Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | RECURSO INTERLOCUTÓRIO IRREGULARIDADES PROCESSUAIS NULIDADES PROCESSUAIS VÍCIOS DO ARTIGO 410.º N.º 2 DO C.P.P. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS CRIME DE AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL – NORMAS APLICÁVEIS CRIMES DE AMEAÇA E COACÇÃO AGRAVADAS | ||
Data do Acordão: | 11/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSOS DECIDIDOS EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 183.º, N.ºS 2 E 3, 185.º-A E 198.º-A DA LEI N.º 23/2007, DE 4 DE JULHO/ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA E AFASTAMENTO DE ESTRANGEIROS DO TERRITÓRIO NACIONAL ARTIGOS 22.º E 23.º DA LEI N.º 130/2015, DE 4 DE SETEMBRO/ESTATUTO DA VÍTIMA ARTIGO 2.º DA LEI N.º 93/99, DE 14 DE JULHO/LEI DE PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS ARTIGOS 67.º-A, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 3, 119.º, ALÍNEA C), 120.º, 123.º E 318.º, N.ºS 1, 5, 6 E 8 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P. | ||
Sumário: | 1. No artigo 23º do Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015, de 4/9) reconhece-se a possibilidade de recurso à videoconferência ou à teleconferência, quando os depoimentos e declarações das vítimas especialmente vulneráveis implicarem a presença do arguido e tal se revelar necessário para evitar constrangimentos - neste caso, a vítima é acompanhada por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo Ministério Público ou pelo tribunal. 2. O seu nº 2 não é só aplicável em casos de crianças inquiridas, entendendo-se que não permite a lei que se faça esta destrinça, não se duvidando que existem muitas testemunhas vítimas maiores de idade que carecem desse acompanhamento técnico na sua inquirição judiciária, tendo sido essa a intenção óbvia do legislador. 5. A falta de nomeação de um técnico do artigo 23º/2 seria apenas um elemento eventualmente útil e nunca essencial à validade das inquirições em causa – as vítimas não pediram qualquer tipo de acompanhamento nem se mostraram minimamente constrangidas por deporem contra o homem que os traficou. 10. A transmissão à distância dos depoimentos prestados sem prejudicar a contextual visibilidade do declarante e o reconhecimento da sua fisionomia por todos os que intervêm ou assistem ao ato processual não se encontra ferido de um insuperável juízo de censura do ponto de vista constitucional, não havendo aqui qualquer violação do princípio da imediação em sentido formal ou do princípio do contraditório (continuou a existir, sem mácula, o direito de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação ou defesa). 11. O art. 119º, al. c) do CPP comina com a sanção da nulidade «a ausência do arguido», nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, sendo o arguido pessoa colectiva representado por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem. 12. Se o arguido estiver no processo representado por quem não tenha poderes de representação deve considerar-se que se verifica a nulidade do art. 119º, al. c). 13. Tratando-se de nulidade insanável, a consequência é que a irregularidade da representação não pode ser sanada nos termos em que o pode ser no processo civil, só ficando sanada com o trânsito em julgado da decisão final 14. Se a pessoa colectiva foi condenada e não interpôs recurso, haverá caso julgado em relação a essa condenação – é o que ocorre nas situações de co-autoria, em que um dos co-autores não interpõe recurso, falando-se, a esse propósito, de caso julgado sob condição resolutiva (sem prejuízo de o arguido não recorrente poder beneficiar da procedência de recurso de co-arguido recorrente). 15. No caso das pessoas colectivas, não existe sequer comparticipação criminosa, antes se falando de responsabilidade penal cumulativa entre a pessoa colectiva e a pessoa singular agente do crime (a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes). Sumário elaborado pelo Relator | ||
Decisão Texto Integral: | … Recurso interlocutório Irregularidades processuais Nulidades processuais Vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP Impugnação da matéria de facto Crime de tráfico de pessoas Crime de auxílio à imigração ilegal – normas aplicáveis Crimes de ameaça e coacção agravadas … … 1. O ACÓRDÃO RECORRIDO
…, foi decidido:
2. O RECURSO Inconformado, o arguido … recorreu do acórdão condenatório (sendo este o RECURSO 2, pois existe um recurso interlocutório que será primeiramente conhecido), finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões[1] … … Desde logo, nas sessões de julgamento realizadas em 30 de Março e 20 de Abril de 2022, a arguida …, LDA esteve representada pelo seu sócio-gerente, também arguido no processo, …, aqui Recorrente. A referida representação violou o art.º 57.º, n.º 9, do CPP, … …, a referida irregularidade de representação produziu a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, alínea c), do CPP, da qual resultou a invalidade dos actos em que ocorreu e os demais que deles dependeram, nos termos do art.º 122.º, n.º 1, do CPP. … …, os arguidos … suscitaram a inconstitucionalidade do art.º 23.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Agosto, na interpretação adoptada pelo douto Tribunal a quo, segundo a qual podem valer em julgamento os depoimentos e as declarações das vítimas especialmente vulneráveis prestados através de videoconferência ou de teleconferência sem cumprimento do artigo 318.º, n.º 8, do CPP, e sem observância das formalidades para a inquirição por meio tecnológico, estabelecidas no artigo 502.º, do CPC, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP, e a inconstitucionalidade do n.º 2 do referido artigo na interpretação segundo a qual o mesmo só tem aplicação para vítimas crianças. Sucede que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre as inconstitucionalidades suscitadas, o que, salvo melhor entendimento, é causa de nulidade do Acórdão, art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, … … …, a Acusação imputou ao Recorrente a prática de um crime de utilização da actividade de cidadãos estrangeiros em situação ilegal, p.p. pelos artigos 26.º do Código Penal e 185.º-A, n.º 1 e 4 da Lei n.º 23/07, por referência ao artigo 182.º, n.º 1, da mesma Lei, em coautoria material e em concurso aparente com outros crimes. Contudo, percorrendo o douto Acórdão recorrido, não encontramos qualquer decisão condenatória ou absolutória sobre o crime imputado, omissão que, salvo melhor entendimento, produz a nulidade do Acórdão atento as normas acima invocadas, art.º 379.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o art.º 374.º, n.º 3, alínea b), ambos do CPP. … há erro na determinação da norma aplicável na condenação do Recorrente pela práctica de dez crimes de auxílio à imigração legal, artigo 183.º, n.ºs 2 e 3, Lei n.º 23/07, relativamente a dois dos crimes imputados, e mesmo artigo 183.º, n.º 2, quanto aos demais. …, a norma aplicável aos casos em que se verifica uma situação de exercício de actividade não autorizada com permanência legal é o art.º 198.º-A, do referido diploma legal. Ademais, ainda que se entendesse que existia uma situação de permanência ilegal dos trabalhadores contratados, sempre se verificaria erro na determinação da norma aplicável dado que o douto Tribunal a quo fundamentou a condenação com o artigo 183.º, quando a utilização de trabalho de cidadãos estrangeiros em situação de permanência ilegal se encontra p. p. no artigo 185.º-A, Lei 23/2007. Quanto à decisão da matéria de facto, o Recorrente entende, com o muito e devido respeito, que há factos dados como provados que foram incorrectamente julgados. …
3. Previamente, em audiência datada de 20 de Abril de 2022, o Colectivo proferiu o seguinte despacho: «DESPACHO As normas invocadas pelo ilustre advogado dos arguidos, nomeadamente as previstas no artigo 23.º n.º 2 da Lei 130/2015 e no artigo 318.º n.º 8 do Código de Processo Penal, permitem que a inquirição das testemunhas se faça através de equipamento tecnológico que permita a comunicação por meio visual e sonoro em tempo real. Por outro lado, a norma prevista do citado artigo 23.º n.º 2 está relacionada com os artigos anteriores, o que significa que, a assistência por técnico habilitado, só é exigido, como bem se compreende, quando as vítimas são menores, o que não é manifestamente o caso dos autos. Posto isto, não ocorre qualquer irregularidade que cumpra suprir, pelo que se indefere o requerimento em análise. Notifique».
