Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5075/23.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ATIVIDADE DE DISPONIBILIZAÇÃO DE SERVIÇOS À DISTÂNCIA
PLATAFORMA DIGITAL
ESTAFETA
CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11.º, 12.º, 12.º-A, N.ºS 1, 2 E 4, 97.º E 116.º DO CÓDIGO DO TRABALHO E 1154.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Por força da Lei n.º 13/2023, de 03/04, foi aditado ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A que estabelece a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das características aí enunciadas.

II – A Ré é uma plataforma digital de organização de trabalho e não de intermediação tecnológica de vários utilizadores, posto que, “é uma pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolve, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios” (nº 2 do artigo 12º-A do CT).

III – A presunção prevista no n.º 1 do mesmo normativo pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

IV – Tendo em conta que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital e que o estafeta está integrado na organização de trabalho da Ré, sujeito às regras por esta definidas, ao poder de direção e disciplinar da mesma, existe a subordinação jurídica característica essencial de uma relação laboral.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam[1] na Secção Social (6.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

O Ministério Público

intentou a presente ação de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, relativamente ao prestador AA contra

A... Portugal, Unipessoal, Ldª, com sede em Lisboa 

alegando, em síntese, que:

A Ré recorre a estafetas para o exercício da sua atividade de disponibilização de serviços à distância através de plataforma digital APP A..., aplicação online para pedidos e entregas de alimentos, estafetas que apenas conseguem prestar aqueles serviços inseridos na organização de trabalho da plataforma; o vínculo existente entre AA e a Ré constitui um verdadeiro contrato de trabalho, conforme disposto no artigo 12.º-A, nº 1, a), b) e c), do CT. 

Termina formulando o seguinte pedido:

Nestes termos, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, consequentemente:

- ser reconhecida a existência de um contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, entre a Ré e AA, com início em 03.10.2023.”
*

A Ré contestou alegando, em sinopse, que:

Existe manifesta insuficiência de causa de pedir por falta de concretização de factos no auto e na petição inicial, o que conduz à improcedência da ação; a petição inicial é inepta por manifesta ausência de factos suscetíveis de integrar a causa de pedir, o que determina a absolvição da instância; deve ser suspensa a instância até ao trânsito em julgado do processo que corre termos no TA de Círculo de Lisboa, decisão a proferir que tem carácter de prejudicialidade face aos presentes autos; a Ré explora uma plataforma digital de intermediação tecnológica, não explora uma plataforma de organização de trabalho; o critério da fixação da retribuição não é aplicável ao caso, sendo a retribuição integralmente variável; o estafeta não presta serviços apenas à Ré nem depende dos rendimentos auferidos pelos serviços prestados através da plataforma, pelo que, não foram definidos limites mínimos e máximos; inexiste poder de direção e determinação de regras específicas quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador ou à prestação da atividade; não há controlo através de geolocalização, esta só deve estar ativa quando o pedido é efetuado e sugerido ao prestador; o prestador é livre de aceitar ou recusar os pedidos, não se verificando restrição da autonomia do prestador quanto à organização do trabalho, à possibilidade de aceitação ou de recusa, utilização de subcontratos, aplicação de sanções, escolha de clientes ou prestação da atividade a terceiros; os principais instrumentos de trabalho são todos propriedade do prestador da atividade; o estafeta tem liberdade de atuação e de concorrência; não se verifica nenhum dos indícios invocados na p. i. e a relação entre a Ré e o prestador de atividade não é de natureza laboral.

Termina dizendo que:

Nestes termos e nos demais de Direito:

Requer-se a apensação das ações judiciais acima referidas nos termos requeridos.

Devem as exceções dilatórias invocadas ser procedentes e, em consequência, ser a absolvida da instância.

Caso assim não se entenda,

Deve a instância ser suspensa até ao trânsito em julgado do processo n.º 4198/23...., que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;

E, cessada a suspensão,

Deve a presente ação ser declarada improcedente por não provada, com a consequente absolvição da Ré.

Caso assim não se entenda,

Deve a ser absolvida da instância.

Deve ainda ser ordenada a apensação a estes Autos as ações identificadas”.
*

Foi proferido despacho saneador e julgadas improcedentes as exceções invocadas pela Ré.

                                                             *

Procedeu-se a julgamento conforme consta da respetiva ata.
*

De seguida foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Por tudo o exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência condena-se a ré A... Portugal Unipessoal, L.da. a reconhecer que AA celebrou com a mesma um contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, desde 3 de outubro de 2023.”
*

A , notificada desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

(…).
*

O Ministério Público apresentou resposta concluindo que:

(…).
*

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*

II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. na redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Questão prévia:

Admissibilidade da junção de documentos.

A Ré veio juntar com as alegações de recurso dez documentos, sendo nove sentenças proferidas por tribunais de 1ª instância e um requerimento da Exm.ª Provedora de Justiça dirigido ao Tribunal Constitucional.

Conforme resulta do disposto no n.º 1 do art.º 63.º do CPT, “com os articulados, devem as partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requer quaisquer outras provas.”

Por outro lado, “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento” – artigo 425.º do CPC.

E, por força do disposto no n.º 1 do artigo 651.º do CPC, “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”, sendo que, podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para elaboração do projeto de acórdão – n.º 2 do mesmo normativo.

Assim sendo, facilmente se conclui que em sede de recurso as partes apenas podem juntar documentos nas situações suprarreferidas, alegando e provando a impossibilidade de junção em data anterior ou que a junção se tornou necessária em virtude do julgamento em 1ª instância.

Acontece que a recorrente, como já referimos, juntou os citados dez documentos sem apresentar qualquer justificação para o ter feito só em sede de recurso.

Por outro lado, as referidas sentenças de 1ª instância não podem ser consideradas documentos que, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 423.º do CPC, se destinam a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa, nem pareceres de jurisconsultos, razão pela qual, considerando as mesmas como um complemento das alegações, admite-se a sua junção aos autos.

Quando ao referido requerimento da Exm.ª Provedora de Justiça, uma vez que a Ré nem sequer alegou a razão da sua junção apenas em sede de recurso, por inadmissibilidade legal, o mesmo deve ser desentranhado dos autos e restituído ao apresentante, condenando-se a recorrente na multa de 0,5 UC (artigos 443.º, n.º 1, do CPC e 27.º, n.º 1 do RCP).

