraso na conclusão dos trabalhos e patologias que os imóveis apresentam – a parte lesada, neste caso, o dono da obra, costuma passar por estados de nervosismo e ansiedade, que podem ser mais ou menos impactantes consoante a gravidade que o caso apresenta.

E não pode confundir-se o facto, em si mesmo considerado, com as implicações que o mesmo tem ao nível jurídico, ou seja, a ansiedade e o nervosismo podem existir, mas não merecerem a tutela do direito, caso os reflexos na vida do lesado sejam de pequena monta (cf. art. 496º, nº1, do Código Civil) [8].

Nesta conformidade, deverá o Tribunal recorrido selecionar, com base na análise crítica dos elementos probatórios carreados para os autos, a factualidade referente ao estado de nervosismo/ansiedade que os apelantes atravessaram em virtude das patologias que a obra de que são proprietários apresenta.  

Por último, relativamente à data da conclusão dos trabalhos, constatamos, após termos ouvido os depoimentos registados, que não assiste razão aos recorrentes, uma vez que as testemunhas a que os mesmos fazem referência não têm conhecimento da factualidade em apreço.

É inteiramente válida, a este propósito, a motivação que consta na sentença recorrida, motivação que tem o seguinte teor: “Sobre o alegado acordo das partes – autores e ré - quanto às datas de início e fim da obra, bem como sobre a data da adjudicação da obra, nenhum elemento escrito foi junto sobre esta matéria e as testemunhas ouvidas nada souberam dizer com conhecimento directo.”.


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A apreciação do recurso subordinado depende da procedência dos pedidos que os autores/apelantes formularam nos autos.

Deste modo, considerando que o Tribunal a quo terá de lavrar nova sentença, em conformidade com a prova que irá ser produzida, fica prejudicado, por ora, o conhecimento das questões que a apelada suscitou no recurso interposto ao abrigo do preceituado no art. 633º, nºs 1 e 2, do C.P.C..


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III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se:

a) Rejeitar o recurso na parte onde é impugnado o despacho que indeferiu as declarações de parte dos autores/apelantes;

b) Anular a sentença recorrida e, em consequência, determinar que a 1ª instância:

b1 - Ordene a realização de uma perícia à obra dos autos, nos termos e para os efeitos supra indicados;

b2 - Fundamente a matéria descrita no ponto 29 dos factos assentes, na parte onde se refere que os recorrentes impediram a apelada de reparar os defeitos da obra;

b3 - Fundamente o acervo factual descrito no ponto 39, no que diz respeito à recusa, por parte dos apelantes, da colocação dos materiais aí referidos,

b4 - Selecione, com base na análise crítica dos elementos probatórios carreados para os autos, os factos referentes ao estado de nervosismo/ansiedade sofrido pelos apelantes em consequência das patologias inerentes à obra em análise.


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Custas pelos apelantes, no que diz respeito à rejeição parcial do recurso, sendo as restantes devidas pela parte vencida a final.           

Coimbra, 14 de Janeiro de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo        (relator)

Cristina Neves

(1ª adjunta)

Luís Miguel Caldas

(2º adjunto)



[1]  A redacção integral do art. 814º do Código Civil é a seguinte: “A partir da mora, o devedor apenas responde, quanto ao objecto da prestação, pelo seu dolo; relativamente aos proventos da coisa, só responde pelos que hajam sido percebidos.”.
[2] O vício existente não se traduz numa nulidade, mas numa deficiência de fundamentação, que é suprido de acordo com o regime previsto no citado art. 662º, nº2, alínea d), do C.P.C..
A referida norma apresenta o seguinte teor: “A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.”.
[3] Art. 590º, nº4, do C.P.C.. “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”.
[4] Art. 5º, nº2, alínea b), do C.P.C.: “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
[5] Incluindo a fechadura de uma porta.
[6] Ansiedade, decorrente dos defeitos que a obra apresenta.
[7]Autores e réus acordaram que a obra começaria no local em Junho de 2020 e estaria concluída em 31/08/2020.”
[8] Art. 496º, nº1, do Código Civil: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.