Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2037/23.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SIMULAÇÃO ABSOLUTA
ARGUIÇÃO DA SIMULAÇÃO PELO SIMULADOR
PROVA DA SIMULAÇÃO
CONFISSÃO
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA– LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 240°, N.º 2, 242º, N.º 1, 286.º E 289º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 662º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. A prova da simulação pelos simuladores poderá ser obtida por confissão.

3. A nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta (art.º 242º, n.º 1 do CC).

4. A venda fantástica traduz uma simulação fraudulenta e absoluta - inexiste qualquer negócio, comprador fictício, intuito de prejudicar os credores do devedor.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:          *

Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Alberto Ruço
                  Carlos Moreira

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           I. AA intentou a presente ação declarativa comum contra BB, pedindo que seja declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública, em 02.5.2013, entre o A. e a Ré e ordenado o cancelamento do registo do respetivo prédio a favor da Ré.

            Alegou, em síntese: viveu com a Ré desde o início de 2011 e em 2012 foram residir para casa construída em terreno que havia herdado de seu pai; em razão da sua atividade económica, tinha diversas dívidas e em face da pressão dos credores, a Ré sugeriu-lhe que colocasse o prédio em seu nome, pelo que em 02.5.2013 outorgou com a Ré escritura pública, pela qual declarou vender à Ré que declarou comprar, pelo preço de € 102 790, o prédio em questão; em setembro/2022, a Ré saiu de casa e veio a dizer que o irá expulsar e irá vender a casa.

            A Ré contestou e deduziu reconvenção.

           Aduziu, nomeadamente: os custos referentes à escritura de divisão de coisa comum que precedeu a divisão do prédio onde a casa de habitação foi implantada, foram suportados por si, assim como grande parte dos custos inerentes à construção da casa, que decorreu de setembro de 2011 a maio de 2012, no montante global de € 74 400; desde que iniciaram a sua vida em comum, foi sempre a Ré quem sustentou o A., quem pagou as dívidas do mesmo e quem suportou as despesas da casa onde viviam, uma vez que este apenas auferia € 226 de pensão de viuvez e tinha encargos mensais que ascendiam a € 958,36; o A. decidiu doar a casa de habitação à Ré, não tendo sido, de facto, intenção de ambos vender e comprar, pois o que se pretendia era passar a casa para o nome da Ré, face aos pagamentos que tinha vindo a fazer ao A. e gastos na casa, nada fazendo prever o fim da relação amorosa; foi realizado o negócio de compra e venda para melhor proteger o imóvel e a Ré relativamente aos seus credores, em detrimento de uma escritura de doação que poderia facilmente ser anulada.

           Concluiu pela improcedência da ação e, reconvindo, pediu seja reconhecida a validade da doação, declarando a Ré como única e legítima proprietária do prédio em causa.

            Replicou o A., impugnando o alegado pela Ré e concluindo pela improcedência do pedido reconvencional; pediu a condenação da Ré como litigante de má fé.

            Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.[1]

           Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 19.9.2024, julgou a ação procedente: declarou nulo por simulação absoluta o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública, celebrada entre o A. e a Ré, no dia 02.5.2013 e ordenou o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré, feito com base na mesma escritura; julgou improcedente a reconvenção, absolvendo o A. do pedido reconvencional.

            Dizendo-se inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - Analisado o depoimento da R. verificamos que os factos dados por provados e não provados, que se fundaram na confissão da própria R. são contrários, às suas declarações, face ao que não pode a R. conformar-se com a decisão que aqui recorre, por violar, nomeadamente o disposto no art.º 615º, n.º 1, c) do Código de Processo Civil (CPC).

           2ª - Existem factos dados por provados, que se consideram como não provados bem como o inverso, como por exemplo nos factos dados por provados, os pontos 11, 12, 14, 15 e 16, e os factos dados por não provados nas alíneas b, e, i, o, p, q, t, dd, ee, ff e gg.

            3ª - Assim, do depoimento da R., foi entendimento do Tribunal a quo, dar por provado, nos pontos 11 e 12, que foi a R. que sugeriu que fosse feita a escritura de compra e venda e que a casa fosse colocada em nome dela, porquanto analisada a prova em causa, verificamos que ela diz exatamente o contrário, conforme gravações no sistema habilus, do qual se estrai que a ideia de colocar a casa em nome da R. sempre foi do A., uma vez que ela lhe estava a pagar as dívidas e a pagar as despesas inerentes à construção e instalação da casa, e esta seria uma forma de compensação pelos pagamentos que esta tinha feito.

           4ª - Face ao que, não poderia tal facto ter sido dado por provado, já que a sentença assenta tal facto como provado apenas através da confissão da R., porquanto esta sempre afirmou exatamente o contrário, pelo que deveria o mesmo ter sido dado por não provado.

            5ª - Quanto ao ponto 14, o mesmo deveria igualmente constar nos factos não provados, pois, fundada na suposta confissão da R: entende o Tribunal a quo, que a única pretensão daquela escritura de compra e venda era salvaguardar o A. dos credores, para que estes não encontrassem qualquer bem imóvel registado e inscrito em nome do autor.

            6ª - Ora, do depoimento da R. extraímos que a pretensão do A. era compensar a R. pelos pagamentos que esta tinha vindo a fazer, tanto a nível das dívidas que o A. tinha como das despesas inerentes à construção e instalação da casa, e que foi por esse motivo que o A. lhe quis fazer a doação, porquanto e com medo dos credores, optaram por fazer uma escritura de compra e venda.

           7ª - Tal argumentação, encontra-se plasmada nas declarações prestadas pela R. gravado no sistema habilus, do qual consta que o A. disse que iria colocar a casa em

nome dela porque ela estaria a pagar as suas dívidas, uma vez que o A. dispunha de parcos rendimentos, e que por isso sempre foi intenção do A. doar a casa à R..

            8ª - Apesar das diversas insistências da Mm.ª Juiz a quo, a R. sempre afirmou que o A. colocou a casa em seu nome uma vez que ela é que estava a pagar todas as dívidas e despesas, pois se o único objetivo fosse fugir dos credores, o A. poderia ter colocado a casa em nome de outro familiar dele, nomeadamente do seu irmão mais novo, que na qualidade de advogado, o terá aconselhado.

            9ª - Face a isto, não poderia o Tribunal a quo dar por provado tal facto, uma vez que sempre foi intenção do A. doar a casa à R. como forma de compensação pelos pagamentos feitos por esta e não para fugir a qualquer credor, pelo que deveria o mesmo constar como não provado.