Assim, cumpre apreciar as questões suscitadas pela Ré recorrente, quais sejam:
1ª – Nulidade da sentença.
2ª – Impugnação da matéria de facto.
3ª – Se entre o prestador de atividade e a Ré não existe uma relação de trabalho subordinado com início em 03/10/2023.
4ª – Se a norma constante do artigo 12.º-A do CT é inconstitucional.
*
*
III – Fundamentação
a) Factos provados e não provados constantes da sentença recorrida:
1- A ré A... Portugal Unipessoal, Lda, pessoa coletiva n º ...28, com sede na Rua ..., ..., ... em Lisboa, é representada legalmente por BB, com domicílio em Calle ..., ..., ..., Espanha e CC, com domicilio em Calle ..., ..., Espanha, como resulta da certidão permanente de fls. 135 a 137 dos autos, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido (artigo 1º da petição inicial).
2- A ré é uma sociedade unipessoal por quotas que tem por objeto social o “Desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de  refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das atividades constantes do seu objeto social. Realização de atividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objeto social. Qualquer outra atividade que esteja direta ou indiretamente relacionada com as atividades acima identificadas.”, como resulta do documento de fls. 135 a 137 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (artigo 2º da petição inicial e artigo 118º da contestação).
3- A ré disponibiliza serviços à distância através de plataforma digital, nomeadamente através da sua aplicação informática (APP) “A... Couriers”, que é uma aplicação online para pedidos e entregas de bens alimentares e não alimentares, por todo o país, a pedido de utilizadores/consumidores, os quais constituem os seus clientes finais, detendo, por sua vez, os estabelecimentos comerciais aderentes a qualidade de parceiros da referida plataforma (artigos 3º e 4º ambos da petição inicial e parte dos artigos 119º, 126º e 128º todos da contestação).
4- Sendo que, os clientes finais/consumidores e os estabelecimentos aderentes/parceiros entram em contacto com a plataforma A..., através do sítio Web ou da aplicação, e é esta que contacta com o mercado e disponibiliza toda a rede de suporte para o desenvolvimento da atividade de entregas de alimentos, por todo o país (artigo 5º da contestação).
5- Para o exercício da sua atividade, a Ré recorre a “estafetas”, ou seja, a pessoas que recolhem os produtos alimentares, ou outros, nos estabelecimentos comerciais, parceiros daquela plataforma digital e transportam e entregam os mesmos aos sobreditos utilizadores/consumidores, não tendo a Ré, trabalhadores dessa categoria inscritos no seu quadro de pessoal (artigo 6º da petição inicial).
6- Estafetas estes que não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma e que apenas conseguem prestar aqueles serviços inseridos na organização de trabalho da plataforma, a qual além de ter a APP, tem o Support, o departamento financeiro que processa as faturas e os pagamentos, o departamento de recursos humanos que procede ao recrutamento/criação de contas de estafetas (artigo 7º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
7- A aplicação “A...” utilizada pelos estafetas pertence à Ré, sendo esta o principal instrumento de trabalho daqueles, pois é esta que permite a ligação/acesso dos mesmos aos estabelecimentos comerciais, nomeadamente de restauração, aderentes e parceiros daquela plataforma digital, quer a ligação/acesso aos clientes finais/consumidores a quem fazem as entregas (artigo 8º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
8- Para o efeito, ou seja, para o desenvolvimento da sua atividade, os estafetas, através de um dos sítios da internet pertencentes à Ré, têm obrigatoriamente que criar a sua  própria conta na dita plataforma, efetuando o respetivo registo na modalidade de “utilizador estafeta”,  demonstrando cumprir os seguintes requisitos: ser maior de idade, ter veículo próprio (bicicleta, ciclomotor, motociclo, trotinete ou veículo automóvel), ter documento de identificação (cartão de Cidadão Europeu, Título de Residência ou passaporte com manifestação de interesse, frente e verso), carta de condução, comprovativo de atividade aberta na Autoridade Tributária/Finanças, comprovativo de ATCUD (código único de documento) e ser titular de um método de pagamento válido (artigo 9º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
9- Cumprindo estes passos o estafeta submete a sua inscrição/candidatura para trabalhar na plataforma, tendo que aceitar os termos e condições de utilização da plataforma A... para estafetas, conforme cópia das mesmas que consta de fls. 15 a 31 e cujo teor qui se dá por integralmente reproduzido, sendo que, só após, vê ativada a sua conta e pode iniciar a sua atividade para a Ré (artigo 10º da petição inicial e parte dos artigos 258º e 259º ambos da contestação).
10- Desde então, sempre que pretende iniciar a sua atividade, acede à sua conta na A... através do nome de utilizador por si escolhido, bem como ao respetivo código de segurança pessoal, sendo que, para receber pedidos, liga o botão de disponibilidade (artigo 11º da petição inicial).
11- É a Ré, através da plataforma digital APP “A... Couriers” que exerce o poder de direção, supervisão e fiscalização da forma de execução do trabalho dos estafetas, mediante programação algorítmica (artigo 12º da petição inicial). – eliminado.
12- Com efeito, é a Ré quem organiza o trabalho, estabelecendo quais os passos necessários para efetuar o serviço, designadamente através do dito registo inicial na plataforma e de um registo/login diário, informando o estafeta que deve proceder ao registo através de reconhecimento facial periódico (controlo biométrico), conforme ponto 5.4 Segurança dos serviços e da Plataforma A... 5.4.1 dos termos e condições de fls. 15 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (artigo 13º da petição inicial).
13- É a Ré, através da APP, quem controla e supervisiona em tempo real a prestação da atividade realizada pelo estafeta através de um sistema de geolocalização existente na APP, desde que e enquanto o estafeta estiver conectado à APP, pois que, para prestar a sua atividade, o estafeta tem sempre que ativar a permissão de acesso à sua localização (artigo 14º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
14- Para o exercício da atividade a Ré exige aos estafetas o uso de telefone móvel com acesso à internet, de uma mochila que pertence ao estafeta e que pode ter qualquer imagem, incluindo de uma plataforma concorrente, ligação à internet e geolocalização ativa (artigo 15 da petição inicial e artigos 180º e 181º ambos da contestação).
15- É a Ré quem fixa as condições de remuneração do serviço prestado e das deslocações efetuadas pelo estafeta e quem estabelece os limites mínimos, os quais nunca podem ser inferiores à taxa base de € 2,5 e  os limites máximos para o efeito, os quais não podem ser superiores ao somatório da taxa base (€ 2,5) acrescido das variáveis unilateralmente fixadas pela ré, não existindo qualquer negociação prévia entre o estafeta e a Ré quanto aos critérios subjacentes à fixação dos respetivos valores, designadamente, quanto à taxa base de entrega (taxa de cada pedido), à distância percorrida (número de quilómetros do ponto de recolha até ao ponto de entrega), o tempo de espera (tempo de espera do estafeta na entrega do pedido antes de proceder ao seu cancelamento), o horário (sendo que a remuneração é mais elevada nas horas em que o afluxo de pedidos é maior – sendo habitual a ré criar dias de “promoções”), o multiplicador (que incide sobre as taxas de entrega e que só pode ser alterado pelo estafeta uma vez por dia, mas no intervalo entre 1.0 e 1.1 pré fixado pela ré) para além de outras variáveis (v. g. condições meteorológicas adversas, feriados, períodos de alta procura, etc), sendo que o estafeta só tem conhecimento do montante pecuniário que vai receber por cada pedido/serviço a prestar, a partir do momento em que o aceita (artigo 16º da petição inicial e parte dos artigos 146º, 148º, 149º, 151º e 162º todos da contestação). - substituída a palavra a negrito por “recebe”.
16- É também a Ré quem negoceia os preços e as condições com os titulares dos estabelecimentos parceiros e fixa o preço do produto/serviço ao cliente final (artigo 17º da petição inicial).
17- O cliente final, em regra, paga o produto/serviço à Ré e não ao estafeta, sendo que, quando procede ao pagamento em dinheiro, o estafeta a partir de determinado montante, cerca de € 50, recebe uma mensagem da ré para proceder ao depósito do mesmo na conta da ré, sob pena de bloqueio da conta por ter saldo em mãos (artigo 18º da petição inicial).
18- A Ré, por sua vez, paga a retribuição pelo serviço prestado pelo estafeta, o que faz com periodicidade quinzenal, através de transferência bancária, sendo que, a mesma é variável atendendo ao aludido em 15) (artigo 19º da petição inicial e parte do artigo 166º da contestação).
19- A Ré verifica a qualidade de execução do trabalho prestado pelos estafetas através da sobredita APP, controlando os tempos de entrega e os percursos pelos mesmos efetuados, assim como a avaliação que desse trabalho é feita pelos utilizadores (restaurantes e cliente final), controlando e supervisionando a execução do mesmo, incluindo em tempo real, nomeadamente través dos meios eletrónicos, informáticos e de gestão algorítmica (artigo 20º da petição inicial). – eliminado.
20- Com efeito, a partir do momento em que o estafeta faz “login” na sobredita APP da Ré, esta fica a saber, através da aplicação e de um sistema de geolocalização que está conectado ao telefone do estafeta, qual o local onde aquele se encontra em cada momento, o que se mostra indispensável ao exercício da atividade, à atribuição dos pedidos dos clientes e ao cálculo do valor do serviço prestado (artigo 21º da petição inicial).
21- Para este efeito, o estafeta tem que ter o sistema de geolocalização por GPS do seu telefone ligado para que lhe seja atribuída a prestação de serviço por parte da Ré. – substituída a palavra a negrito por “proposta”.
22- Este sistema permite à Ré disponibilizar, ao estabelecimento comercial ou ao cliente final, através da sobredita APP, a localização do estafeta, indicando o tempo previsto para a recolha no estabelecimento comercial dos bens a transportar ou para a sua entrega ao cliente final, bem como o percurso efetuado pelo estafeta (artigo 22º da petição inicial).
23- O estafeta tinha também um “sistema de reputação” associado ao seu perfil na dita APP, atualizado periodicamente à medida que os diferentes utilizadores – estabelecimentos comerciais e clientes finais beneficiários dos serviços prestados pelo estafeta - realizavam transações na plataforma A..., o que sucedeu, até data que em concreto não foi possível apurar, mas pelo menos até dezembro de 2023, como resulta do ponto 5.7 dos termos e condições constantes de fls. 15 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (artigo 23º da petição inicial).
24- A Ré tem ainda a possibilidade de, através daquela APP, gravar chamadas efetuadas pelos estafetas quando em serviço, o que, aliado ao sistema de reconhecimento facial dos mesmos de que dispõe, lhe permite controlar se o exercício do trabalho prestado pelo estafeta está em conformidade com os termos e condições previamente definidos e aceites pelo estafetas, que incluem, além do mais as Normas de Ética e Conduta Empresarial para terceiros da A... e outras aplicáveis à comunidade A... (artigo 24º da petição inicial).
25- O estafeta não tem qualquer intervenção na escolha dos clientes e dos respetivos pedidos que surgem na dita APP aleatoriamente, sendo, contudo, livre de o aceitar ou recusar (artigo 25º da petição inicial).