4. O despacho mencionado em 3. foi proferido na sequência da seguinte requerimento ditado em acta pela defesa dos arguidos AA e BB: «Os arguidos …, nos termos e para os efeitos dos artigos 123.º n.º 1 do C.P.P, arguem a irregularidade da inquirição das …,por meio de comunicação à distância, através da plataforma webex, por entenderem que viola o artigo 23.º n.º 2 da Lei 130/2015, artigo 318.º n.º 8 do C.P.P e 502.º do C.P.C, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do C.P.P.».
5. Recorreram[2] (sendo este o RECURSO 1) os arguidos … do despacho mencionado em 3., concluindo … … O Tribunal a quo deferiu o pedido de inquirição das testemunhas por videoconferência, nos termos da supracitada norma legal. Na audiência de julgamento, em momento imediatamente anterior ao início das inquirições, os Recorrentes, nos termos e para os efeitos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, arguiram a irregularidade do acto. … Sobre o qual recaiu o douto Despacho de indeferimento, … … enferma de errada interpretação e violação de normas jurídicas, designadamente, os artigos 23.º, n.º 2, da Lei 130/2015, 318.º, n.º 8, do CPP, e 502.º, do CPC, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º, do CPP. … … apenas o art.º 22.º, sob a epígrafe "Direitos da crianças vítimas", estabelece, específicamente, os direitos das vítimas menores, não se afigurando correcta a interpretação que o art.º 23.º, ou qualquer outro, seja uma extensão dos direitos dessas vítimas, sendo, antes, dirigido a todas as vítimas especialmente vulneráveis, independentemente da idade. Assim, salvo melhor opinião, a inquirição de vítimas especialmente vulneráveis através de videoconferência requer o preenchimento da condição imposta no n.º 2, do artigo 23.º, a qual determina que a testemunha, no seu depoimento, seja acompanhada por técnico especialmente habilitado. … Assim, tendo o douto Tribunal a quo determinado a inquirição das testemunhas com recurso à videoconferência, deveria, salvo melhor opinião, ter designado técnico especialmente habilitado para acompanhar as testemunhas na prestação das declarações. O que não sucedeu, … …, entendeu o douto Tribunal a quo que o artigo 318.º, n.º 8, do CPP, permite que a inquirição das testemunhas se faça através de equipamento tecnológico que permita a comunicação por meio visual e sonoro em tempo real. …, o Tribunal a quo não faz uma apreciação correcta do sentido da norma, a qual não admite uma qualquer localização, afastando, salvo melhor interpretação, a possibilidade de a inquirição ser prestada a partir da residência do inquirido. Com efeito, segundo o artigo 318.º, n.º 8, do CPP, … De onde resulta, salvo melhor entendimento, que há relevante distinção entre "local da sua residência" e "residência", o que vale por dizer que a norma permite o recurso a equipamento tecnológico existente na área de residência, designadamente, disponível em embaixadas, consulados, tribunais ou edíficios públicos disponibilizados para o efeito …º[3]… Ora, nos presentes autos não está identificado o local a partir do qual as testemunhas prestaram depoimento, recorrendo-se a um email para estabelecer o contacto, não tendo o Tribunal a quo desenvolvido os esforços necessários para verificar se era possível a videoconferência através de local adequado, com dignidade e dotado com meios para o efeito na zona de residência/permanência das testemunhas. Por outro lado, não existindo na zona de residência os meios tecnológicos necessários, entende-se que, não operando o artigo 318.º, n.º 8, do CPP, que não prevê o depoimento prestado na residência da testemunha, a inquirição deveria ser realizada através dos meios alternativos admissíveis. … O qual estabelece a disciplina da inquirição por meio tecnológico, definindo as condições do local e a forma da prestação dos depoimentos.
…
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. … balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a resolver – na análise dos dois recursos - consistem no seguinte: RECURSO 1 RECURSO 2
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO
… …[4]».
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
3.1. Quanto ao RECURSO 1 (interlocutório)
3.1.1. …
3.1.2. Alega a defesa que o despacho proferido nessa acta é irregular pois admite uma inquirição de duas testemunhas de acusação no Brasil, via webex, estando estas na sua residência e não num local público, tendo ambas deposto sem a presença de um técnico especialmente habilitado, nos termos do nº 2 do artigo 23º da Lei nº 130/2015, de 4/9, mais conhecida por Lei do Estatuto da Vítima. Estamos perante duas testemunhas/vítimas com estatuto de especial vulnerabilidade, estatuto solicitado pelo MP na acusação pública e decorrente dos termos dos artigos 1º, alíneas l) e j) e 67º-A, nº 1, alínea b) e nº 3 do CPP (alguns dos crimes em apreço são considerados «especialmente violentos»)[5]. Note-se que o pedido para inquirição das vítimas … foi feito pelo MP na acta de 30 de Março de 2023. Logo aí foi solicitado o seguinte: «Relativamente aos Senhores …, atendendo aos esclarecimentos prestados pela testemunha … no sentido de que tinha falado com eles há pouco tempo via Messenger do Facebook, promovo que se contacte o … no sentido de ele fornecer aos autos um contacto telefónico/email de cada um, no sentido de, numa data a designar, se conseguirem ouvir os mesmos à distância, por meio tecnológico que permitam a sua inquirição”. Este requerimento mereceu o seguinte despacho do Colectivo: «No que concerne às testemunhas, cumpra como doutamente promovido”. O diploma referenciado – ESTATUTO DA VÍTIMA – refere no seu artigo 23º (Recurso à videoconferência ou à teleconferência) que: «1. … 2. A vítima é acompanhada, na prestação das declarações ou do depoimento, por técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento previamente designado pelo Ministério Público ou pelo tribunal». Aqui reconhece-se a possibilidade de recurso à videoconferência ou à teleconferência, quando os depoimentos e declarações das vítimas especialmente vulneráveis implicarem a presença do arguido e tal se revelar necessário para evitar constrangimentos - neste caso, a vítima é acompanhada por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo Ministério Público ou pelo tribunal. Discorda-se da decisão do Colectivo quando refere que este normativo, nomeadamente o seu nº 2, é só aplicável em casos de crianças inquiridas, entendendo nós que não permite a lei que se faça esta destrinça, não se duvidando que existem muitas testemunhas vítimas maiores de idade que carecem desse acompanhamento técnico na sua inquirição judiciária, tendo sido essa a intenção óbvia do legislador. É o artigo 22º que se refere explicitamente às crianças vítimas, sendo o artigo seguinte aplicável a todas as situações de vítimas especialmente vulneráveis, independentemente da idade. Contudo, entendemos que qualquer irregularidade havida neste despacho já deveria ter sido arguida aquando do 1º despacho constante da acta de 30/3/2022, onde o Tribunal decide, após requerimento do MP, aceder à inquirição destas duas testemunhas brasileiras via webex. E logo ali não nomeia qualquer técnico