           10ª - Igualmente se dirá do art.º 16º dos factos dados por provados, assente numa suposta confissão da R., no qual esta terá supostamente mudado radicalmente o seu comportamento para com o autor, e começou a ofender e a insultar o mesmo, sem qualquer motivo ou razão, bem como aos familiares deste, porquanto da audição do seu depoimento, não se pode extrair tal confissão - do qual resulta que não alterou o seu comportamento, nem nunca insultou o A..

            11ª - Não pode o Tribunal a quo dar por provado tal artigo com base numa suposta confissão da R., quando esta no seu depoimento, diz exatamente o contrário, pelo que tal facto deveria ter sido transcrito como não provado!

           12ª - A R. disse exatamente o contrário daquilo que se pretendeu provar, pelo que tais factos devem ser transitados para os factos dados por não provados!

            13ª - Além destes, houve factos dados por não provados, que se entende terem sido provados, e aqui não só pelo depoimento da R. mas também do A. e ainda das declarações das testemunhas, que ainda não tenham presenciado determinadas situações, ouviram os relatos tanta da R. como do A., e as declarações por si prestadas em sede de audiência e julgamento mostraram-se verosímeis, pelo que deveriam ter sido tidas em consideração para a formação da convicção do Tribunal a quo.

            14ª - Assim, foi considerado não provado nas alíneas b) e dd) que a única fonte de rendimentos do A eram as pensões sociais (provadas no ponto 20) e que o autor continuou a trabalhar e a ganhar dinheiro.

           15ª - Tal facto foi sobejamente discutido em audiência de julgamento, do qual resultou que o A. após encerrar a sua atividade de revenda, em sensivelmente 2019, apenas tinha como fonte de rendimento a sua pensão de viuvez e reforma, pelo que tal facto deveria ter sido dado por provado, bem como deveria ter sido dado por provado que desde essa data, o A. deixou de trabalhar, e por isso de ganhar dinheiro, sendo pois os seus únicos rendimentos as mencionadas pensões sociais.

            16ª - E tal resulta do depoimento da R., e o próprio A. confirma que não trabalhava e que desde pelo menos 2019 o seu único rendimento era a sua reforma.

            17ª - Mas ainda nesta matéria a testemunha CC, ao longo das suas declarações, referiu que o A. não trabalhava à data do seu relacionamento com a R..

            18ª - Face ao que, não restam dúvidas que as alíneas b) e dd) deveriam ter sido dada por provadas e em consequência ficar provado que A. deixou de trabalhar desde pelo menos 2019 e consequentemente deixou de ganhar dinheiro, recebendo apenas as pensões sociais mencionadas.

            19ª - Quanto aos factos alegados, nas alíneas e) e i), relativos aos custos da construção da casa e pagamento de todas as dívidas e as despesas da casa como alimentação, a água, a luz, o telefone, os seguros, o IMI, os telemóveis, as despesas de saúde e medicamentosas, e o vestuário do autor, pela R. deveriam estes igualmente ter sido dado por provados, atendendo não só ao depoimento da R., mas também do próprio A. que admite que a R. pagava as despesas da casa.

            20ª - Face ao que deveriam ter sido dados por provados os pagamentos que a R. foi fazendo ao longo da vida conjunta do casal, não só para construção da casa, mas também das despesas do dia-a-dia, pelo que as alíneas e) e i) deveriam ser factos dados por provados, o que, consequentemente, prejudica igualmente as alíneas ff) e gg).

            21ª - Efetivamente, o valor a pagar, mensalmente, pelas dívidas do A. era substancialmente superior ao valor recebido pelo próprio, pelo que não restam quaisquer dúvidas que cabia à R. pagar o remanescente da dívida bem como todas as despesas existentes do casal e da casa.

            22ª - Subsequentemente à prova da alegação na sobredita alínea i), também a alínea p) deveria ter sido dada por provada, pois dúvidas não restam que o A. quis doar a casa à R. como forma de compensação pelos gastos que esta teve e pelos pagamentos que ela foi fazendo não só para a casa mas também das dívidas do A., pelo que sempre foi intenção dele proceder à doação mencionada, o que resulta igualmente do depoimento da R..

            23ª - Pelo que não restam quaisquer dúvidas que a verdadeira intenção do A., além de se proteger dos credores, era doar a casa à R. uma vez que esta é que andava a fazer todos os pagamentos de dívidas e despesas, face às parcas condições económicas do A..

            24ª - Ainda dos factos dados por não provados, temos a alínea o), da qual resulta não provado que a R. é que escolheu e comprou todos os eletrodomésticos e equipamentos eletrónicos da casa bem como cortinados e mobílias, mas do depoimento da R. concluímos que esta é que pagou todo o recheio da casa, e também do depoimento do A. verificamos que o mesmo admite que os bens foram adquiridos pela R..

           25ª - Quanto ao facto alegado na alínea q), que a dita escritura foi decidida pelo A. também pela relação que este tinha com o filho e nora da R., pois conforme factos dados por provados, ainda antes de conhecer e iniciar o seu relacionamento com a R., o A. conhecia o filho desta, uma vez que este era casado com a afilhada da sua primeira mulher, e por essa via mantinha um bom relacionamento com eles, e tinha-os como filhos.

            26ª - Nesse sentido a testemunha DD, que apesar de ser filho da R., e casado com a afilhada do A., mostrou uma postura muito assertiva e credível ao longo das suas declarações, pelo que as mesmas deveriam ter sido valoradas, e assim a alínea q) deveria ter sido dada por provada - foi intenção do A. passar a casa para nome da sua mãe uma vez que esta é que estaria a pagar as dívidas do A. e as despesas da casa, e que assim no futuro a mesma ficaria dentro da família.

            27ª - Por fim, foi dado por não provado na alínea ee) que a R. tenha pago qualquer dívida do A., quando na realidade tanto nos depoimentos de parte como nas declarações de testemunhas, ficou provado que a R. pagou diversas dívidas do A., mas também tais pagamentos foram mencionados e esclarecidos pela testemunha CC, que apesar de não ter acompanhado a R. e o A. a fazer pagamentos, sempre ouviu a R. a falar em pagar as dívidas do A., conversas tidas em frente do A. que nunca reagiu ou contradisse a R., pelo que deveria tal facto ter sido considerado por provado, e assim que a R. tenha pago as dívidas ao A..