26- A Ré, através da dita aplicação informática, face à avaliação que faz, exerce o poder disciplinar sobre o estafeta, podendo punir o mesmo com sanções que podem ir desde a simples advertência, à suspensão/bloqueio e incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através da desativação da conta do estafeta (artigo 26º da petição inicial). – eliminado.
27- A Ré pode, temporariamente, restringir o acesso do estafeta à dita APP, ou desativar a sua conta em definitivo, nomeadamente em caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo mesmo aquando da sua vinculação, designadamente se aquele permitir a utilização da sua conta por terceiros sem prévia comunicação à Ré, ou for apresentada queixa contra o mesmo por fraude (artigo 27º da petição inicial).
28- A Ré, exerce o poder de direção e determina as regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do estafeta, à sua conduta perante o utilizador do serviço, ou à prestação da atividade, sendo que, logo aquando do seu registo era-lhe remetido pela Ré um link para proceder à visualização de vídeos contendo toda a informação sobre como se apresentar e utilizar a APP, exigindo a Ré que o estafeta utilize uma mochila térmica para transporte dos pedidos, conforme aos padrões de higiene para transporte de alimentos e que o estafeta, chegado ao cliente, se o mesmo não estiver na morada, aguarde 10 minutos, dando nota disso ao “Suporte”, que entra, ele próprio, em contacto com o cliente (artigo 28º da petição inicial). – eliminada a matéria a negrito.
29- Parte dos equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados, como seja a APP, pertencem à Ré ou são por esta explorados através de contrato de locação: a utilização da aplicação informática respetiva, por parte do estafeta, está sujeita ao pagamento de uma taxa quinzenal que permite o acesso à criação do perfil, o acesso à APP, a cobertura do seguro pela duração da ligação à plataforma, o acesso ao serviço de apoio técnico e à gestão e à intermediação de pagamentos (artigo 29º da petição inicial). – eliminada a matéria a negrito.
30- No dia 6 de outubro de 2023, pelas 12h50m, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) levou a cabo uma ação inspetiva junto ao McDonald´s de ..., sito na Praça ..., ... ..., tendo os respetivos inspetores verificado, de forma pessoal direta e imediata, que AA se encontrava a prestar a sua atividade de estafeta, sob as ordens direção e fiscalização da ré, junto do seu veículo, munido de uma mochila térmica e de um telefone móvel, estando aguardar que o pedido já distribuído pela ré fosse concluído/disponibilizado pelo restaurante/parceiro, para de seguida, após a recolha do mesmo, se dirigir à morada indicada pelo cliente para proceder à entrega da encomenda (parte do artigo 30º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
31- Para tal, em 30 de setembro de 2023, através de um dos sítios de internet pertencentes à Ré – https://www.A....com/pt/pt - o referido AA criou a sua conta na plataforma digital da Ré e efetuou o respetivo registo na modalidade “utilizador estafeta”, tendo comprovado reunir os requisitos exigidos para o efeito, após o que aceitou os termos e condições aí definidos (parte do artigo 31º da petição inicial).
32- Nessa sequência, iniciou a sua atividade de estafeta para a Ré em 3 de outubro de 2023, atividade essa que passou a desenvolver desde então, nos termos acima descritos, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré, mediante o pagamento quinzenal por esta da respetiva remuneração fixada pela Ré nos termos descritos no ponto 15), através de transferência bancária (restante parte do artigo 31º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
33- Para o exercício daquela sua atividade por conta da Ré, o AA acede à sobredita APP digital através do email ..........@.....  e com a identificação de “AA(artigo 32º da petição inicial). – eliminada a expressão a negrito.
34- Para o efeito a Ré determinou-lhe, além do mais, que: - Usasse um telefone móvel com acesso à internet, com geolocalização sempre ativa, a fim de permitir a controlo da sua localização e supervisionamento da sua atividade por parte da Ré; - Fizesse uso de uma mochila adequada para o transporte de bens alimentares; - Fizesse o registo/login diário, com registo através de reconhecimento facial periodicamente, nomeadamente após a entrega do segundo pedido; - Que não se podia fazer substituir por outros estafetas; - Que cumprisse as regras de conduta aludidas em 28) (artigo 33º da petição inicial). – eliminadas as expressões a negrito.
35- Na sequência da ação inspetiva, e ao abrigo do disposto no art. 15º-A, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, foi pela ACT levantado auto tendo a Ré sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do citado art. 15º-A, para regularizar a situação do trabalhador,  a qual comunicou à ACT que entendia não se verificar, qualquer característica elencada no art. 12º-A, do Código de Trabalho, pelo que, não regularizou até à data a situação do mesmo (parte dos artigos 35º, 36º e 37º todos da petição inicial).
36- Todos os utilizadores da APP, independentemente da qualidade que assumem (clientes, parceiros ou estafetas), pagam uma quantia à Ré, denominada pela mesma de “taxa de utilização da plataforma” (parte do artigo 130º da contestação).
37- Os clientes podem selecionar através da APP a opção take away, sem a necessidade de serem os estafetas a fazer a recolha e entrega do pedido (parte do artigo 133º da contestação).
38- O estafeta após a aceitação do pedido, é livre de escolher o percurso/itinerário, sendo que, a Ré apenas procede ao pagamento dos quilómetros estimados pelo trajeto definido pela APP (parte do artigo 202º da contestação).
39- Depois de receber o pedido o estafeta pode aceitá-lo ou recusá-lo (parte dos artigos 127º, 129º, 161º, 229º e 231º todos da contestação).
40- Além do valor pago pela ré ao estafeta o cliente pode dar-lhe uma gorjeta/gratificação (parte do artigo 152º da contestação).
41- O estafeta pode trabalhar simultaneamente para a Ré e para outra plataforma concorrente, bem como para qualquer outra entidade que não seja uma plataforma (parte dos artigos 127º, 129º, 172º e 235º todos da contestação). – substituída a palavra a negrito por exercer a sua atividade.
42- O estafeta tem a faculdade de, por sua livre iniciativa e sem qualquer comunicação ou autorização prévia da ré, não exercer qualquer atividade durante vários meses, podendo conectar-se ou desconectar-se da aplicação sempre que o entender, escolhendo o número de pedidos/ordens que pretende realizar (artigo 160º da contestação).
43- A entrega de refeições pressupõe a utilização de um recipiente adequado para o efeito (artigo 178º da contestação).
44- Consta do quadro do ponto 9.2 dos Termos e Condições de fls. 53 dos autos que “Os dados relacionados com a geolocalização do Estafeta são necessários para a execução dos Termos e Condições, bem como para utilizar a Plataforma, a fim de permitir aos Consumidores e Estabelecimentos Comerciais saber o estado e localização do Estafeta durante a recolha ou entrega”.
45- E, do ponto 9.3 dos Termos e Condições que “Ao utilizar a aplicação fornecida pela A... para a execução da relação e, portanto, para exercer a atividade, a A... pode receber os dados de geolocalização do Estafeta caso o mesmo tenha ativado esta função diretamente no seu telemóvel. A A... usará os Dados obtidos para prestar os Serviços ao Estafeta e partilhá-los com o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial cujo pedido o Estafeta aceitou executar, para que o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial possam contactar o Estafeta no caso de algum incidente. É expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e especificação dos seus serviços e em nenhum caso a A... utilizará esses dados para fins de controlo.” (parte do artigo 199º, 204º e 262º todos da contestação).
46- E, do quadro do ponto 9.4 do Termos e condições consta que “A geolocalização é uma informação importante e básica para a prestação do Serviço, porquanto serve apenas para informar o Estabelecimento Comercial ou o Utilizador Cliente da localização do Estafeta e, portanto, calcular o tempo de recolha ou entrega, mas que é também usada pela A... para a oferta de pedidos. A proximidade do ponto de recolha é um dos critérios utilizados no momento da oferta do pedido, pelo que, se não estiver ativada, a A... não poderá garantir que são oferecidos pedidos, ou que são razoáveis em termos do tempo previsto de recolha ou entrega. Neste sentido, e sem prejuízo do sistema operativo do dispositivo do Estafeta que pede consentimento para o uso da geolocalização, a utilização desta informação é necessária para correta execução dos Termos e Condições. Em qualquer caso, o Estafeta poderá desativar a geolocalização quando já tiver aceitado o pedido oferecido pela Plataforma ou quando não estiver prestando serviços, embora a A... não utilize esta informação fora do âmbito da oferta de pedidos ou quando o Estafeta está offline da Plataforma A.... De igual modo, é expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e concretização dos seus serviços e em nenhum caso a A... utilizará esses dados para fins de controlo do Estafeta. Neste sentido, a geolocalização é meramente temporária e não de modo algum exaustiva. A informação de geolocalização pode também ser usado para efeitos de faturação (a fim de obter informações relativas à quilometragem e despesas atribuíveis), bem como em relação à segurança rodoviária, antiterrorismo, branqueamento de capitais ou prevenção de crimes contra a segurança pública, caso no qual pode ser partilhada com as autoridades competentes que a solicitem (por exemplo, Forças do Estado, órgãos do poder executivo ou da polícia)”.
47- Os clientes também podem dar feedback sobre o restaurante/estabelecimento comercial, para além do aludido em 23), sendo tais mecanismos facultativos para o utilizador/cliente que pode ou não responder aos mesmos (parte dos artigos 206º, 208º e 209º todos da contestação).
48- O estafeta é livre de escolher o horário que pretende praticar, sendo que, só o poderá fazer no horário de funcionamento da APP, a qual em ... é das 9h às 23h (parte do artigo 236º da contestação). – substituída a frase a negrito por as horas em que pretende exercer a sua atividade e a palavra horário por período.
49- O estafeta é responsável pela manutenção e reparação do veiculo, mochila e telemóvel que utiliza, suportando os seus custos (parte do artigo 260º da contestação).
Factos não provados:
- Os constantes dos artigos 119º (restante matéria que não foi dada como provada), 120º, 126º (restante matéria que não foi dada como provada), 127º (restante matéria que não foi dada como provada), 128º (restante matéria que não foi dada como provada), 129º (restante matéria que não foi dada como provada), 130º (restante matéria que não foi dada como provada), 132º, 133º (restante matéria que não foi dada como provada), 150º, 152º (restante matéria que não foi dada como provada), 153º, 161º (restante matéria que não foi dada como provada), 162º (restante matéria que não foi dada como provada), 200º, 201º, 202º (restante matéria que não foi dada como provada), 203º, 204º (restante matéria que não foi dada como provada), 206º (restante matéria que não foi dada como provada) 207º,  209º (restante matéria que não foi dada como provada), 210º, 211º, 212º, 229º (restante matéria que não foi dada como provada), 231º (restante matéria que não foi dada como provada) e  260º (restante matéria que não foi dada como provada), todos da contestação.
 “Motivação:
(…).
*