especialmente habilitado para o acompanhamento dos dois brasileiros, entendendo que eles não precisariam de qualquer apoio nesse jaez, sendo maiores de idade. E se então logo tivesse arguido essa irregularidade, daria a possibilidade ao tribunal de se pronunciar sobre essa falta, ainda a tempo eventualmente de vir a ser deferida tal arguição. A estarmos aqui perante algum vício, assente que as nulidades – aqui inexistentes - têm de ser típicas, nos termos dos artigos 119º e 120º do CPP, estaríamos perante uma mera irregularidade, já sanada pelo decurso do prazo de 3 dias previsto no artigo 123º do CPP, assente que a defesa esteve representada na sessão de 30/3/2022, apenas tendo arguido essa irregularidade na sessão de 20/4/2022. Diga-se ainda que não assiste qualquer legitimidade ou interesse em agir ao arguido pessoa singular nesta questão, correndo a letra do nº 2 do artigo 23º da Estatuto da Vítima em exclusivo favor das vítimas e não dos arguidos. A par das nulidades dependentes de arguição (artigo 120º do CPP), as irregularidades carecem de arguição do interessado, no caso vertente, as próprias vítimas e nunca o arguido. No fundo, tem de se aferir em benefício de quem a formalidade processual foi estabelecida (artigos 197º/1 do Código de Processo Civil e 287º/1 do Código Civil) – e neste caso, o arguido não tem qualquer legitimidade para invocar este vício, assente ainda que esta irregularidade não afecta, a nosso ver, o valor do acto praticado (não sendo caso de aplicação do nº 2 do artigo 123º do CPP), estando por demonstrar de que forma é que a falta de nomeação de um técnico especialmente habilitado esteve na origem de alguma menos-valia destes dois depoimentos, prestados por dois homens adultos e muito ciosos das suas posições (foram eles quem despoletaram a denúncia inicial – cfr. fls 2 – Volume 1). Na verdade, o princípio geral em sede de irregularidades consiste em considerar que o acto irregular só é inválido quando o desvio à legalidade processual afectar o seu valor (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. 1, 4ª edição, 2008, p.103). Para o efeito de determinar quando é que uma irregularidade afecta o valor do acto, a doutrina costuma distinguir os elementos necessários dos elementos úteis, cuja falta dá origem a vícios essenciais e marginais, respectivamente. Urge, pois, procurar, de forma casuística, qual a função desempenhada por um determinado elemento: se esse elemento for essencial o acto é inválido; se apenas for útil, o acto, apesar de imperfeito, não é inválido (cfr. ainda João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Coimbra Editora, 1999, p. 112 e 145). Ora, a falta, neste nosso caso, de nomeação de um técnico do artigo 23º/2, seria apenas um elemento eventualmente útil e nunca essencial à validade das inquirições em causa – as vítimas não pediram qualquer tipo de acompanhamento nem se mostraram minimamente constrangidas por deporem contra o homem que os traficou.
3.1.3. E que dizer do facto de se ter feito esta inquirição via webex da casa das duas testemunhas? Antes de mais, é preciso recordar que as testemunhas em causa não residem, efectivamente, em Coimbra ou em local que permita a sua inquirição em presença física, razão porque adquire plena aplicação o disposto no artigo 318º, nº 1, alíneas a), b) e c), 5, 6 e 8 do CPP. Estatui tal normativo o seguinte: «… 8. Sem prejuízo do disposto em instrumentos internacionais ou europeus, o assistente, partes civis ou testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridos através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários». Anote-se que o nº 8, a bold assinalado atrás, foi introduzido no artigo por força da Lei nº 40-A/2016, de 22 de Dezembro …, permitindo a inquirição de testemunhas inclusive via Skype e/ou através de quaisquer outros meios tecnológicos de comunicação à distância (veja-se a inclusão do segmento “sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários”), afastando a previsibilidade limitativa anterior desta norma, apenas, à então tele(vídeo)conferência. E como bem acentuou o MP na 1ª instância: «Este preceito passou a referir-se expressamente à “inquirição por meio tecnológico” e não apenas à “inquirição por teleconferência”. Nesta medida, como in casu, no que respeita à inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro prevê-se agora expressamente que são inquiridas através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários, prosseguindo desta forma o princípio geral da boa prossecução da justiça. …». De acordo. O tribunal lançou mão do mecanismo de inquirição testemunhal previsto no artigo 23º/1 do Estatuto da Vítima (aí se falando em “videoconferência ou teleconferência). A este normativo tem de se acrescentar agora a possibilidade aberta por legislação subsequente, no caso, este nº 8 do artigo 318º do CPP. Ninguém duvida que estão perfectibilizados in casu os requisitos do artigo 318º, nº 1, alíneas a), b) e c) – as testemunhas em causa residem fora do município de Coimbra, não foi considerado que a sua presença física em audiência em Coimbra fosse essencial à descoberta da verdade (o que está em causa não é o teor do seu depoimento mas apenas aferir se a sua presença física em Coimbra é ou não necessária[6]) e existem dificuldades na deslocação das mesmas do Brasil para Portugal. A solicitação foi feita pelo MP – cfr. acta de 30/3/2022. Tal nº 1 do normativo pressupõe assim que a inquirição – de qualquer sujeito processual, com excepção do arguido - seja pedida ao juiz de outro tribunal ou juízo, por meio adequado de comunicação, nos termos do artigo 111º, mormente o seu nº 3, do CPP. A regra é, pois, a teleconferência/videoconferência[7] – aquela que se realiza em tempo real e simultaneamente com a audiência de julgamento. A definição de teleconferência podemos ir buscá-la ao artigo 2º da Lei de Protecção de Testemunhas (Lei nº 93/99, de 14 de Julho): … Note-se que o legislador acabou depois por mudar a redacção do nº 5 e por acrescentar um nº 8 ao artigo em causa, entendendo que a expressão “equipamento electrónico que permita a interação, por meio visual e sonoro, em tempo real”, ao invés de “teleconferência”, era preferível “por se tratar de uma expressão mais abrangente, que possibilita a utilização de tecnologias já existentes e cujas características técnicas não são reconduzíveis ao vocábulo «teleconferência»” (cfr. Proposta de Lei nº 30/XIII/2 que esteve na génese da nova redacção do nº 5 e do novo nº 8 do artigo 318º, através da Lei nº 40-A/2016). Portanto, a partir de 2016, passou a abarcar-se todos os meios de transmissão à distância, ajustando-se a lei às evoluções tecnológicas sempre prementes e emergentes que permitem mais e melhor qualidade de som, imagem, o tal maior realismo, equiparável a situações de presença física. Como tal, e numa 1ª opção, pode o tribunal de julgamento recorrer à tele/vídeo-conferência. Se não for possível, pode solicitar-se a outro tribunal para que sejam tomadas declarações ao depoente, ficando a inquirição a cargo de um juiz que determinará o modo de registo do depoimento. Continua Tiago Caiado Milheiro na anotação atrás mencionada: «Não estabelece a lei qualquer