            28ª - Andou mal o Tribunal a quo na apreciação da prova, mas também na tomada de depoimentos das partes, pois, não foi permitida a R. em momento algum poder se explicar às perguntas feitas, devendo e podendo apenas responder com “sim ou não”.

            29ª - Tal situação, foi recorrente ao longo de todo o depoimento de parte da R. que não pode livremente expressar-se ficando apenas pelo sim ou não, pelo que o depoimento da R. foi ambíguo, e limitado nas respostas, o que não traduziu com perfeita exatidão o pensamento e declarações da R..

            30ª - Pelo que se impõe, nos termos do disposto no art.º 662º, n.º 1 e 2 al. a), a repetição da produção de prova, nomeadamente o depoimento de parte da R., porquanto existem sérias dúvidas sobre o sentido do seu depoimento, uma vez que a mesma apenas pode responder com sim/não às perguntas da Mm.ª Juiz a quo, não podendo por isso explicar-se convenientemente ao Tribunal, ao contrário daquilo que sucedeu com o A.

            31ª - Face ao que, ficou provado que a verdadeira pretensão do A. era fazer uma doação do imóvel à Ré e esta quis aceitar tal doação, não sendo pois pretensão do A. fazer qualquer compra e venda do prédio a R., nem esta teve intenção de o comprar, pois aquilo que efectivamente se pretendia era passar a casa para o nome da R., face aos pagamentos que esta tinha vindo a fazer ao A. e gasto na casa, mas também porque nada fazia prever o fim da relação amorosa.

            32ª - O A. bem sabia que o negócio de compra e venda melhor protegeria o imóvel e a Ré relativamente aos seus credores, em detrimento de uma escritura de doação que poderia facilmente ser anulada, pelo que quiseram sob um negócio simulado de compra e venda celebrar um negócio dissimulado de doação.

           33ª - O A. bem sabe que por detrás do negócio de compra e venda simulado esteve um outro que foi, de facto, o de doação do referido bem imóvel por parte do A. à Ré e por esta aceite.

           34ª - A forma legalmente exigida para a operada doação de imóvel mostra-se cumprida, nos termos do disposto no art.º 947º, n.º 1 do Código Civil (CC), conquanto o negócio simulado foi celebrado mediante Escritura Pública, estando assim preenchidos os requisitos legais para se considerar como válido o negócio dissimulado de doação, nos termos do disposto no art.º 241º do CC, pelo que havendo simulação relativa, os efeitos da nulidade do negócio simulado, nos termos do art.º 240º, n.º 2 do CC podem ser afastados por força da validade do negócio dissimulado, se este for formalmente válido, o que se verifica.

            35ª - Não pode por isso o A. por via da declaração da nulidade do negócio de compra e venda simulado, obter a restituição do prédio, assim como o cancelamento de qualquer registo promovido na sequência do negócio, pois, sob a aparência do negócio simulado, existe um outro negócio válido, o da doação, pelo que o bem em causa foi validamente transmitido para a R., e por este motivo, sob a veste do negócio de compra e venda, celebrado mediante escritura pública em cartório notarial, simulado, existiu validamente um negócio de doação dissimulado, pelo que haverá que declarar válida esta doação.

            36ª - Mas, e caso assim se não entenda, sempre se dirá que, no entendimento que a outorga da escritura de compra e venda aludida referida no art.º 1º dos factos tido como provados, teve como finalidade, pretendida pelo A., salvaguardar o prédio dos credores, para que estes não encontrassem qualquer bem imóvel registado e inscrito em nome do A., e que por isso, fica apenas provada a simulação absoluta, uma vez que sob a aparência de uma compra e venda, não ficou demonstrado que o autor e a ré tenham pretendido a celebração de qualquer negócio,

           37ª - Então, desconsiderou o Tribunal a quo na sentença recorrida que o A. agiu em claro abuso de direito (nos termos do disposto no art.º 334 do CC), o qual corresponde a uma exceção perentória, porquanto impeditiva do direito do A. a que o prédio regresse à sua esfera jurídica, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto o A., vendeu à R. o prédio de modo a impedir que os credores vissem ressarcidos os seus créditos através do prédio.

            38ª - Grosso modo, o A. usou a escritura de compra e venda de modo a lograr não pagar aos credores e salvaguardar o seu imóvel, termos em que existindo o direito por parte do A., face à existência de uma situação de simulação absoluta, a que o imóvel regresse à sua esfera jurídica, este direito não pode por ele ser exercido nos moldes em que o faz nos presentes autos, de uma forma não admitida pela boa fé que deve reger a conduta das partes na celebração e cumprimento dos contratos, ficando esse direito “paralisado”, pois, caso contrário, estaria a permitir-se o exercício inadmissível de uma posição jurídica.

            39ª - Não há dúvida de que a conduta atual do A., com a qual, está a dizer que é proprietário do imóvel é contraditória com o facto de, antes disso, ter declarado, em escritura pública, vender esse mesmo prédio à R., ou seja primeiro, faz uma declaração negocial externa (o contrato simulado) da qual resulta que o prédio não é seu, mas da R., mais tarde, usa uma declaração negocial interna (o pacto simulatório) para dizer que o prédio é seu!

            40ª - Podemos pois concluir que a conduta do A. foi a de que celebrou uma escritura para fugir dos seus credores, com a intenção de posteriormente vir a invocar a nulidade do contrato, por simulação para com isso ficar na posse do bem, pelo que, s. m. o., deveria ter o Tribunal a quo contextualizado a intenção original do autor ao celebrar o contrato de compra e venda, pois a sentença menciona que o propósito subjacente à venda era a proteção do património contra uma eventual execução de dívidas, o que, à primeira vista, pode indicar uma tentativa de fraude de credores. No entanto, a análise não pode ser superficial, pois o que está em causa é a instrumentalização do direito para obter um fim contrário à lei.

           41ª - Sendo o A. o criador da situação que pretende agora reverter, a lei é clara ao estipular que o abuso de direito impede a inversão de atos com base em questões contraditórias: quem gera um determinado efeito patrimonial ou jurídico e, posteriormente, dele se aproveita para o anular ou invalidar, atua contra os princípios de confiança e de boa fé que devem presidir à celebração de negócios jurídicos, pelo que deveria o Tribunal a quo considerar e condenar o autor, ao alegar que a venda foi realizada para defraudar credores, que o mesmo incorria numa situação de "venire contra factum proprium".