                                                             *

b) - Discussão
Apreciando as questões suscitadas pela Ré recorrente:
1ª questão
Nulidade da sentença

Alega a recorrente que a sentença é nula, porquanto a ação especial em que foi preferida é de simples apreciação, pelo que nunca se poderia na mesma condenar a Recorrente.

Por outro lado, resulta do dispositivo da sentença recorrida o seguinte:

“Por tudo o exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência condena-se a ré A... Portugal Unipessoal, L.da. a reconhecer que AA celebrou com a mesma um contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, desde 3 de outubro de 2023.”

Conforme resulta do artigo 615.º do CPC:

<<1 – É nula a sentença quando:

(…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

(…).>>

Assim, <<Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.608-2), é nula a sentença em que o faça.>>[2]

<<O juiz (…); não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.>> - 2ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.

Na verdade, a sentença é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento porque não suscitadas pelas partes, ou seja, de causas de pedir ou exceções não invocadas pelas partes.

Ora, ao contrário do alegado pela recorrente, a sentença recorrida não conheceu de qualquer questão da qual não podia tomar conhecimento.

Por força do disposto no artigo 186.º-K do CPT, a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, como o próprio nome indica, na fase judicial, destina-se ao reconhecimento da existência de tal contrato entre as partes.

Assim, impõe-se concluir que, tendo a presente ação como único objeto a declaração da existência de um direito, estamos perante uma ação de simples apreciação positiva, conforme resulta do disposto no artigo 10.º, n.º 3, a), do CPC.

Na verdade, as ações declarativas de condenação têm por fim exigir a prestação de uma coisa ou de um facto (alínea b) do citado normativo), o que não ocorre nos presentes autos.

Acontece que, conforme se extrai do dispositivo da sentença recorrida, não ocorreu a condenação da Ré na prestação de uma coisa ou de um facto mas tão só a condenação da mesma a reconhecer que AA celebrou com a mesma um contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, desde 3 de outubro de 2023.

Assim, não foi apreciada qualquer questão de que o juiz não podia tomar conhecimento porque não suscitada pelas partes, ou seja, não foi apreciada qualquer causa de pedir ou exceção não invocada pelas partes.

Pelo exposto, ao contrário do alegado pela recorrente, o juiz não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento e, consequentemente, a sentença recorrida não sofre da invocada nulidade por excesso de pronúncia.

2ª questão
Impugnação da matéria de facto
(…).

3ª questão
Se entre o prestador de atividade e a Ré não existe uma relação de trabalho subordinado com início em 03/10/2023.

(…)

                                                             *

Aqui chegados, vejamos, então, se assiste razão à Ré recorrente.

<<Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra pessoa ou pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas>> - artigo 11.º do CT.

Por outro lado, <<contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição>> - artigo 1154.º, do C.C..

Como refere o Professor Leal Amado[3], os traços distintivos essenciais destas duas modalidades contratuais são:

<<i) quanto ao conteúdo da obrigação, no contrato de prestação de serviço trata-se de proporcionar ao credor certo resultado do trabalho, ao passo que no contrato de trabalho está em jogo a prestação de uma actividade (o trabalhador promete uma actividade laboral, o prestador de serviço compromete-se a proporcionar um resultado do trabalho); ii) quanto à retribuição, esta é um elemento essencial e indefectível no contrato de trabalho (<<mediante retribuição>>), sendo um elemento meramente eventual no seio do contrato de prestação de serviço (<<com ou sem retribuição>>); iii) quanto às instruções do credor da prestação, no contrato de prestação de serviço não se faz qualquer menção às mesmas, ao passo que no contrato de trabalho o devedor presta a sua actividade <<sob a autoridade e direcção>>, ou <<no âmbito de organização e sob a autoridade>>, da contraparte.>>

E, a propósito da definição legal de contrato de prestação de serviço, Monteiro Fernandes[4] refere que <<avulta, neste enunciado, a contraposição fundamental do resultado do trabalho (como objecto do contrato) à actividade, em si mesma, que caracteriza o contrato de trabalho.

A colocação do acento tónico no resultado do trabalho significa, além do mais, que o processo conducente à produção dele, a organização dos meios necessários e a ordenação da actividade que o condicionam, estão, em princípio, fora do contrato, não são vinculados – mas antes determinados pelo próprio fornecedor do mesmo trabalho. É claro que, em última análise, tais contratos se traduzem numa alienação de trabalho (o que, justamente, se incorpora no resultado devido) – só que esse trabalho não é dominado e organizado pelo beneficiário final (que apenas controla o produto), e sim por quem o fornece: trabalho autónomo, portanto.>>

Assim, o núcleo da diferenciação entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços está precisamente na existência ou não de trabalho subordinado.

<<(…) No contrato de trabalho é ao credor (o empregador) que cabe programar, organizar, dirigir e fiscalizar a actividade do devedor (o trabalhador). Àquele cabe, com efeito, não apenas a distribuição das tarefas a realizar, como também a definição do como, quando, onde e com que meios o trabalhador as deve executar. É esta diferente posição que é designada, correntemente, por subordinação jurídica ou por supremacia jurídica, conforme se privilegie o lado passivo ou o lado activo da relação. Quer dizer, se a supremacia jurídica se analisa no poder de um organizar e dirigir a prestação do outro, a subordinação traduz-se no dever deste de conformar a actividade laboral prometida com as ordens e instruções daquele.>>[5].

No entanto, é de referir, ainda, que existem determinadas atividades que, pela sua própria natureza, se revestem de autonomia técnica, sendo certo que a mesma não é incompatível com a existência de um contrato de trabalho (cfr. o artigo 116.º, do CT).

De qualquer forma, por vezes, é difícil surpreender a já referida subordinação razão pela qual, teremos de atender às características específicas da atividade desenvolvida, bem como, à vontade das partes aquando da celebração do respetivo contrato.

Como se decidiu no acórdão desta Relação de 09/11/2018, proferido no processo n.º 4003/17.4T8LRA.C1, ao que julgamos inédito[6]:

<<Sabe-se que a subordinação jurídica típica de uma relação de trabalho subordinado implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

A cargo da entidade patronal estão os poderes determinativo da função e conformativo da prestação de trabalho, ou seja, o poder de dar um destino concreto à força de trabalho que o trabalhador põe à sua disposição, quer atribuindo uma função geral ao trabalhador na sua organização empresarial, quer determinando-lhe singulares operações executivas, traduzindo-se a supremacia da entidade patronal, ainda, nos poderes regulamentar e disciplinar.

A determinação da existência de subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica.