limitação relativamente ao local de tomada de declarações. … Não tem de ser necessariamente no tribunal, embora o deva ser preferencialmente, podendo ocorrer em locais sob a égide de uma autoridade pública – embaixadas, consulados, postos policiais, etc (…), também se admitindo que o possa ser em outros locais - cf. nº 8». De facto, este nº 8 prevê uma norma especial para o assistente, partes civis ou testemunhas residentes no estrangeiro (o nosso caso). Há que conjugar o nº 1 com o nº 8 do normativo. A regra é do depoimento presencial no tribunal da causa, admitindo-se, excepcionalmente, que a tomada de declarações seja feita fora desse tribunal – em todas essas situações, onde se inclui os casos do nº 8, dever-se-á verificar os requisitos descritos no nº 1. Continua Tiago Milheiro: «Requerida e deferida, ou decidida oficiosamente, a tomada de declarações no estrangeiro, o tribunal, de forma fundamentada, ou solicita por rogatória a prestação de declarações no tribunal da sua residência ou, então, opta por fazer uso da possibilidade conferida pelo nº 8». Analisamos melhor esse novo nº 8. De novo com recurso à inspirada anotação de Tiago Caiado Milheiro: «A alusão a instrumentos de cooperação internacional na 1ª parte do nº 8 não deve ser interpretada no sentido de que o tribunal deva, primeiramente, optar por rogar a tomada de declarações ao abrigo daqueles. Significa, sim, que a inquirição directa do assistente, partes civis ou testemunhas, através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, não pode colidir com normas convencionais a que o estado Português esteja vinculado … Num outro tópico, em relação à forma de transmissão das declarações preceitua-se que pode ser através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real. Ciente da evolução tecnológica, não se tipifica que equipamento e comunicação pode ser utilizada. O único requisito é que deva ser adequado a permitir uma transmissão em tempo real de imagem e som. (...) Em suma, pode ser utilizado i-pad, tablet, televisão, telemóvel, relógios digitais, computadores. Independentemente do sistema informático, plataforma, rede social usada (Google mais, facebook, zoom, teams, WhatsApp, etc». O nº 8 em causa fala em «sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários. A defesa entende que essa expressão por nós sublinhada só pode significar que o local em causa não é a «residência» do declarante mas qualquer local público da área dessa residência. Discorda-se. A leitura que fazemos do nº 8 não dá azo a dúvidas – o local da sua residência É a residência do declarante (se a lei quisesse referir-se a tribunal ou local público tê-lo-ia dito, como disse nos nºs 1 e 6 da norma). Tiago Caiado Milheiro explica (com sublinhados nossos): «…. A menção a residência aponta que a regra serão as declarações prestadas a partir da residência do declarante. Residência entendida como centro de vida. …». …[8] … O tribunal de julgamento optou por lançar mão do nº 8 do artigo 318º do CPP, tudo fez para se ligar às testemunhas no Brasil (fls 1044, 1060, 1061 e 1068), entendendo que estavam perfectibilizadas as condições para se poder fazer uma captação em tempo real de som e imagem, e ouviu as duas testemunhas na sessão de 20 de Abril de 2023, em inquirição contraditada pela defesa que poderia ter feito as perguntas que entendesse por convenientes (curiosamente, nenhuma pergunta foi feita, tendo sido essa a opção da defesa), não resultando dessa inquirição qualquer diminuição das garantias de defesa dos arguidos. Esta solução legal do nº 8 do artigo 318º do CPP configura, afinal, uma alternativa válida e perfeitamente susceptível de permitir ao juiz da causa apreciar das condições da prestação de declarações, pela percepção audiovisual que da mesma tem no decurso da diligência, podendo avaliar, adequadamente, da credibilidade ou não do depoimento assim prestado, estando garantida a imediação. Diga-se ainda que não faz sentido aqui trazer à discussão o artigo 319º do CPP que confere a possibilidade de ser o tribunal a deslocar-se ao local de residência ou permanência do declarante, nada se confundindo com a nossa situação de inquirição de testemunhas no estrangeiro.
3.1.4. Finalmente, uma palavra sobre a possível limitação em relação à força probatória dos dois depoimentos assim prestados via webex. Opera na sua pujança o artigo 127º do CPP, não fazendo sentido apelar a uma natural e abstracta diminuição de tal força probatória. Tem sido escrito que «o depoimento por teleconferência pode sustentar a decisão condenatória» (vide Tiago Caiado Milheiro, obra citada, p. 129 e 144). Recorramos de novo a esse comentador, com sublinhados nossos: «O legislador considera que esta forma de prestação de declarações ainda garante o princípio da imediação, ao permitir ver e ouvir o depoente em tempo real, por meio de comunicação à distância. …». Como tal, inexiste qualquer vício na decisão recorrida pelo facto de se terem inquirido por webex duas testemunhas residentes no estrangeiro, tendo-se feito tal inquirição a partir de Coimbra para o local de residência das mesmas, só podendo retirar-se alguma menor força probatória dos seus depoimentos na análise que se irá fazer dos pretensos vícios do acórdão final, em termos de impugnação da matéria de facto, aferindo-se então da credibilidade probatória desses dois depoimentos. O que significa, na linha do opinado por Sandra Oliveira e Silva («Salas vazias e declarações anónimas». Notas sobre a proteção de testemunhas e o processos equitativo no julgamento da criminalidade organizada, RCEJ, 16, p. 285 ss), que «a transmissão à distância dos depoimentos prestados sem prejudicar a contextual visibilidade do declarante e o reconhecimento da sua fisionomia por todos os que intervêm ou assistem ao ato processual não se encontra ferido de um insuperável juízo de censura do ponto de vista constitucional» (assim se rebatendo as arguições de inconstitucionalidades feitas na parte final do recurso nº 1), não havendo aqui qualquer violação do princípio da imediação em sentido formal ou do princípio do contraditório (continuou a existir, sem mácula, o direito de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação ou defesa). … Não esqueçamos que o legislador, neste particular, quis equiparar os depoimentos e declarações prestados por videoconferência à audição presencial das pessoas na sala de audiência (e a recente pandemia COVID e as inúmeras leis temporárias criada por causa dela vieram legitimar ainda mais esta equiparação). Recorramos agora ao nosso Colega Luís Filipe Pires de Sousa, no seu «Julgamento presencial versus julgamento com telepresença. A pandemia e o futuro», Revista Julgar, nº 4, p. 21 ss: «A presença física do depoente perante o Tribunal não é assim tão essencial pra efeitos de valoração dessa prova, já que a formação da convicção sobre a fidedignidade do depoimento funda-se, em primeira linha, a partir do canal verbal da comunicação, assumindo o canal não verbal uma relevância residual e pouco segura». …
Em conclusão, soçobra totalmente o recurso nº 1.
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3.2. Quanto ao RECURSO 2 (do acórdão de 22.6.2022)