           42ª - O comportamento contraditório do A. ao solicitar a nulidade da escritura de compra e venda por simulação absoluta, sob a alegação de que a venda foi celebrada para evitar o pagamento aos credores, constitui abuso de direito, na sobredita modalidade, mas note-se ainda que o A. não formulou qualquer pedido subsidiário na ação, facto que revela uma tentativa de beneficiar-se da própria má fé, optou por não apresentar qualquer pedido alternativo ou subsidiário, limitando-se a exigir exclusivamente a declaração de nulidade absoluta do contrato de compra e venda.

            43ª - Esta omissão processual reflete a sua intenção inequívoca de agir de forma contraditória, sem dar espaço ao tribunal para considerar outras soluções que poderiam mitigar o prejuízo da R. e respeitar o princípio da justiça substancial, pois, ainda que o tribunal, em obediência ao disposto no art.º 609º do CPC, não possa ir além do pedido, deveria contudo ter atendido à violação grosseira de tal princípio, pois, entende-se que a ausência de qualquer pedido alternativo ou subsidiário é indicativo de que o A. apenas pretende aproveitar-se de um suposto vício para obter a anulação completa do negócio, em seu exclusivo benefício e em detrimento da R.

            44ª - Deveria o tribunal a quo ter concluído que o A. agiu com manifesta violação dos princípios da boa fé e dos bons costumes: celebrou uma escritura de compra e venda para afastar os credores do imóvel que dessa forma ficaram impedidos de satisfazer os seus créditos, servindo-se da ação como expediente para obter benefícios, a que legalmente não tinha direito, procedendo assim a alegação de abuso de direito, por autor exceder manifestamente os limites da boa fé, o que torna ilegítima a sua pretensão.

            45ª - Não deve a ação obter procedência e deve ser ordenada a renovação da produção de prova, nomeadamente do depoimento da A., nos termos supra expostos, conforme disposto no art.º 662 do CPC, e caso assim se não entender, então deverá a sentença ser considerada nula nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, al. c) do CPC, por existir oposição entre a fundamentação apresentada e a decisão.

            O A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação e valoração da prova); b) decisão de mérito (cuja modificação depende da eventual procedência daquela impugnação).


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) Por escritura pública outorgada no dia 02.5.2013, no Cartório Notarial ..., o autor declarou vender à ré, que declarou comprar, pelo preço de € 102 790, o prédio urbano sito na ..., n.º 30, EE, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º ...95 e descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de ... sob o n.º ...57.

            2) O prédio referido em 1) encontra-se descrito a favor da ré, pela ap. ...33 de 02.5.2013.

            3) O autor nasceu no dia ../../1952 e a ré em ../../1949.

           4) O autor foi casado com FF, tendo este casamento sido dissolvido por óbito desta em 23.10.2007.

           5) A ré foi casada com GG, tendo este casamento sido dissolvido por óbito deste em 26.8.1971.

           6) Em dezembro de 2010, algum tempo depois de se terem conhecido, o autor e a ré decidiram viver em conjunto, o que fizeram indo para uma casa, propriedade do irmão do autor, HH, sita na freguesia ..., concelho ..., onde permaneceram até maio de 2012.

            7) Em 01.6.2011, o autor, pela via da divisão de coisa comum com II, adquiriu uma parcela de terreno para construção.

            8) Na parcela referida em 7) foi edificada a casa de habitação sita na Rua ..., ..., ..., composta de rés do chão para habitação e dependência, com superfície coberta de 200 m2 e logradouro com a área de 402 m2, inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo n.º ...95 e descrita na CRP sob o n.º ...57, a favor da ré pela ap. ...33 de 02.5.2013 e anteriormente a favor do autor pela ap. ...65 de 01.6.2011.

           9) O autor e a ré no ano de 2012 foram residir para a casa referida em 8), tendo a ré alterado a morada fiscal a sua residência no cartão de cidadão.

           10) O autor era comerciante e fazia revenda de produtos de padaria e pastelaria em ..., onde possuía o seu próprio negócio e do qual se sustentava.

           11) Em face da situação económico-financeira do autor e das insistências de credores sabedores da morada referida em 8), a ré sugeriu àquele que colocasse o prédio referido em 8) em seu nome para que deixasse de ter problemas com os credores, protegendo-o de qualquer penhora, visto que a ré não tinha dívidas.

           12) Em consequência do facto referido em 11), o autor e a ré decidiram outorgar a escritura referida em 1).

           13) Apesar do declarado na escritura referida em 1), a ré não pagou ao autor qualquer quantia, nem antes nem depois, nem o autor recebeu qualquer quantia da ré.

            14) No acto referido em 1), a ré não quis comprar, nem o autor quis vender o prédio descrito em 8), visando tão somente salvaguardá-lo dos credores, para que estes não encontrassem qualquer bem imóvel registado e inscrito em nome do autor.

            15) Após a data referida em 12), o autor continuou a habitar no prédio mencionado em 8), diária e continuamente, aí confecionando as refeições, comendo e dormindo e recebendo familiares e amigos, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente da ré.

            16) Nunca, em qualquer situação de convívio com familiares e amigos, a ré invocou ou alegou contra o autor que o prédio lhe pertencia ou que era dona até ao momento em que mudou radicalmente o seu comportamento para com o autor, e começou a ofender e a insultar o mesmo, sem qualquer motivo ou razão, bem como aos familiares deste.

           17) Em 31.12.2012, o autor tinha despesas mensais com o contrato de crédito ao consumo com o n.º ...53, junto do banco Banco 1..., no valor de € 356,36, e que naquela data apresentava um saldo devedor de € 27 174,19.

           18) Em 31.12.2012, o autor tinha despesas mensais com o contrato de crédito ao consumo com o n.º ...42, junto do banco, no valor de € 249,94, e que naquela data apresentava um saldo devedor de € 6 121,27.

            19) Em 18.10.2013 o autor foi notificado pelo banco Banco 1... para regularizar um incumprimento referente ao contrato de crédito n.º ...96, no valor de € 352,06.

            20) O autor aufere uma pensão de viuvez que, em novembro de 2023, se cifrava em € 261,67, bem como uma pensão de velhice que, na mesma data, tinha o valor de € 348,90.

            21) Em maio de 2023, a ré auferiu a título de pensões os valores de € 65,05, € 34,42, € 258,24 e € 3 769,87.

           22) Em fevereiro de 2022, a ré auferiu a título de pensões os valores de € 238,70 e de € 3 533,57.

           23) A relação mais próxima de filhos ou enteados que o autor tinha, era com o filho da ré e esposa deste, que era afilhada de batismo e de casamento da sua falecida esposa e que após a morte desta continuou a conviver e tratar como se de filhos e netos fossem.