A subordinação traduz-se na possibilidade de a entidade patronal orientar e dirigir a actividade laboral em si mesma e/ou dar instruções ao próprio trabalhador com vista à prossecução dos fins a atingir com a actividade deste, e deduz-se de factos indiciários, todos a apreciar em concreto e na sua interdependência, sendo os mais significativos: i) a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; ii) o local de trabalho situar-se nas instalações do empregador ou onde ele determinar; iii) existência de controlo do modo da prestação do trabalho; iv) obediência às ordens e sujeição à disciplina imposta pelo empregador; v) propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; vi) retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; vii) exclusividade de prestação do trabalho a uma única entidade - estão aqui em causa os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização) a que se aludem, por exemplo, no acórdão do STJ de 19/12/2012, proferido no âmbito do processo 247/10.4TTVIS.C1.S1., de 9/2/2012, proferido no âmbito do processo 2178/07.3TTLSB.L1.S1, e de 5/11/2013, proferido no âmbito do processo 195/11.8TTCBR.C1.S1.

Diga-se ainda que a subordinação apenas exige a mera possibilidade de ordens e direcção e pode até não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho, havendo, muitas vezes, a aparência da autonomia do trabalhador que não recebe ordens directas e sistemáticas da entidade patronal, o que sucede sobretudo em actividades cuja natureza implica a salvaguarda da autonomia técnica e científica do trabalhador.

Consciente das dificuldades de demonstração da existência de uma relação de trabalho subordinado o legislador consagrou, no art.º 12.º do Código do Trabalho, a «presunção de contrato de trabalho».

Conforme se escreveu no acórdão desta Relação proferido no processo 182/14.4TTGRD.C1 “a presunção em causa visa concerteza facilitar a demonstração da existência de contrato de trabalho, em casos de dificuldade de qualificação, e tem a sua inspiração no chamado método indiciário usado na nossa jurisprudência – e referido na sentença recorrida - para alcançar a qualificação do contrato [com o recurso a índices negociais internos – p. ex., (…) - e externos - p. ex.,  (…). Mas, diversamente desse método indiciário, que determinava a busca de um numeroso e convincente conjunto de indícios, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho basta-se, como dissemos, com a verificação de dois dos indícios/características apontados.

Como se afirmou nos Acórdãos desta Relação de 10-07-2013 (relatado pelo presente relator) e de 26-09-2014 (relator: Ramalho Pinto), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, a verificação de duas dessas características têm, apesar de tudo, de ser enquadradas num ambiente contratual genético e de execução que permita dúvidas consistentes sobre a qualificação. Só assim a presunção revestirá uma operação útil.

Noutra perspectiva que parta do fim do percurso da indagação para o seu princípio, o resultado será afinal o mesmo, já que não se verificando aquele ambiente então terá de se considerar ilidida a presunção”.

Esta presunção reveste a natureza de “juris tantum” pelo que admite a sua ilisão mediante produção de prova em contrário (artº 35ºº nº 2 do CPC).”
*

Acontece que a forma de trabalhar tem registado, nos últimos anos, profundas alterações.

É o que ocorre com o exercício de atividade em plataformas digitais e nas quais intervêm, num sistema de economia partilhada ou colaborativa, os prestadores de serviços, os utilizadores destes e os intermediários que através de tais plataformas fazem a ligação daqueles.

Como referem os Professores Leal Amado e Teresa Moreira[7], <<no caso da A..., trata-se de uma plataforma digital de crowdwork offline, ou de work on demand via apps. Nestas, as atividades exigem uma presença física e, por isso, a concorrência não é global, embora se levantem também várias questões, pois o trabalho é realizado à chamada, denominado on demand work, originando um incremento da força de trabalho just-in-time, sendo que o trabalhador da plataforma normalmente entra em contacto direto com o utilizador.>>

Em vários países da Europa foram já proferidas decisões sobre a temática em apreciação, sendo que, entre outras, o Supremo Tribunal de Espanha proferiu em 25/09/2020 um acórdão de uniformização de jurisprudência e no qual foi reconhecida a existência de uma relação de trabalho dependente e subordinado entre o estafeta e a A... e no qual se afirmou, em síntese, que:

i) A A... não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre estabelecimentos comerciais e estafetas; não se limita a prestar um serviço eletrónico de intermediação, consistente em pôr em contacto consumidores (os clientes) e autênticos trabalhadores autónomos, antes realiza também uma atividade de coordenação e organização do serviço produtivo;

ii) Trata-se de uma empresa que presta serviços de recovagem (de transporte e entrega de mercadorias), fixando o preço e as condições de pagamento do serviço, bem como as condições essenciais para a prestação de tais serviços; e é titular dos ativos essenciais para a realização da atividade;

iii) Para isso utiliza riders/estafetas que não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma, os quais prestam o seu serviço inseridos na organização de trabalho do empregador, submetidos à direção e organização da plataforma, como o demonstra o facto de a A... estabelecer todos os aspetos relativos à forma e preço do serviço de recolha e entrega de tais produtos;

iv) Ou seja, tanto a forma de prestação do serviço como o seu preço e forma de pagamento são estabelecidos pela A...; a empresa emite instruções que lhe permitem controlar o processo produtivo e institui meios de controlo que incidem sobre a atividade e não apenas sobre o resultado, mediante a gestão algorítmica do serviço, as avaliações dos riders/estafetas e a geolocalização constante;

v) O rider/estafeta nem organiza por si só a atividade produtiva, nem negoceia preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que serve, nem recebe dos clientes finais a sua retribuição; in casu, o autor não tinha uma verdadeira capacidade para organizar a sua prestação de trabalho, carecendo de autonomia para isso e estando sujeito às diretrizes organizativas fixadas pela empresa; isso revela um exercício do poder empresarial quanto ao modo de prestação do serviço e um controlo da sua execução em tempo real que evidencia a presença do requisito de dependência próprio da relação laboral;

vi) Para prestar esses serviços, a A... serve-se de um programa informático que atribui os pedidos em função da avaliação de cada rider/estafeta, o que condiciona decisivamente a teórica liberdade de escolha de horários e de recusa de tais pedidos; ademais, a A... desfruta de um poder para sancionar os seus riders/estafetas por uma pluralidade de condutas diferentes, o que é uma típica manifestação do poder diretivo e disciplinar do empregador;

vii) Através da plataforma digital, a A... leva a cabo um controlo em tempo real da prestação do serviço em causa, sem que o rider/estafeta possa realizar a sua tarefa desvinculado da referida plataforma; devido a isso, o rider/estafeta goza de uma autonomia muito limitada, que apenas abrange questões secundárias (que meio de transporte utiliza e que rota segue para realizar a entrega), pelo que o tribunal concluiu que concorrem, no caso, as notas definidoras de um contrato de trabalho entre o autor e a empresa demandada.”[8]

Por outro lado, no livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021 poder ler-se, como objetivo, “criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital.”

E, por força da Lei n.º 13/2023, de 03/04, foi então aditado ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A que, sob a epígrafe “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”, estabelece:

“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.

3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.

4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata. (…)>>

Vejamos, então, se na relação existente entre o prestador de atividade AA e a plataforma digital A... se verificam algumas das características enunciadas no n.º 1 do referido artigo 12.º-A:

a) Se a plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.

Resulta da matéria de facto provada que:

- Em 30 de setembro de 2023, através de um dos sítios de internet pertencentes à Ré – https://www.A....com/pt/pt - o referido AA criou a sua conta na plataforma digital da Ré e efetuou o respetivo registo na modalidade “utilizador estafeta”, tendo comprovado reunir os requisitos exigidos para o efeito, após o que aceitou os termos e condições aí definidos.

- Nessa sequência, iniciou a sua atividade de estafeta para a Ré em 3 de outubro de 2021, atividade essa que passou a desenvolver desde então, nos termos acima descritos, mediante o pagamento quinzenal por esta da respetiva remuneração fixada pela Ré nos termos descritos no ponto 15), através de transferência bancária.

- É a Ré quem fixa as condições de remuneração do serviço prestado e das deslocações efetuadas pelo estafeta e quem estabelece os limites mínimos, os quais nunca podem ser inferiores à taxa base de € 2,5 e  os limites máximos para o efeito, os quais não podem ser superiores ao somatório da taxa base (€ 2,5) acrescido das variáveis unilateralmente fixadas pela ré, não existindo qualquer negociação prévia entre o estafeta e a Ré quanto aos critérios subjacentes à fixação dos respetivos valores, designadamente, quanto à taxa base de entrega (taxa de cada pedido), à distância percorrida (número de quilómetros do ponto de recolha até ao ponto de entrega), o tempo de espera (tempo de espera do estafeta na entrega do pedido antes de proceder ao seu cancelamento), o horário (sendo que a remuneração é mais elevada nas horas em que o afluxo de pedidos é maior – sendo habitual a ré criar dias de “promoções”), o multiplicador (que incide sobre as taxas de entrega e que só pode ser alterado pelo estafeta uma vez por dia, mas no intervalo entre 1.0 e 1.1 fixado pela ré) para além de outras variáveis (v. g. condições meteorológicas adversas, feriados, períodos de alta procura, etc), sendo que o estafeta só tem conhecimento do montante pecuniário que vai receber por cada pedido/serviço a prestar, a partir do momento em que o recebe.