3.2.1. Comecemos pelas nulidades arguidas. Pergunta-se: Analisemos uma por uma.
3.2.1.1. A defesa do arguido … vem alegar que a arguida pessoa colectiva, … não estava representada em julgamento em conformidade com a lei vigente e, tal facto, sob o seu ponto de vista, correspondendo à falta da arguida em julgamento, em desconformidade com o determinado no art. 332º, n.º 1 do CPP, configura uma nulidade insanável, prevista no art. 119º, al. c) do mesmo diploma, nulidade que determina a nulidade do próprio Acórdão recorrido. Sendo uma nulidade insanável (e não uma das descritas no artigo 120º do CPP) a que foi expressamente arguida, e sendo ela de conhecimento até oficioso, pode ela ser invocada em recurso por qualquer um dos interessados com legitimidade para intervir nos autos (não havendo que procurar saber se o arguente da nulidade é ou não «interessado» para os efeitos dos artigos 197º/1 do CPC ou 287º/1 do Código Civil), assente que estão em causa finalidades consideradas essenciais num verdadeiro Estado de Direito. Vejamos se existe tal nulidade insanável. A resposta não é simples. Façamos o filme dos acontecimentos processuais neste jaez. A sociedade arguida foi constituída como tal na pessoa do arguido …, seu representante legal à data dos factos e à data do acto de constituição como arguida (cfr. fls. 210 e 211), tendo a sociedade defensor nomeado (cfr. fls. 615). O julgamento iniciou-se a 30/03/2022, tendo continuado a 20/04/2022 e nesta data foi designado o dia 11/05/2022 para a leitura do acórdão. Nesse dia, o Acórdão não foi lido, antes tendo sido proferido o seguinte despacho (cfr. acta de 11/05/2022): «A Lei nº 94/2021, de 21.12, que aprovou medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterou, entre outros diplomas, o Código de Processo Penal. De entre essas alterações salientam-se as respeitantes às pessoas colectivas, nomeadamente quanto à prestação de Termo de Identidade e Residência (artigo 196º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Penal) e à sua representação assegurada pela pessoa que a pessoa colectiva designar, sendo que em caso algum a pessoa colectiva pode ser representada pela pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objecto do processo (artigo 57º, nºs 4 a 9 do Código de Processo Penal). No presente processo a arguida pessoa colectiva … Ld.ª, está representada por pessoa singular que também tem a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objecto do processo. Nessa conformidade, deverá a arguida “…, Ld.ª” prestar, de imediato, TIR nos termos do artigo 196º do Código de Processo Penal, onde indicará o seu representante designado nos termos dos nºs 4 a 9 do artigo 57º do Código de Processo Penal. Consequentemente, concede-se à referida arguida, o prazo de dez dias para se pronunciar acerca da aplicabilidade de tal alteração legislativa aos actos processuais em que, já após a entrada em vigor daquela Lei nº 94/2021, de 21.12, interveio o seu legal representante, igualmente arguido relativamente aos factos que são objecto do processo, nomeadamente declarando, se considera sanada a irregularidade de tal representação ou, se, eventualmente, deseja prestar declarações através do seu “representante designado nos termos dos nºs 4 a 9 do artigo 57º do Código de Processo Penal”. O Ministério Público pronunciou-se … Nesse mesmo dia (11/05/2022) foi prestado novo TIR pela pessoa colectiva, agora representada nos autos por pessoa diversa do arguido ora recorrente … Nem a arguida visada nem os demais arguidos, nem o novo representante legal da sociedade arguida se pronunciaram e nada requereram, … O novo representante não declarou querer depor. Porque nada requereu a arguida, através do seu novo representante legal, … foi proferido despacho, datado de 26/05/2022 (cfr. fls. 1118 e 1118 verso – referência 88487815), no qual se consideraram “válidas as sessões de julgamento que já tiveram lugar, pois só assim se obtém a harmonia e unidade dos vários atos do processo a que alude o mencionado artigo 5.º, n.ºs 1 e n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal”, tendo sido designada data para leitura do Acórdão (22/06/2022). Vejamos. Antes de mais, nunca o tribunal recorrido constatou que a arguida pessoa colectiva “não se encontrava legalmente constituída arguida no processo” (note-se que a constituição como arguido de uma pessoa coletiva e as subsequentes alterações ao nível da sua representação legal são realidades diversas, nunca essas modificações podendo afectar a legalidade de um anterior legal acto de constituição como arguido validamente prestado, como sucedeu no caso). Mas a verdade é que o artigo 196º do CPP foi alterado pela Lei nº 97/2021, de 21/12, entrado em vigor em 21/3/2022[9]. A mudança foi esta: «Artigo 196.º TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA 1 - [...]. 2 - [...]. 3 - [...]. 4 - No caso de pessoa coletiva ou entidade equiparada, o termo deve conter a sua identificação social, a sede ou local de funcionamento da administração e o seu representante designado nos termos dos n.ºs 4 a 9 do artigo 57.º 5 - Do termo prestado pela pessoa coletiva ou entidade equiparada, deve ainda constar que foi dado conhecimento: a) Da obrigação de comparecer, através do seu representante, perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei a obrigar ou para tal for devidamente notificada; b) Da obrigação de comunicar no prazo máximo de 5 dias as alterações da sua identificação social, nomeadamente nos casos de cisão, fusão ou extinção, ou quaisquer factos que impliquem a substituição do seu representante, sem prejuízo da eficácia dos atos praticados pelo anterior representante; c) Da obrigação de indicar uma morada onde possa ser notificada mediante via postal simples e de que as posteriores notificações serão feitas nessa morada e por essa via, exceto se comunicar uma outra morada, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento; d) Da obrigação de não mudar de sede ou local onde normalmente funciona a administração sem comunicar a nova sede ou local de funcionamento da administração; e) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º; f) De que, em caso de condenação, o termo só se extingue com a extinção da pena. 6 - O representante pode requerer a sua substituição quando se verificarem factos que impeçam ou dificultem gravemente o cumprimento dos deveres e o exercício dos direitos da sua representada, sendo que a substituição do representante não prejudica o termo já prestado pela representada. 7 - No caso de cisão ou fusão da pessoa coletiva ou entidade equiparada, os representantes legais das novas pessoas ou entidades devem prestar novo termo. 8 - (Anterior n.º 4)». Também o artigo 57º do CPP, referido no agora nº 4 do citado artigo 196º, foi alterado pela mesma Lei nº 94/2021, com entrada em vigor a 21/3/2022. Tal Lei deu a seguinte redacção ao artigo 57º: «4 - … 5 - A entidade que careça de personalidade jurídica é representada pela pessoa que aja como diretor, gerente ou administrador e, na sua falta, por pessoa escolhida pela maioria dos associados. 6 - … 7 - … 8 - … 9 - Em caso algum a pessoa coletiva ou entidade equiparada arguida pode ser representada pela pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objeto do processo». Ora, acontece que o legislador, certamente concluindo que a disciplina introduzida, na sua linearidade, poderia entorpecer o sistema nos processos em que viesse de futuro a ser aplicada, veio a alterar o referido regime, modificando o nº 5 (com esta redacção: «5 - A pessoa coletiva é representada por quem legal ou estatutariamente a deva representar e a entidade que careça de personalidade jurídica é representada pela pessoa que aja como diretor, gerente ou administrador e, na sua falta, por pessoa escolhida pela maioria dos associados») e revogando expressamente esse nº 9 do referido artigo 57º[10], através da Lei nº 13/2022, de 1/8, em vigor a 2/8. Portanto, quando se iniciou este julgamento, em 30/3/2022, estava em vigor uma mudança do CPP que, entretanto, foi revogada em 2/8/2022[11]. Logo que se apercebeu do facto, em 11 de Maio de 2022, o tribunal tentou perfectibilizar a instância processual, procedendo à mudança no TIR do representante da pessoa colectiva arguida e decidindo, após o silêncio dos arguidos à notificação que lhes foi expressamente feita em 11/5/2022, fazendo aplicação do normatizado no artigo 5º, nºs 1 e 2, alínea b) do CPP, considerar «válidas as sessões de julgamento[12] que já tiveram lugar, pois só assim se obtém a harmonia e unidade dos vários atos do processo a que alude o mencionado artigo 5º, nºs 1 e 2, alínea b) do CPP». A nosso ver, a solução encontrada no despacho recorrido não é juridicamente aceitável – logo que ela entrou em vigor (a 21.3.2022, logo, antes do início do julgamento), a previsão da lei então em vigor (Lei nº 97/2021) deveria ter sido imediatamente considerada, por não se vislumbrar que, dessa forma, existisse qualquer quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo. E aí o processo continuaria sem qualquer colisão ou "entorpecimento" nos seus actos, sem o mínimo problema de continuidade adequada. De facto, se a lei estava em vigor quando a audiência se iniciou, então não nos parece haver motivo substancial para afirmar qualquer desarmonia que implicasse o afastamento da regra da aplicação imediata. … a alusão ao artigo 5º/2 do CPP é contraditória – ou se decide pelo nº 1 (a nova lei é aplicável aos processos pendentes - a regra[13]) ou se lança mão do nº 2, entendendo que a lei nova não se aplica a tais processos pendentes pelas razões aí mencionadas. O Colectivo no dia 11/5 determina que se lavre novo TIR em consonância com o então novo nº 9 do artigo 57º do CPP - isso quer dizer que decidiu que a nova lei é aplicável aos autos (nº 1 do artigo 5º), indirectamente não aplicando o nº 2 do artigo 5º do mesmo diploma. E, por isso, não fez qualquer sentido a notificação feita à pessoa colectiva para vir ratificar o processado (tratava-se de uma nulidade insanável por falta da arguida pessoa colectiva no julgamento). Não ignoramos o ensinamento de Germano Marques da Silva, na obra citada no recurso: «… Se o arguido estiver no processo representado por quem não tenha poderes de representação deve considerar-se que se verifica a nulidade do art. 119º, al. c). Tratando-se de nulidade insanável – na terminologia da lei, embora errada – a consequência é que a irregularidade da representação não pode ser sanada nos termos em que o pode ser no processo civil, só ficando sanada com o trânsito em julgado da decisão final». Se a arguida PESSOA COLECTIVA não esteve representada por quem de direito durante o julgamento, essa omissão só pode equivaler à falta daquela nas sessões do julgamento. Havendo esta nulidade indiscutível durante a decorrência do julgamento, pergunta-se: poderemos dizer que ela, hoje, estará sanada? Sabemos que essas nulidades só se sanam pelo trânsito em julgado de uma decisão penal [João Conde Correia, no Comentário Judiciário do CPP, Tomo I, p. 1226, refere mesmo que o caso julgado é «la più vistosa e potente causa di sanatoria», parafraseando Giovanni Conso, acrescentando que ele impede a anulação posterior do processado, ressalvado o regime da revisão de sentença (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 146/2001)]. … Aqui chegados, questionamo-nos: faz sentido anular este julgamento, quando é certo que o interessado visado pela nulidade não recorre do acórdão final? Quando a dita lei nova deixa de o ser, afinal, 5 meses depois? A questão é esta: De que forma se projectam os efeitos desta nulidade? Há que notar que, com a aplicação da Lei Nova, a repetição das sessões de julgamento processar-se-ia nos mesmos termos em que foram realizadas, ou seja, com a representação da sociedade arguida confiada ao arguido, enquanto seu representante legal – e se assim é, então os efeitos da nulidade perecem e tornam-se irrelevantes, por força da entrada em vigor da Lei nº 13/2022 que matou esse nº 9 do artigo 57º do CPP. A pessoa colectiva esteve, inicialmente, representada por quem os Estatutos ditavam, mas que não o podia fazer em virtude da lei processual posterior. Depois, passou a estar devidamente representada, sendo que as alterações legais posteriores até legitimaram a representação inicial. Poderemos ainda defender, com propriedade, que se fez caso julgado relativamente à pessoa colectiva visada com a dita nulidade (ela seria, e só ela, a interessada nessa arguição de nulidade, se ela fosse do elenco do artigo 120º do CPP). Se a pessoa colectiva foi condenada e não interpôs recurso, não haverá caso julgado em relação a essa condenação? Respondemos afirmativamente. Afinal, é o que ocorre nas situações de co-autoria, em que um dos co-autores não interpõe recurso, falando-se, a esse propósito, de caso julgado sob condição resolutiva (sem prejuízo de o arguido não recorrente poder beneficiar da procedência de recurso de co-arguido recorrente). No caso das pessoas colectivas, não existe sequer comparticipação criminosa, segundo cremos, antes se falando de responsabilidade penal cumulativa[14], entre a pessoa colectiva e a pessoa singular agente do crime (a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes). Não esqueçamos, de facto, que esta nulidade respeita, apenas, ao arguido não recorrente. Quanto à questão do caso julgado, leia-se o eloquente aresto da Relação do Porto, datado de 9/7/2014 (Pº 5789/06.0TAVNG-H.P1) … Damos o nosso pleno acordo a esta tese. Tem-se entendido que, havendo comparticipação criminosa, se um dos arguidos não recorrer da decisão condenatória, ela adquire quanto a si a força de caso julgado parcial, sem prejuízo de o não recorrente poder beneficiar da procedência do recurso apresentado pelo co-arguido. Por maioria de razão, num caso como o nosso em que inexiste qualquer comparticipação criminosa, a solução é a mesma. Logo, formou-se caso julgado relativamente à pessoa colectiva, estando sanada esta nulidade. Em nome de uma justiça prática e «justa», iremos indeferir esta arguição de nulidade, entendendo-a sanada nos termos descritos, repugnando ao intérprete um terceiro aproveitar-se de uma nulidade respeitante a outro arguido, quando é ainda certo que a causa da nulidade cessou 5 meses depois… Não se deixará é de concordar com o MP de 1ª instância quando aduz que: «Diga-se, finalmente, que o arguido, por si e como representante, à data, da sociedade arguida, teve a oportunidade, expressamente concedida, para poder alegar o que tivesse por conveniente e requerer o que entendesse necessário quanto à questão e nada disse, aproveitando a prolação do Acórdão para agora vir invocar um vício (inexistente) que não lhe diz respeito, mas sobre o qual pretende vir a obter um benefício, ainda que indireto, decorrente da suposta invalidade do Acórdão que o condenou».
3.2.1.2. E o que dizer da alegação de que o tribunal incorreu em omissão de pronúncia por não se ter pronunciado sobre as inconstitucionalidades arguidas? Repristinemos aqui muito do que foi por nós decidido no Recurso nº 1. Da leitura da acta de audiência de julgamento do dia 30/03/2022, resulta que o MP ditou para a acta o seguinte requerimento: « …, atendendo aos esclarecimentos prestados pela testemunha … no sentido de que tinha falado com eles há pouco tempo via Messenger do Facebook, promovo que se contacte o … no sentido de ele fornecer aos autos um contacto telefónico/email de cada um, no sentido de, numa data a designar, se conseguirem ouvir os mesmos à distância, por meio tecnológico que permitam a sua inquirição”. Este requerimento mereceu o seguinte despacho: «No que concerne às testemunhas, cumpra como doutamente promovido”. Foi agendada a segunda sessão de julgamento para o dia 20/04/2022, sem que tivesse sido suscitada qualquer questão por parte do arguido recorrente (ou qualquer outro) sobre a forma como o tribunal pretendia proceder à inquirição das indicadas testemunhas, tal como nenhum vício invocou o recorrente relativamente à inquirição via webex da testemunha … ocorrida no dia 30/03/2022 (cfr. nossa decisão relativamente ao recurso nº 1). Logo no início da sessão de 20/04/2022 (referência 88203389), o arguido recorrente, através do seu ilustre mandatário, apresentou o seguinte requerimento: «Os arguidos …, arguem a irregularidade da inquirição das testemunhas … por meio de comunicação à distância, através da plataforma webex, por entenderem que viola o artigo 23.º n.º 2 da Lei 130/2015, artigo 318.º n.º 8 do C.P.P e 502.º do C.P.C, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do C.P.P.” O MP pronunciou-se. Em 20/4/2022, foram ouvidas as testemunhas …, ambas com o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis, via webex. Logo após, para acta, o arguido … RECORRE (o recurso nº 1, já decidido), invocando também a inconstitucionalidade do art. 23º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 130/2015, de 4/8 … Os arguidos …, suscitam a inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa, do artigo 23.º n.º 2 da Lei 130/2015 de 04 de agosto”. Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho judicial: «… Quanto às inconstitucionalidades invocadas, nada temos a dizer, uma vez que só foram suscitadas e nada foi requerido”. Foram então apresentadas as alegações do Recurso nº 1, … Não se compreende, assim, como é que se defende que houve omissão de pronúncia por parte do tribunal recorrido, no acórdão de 22/6/2022, relativamente a tais inconstitucionalidades, assente que elas foram arguidas no Recurso nº 1, não havendo qualquer necessidade de o Colectivo repetir o seu argumentário, assente que a questão até estava sob recurso autónomo.