           24) O convívio referido em 23) intensificou-se com a relação amorosa que veio a ter com a ré, sogra da sua “enteada” e avô dos netos, considerando-se o autor também seu avô, porque quem sempre nutriu amor e carinho.

            25) Desde a data referida em 6), o autor e a ré passavam parte do verão com o filho, nora e netos da ré, que os vinham visitar a Portugal, assim como nas épocas festivas, bem como iam a França passar algumas temporadas com estes.

            26) O autor mudou as fechaduras da casa mencionada em 8), em abril de 2023 e recusou entregar uma cópia das mesmas à ré, tendo a ré mandado cortar a água da mesma casa.

            2. E deu como não provado:

            a) O valor do crédito referido em 19) era de € 30 000.

            b) A única fonte de rendimentos do autor são as pensões sociais referidas em 20).

            c) Em maio de 2023, o autor mudou as chaves da casa referida em 8) e recusou-se a dar uma cópia à ré, tendo também recusado a sua entrada na mesma.

           d) A ré deixou de habitar a casa referida em 8), em julho de 2022.

           e) Os custos da construção referida em 8) foram suportados pelo autor e pela ré.

           f) Os custos referentes à divisão de coisa comum mencionados em 7) ascenderam a € 890 e foram suportados pela ré.

            g) A construção da casa referida em 8) demorou cinco meses.

           h) A Ré despendeu na construção da casa referida em 8) a quantia global de € 74 400, designadamente através dos seguintes pegamentos: - 02/9/2011 – mediante cheque n.º ...26 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 10 000€; - 20/09/2011 – mediante cheque n.º ...29 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 15 000€; - 20/10/2011 – mediante cheque n.º ...37 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 5 000€; - 20/10/2011 – mediante cheque n.º ...38 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 5 000€; - 20/10/2011 – mediante cheque n.º ...39 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 2 500€; - 12/01/2012 – mediante cheque n.º ...58 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 10 000€; - 12/01/2012 – mediante cheque n.º ...59 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 2 500€; - 09/3/2012 - mediante cheque n.º ...71 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 11 000€; - 02/4/2012 - mediante cheque n.º ...76 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 7 500€; - 10/9/2012 - mediante cheque n.º ...05 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 400€; - 22/9/2012 - mediante cheque n.º ...06 da conta da R. no Banco 1..., no montante de 5 500€.  

            i) O autor e a ré iniciaram a sua vida em comum em outubro de 2010, tendo sido sempre a ré a sustentar o autor, a pagar as suas dívidas e as despesas da casa como alimentação, a água, a luz, o telefone, os seguros, o IMI, os telemóveis, as despesas de saúde e medicamentosas, e o vestuário do autor.

            j) Os pagamentos referentes à casa efetuados pela ré, eram feitos com valores entregues pelo autor para que a ré os depositasse nas suas contas bancárias.

            l) O autor entregou à ré o valor da venda e o montante de € 27 500 em 20.11.2010, proveniente da quantia entregue a título de sinal referente à venda de um prédio sito em Ponte ... que, em 06.11.1996, havia colocado em nome de JJ.

           m) A ré recebe uma pensão vitalícia trimestral no valor de € 3 769,87.

           n) A ré recebe o valor de € 428 mensais desde 1997, pelos descontos por ter trabalhado em França, recebendo ainda, em Portugal, uma reforma de € 258 e ainda uma segunda reforma da segurança social de França, no valor de € 100.

           o) Todos os eletrodomésticos e equipamentos eletrónicos da casa referida em 8) foram escolhidos e comprados pela ré, bem como cortinados e mobílias.

           p) O autor sempre disse à ré que lhe faria doação da casa referida em 8), sendo essa a sua vontade, em consequência do facto referido na alínea i).

            q) A escritura referida em 1) foi decidida pelo autor, também em consequência dos factos referidos de 24) a 26).

            r) O autor optou por realizar uma escritura de compra e venda e não de doação porque esta facilmente poderia ser anulada.

            s) A construção da casa referida em 8) foi custeada pelo autor com os proventos que havia recebido com a venda de um prédio que fazia parte do património do seu dissolvido casamento por óbito da sua mulher.

           t) Os credores do autor eram os fornecedores, a Segurança Social e a Autoridade Tributária, dívidas que foi pagando com primazia às do Estado.

            u) A sugestão da outorga da escritura referida em 1) foi da ré, não sendo inicialmente aceite pelo autor.

            v) O autor outorgou a escritura referida em 1) em consequência do aparecimento de mais credores e perante insistência da ré e de seus familiares que convenceram o autor.

            x) Era intenção do autor que o imóvel, após a prescrição das dívidas, voltasse para o seu nome.

            z) As discussões entre o autor e a ré agravaram-se desde que lhe comunicou que queria a casa em seu nome.

            aa) A ré, em setembro de 2022 saiu de casa após uma discussão com o autor.

            bb) A ré começou a forçar a saída do autor da casa mencionada em 8) através de visitas constantes que fazia ao mesmo, dizendo-lhe que a casa não era dele, mas sim dela e que tinha de ir embora, pois que quer vender a casa ou que vai lá meter gente para o pôr na rua.

            cc) Em 06.02.2023, a ré após ter logrado obter uma cópia da escritura, foi à casa referida em 8) e disse que lhe dava 75 000 € pela casa e 15 000 € pelo terreno onde esta está implantada, o que o autor recusou.

            dd) Para além dos valores referidos em 20), o autor continuou a trabalhar e a ganhar dinheiro.

            ee) A ré nunca pagou qualquer dívida do autor.

            ff) O autor e a ré sempre dividiram as despesas de casa, quanto à alimentação.

            gg) Todos os meses a ré cobrava do autor as faturas da água e eletricidade que mensalmente eram debitadas na conta desta.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

a) A Ré/recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar diferente desfecho dos autos.