Tendo em conta esta matéria de facto provada impõe-se concluir que se verifica a característica em análise, na medida em que é a ré que estabelece limites mínimos e máximos da retribuição para o trabalho efetuado na plataforma.

b) Se a plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.

Resultou provado que:

- Para o desenvolvimento da sua atividade, os estafetas, através de um dos sítios da internet pertencentes à Ré, têm que criar a sua própria conta na dita plataforma, efetuando o respetivo registo na modalidade de “utilizador estafeta”, demonstrando cumprir os seguintes requisitos: ser maior de idade, ter veículo próprio (bicicleta, ciclomotor, motociclo, trotinete ou veículo automóvel), ter documento de identificação (cartão de Cidadão Europeu, Título de Residência ou passaporte com manifestação de interesse, frente e verso), carta de condução, comprovativo de atividade aberta na Autoridade Tributária/Finanças, comprovativo de ATCUD (código único de documento) e ser titular de um método de pagamento válido.

- É a Ré quem organiza o trabalho, estabelecendo quais os passos necessários para efetuar o serviço, designadamente através do dito registo inicial na plataforma e de um registo/login diário, informando o estafeta que deve proceder ao registo através de reconhecimento facial periódico (controlo biométrico), conforme ponto 5.4 Segurança dos serviços e da Plataforma A... 5.4.1 dos termos e condições de fls. 15 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido

- É também a Ré quem negoceia os preços e as condições com os titulares dos estabelecimentos parceiros e fixa o preço do produto/serviço ao cliente final.

- O cliente final, em regra, paga o produto/serviço à Ré e não ao estafeta, sendo que, quando procede ao pagamento em dinheiro, o estafeta a partir de determinado montante, cerca de € 50, recebe uma mensagem da ré para proceder ao depósito do mesmo na conta da ré, sob pena de bloqueio da conta por ter saldo em mãos.

- Aquando do seu registo era remetido ao estafeta pela Ré um link para proceder à visualização de vídeos contendo toda a informação sobre como utilizar a APP, exigindo ainda a Ré que o estafeta utilize uma mochila térmica para transporte dos pedidos, conforme aos padrões de higiene para transporte de alimentos e que o estafeta, chegado ao cliente, se o mesmo não estiver na morada, aguarde 10 minutos, dando nota disso ao “Suporte”, que entra, ele próprio, em contacto com o cliente.

- Para o efeito a Ré determinou-lhe, além do mais, que: - Usasse um telefone móvel com acesso à internet, com geolocalização sempre ativa, a fim de permitir a sua localização; - Fizesse uso de uma mochila adequada para o transporte de bens alimentares; - Fizesse o registo/login diário, com registo através de reconhecimento facial periodicamente, nomeadamente após a entrega do segundo pedido; - Que não se podia fazer substituir por outros estafetas.

Assim sendo, facilmente se conclui que a Ré exerce o poder de direção e determina regras específicas quanto à prestação da atividade, na medida em que, além do mais, o prestador tem de se registar na plataforma como “utilizador estafeta” e nos termos supra definidos;  tem de fazer o registo/login diário, com registo através de reconhecimento facial periodicamente, nomeadamente após a entrega do segundo pedido e não pode fazer-se substituir por outros estafetas; tem de utilizar uma mochila térmica para transporte dos pedidos e chegado ao cliente, se o mesmo não estiver na morada, tem de aguardar 10 minutos; tem de usar um telefone móvel com acesso à internet, com geolocalização sempre ativa, a fim de permitir a sua localização; é a Ré quem negoceia os preços e as condições com os titulares dos estabelecimentos parceiros e fixa o preço do produto/serviço ao cliente final e o estafeta a partir de determinado montante, cerca de € 50, recebe uma mensagem da ré para proceder ao depósito do mesmo na conta da ré, sob pena de bloqueio da conta por ter saldo em mãos.

Dito de outra forma, é a Ré que estabelece os termos em que o trabalho deve ser prestado (artigo 97.º do CT).

Desta forma verifica-se a característica a que alude a alínea b) do artigo 12.º-A do CT.

            c) Se a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.

Resultou provado que:

- Na APP da Ré existe um sistema de geolocalização ativado desde e enquanto o estafeta estiver conectado à mesma, sendo que, para prestar a sua atividade, o estafeta tem sempre que ativar a permissão de acesso à sua localização

- A partir do momento em que o estafeta faz “login” na sobredita APP da Ré, esta fica a saber, através da aplicação e de um sistema de geolocalização que está conectado ao telefone do estafeta, qual o local onde aquele se encontra em cada momento, o que se mostra indispensável ao exercício da atividade, à atribuição dos pedidos dos clientes e ao cálculo do valor do serviço prestado.

- Para este efeito, o estafeta tem que ter o sistema de geolocalização por GPS do seu telefone ligado para que lhe seja proposta a prestação de serviço por parte da Ré.

- Este sistema permite à Ré disponibilizar, ao estabelecimento comercial ou ao cliente final, através da sobredita APP, a localização do estafeta, indicando o tempo previsto para a recolha no estabelecimento comercial dos bens a transportar ou para a sua entrega ao cliente final, bem como o percurso efetuado pelo estafeta.

- O estafeta tinha também um “sistema de reputação” associado ao seu perfil na dita APP, atualizado periodicamente à medida que os diferentes utilizadores – estabelecimentos comerciais e clientes finais beneficiários dos serviços prestados pelo estafeta - realizavam transações na plataforma A..., o que sucedeu, até data que em concreto não foi possível apurar, mas pelo menos até dezembro de 2023, como resulta do ponto 5.7 dos termos e condições constantes de fls. 15 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

- A Ré tem ainda a possibilidade de, através daquela APP, gravar chamadas efetuadas pelos estafetas quando em serviço, o que, aliado ao sistema de reconhecimento facial dos mesmos de que dispõe, lhe permite controlar se o exercício do trabalho prestado pelo estafeta está em conformidade com os termos e condições previamente definidos e aceites pelo estafetas, que incluem, além do mais as Normas de Ética e Conduta Empresarial para terceiros da A... e outras aplicáveis à comunidade A...

- Para o efeito a Ré determinou-lhe, além do mais, que: - Usasse um telefone móvel com acesso à internet, com geolocalização sempre activa, a fim de permitir a sua localização.

Face a esta factualidade provada impõe-se concluir que a Ré controla e supervisiona o trabalho do estafeta em tempo real, através do sistema de geolocalização que lhe permite saber a localização daquele durante toda a prestação de atividade, da gravação de chamadas efetuadas pelos estafetas e do sistema de reconhecimento facial dos mesmos, tendo verificado a qualidade da atividade prestada através do sistema de reputação, pelo menos, até à data suprarreferida.

Ao contrário do alegado pela recorrente não se provou que a geolocalização pode ser desativada depois de aceite e até à sua entrega ao utilizador cliente, isto é, durante a execução do serviço de entrega.

Como refere Menezes Leitão[9], “a lei inclui neste índice duas situações em alternativa. A primeira é o controlo e supervisão da prestação de actividade, incluindo em tempo real, como sucede se a plataforma (…) souber electronicamente do momento da entrega da encomenda nos serviços de entregas. A segunda é a verificação da qualidade da actividade prestada, designadamente se a plataforma recolhe avaliações dos utilizadores quanto à sua satisfação com o prestador de actividade.”

Pelo exposto, verifica-se a circunstância prevista na alínea c) do artigo 12.º-A do CT.

d) Se a plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma.

Resultou provado que:

- O estafeta não tem qualquer intervenção na escolha dos clientes e dos respetivos pedidos que surgem na dita APP aleatoriamente, sendo, contudo, livre de os aceitar ou recusar.

- A Ré pode, temporariamente, restringir o acesso do estafeta à dita APP, ou desativar a sua conta em definitivo, nomeadamente em caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo mesmo aquando da sua vinculação, designadamente se aquele permitir a utilização da sua conta por terceiros sem prévia comunicação à Ré, ou for apresentada queixa contra o mesmo por fraude.

- A Ré determinou a AA, além do mais, que não se podia fazer substituir por outros estafetas.