3.1.2.3. E há nulidade do Acórdão recorrido – artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP – por omissão de decisão condenatória ou absolutória relativamente ao crime de utilização da actividade de cidadãos estrangeiros em situação ilegal? Constatamos que o crime em causa, p.p. pelo art. 185º-A da Lei n.º 23/2007, de 4/7, foi imputado, na acusação pública, em concurso aparente com o crime de auxílio à imigração ilegal. Ora, estando em causa uma relação de concurso de normas e tendo o tribunal a quo considerado preenchidos todos os elementos típicos do crime prevalente, pelo mesmo foi o recorrente condenado, não havendo qualquer necessidade (imposição legal) de pronúncia sobre o crime que por aquele foi absorvido, não se verificando, por isso, a nulidade contemplada na al. a) do n.º 1 do art. 379º do Código de Processo Penal, por referência ao nº 3, al. b) do art. 374º do mesmo diploma. … se o tribunal recorrido considerasse que os factos provados não preenchiam o primeiro dos indicados ilícitos, então estava obrigado a analisar se aqueles se subsumiam no outro crime, apenas não punível com autonomia por se encontrar em relação de concurso aparente que, no entanto, nesse caso, deixava de se verificar. Ora, não foi este o caso, não se verificando, também aqui, qualquer omissão de pronúncia na decisão recorrida.
3.1.2.4. Como tal, inexiste qualquer nulidade de que cumpra conhecer, considerando ainda que o tribunal cumpriu com zelo e suficiência argumentativa as exigências do artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP.
3.2.2. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO … …[15]. …[16]. …[17] … …[18] … …[19] …
…
3.2.3. SOBRE O DIREITO
3.2.3.1. Já se sabe que apenas deverão ser por nós conhecidas as questões de DIREITO constantes das novas Conclusões. E a verdade é que aí apenas se alega que: «13. … há erro na determinação da norma aplicável na condenação do Recorrente pela práctica de dez crimes de auxílio à imigração legal, artigo 183.º, n.ºs 2 e 3, Lei n.º 23/07, relativamente a dois dos crimes imputados, e mesmo artigo 183.º, n.º 2, quanto aos demais. 14. … a norma aplicável aos casos em que se verifica uma situação de exercício de actividade não autorizada com permanência legal é o art.º 198.º-A, do referido diploma legal. 15. Ademais, ainda que se entendesse que existia uma situação de permanência ilegal dos trabalhadores contratados, sempre se verificaria erro na determinação da norma aplicável dado que o douto Tribunal a quo fundamentou a condenação com o artigo 183.º, quando a utilização de trabalho de cidadãos estrangeiros em situação de permanência ilegal se encontra p. p. no artigo 185.º-A, Lei 23/2007».
3.2.3.2. Entendeu o Colectivo condenar o arguido pela prática de dois crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelos artigos 160º, nº 1, alíneas a) e d) do CP. E tal fez porque: «Os factos apurados demonstram à saciedade a forma como as vítimas … foram explorados em termos laborais, com a clara utilização, por parte do arguido … do ascendente que sobre aqueles exerceu enquanto entidade patronal detentora de todo o poder e exigência, tanto mais que era ele quem lhes fornecia local para dormir e a própria alimentação, trabalhando os mesmos horas a fio, sem receber salário, sem terem contratos de trabalho ou qualquer outra proteção, em pleno domínio do arguido, pois dele dependiam até para comer e ter um teto para os abrigar. Claro está que … os mantinha a trabalhar naquelas situações e sem receberem porque também os ameaçava de forma grave – que os colocava na rua com a roupa do corpo, sem dinheiro, ameaçando-os que os matava, que ia chamar a polícia e que iriam ser expulsos do país -, aproveitando-se, pois, da situação de especial vulnerabilidade existencial e vivencial dos ofendidos. Com base nos factos dados como provados, a conclusão jurídico-criminal é óbvia e acertada (dois crimes em apreço cometidos nas pessoas do …).
3.2.3.3. Que dizer agora dos dez crimes de auxílio à imigração ilegal? Dois deles … foram agravados pelo artigo 183º, nºs 2 e 3 da lei nº 23/2007, de 4/7 … enquanto os oito restantes foram subsumidos à letra do artigo 183º, nº 2 de tal diploma. Raciocinou assim o tribunal: «Tendo em conta o que agora se descreveu e os factos dados como provados, é possível retirar uma conclusão no tocante ao auxílio à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros, que é a conduta que ora nos interessa. … Está em causa a actividade de auxílio à imigração ilegal. O artigo aplicado por Coimbra foi o 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de Abril, que assim reza: «…». No artigo 181º diz-se ainda que: «…». Decidiu esta Relação de Coimbra em 20/6/2018 (Pº 7/11.2ZRCBR.C1) que: «…[20]». Vejamos mais arestos (com sublinhados nossos): · … (Acórdão da Relação de Coimbra datado de 11/11/2015 – Pº 7/08.0GBCTB.C1). · … (Acórdão da Relação de Lisboa de 9/3/2023, no Pº 14/16.9ZRLSB.L1-9). Voltemos à tese da defesa. Insurge-se ela contra o facto de ter sido considerado cometido o crime de auxílio à imigração ilegal, p.p. pelo art. 183º, n.º 2 e 3 da Lei nº 23/2007, de 4/7, quando algumas das vítimas referidas no acórdão e mencionadas no recurso entraram em Portugal ao abrigo do regime de isenção de vistos e foram contratadas para trabalhar para a sociedade arguida quando ainda se encontravam no período de validade de tal regime (90 dias). Ora, segundo a defesa, o tribunal errou ao considerar que um cidadão que entra legalmente em território nacional passa à situação de ilegal no momento em que começa a exercer uma atividade para a qual não está autorizado, apesar de ainda se encontrar a decorrer o período de validade da entrada em território nacional naquele regime. Vejamos. Os nºs 1 e 2 do artigo 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, com a redacção dada pela Lei nº 29/2012, de 9 de Agosto, prevêem para situações diferentes. Deste modo, o nº 1 apenas prevê para a ajuda ou facilitação da entrada ou transito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional mas já não para a ajuda ou facilitação da permanência de cidadão estrangeiro em Portugal, que apenas é punível nos termos do nº 2. O nº 2, não exigindo que o agente favoreça a entrada ou trânsito de um cidadão estrangeiro (basta que se tenha facilitado a permanência), exige adicionalmente ao nº 1, um dolo específico, traduzido na “intenção lucrativa” do agente (Gabriel Catarino equipara a “intenção lucrativa”, à “intenção de obter benefícios ou proventos ilícitos e abusivos das situações que co-envolvem a introdução e a permanência de forma irregular de cidadãos estrangeiros em território nacional” - Aspectos jurídico-penais e processuais do regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros” in Julgar on-line, 2009, p. 24, conforme citação feita no aresto de Coimbra de 27/10/2021… No nosso caso, todos os cidadãos estrangeiros em causa referidos nestes autos já estavam em território nacional quando contactados pelo arguido. Portanto, a norma aplicável na condenação do recorrente, em relação a todos os cidadãos identificados nos factos dados como provados e nos termos em que o foram, é a correcta – a do artigo 183º, nº 2 e 3 (por causa da agravação na situação do …) - da Lei nº 23/2007 e nunca o artigo 198º-A ou mesmo o art. 185º-A da mesma Lei, não havendo qualquer erro do julgador na identificação e aplicação da norma penal, concordando-se em absoluto com as explanações do MP em resposta de 1ª instância. Estamos longe de uma contra-ordenação (que convive apenas com uma situação isolada de utilização de cidadãos estrangeiros nas condições avançadas no artigo 198º-A de tal diploma) e do crime do artigo 185º-A (que acrescenta o «de forma habitual» ao