           Importa averiguar se outra poderá/deverá ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade aludida em II. 1. 11), 12), 14), 15) e 16) e II. 2. alíneas b), e), i), o), p), q), t), dd), ee), ff) e gg), supra - pugnando a Ré para que seja dada resposta de sentido contrário [ou diversa] -, máxime, se aqueles factos dados como provados devem ser considerados não provados e se o que foi tido como não provado deve ser agora considerado provado [ou, sobretudo quanto às alíneas ff) e gg), se fica “prejudicado” o que aí consta], tendo em atenção, principalmente, a prova pessoal (depoimentos de parte do A. e da Ré e das testemunhas) produzida em audiência de julgamento, verificando, assim, se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada e lhes foi atribuída a correspondente força probatória.

            b) Da fundamentação de facto apresentada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo importa destacar os seguintes excertos (atento o objeto do recurso):

           «Os factos acima descritos resultam da análise crítica e conjugada dos seguintes meios de prova:

                A) Depoimento de parte da ré e do autor, como infra melhor se explicitará, por referência à assentada que melhor consta da ata de audiência de julgamento de 05.7.2024[2];

                B) Depoimentos das testemunhas:

                - CC, amiga da autora há cerca de 30 anos, tendo conhecido o autor desde o início da relação com a ré, convivente com o casal enquanto tal relação perdurou;

               - DD, filho da ré, emigrante em França, com quem reside durante os períodos de férias em Portugal.

               C) Teor dos seguintes documentos: (...) - Escritura pública outorgada no dia 02.5.2013 (...); - Extratos bancários da conta titulada pelo autor, no banco Banco 1... referentes a agosto e dezembro de 2012 (...);       (...) - Extratos bancários referentes a contas tituladas pela ré que constituem os documentos 8 a 12 da contestação;  - Recibos, faturas e liquidações de IMI, que constituem os documentos 17 a 26 da contestação; - Documento particular autenticado que constitui o documento 1 junto com a réplica; (...); - Informação da Segurança Social junta em 04.01.2024, referente às pensões auferidas pelo autor.

                (...) Os demais factos provados, na sua grande maioria, como resulta da assentada exarada na ata de 05.7.2024 resulta do teor confessório dos depoimentos de parte prestados pela ré e pelo autor. Assim: / (... ) - Os factos 11 e 12 da confissão da ré dos factos 15º a 17º da p. i.; (...) - O facto 14 da confissão da ré dos factos 22º a 24º da p. i.; - O facto 15 da confissão da ré dos factos 25º a 27º da p. i.;  - O facto 16 da confissão da ré do facto 28º da p. i.; // (...) Quanto à restante factualidade não provada a que ainda não fizemos referência, começaremos por dizer que não foi produzida qualquer prova que diretamente ou conjugada com outra nos permitisse a formulação de qualquer juízo sobre os factos descritos em d), f), g), o), p), q), r), t) a cc) e ee). / Os demais factos não provados estão, sobretudo, relacionados com os encargos referentes à construção da casa e aos encargos com as despesas correntes, sendo que os primeiros, na tese da ré foram, em parte por si suportados, e os segundos eram por si inteiramente suportados. / Ora, como se constata da factualidade descrita nas alíneas e), h), s) e l) não demos por provado que tal construção tivesse sido custeada por ambas, ou apenas opor qualquer delas. Na verdade, o documento junto pela ré sob o n.º 7 da contestação, nada nos diz, constituindo um mero apontamento manuscrito, cuja autoria se desconhece, não sendo sustentado por prova segura, como poderiam ser, por exemplo, recibos de materiais de construção localizados no tempo e no espaço. Da mesma forma, o mero desconto de cheques que surgem nos extratos bancários das contas tituladas pela ré, só por si, não nos esclarecem quanto a esta matéria, uma vez que não resulta dos mesmos qual o destino que lhes foi dado. / No que respeita ao autor, pretende o mesmo provar a sua alegação com um contrato de compra e venda junto com a réplica, cujo produto terá sido direcionado para suportar financeiramente a referida construção. / Apesar de alegar que colocou o imóvel em questão em nome de um sobrinho, justificando, por isso que não figure no contrato como vendedor, este documento, sem qualquer outra prova segura com que se pudesse conjugar, não é para nós suficiente para lhe atribuirmos a credibilidade necessária à versão do autor. Acresce, aliás, que o pretenso recebimento do sinal e entrega à ré referente à promessa de venda do mesmo imóvel e que o autor pretende justificar com o documento 4 da réplica não é coincidente com o posterior adquirente que figura no documento 1 da réplica, o que tudo conjugado nada esclarece e, pelo contrário, mais dúvidas suscita. / Quanto aos encargos com as despesas correntes descritos nas alíneas i), j), ff) e gg), diremos, em primeiro lugar, que o facto de as liquidações de IMI e as faturas dos serviços municipalizados e água e saneamento virem em nome da ré, também só por si, não sustentam que era esta a proceder ao seu pagamento com rendimentos que eram apenas seus, pois figurando a ré como proprietária do imóvel é em nome da mesma que são feitas as liquidações de IMI e estando os contratos referentes ao fornecimento de água também em seu nome, as respetivas faturas são emitidas em conformidade. / É certo que dos extratos bancários juntos, pelo menos no período temporal a que respeitam, verificam-se débitos de EDP/água/gás. Porém, tendo em consideração que a ré também é proprietária de outro imóvel, como se observa das liquidações de IMI, e confirmado pela testemunha DD, também não podemos estabelecer com a necessária certeza, o seu nexo causal com a casa de morada de família que foi a do autor e da ré, enquanto viveram em união de facto. / Por último, cumpre dizer que as testemunhas ouvidas, não pondo em causa a sua isenção, não tinham conhecimento direto dos factos, pois CC apenas sabia o que lhe foi transmitido pela ré e DD, aludindo é certo a uma vida, de alguma forma, desafogada da sua mãe, também não nos esclareceu, em concreto, se a sua mãe regularmente pagava as despesas correntes, se pagou dívidas e que dívidas do autor ou se a mesma, de alguma forma, suportou as despesas de construção da casa.»

            c) Esta perspetiva da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo afigura-se correta.

            Vejamos alguns excertos da prova pessoal.