Tendo em conta a matéria de facto provada é nosso entendimento que a plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho: quanto à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções e à escolha dos clientes e, assim, verifica-se a circunstância a que alude a alínea d) do artigo 12.º-A, do CT.

e) Se a plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.

Resultou provado que:

- A Ré pode, temporariamente, restringir o acesso do estafeta à dita APP, ou desativar a sua conta em definitivo, nomeadamente em caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo mesmo aquando da sua vinculação, designadamente se aquele permitir a utilização da sua conta por terceiros sem prévia comunicação à Ré, ou for apresentada queixa contra o mesmo por fraude.

Este poder da Ré restringir o acesso do estafeta à APP ou de desativar a sua conta em definitivo não pode deixar de ser entendido como o exercício do poder disciplinar (artigo 98.º do CT), posto que aquelas restrição e desativação mais não são do que sanções que a Ré pode aplicar ao prestador de atividade e, por isso, também se encontra verificada esta circunstância a que alude a alínea e) do artigo 12.º-A do CT.         

f) Se os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Resultou provado que:

- A aplicação “A...” utilizada pelos estafetas pertence à Ré, sendo esta que permite a ligação/acesso dos mesmos aos estabelecimentos comerciais, nomeadamente de restauração, aderentes e parceiros daquela plataforma digital, quer a ligação/acesso aos clientes finais/consumidores a quem fazem as entregas.

- A utilização da aplicação informática da Ré, por parte do estafeta, está sujeita ao pagamento de uma taxa quinzenal que permite o acesso à criação do perfil, o acesso à plataforma, a cobertura do seguro pela duração da ligação à plataforma, o acesso ao serviço de apoio técnico e à gestão e à intermediação de pagamentos.

Pois bem, tendo em conta que é a APP da A... que permite o acesso dos estafetas aos estabelecimentos comerciais, nomeadamente de restauração, aderentes e parceiros daquela plataforma digital, bem como aos clientes finais/consumidores a quem fazem as entregas, impõe-se concluir que a APP pertença da Ré é o principal e determinante instrumento de trabalho dos estafetas, posto que sem ela estes não têm acesso aos pedidos, aos parceiros da Ré nem aos clientes finais, tendo pouca relevância o facto de o telemóvel, da mochila e do veículo serem pertença do prestador de atividade o que, aliás, constitui uma exigência da Ré para a prestação da atividade na sua plataforma[10].

Na verdade, como resulta da matéria de facto provada, os estafetas não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma e apenas conseguem prestar aqueles serviços inseridos na plataforma, a qual além de ter a APP, tem o Support, o departamento financeiro que processa as faturas e os pagamentos, o departamento de recursos humanos que procede ao recrutamento/criação de contas de estafetas.

Alega a recorrente que a aplicação nunca poderá ser considerada um instrumento de trabalho, porque a mesma consubstancia um software, que carece de ser instalado num dispositivo eletrónico/informático, sendo que este, sim, consubstancia o instrumento de trabalho.

Não acompanhamos a recorrente.

Na verdade, um software não pode ser considerado um bem corpóreo tal como este se encontra descrito no artigo 1302.º do CC, no entanto, tal não impede que o mesmo seja objeto do direito de propriedade (propriedade intelectual), como direito de autor (bem imaterial), sujeito a legislação especial, ou seja, ao disposto no DL 252/94 de 20/10, que estabelece a proteção jurídica de programas de computador, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 91/250/CEE, do Conselho, de 14 de Maio, relativa ao regime de proteção jurídica dos programas de computador.

Desta forma, a circunstância prevista na alínea f) do artigo 12.º-A do CT também se encontra verificada.

Por fim, resta dizer que a Ré, tendo em conta a matéria descrita nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 12, 15, 33, é uma plataforma digital de organização de trabalho e não de intermediação tecnológica de vários utilizadores, posto que, “é uma pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolve, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios” (nº 2 do artigo 12º-A do CT).

Aqui chegados, impõe-se concluir que se encontra constituída a presunção da existência de um contrato de trabalho entre o prestador de atividade AA e a Ré A....

No entanto, esta presunção <<pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.>> - n.º 4 do artigo 12.º-A do CT.

Vejamos, então, se a recorrente conseguiu ilidir a presunção de laboralidade.

Resulta da matéria de facto provada que:

- O estafeta após a aceitação do pedido, é livre de escolher o percurso/itinerário, sendo que, a Ré apenas procede ao pagamento dos quilómetros estimados pelo trajeto definido pela APP.

- Depois de receber o pedido o estafeta pode aceitá-lo ou recusá-lo.

- Além do valor pago pela ré ao estafeta o cliente pode dar-lhe uma gorjeta/gratificação.

- O estafeta pode exercer a sua atividade simultaneamente para a Ré e para outra plataforma concorrente, bem como para qualquer outra entidade que não seja uma plataforma.

- O estafeta tem a faculdade de, por sua livre iniciativa e sem qualquer comunicação ou autorização prévia da ré, não exercer qualquer atividade durante vários meses, podendo conectar-se ou desconectar-se da aplicação sempre que o entender, escolhendo o número de pedidos/ordens que pretende realizar.

- A entrega de refeições pressupõe a utilização de um recipiente adequado para o efeito.

- Consta do quadro do ponto 9.2 dos Termos e Condições de fls. 53 dos autos que “Os dados relacionados com a geolocalização do Estafeta são necessários para a execução dos Termos e Condições, bem como para utilizar a Plataforma, a fim de permitir aos Consumidores e Estabelecimentos Comerciais saber o estado e localização do Estafeta durante a recolha ou entrega”.

- E, do ponto 9.3 dos Termos e Condições que “Ao utilizar a aplicação fornecida pela A... para a execução da relação e, portanto, para exercer a atividade, a A... pode receber os dados de geolocalização do Estafeta caso o mesmo tenha ativado esta função diretamente no seu telemóvel. A A... usará os Dados obtidos para prestar os Serviços ao Estafeta e partilhá-los com o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial cujo pedido o Estafeta aceitou executar, para que o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial possam contactar o Estafeta no caso de algum incidente. É expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e especificação dos seus serviços e em nenhum caso a A... utilizará esses dados para fins de controlo.”.

- E do quadro do ponto 9.4 do Termos e condições consta que “A geolocalização é uma informação importante e básica para a prestação do Serviço, porquanto serve apenas para informar o Estabelecimento Comercial ou o Utilizador Cliente da localização do Estafeta e, portanto, calcular o tempo de recolha ou entrega, mas que é também usada pela A... para a oferta de pedidos. A proximidade do ponto de recolha é um dos critérios utilizados no momento da oferta do pedido, pelo que, se não estiver ativada, a A... não poderá garantir que são oferecidos pedidos, ou que são razoáveis em termos do tempo previsto de recolha ou entrega. Neste sentido, e sem prejuízo do sistema operativo do dispositivo do Estafeta que pede consentimento para o uso da geolocalização, a utilização desta informação é necessária para correta execução dos Termos e Condições. Em qualquer caso, o Estafeta poderá desativar a geolocalização quando já tiver aceitado o pedido oferecido pela Plataforma ou quando não estiver prestando serviços, embora a A... não utilize esta informação fora do âmbito da oferta de pedidos ou quando o Estafeta está offline da Plataforma A.... De igual modo, é expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e concretização dos seus serviços e em nenhum caso a A... utilizará esses dados para fins de controlo do Estafeta. Neste sentido, a geolocalização é meramente temporária e não de modo algum exaustiva. A informação de geolocalização pode também ser usado para efeitos de faturação (a fim de obter informações relativas à quilometragem e despesas atribuíveis), bem como em relação à segurança rodoviária, antiterrorismo, branqueamento de capitais ou prevenção de crimes contra a segurança pública, caso no qual pode ser partilhada com as autoridades competentes que a solicitem (por exemplo, Forças do Estado, órgãos do poder executivo ou da polícia)”.

- Os clientes também podem dar feedback sobre o restaurante/estabelecimento comercial, para além do aludido em 23), sendo tais mecanismos facultativos para o utilizador/cliente que pode ou não responder aos mesmos.

- O estafeta é livre de escolher as horas em que pretende exercer a sua atividade, sendo que, só o poderá fazer no período de funcionamento da APP, a qual em ... é das 9h às 23h.

- Para desenvolver a sua atividade o estafeta tem de ter veículo próprio, um telemóvel com acesso à internet e uma mochila de sua pertença.

- O estafeta é responsável pela manutenção e reparação do veiculo, mochila e telemóvel que utiliza, suportando os seus custos.