tipo de contra-ordenação acima referida) – neste nosso caso, não é um mero utilizar que está em causa. É muito mais do que isso. Não estamos a falar de uma mera utilização do trabalho destes brasileiros em Portugal. Estamos a falar de uma sociedade e de um indivíduo que, de forma muito directa e consequente, favoreceu e facilitou a permanência destes homens em Portugal, estando como estavam ilegais. Os factos provados nºs 8, 9, 13, 21, 22, 92, 93, 94, 95, 96 e 97 falam por si. Note-se até no facto nº 21 – o arguido anunciou ofertas de trabalho nas redes sociais assim angariando mão-de-obra, contribuindo, desta maneira, de forma assaz decisiva, para a continuação da permanência destes homens contratados num País onde não estavam legalmente. Isto é «favorecer» e «facilitar» a sua permanência em Portugal, muito mais do que uma mera «utilização» do seu trabalho. A acrescer a esta fundamentação, juntemos a exemplar alegação em resposta por parte do MP: «Ora, ao contrário do alegado, bem decidiu o tribunal a quo, pois não está em causa uma situação de auxílio na entrada, mas de auxílio na permanência (art. 183º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007) ilegal em território nacional e a ilegalidade consiste no facto “estar” em Portugal a trabalhar, não tendo entrado com visto para trabalho, nem tendo autorização de residência para esse efeito (cfr. arts. 10º, n.º 1, 59º e 88º da Lei n.º 23/2007). … Os cidadãos identificados no processo como tendo entrado por essa via em território nacional, recorreram a essa forma de entrada no nosso país mas prontamente começaram a trabalhar, sendo manifesto que a finalidade não era o turismo ou qualquer outra das indicadas no citado Acordo e que a permanência em Portugal, em situação ilegal tinha enquadramento no art. 181º, n.º 2 da citada lei n.º 23/2007, na redação vigente à data, … … Ora, o que sucede com o crime do art. 183º, n.º 2 (agravado nos termos do n.º 3) é que a ação levada a cabo pelo agente, que pode consistir em atribuir trabalho ao cidadão estrangeiro em situação ilegal, é efetuada com intenção lucrativa, intenção esta que vem bem espelhada no Acórdão recorrido e, obviamente, não se prende com o simples resultado da atividade laboral, mas com a clara intenção, concretizada, de obter força de trabalho sem o necessário e devido pagamento e nas condições descritas no Acórdão, que aqui damos por reproduzidas. Note-se que, mesmo a celebração formal de contratos de trabalho, que no caso dos autos inexistiam, não deixa de configurar (se verificados os demais elementos típicos) o crime de auxílio à imigração ilegal, como sucedeu na situação descrita no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2018 (proc. 7/11.2ZRCBR, in www.dgsi.pt), quando se encontrava em vigor a versão inicial do art. 198º da Lei n.º 23/2007, que abrangia, no seu n.º 2, também a existência de relações de trabalho subordinadas». Tanto basta para afirmar a não justeza da alegação da defesa, também nesta parte, assente ainda que tal crime do artigo 185º-A está em concurso aparente com a preferida pela Acusação e pelo Colectivo de Coimbra. Rematemos com esse acórdão desta Relação, datado de 20/6/2018, … «Com efeito, a grande vulnerabilidade dos imigrantes ilegais, bem conhecidas das entidades empregadoras, retira-lhes a capacidade de reação suposta nos nacionais, acomodando-se os mesmos por razões óbvias – desde logo pela facilidade com que são dispensados/despedidos -, de modo não comparável, às violações do seu estatuto enquanto assalariados, violações, essas, que se convertem, sem dúvida, num proveito económico para os patrões».
3.2.3.4. Nada a referir quanto aos dois crimes que restam (os de coacção agravada e ameaça agravada) pois, apurados os factos nºs 15 a 19, 98, 99 e 100, só a condenação se exigia (a defesa apenas coloca em causa a prova dos factos atinentes à coacção, sem discutir a fisionomia do delito em si).
3.2.3.5. E sobre as penas aplicadas? O recurso é completamente omisso quanto a penas. Partindo de molduras penais abstractas correctas, as penas parcelares e o quantum de sete anos de prisão efectiva parecem-nos razoáveis e adequadas à inegável gravidade[21] dos factos julgados. Estamos a falar de tráfico de seres humanos (nenhum ser humano é ilegal) – trata-se de um crime contra a liberdade pessoal, que afecta milhões de pessoas em todo o mundo e que envolve o recrutamento e a movimentação de pessoas entre fronteiras internacionais ou dentro de um mesmo país, com o objectivo de as sujeitar a diversos tipos de exploração, sendo tal recrutamento e movimentação das vítimas realizados com recurso à violência, engano ou abuso de situações de vulnerabilidade. Actualmente tem um impacto económico comparável ao do tráfico de armas e de droga. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o tráfico gera cerca de 24 mil milhões de euros por ano e o número de vítimas ascende a mais de 2,4 milhões de pessoas por ano. A complexidade deste crime dificulta a obtenção de resultados eficazes ao nível da intervenção, seja no âmbito dos processos judiciais seja na proteção e assistência às vítimas. De acordo com definições internacionais, europeias e a legislação portuguesa (artigo 160º do CP), comete um crime de Tráfico de Pessoas, quem: · Realiza a acção de: Oferecer, Entregar, Recrutar, Aliciar, Aceitar, Transportar, Alojar, Acolher pessoa(s); · Por meio de: Violência, Rapto, Ameaça grave, Ardil ou manobra fraudulenta, Abuso de autoridade, Aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade; · Com o objectivo de: Exploração, nomeadamente Exploração Sexual, Exploração Laboral, Mendicidade Forçada, Escravidão, Extração de órgãos, Exploração de outras actividades criminosas.
3.3. Improcede, assim, totalmente este recurso. …
3.4. Em sumário, diremos: …
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: · I. Proceder à correcção (à luz do artigo 380º/2 do CPP) do ACÓRDÃO nos seguintes termos:
· II. Julgar não provido o recurso interlocutório nº 1, … · III. Julgar não provido o recurso nº 2 intentado pelo mesmo arguido …
Custas pelo arguido recorrente, em cada um dos recursos, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Coimbra, Adjunto: José Eduardo Martins Adjunto: João Novais [1] … [2] … [3] [4] … [5] Leia-se o que se escreve numa dissertação de Mestrado de 2021 sobre este ESTATUTO DA VÍTIMA: … (Madalena Henriques da Silva, A PROTEÇÃO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL: ANÁLISE CRÍTICA DA EVOLUÇÃO DO ESTATUTO PROCESSUAL DA VÍTIMA, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa). [6] Ou seja: resulta da lei que «essas razões devem ser sérias, fortes, intensas no sentido de que a não presença do declarante na sala de audiência é prejudicial para a descoberta da verdade» (cfr. Tiago Caiado Milheiro, na anotação ao Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, p.123). [7] … [8] … [9] … [10] … [11] Posteriormente o nº 3 de tal artigo 57º veio a ter a seguinte nova redacção, por força da Lei nº 52/2023, de 28 de Agosto: «3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2 a 7 do artigo seguinte». [12] … [13] … [14] Cfr. https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/60744/1/Tese+Mestrado+-+Vers%C3%A3o+Final+-+Ana+Correia+Magalh%C3%A3es.pdf: … (SILVA, Germano Marques da – Questões Processuais na Responsabilidade Cumulativa das Empresas e seus Gestores. Op. cit. p. 789-791)». A mesma posição é veiculada por Carlos Adérito Teixeira, em «Pessoa colectiva como sujeito processual – ou a "descontinuidade" processual da responsabilidade penal», In Revista do CEJ. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários. Nº 8 (Especial), Maio de 2008. ISSN 1645-829X. p. 99-166. [15] … [16] … [17] … [18] … |