            - Depoimento de parte da Ré (fls. 118 verso):

           O A. era comerciante/industrial de panificação e pastelaria, em ..., onde possuía o seu próprio negócio e do qual se sustentava. No exercício dessa atividade contraiu dívidas a fornecedores, à segurança social e às finanças. “(...) se calhar, não está tudo descoberto ainda. Há o Tribunal ... que deve ter uma continha para ele (A.) ...” Devido à ação dos credores e à situação económica e financeira em que o A. se encontrava, A. e Ré decidiram colocar a casa do A. “em nome da Ré” - “ele chegou às Finanças e disse que queria passar a casa para o meu nome, porque eu andava a pagar-lhe as dívidas, (...) para fugirem aos bancos (credores). Para ele não pagar, paguei eu. Para que a coisa corresse bem, porque eu tive a polícia à porta. (...) ele foi ameaçado pelo Banco 1..., que devia uma dívida ao Banco 1..., e o Banco perguntou-lhe se ele não tinha uma casa. (...) continuei a pagar as dívidas. Ele ficou em dia. (...) (o prédio) está no meu nome. (...) e eu também devia ter uma escritura legal e ele roubou-me. (...) Por isso (isto é, pelo prédio objeto do negócio em causa) não paguei nada. Era por causa do meu nome e pelas dívidas que eu estava a pagar por ele. Foi assim o entendimento dele (A.). E foi o conselho que o irmão mais novo lhe deu. (...) vivemos lá duas vezes por semana, nunca lá passámos o fim de semana, era sempre na minha casa aqui mais em cima. (...) Se formos pela lei, o prédio está no meu nome. Mas eu nunca disse, eu nunca disse que o prédio que era meu, eu nunca disse. (...) só digo que continuo a pagar o IMI todos os anos, desde depois que eu saí continuo a pagar o IMI todos os anos, e não estou lá. E paguei um ano de luz e de água ao fim de ele me lá pôr para fora. (...) enfiei lá o meu dinheiro todo (...), foi do recheio da casa, às baixadas, que eu paguei quase € 4 000, à licença da obra, à licença de habitação (...). O AA (A.) não tinha nem um cêntimo, (...) porque o dinheiro ficou nas mãos do outro que vendeu a casa. (...)  No momento que eu estava-lhe a pagar, que eu tinha investido na casa, que eu estava-lhe a pagar as dívidas, foi aí que o levou a pôr casa no meu nome, porque foi isso que ele respondeu a um irmão que é advogado. (...) os credores eram os bancos e ele sabia bem que eu que andava a pagar, naquela altura… (...) ele foi ameaçado pelo banco. (...) ele fez queixa ao irmão mais novo dizendo que as coisas estavam mal. O irmão mais novo aconselhou-o para pôr a casa no nome dele, não era no meu, no nome dele. E ele então recuou a palavra atrás e disse: ´No meu nome ou no nome da Estrela`. Como ele sabia que eu andava a pagar as dívidas, que eu tinha pago bastante coisa para a casa, bastante dinheiro para a casa, ele então diz isso… (...). Naquela altura, a casa estava no nome do AA (A.). Como ele entendeu que o banco vinha-lhe apanhar a casa, então o irmão mais novo...”  Ao efetuar a compra e venda, o A. quis evitar que o banco “e os outros...” (os credores) pudessem “apanhar a casa”.

            - Depoimento de parte do A. (fls. 119):

            “(...) Em 2019 já tinha a minha reforma, ... essa pensão da minha esposa da viuvez. (...) As mobílias (...) era tudo meu. (...) (a Ré) só comprou o exaustor e a máquina de lavar. E a placa. A televisão é assim, a minha avariou e ela comprou uma televisão. O resto dos móveis é tudo meu, vinha de casa. (...) eu estava sempre a dizer, quando havia a altura da fruta, quando eu deixei de fazer o movimento da pastelaria para cima e para baixo, dizia assim: ´Agora eu vou me inscrever para a fruta para ganhar mais algum dinheiro`. Dizia-me redondamente: ´Não vais fazer isso, não precisas disso`”. As despesas do casal eram suportadas “com o dinheiro dela, com o dinheiro que eu lhe dava, que ela tinha lá, meu. Era dela, era meu e dela.

            Referiu que o negócio dos autos visou “subtrair” o bem em causa da ação dos credores.

            - Testemunha CC (fls. 119 verso):

           “(...) sei que ele (A.) tinha uma fábrica de bolos, ou distribuía bolos, ou qualquer coisa, mas não sei muito profundamente porque desde que ele estava… pronto, essas coisas a gente não conversava, mas sempre que, portanto, o tempo que ele esteve com a D. Estrela ele não trabalhou. Pronto, isso eu sei de certeza absoluta. (...) Sei que está em nome da D. Estrela, o que achei normal. Achei normal. Uma vez que ela estava-lhe a pagar as dívidas e uma vez que ele não tinha herdeiros e ele próprio considerava o DD (última testemunha) como um filho, a KK, que era sobrinha dele, que eu também já sabia dessa relação mesmo antes de a D. Estrela conhecer o Sr. AA, (...) era a afilhada da esposa do Sr. AA, que era falecida. Achei muito normal, se ela (Ré) estava a pagar as dívidas, se ela é que abancava com tudo, acho que ali era… O normal… sabia que o terreno era dele, soube sempre que o terreno era dele, mas que a casa foi construída com o dinheiro da D. Estrela e pronto, e era ela que lhe pagava as dívidas, achei isso muito normal, nem questionei. (...) ouvi pelo Sr. AA (...) que a casa estava em nome dela e ele próprio disse: “A casa está em nome da D. Estrela porque ela…” Como é que eu digo? Dizer a palavra, falta-me aqui… “É uma recompensa por ela me estar a pagar as dívidas.” Portanto, aquilo foi: “Pagas-me as dívidas, eu ponho-te a casa em nome.” (...) era o mínimo que ele podia fazer, uma vez que era que lhe estava a pagar e pagou, até há bem pouco tempo, foi pagando as dívidas, inclusive, se ele está reformado devemos dar graças à D. Estrela que ela é que andou a tratar do processo todo para ele ter uma reforma e ela é que teve que pagar à Segurança Social, na altura penso que foram 5.000, não sei se foi 5, € 6 000, (...) para poder pagar, portanto, as caixas que ele tinha em atraso para poder se reformar. (...)” Tudo isso, foi-lhe transmitido pela D. Estrela, “muitas vezes, à frente do Sr. AA”.

            - Testemunha DD (fls. 120):

           “(...) uma conversa que houve a uma certa altura (...) falou-se que a casa que ia passar ao nome da D. Estrela e que pelos serviços que ela tinha rendido que aquilo que ela tinha pago e que de toda a maneira, é assim, ficava ´em família`. Sendo a minha mulher afilhada do Sr. AA, ou se queira, da falecida esposa, mas claro, a minha mulher sempre tratou o Sr. AA como padrinho, mesmo estando com a minha mãe tratou sempre o Sr. AA como padrinho. (...) Falou-se várias vezes. Olhe, pronto, não interessa, está ´em família`. Pronto, foi sempre assim que se ouviu a conversa. (...) pagou dívidas, ia pagando a casa, ia pagando o que havia para pagar sobre as obras que havia de fazer. (...) a nossa confiança com o Sr. AA já vem de muitos anos atrás, e sendo a minha esposa afilhada. Tudo isso vê-se na conversa que, pronto, olhe, ´fica em família`. Foi as únicas palavras que houve sobre esta casa do verão, pronto, é o que eu lhe posso dizer de concreto. (...) Eu nunca me meti nas contas da minha mãe...”

            d) A prova documental - que a Ré/recorrente não invoca nesta impugnação - foi adequadamente ponderada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, conforme decorre da motivação aludida em II. 3. b), supra.