Por outro lado, como já referimos, a Ré alega que ilidiu a presunção de laboralidade porquanto da matéria de facto dada como provada, na sua globalidade, não resulta a existência de indícios de subordinação jurídica, pelo que, não se pode considerar como contrato de trabalho a relação estabelecida entre os estafetas e a Ré, que apresenta, ao invés, contornos de um contrato de prestação de serviço.

Mais uma vez não acompanhamos a recorrente.

Na verdade, esta matéria de facto provada não permite concluir que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar da Ré, sendo que, ao invés, ressalta dos restantes factos já enunciados supra a existência de subordinação jurídica.

Como referem os Professores Leal Amado e Teresa Moreira[11], considerações que acompanhamos, “o facto de o estafeta não estar sujeito a um dever de assiduidade, de não estar sujeito a um dever de não concorrência, de não possuir um horário de trabalho… tudo isto não parece ser obstáculo decisivo à existência de subordinação jurídica, na nova e disruptiva realidade representada pelo chamado crowwork offline, ou work on demand via apps. Antes, no século XX, era necessário à empresa sujeitar os trabalhadores a deveres de comparência, assiduidade e pontualidade. Atribuir-lhes um horário de trabalho, impedi-los de trabalharem para empresas concorrentes, etc. Mas hoje, através da gestão algorítmica de uma multidão de prestadores de atividade disponíveis para trabalhar (daí o termo crowdwork), estas empresas conseguem desenvolver o seu negócio e usufruir da respetiva mão de obra sem necessidade de recorrer a esses institutos tradicionais do Direito do Trabalho, provindos da era industrial. (…)

Também não nos parecer muito relevante, no sentido de descaracterizar a existência de um contrato de trabalho, a circunstância de os estafetas serem pagos em função de cada serviço prestado e depois de o terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação, ou entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de um novo pedido – a retribuição de um trabalhador, como é sabido, pode ser calculada em função do tempo (retribuição certa), mas pode também ser calculada em função de outros fatores, designadamente em função do rendimento do trabalhador (retribuição variável) -, menos ainda o regime fiscal adotado pelas partes. (…)

O grande problema está, repete-se, em determinar aquilo em que consiste a subordinação jurídica, em plena era digital. (…)

Mas a subordinação jurídica não pode ficar refém do paradigma da sociedade industrial, em que todos os aspetos da prestação laboral eram determinados pela entidade empregadora (ou pelos superiores hierárquicos do trabalhador) e em que se registou, como bem observa Lorena Porto, como que <<a sinédoque da subordinação>>. É hoje pacífico que a subordinação jurídica constitui uma noção de geometria variável, comportando uma extensa escala gradativa, sendo inequívoca a flexibilização e a sofisticação da subordinação na sociedade pós-industrial. De resto, isso mesmo é, quiçá, testemunhado, entre nós, pela evolução da própria noção legal de contrato de trabalho, na medida em que o atual Código do Trabalho, de 2009, deixou de aludir à direção da entidade empregadora (como consta do Código Civil, de 1966), substituindo essa ideia pela de inserção no âmbito de organização da entidade empregadora.

A este propósito, escreve, com inteiro acerto, António Monteiro Fernandes: <<A subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua atividade em proveito de outra, no quadro de uma organização de trabalho concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador de trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização de trabalho, ainda que execute a sua atividade sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções”>>. E o Autor acrescenta: <<O elemento chave de identificação do trabalho subordinado há de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria, antes se integrar numa organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios, o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador – à autoridade deste, em suma, derivada da sua posição na mesma organização>>.

E, como já referimos, no livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021 poder ler-se, que “a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital.”

Na verdade, ao contrário do alegado pela recorrente, e como resulta do preenchimento das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do CT, o estafeta AA está integrado na organização de trabalho da Ré, sujeito às regras por esta definidas, ao poder de direção e disciplinar da mesma, pelo que, existe a subordinação jurídica característica essencial de uma relação laboral.

No mesmo sentido que vimos propugnando foram proferidos os acórdãos da RG, de 03/10/2024 e de 31/10/2024, disponíveis em www.dgsi.pt.

Pelo exposto, ao contrário do alegado, a Ré não ilidiu a presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A, do CT.

Desta forma impõe-se reconhecer a existência de um contrato de trabalho tal como consta da sentença recorrida.

4ª questão
Se a norma constante do artigo 12.º-A do CT é inconstitucional.
Alega a recorrente que:

- Caso se venha a considerar verificada a presunção constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, a aplicação do disposto no artigo 12.º-A do Código do Trabalho à situação nos presentes autos seria ilegal, porquanto o teor daquele artigo é manifestamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º n.º 2 e 3 e 61.º da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, na sentença recorrida decidiu-se inexistir a invocada inconstitucionalidade.

Vejamos:

Dispõe o artigo 13.º da CRP, sob a epígrafe “Princípio da igualdade” que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”

Resulta do artigo 18.º da mesma lei fundamental que “2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”

E o artigo 61.º da mesma LC estabelece que “1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral. (…)

5. É reconhecido o direito de autogestão, nos termos da lei.”

Avançamos, desde já, que não acompanhamos a recorrente.

Na verdade, não vislumbramos qualquer violação do princípio da igualdade, na medida em que o citado artigo 12.º-A, do CT visa regular uma nova realidade, qual seja, a da prestação de trabalho no âmbito de plataforma digital, nova forma de prestação de trabalho que exigiu uma resposta do direito do trabalho e a consequente necessidade de criação de um regime próprio no que concerne à presunção de laboralidade, não configurando o mesmo qualquer discriminação das plataformas digitais, na medida em que a proibição de discriminações não exige igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferentes tratamentos.

Como refere Gomes Canotilho e Vital Moreira[12], “o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.”

Acresce que também não se nos afigura que exista uma limitação inadmissível do direito de iniciativa económica privada, desde logo, porque conforme resulta do n.º 1 do citado artigo 61.º da CRP, a liberdade de iniciativa económica privada encontra-se condicionada pelo interesse geral, embora a sua restrição se tenha de limitar ao necessário nos termos previstos no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, ou seja, no caso de conflito de direitos pode ocorrer restrição legítima de direitos, liberdades e garantias.

Ora, resulta do disposto no artigo 58.º da CRP que:

“1. Todos têm direito ao trabalho.

2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover:

a) A execução de políticas de pleno emprego. (…)”.

A execução desta política traduz-se “primordialmente numa política económica que tenha como objetivo a realização e a manutenção do nível mais elevado e mais estável possível de emprego e que favoreça a criação de postos de trabalho. Esta incumbência do Estado articula-se com a de <<assegurar a plena utilização das forças produtivas>> (art. 81º/c) e, só por si, constitui fundamento constitucional para a regulação e planeamento público da economia (cfr. arts. 90º e ss.).[13]

Assim sendo, perante a nova realidade do trabalho em plataformas digitais e a inadequação da presunção do artigo 12.º do CT prevista para as relações de trabalho na era pré digital, encontra-se justificada a limitação imposta ao direito de iniciativa económica privada pela presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A do CT e, consequentemente, esta norma não sofre da inconstitucionalidade que lhe é assacada.

                                                             *

Desta forma, na improcedência das conclusões da recorrente, impõe-se a manutenção da sentença recorrida

                                                             *

                                                             *

IV – Sumário[14]

(…).

                                                                         *

                                                             *

V - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso, acorda-se em:

- ordenar o desentranhamento do documento junto pela Ré nos termos supra enunciados, condenando-se a Ré na multa de 0,5 UC e

- manter a sentença recorrida.

                                                             *

                                                             *

Custas a cargo da Ré recorrente.

                                                             *

                                                             *


Coimbra, 2024/12/11

                                                                                              ____________________  

(Paula Maria Roberto)  

________________

                                                                                                     (Felizardo Paiva) 

                                                                                                       ___________________

                                                                                                     (Mário Rodrigues da Silva)  


         

[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Felizardo Paiva
                      Mário Rodrigues da Silva
[2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 737.
[3] Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 2009, pág. 64.
[4] Direito do Trabalho, 13ª edição, Almedina, pág. 143 e segs.
[5] Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. II, SASUC, Coimbra, 1999, pág. 46.
[6] E no qual a ora relatora interveio como 2ª adjunta.
[7] Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, 2020 – II, pág. 141.
[8] Professores Leal Amado e Teresa Moreira, obra citada, págs. 146 a 147.
[9] “A Presunção de Laboralidade nas Plataformas Gigitais”, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Volume IX, idt, Almedina, págs. 23 e 24.
[10] Esta alínea f) refere “instrumentos de trabalho”, no entanto, atenta a relevância da APP da Ré, é nosso entendimento que esta, por si só, determina a verificação de tal circunstância.
[11] As plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótula sobre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024, Observatório Almedina, pág. 4 e segs.
[12] CRP Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 340.
[13] Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, pág. 764.
[14] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.