           4. Como se adiantou [cf. II. 3. c), ab initio, supra], a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, afigura-se correta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal [destacando-se a confissão da própria Ré - cf. art.ºs 352º e 358º, n.º 1 do CC e 463º do CPC[3] e, nomeadamente, a assentada de fls. 119][4] e documental, podemos dizer que a decisão de facto respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que a Mm.ª Juíza observou as normas do direito probatório material e inexistem elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou - considerada a exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[5] -, porquanto não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[6]

            De resto, a Ré/recorrente não fundamenta ou explicita a razão de ser (com a necessária análise crítica) para uma diferente valoração da prova e sua repercussão no acervo fáctico a atender, e não tem o menor fundamento invocar, em sede de impugnação da decisão sobre a  matéria de facto, a pretensa violação do art.º 615º, n.º 1, c) do CPC (cf. “conclusão 1ª”, ponto I., supra), tal como nada justifica a renovação da produção de prova (art.º 662º, n.º 2, alínea a) do CPC) conforme se aventou nas “conclusões 30º e 45ª”, ponto I., supra.

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

           Improcede, assim, a pretensão da Ré de ver modificada a decisão de facto.

            5. O art.º 240º, n.º 1, do CC, define negócio simulado como aquele em que, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.

           Atenta a referida noção do negócio simulado, tem a doutrina defendido a necessidade da verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar; quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta), sendo que o ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respetivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação.

            6. A simulação é um vício da vontade que tem subjacente uma divergência intencional entre a vontade e a declaração negocial.

            Pode assumir duas modalidades diferentes, legalmente previstas: a simulação absoluta e a simulação relativa.

           Verifica-se a primeira quando os intervenientes no negócio jurídico celebrado não querem, na realidade, celebrar qualquer negócio jurídico, mas emitir a declaração negocial respetiva com o intuito de enganar terceiros - os simuladores fingem realizar um certo negócio jurídico, quando, na verdade, não querem realizar negócio jurídico algum; há apenas um negócio simulado (como diziam os antigos tratadistas, “colorem habet, substantiam vero nullam”). Trata-se de simulação relativa se os intervenientes no negócio jurídico querem, na realidade, celebrar um negócio jurídico diferente daquele que corresponde à declaração negocial emitida, tendo emitido esta declaração negocial, que diverge da sua vontade, com o intuito de prejudicar terceiros (art.ºs 240º, n.º 1 e 241°, n.º l, do CC). [7]

            O negócio jurídico absolutamente simulado é nulo (art.º 240°, n.º 2, do CC), nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado e que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art.º 286°, do CC).

           Sem prejuízo do disposto no art.º 286º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta (art.º 242º, n.º 1 do CC).

            7. Ante a factualidade descrita em II. 1. 1) e 11) a 14), supra, conclui-se que o A. e Ré realizaram uma venda fantástica (efetuada pelo A. à Ré, compradora fictícia, para prejudicar os seus credores); fingiram celebrar uma compra e venda, mas, na realidade, não quiseram nenhum negócio jurídico, mormente aquele invocado pela Ré - não demonstrado [cf. II. 2. p), q) e r), supra].

            Tratou-se, pois, de uma simulação fraudulenta e absoluta[8], com as consequências supra referidas, declaradas pelo Tribunal a quo; a declaração de nulidade tem efeito retroativo, implicando a restituição do imóvel à esfera jurídica do A. (art.º 289º, n.º 1 do CC).

            8. É assim evidente que não existe qualquer erro de julgamento (tal como não vemos demonstrados os pressupostos da agora alegada atuação abusiva por parte do A., em relação à Ré), nem se verifica a nulidade da sentença invocada de forma infundada e inconsequente na derradeira “conclusão” da alegação de recurso (art.º 615º, do CPC)[9].

           9. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


*

           III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela Ré/apelante.


*

25.3.2025



[1] Entretanto, foi interposto recurso do despacho que indeferiu alguns dos meios de prova indicados pelo A./reconvindo, confirmado por acórdão desta Relação de 23.4.2024 (apenso A).
[2] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[3] Cf. acórdão do STJ de 13.4.2021-processo 2029/18.3T8LRA.C1.S1 [com o sumário: «I. Para que seja atribuída força probatória plena à confissão judicial obtida através de depoimento de parte é necessário que a declaração confessória seja reduzida a escrito, ficando registada na ata da audiência judicial, nos termos do art.º 463º do CPC. II. Esta exigência considera-se satisfeita se, na ocasião em que foi prestado o depoimento de parte, o juiz deixou consignado na ata o teor da declaração com valor confessório, sem que algum dos presentes, incluindo o mandatário judicial da parte, tenha suscitado qualquer objeção quanto ao conteúdo do que ficou registado. (...)], publicado no “site” da dgsi.
[4] A respeito dos meios de prova admissíveis, vide, por exemplo, C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição (2ª reimpressão), Coimbra Editora, págs. 476 e 485.
[5] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 277.
[6] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e A. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[7] Sobre este ponto e o anterior, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 07.5.1980-processo 067634, 13.01.1989-processo 076575, 20.5.1993-processo 083533, 23.9.1999-processo 99B538, 09.5.2002-processo 02B511, 18.12.2003-processo 03B3794, 14.02.2008-processo 08B180 e 22.02.2011-processo 1819/06.4TBMGR.C1.S1 e da RP de 13.5.2013-processo 804/10.6TBCHV.P1, publicados no “site” da dgsi.

   Vide ainda, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1974, págs. 169 e seguintes e 212; C. A. da Mota Pinto, ob. cit., págs. 466 e seguintes e Luís Carvalho Fernandes, Simulação e Tutela de Terceiros, Lisboa, 1988, pág. 24.
[8] Vide, designadamente, C. A. da Mota Pinto, ob. cit., pág. 467.

[9] Como bem se concluiu no despacho sobre o requerimento de interposição do recurso, “a decisão final está em perfeita consonância e é a consequência lógica da fundamentação fáctica e jurídica expendida”.