Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | PROCESSO DE INSOLVÊNCIA REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL GRAU DE SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS | ||
Data do Acordão: | 10/25/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 23.º, N.º 7 DO ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL | ||
Sumário: | I – Para determinação da remuneração variável a que tem direito o administrador da insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26-2 e alterado pela Lei n.º 9/2022, de 11-1, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos.
II – Assim, no cálculo da majoração importa ter em conta a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos. | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Emídio Francisco Santos Adjuntos: Catarina Gonçalves Maria João Areias Processo n.º 318/12.0TBCNT.C1
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
AA, administradora da insolvência de BB, requereu lhe fosse fixada a remuneração variável no montante de € 15 863,35. Para o efeito alegou: O Instituto de Segurança Social, credor do insolvente, alegou que a remuneração variável não fora calculada correctamente pela administradora, por o montante correcto ser o de € 8 069,10, conforma folha de cálculo que anexou. A Meritíssima juíza do tribunal a quo fixou a remuneração variável à administradora da insolvência em € 8 824,91 (oito mil oitocentos e vinte e quatro euros e noventa e um cêntimos), a que acresceria o respectivo IVA, de € 1.895,87 (mil oitocentos e noventa e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), num total de € 10.138,77 (dez mil cento e trinta e oito euros e setenta e sete cêntimos). A administradora da insolvência não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da decisão recorrida por outra que fixasse a remuneração variável no valor de € 16 005,37, já com IVA incluído. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Não houve resposta ao recurso * Questões suscitadas pelo recurso · Saber se a decisão recorrida violou o n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial; · Em caso de resposta afirmativa, saber se a decisão recorrida é de revogar e de substituir por decisão que fixe a remuneração variável no valor de € 16 005,37, já com IVA incluído. * Apesar de a decisão recorrida não ter discriminado os factos que serviram de base à decisão, laborou com base na seguinte realidade que não foi impugnada pela recorrente: 1. As receitas da liquidação ascenderam a € 160 895,02. 2. As despesas da massa aprovadas no apenso de prestação de contas foram de € 23 901,24. 3. As custas do processo de insolvência foram de € 3 931,50. 4. O total dos créditos reconhecidos foi de € 530 339,03. 5. O resultado da liquidação foi de € 135 522,28. * Descritos os factos, passemos à resolução das questões acima enunciadas. A primeira questão é a de saber se a decisão recorrida violou o n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, cujos termos são os seguintes: “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respectivo valor pago previamente à satisfação dos credores”. A resposta a esta questão passa necessariamente pela interpretação do citado preceito. Antes de nos pronunciarmos sobre tal interpretação, importa contextualizar a norma no âmbito da disciplina relativa à remuneração do administrador. O n.º 1 do artigo 60.º do CIRE afirma que o administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis. O estatuto do administrador que releva para o caso é o aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril e pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro. Prevê o seguinte em matéria de remuneração do administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz: A parte da remuneração que está em questão no recurso é apenas a majoração da remuneração variável. O despacho recorrido entendeu que a majoração implicava a realização das seguintes operações: A recorrente contrapõe que a determinação da majoração implica: Apreciação do tribunal: Como se vê a diferença substancial – que motiva o recurso - entre as duas interpretações é a seguinte: enquanto a decisão recorrida entrou em linha de conta no cálculo da majoração com a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos, a recorrente desconsidera essa percentagem. E desconsidera-a com a justificação de que a referência, no n.º 7 do artigo 23.º do estatuto, ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se encontra entre vírgulas, pelo que se trata de uma referência lateral que não entra nos elementos a ter em conta no cálculo da majoração. Pese embora o respeito que nos merece a interpretação da recorrente, entendemos que ela não tem amparo nos critérios de interpretação da lei enunciados no artigo 9.º do Código Civil. Vejamos. A interpretação da lei tem como base e como limite a respectiva letra. A letra é a base à interpretação pois é por ela que deve começar a interpretação. Funciona como limite, pois segundo o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil a lei não poderá valer com um sentido que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Sobre a importância da letra na interpretação, importa dizer, socorremo-nos das seguintes palavras de Manuel de Andrade, que “… a letra da lei não servirá apenas para traçar o quadro dos sentidos legais possíveis. Compete-lhe ainda propor uma graduação entre eles. É que uns terão no texto uma expressão bastante natural, desafogada e perfeita; outros, pelo contrário, só uma expressão mais ou menos constrangida, desairosa, inapropriada. Daí uma certa razão de preferência a favor dos sentidos com melhor qualificação literal, mesmo não sendo eles, simultaneamente, os portadores das soluções mais justas” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 26]. Guiados por estas palavras, há que reconhecer que nenhum dos sentidos em confronto é excluído pela letra do n.º 7 do artigo 23.º do estatuto. Com efeito, a letra da lei tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante créditos satisfeitos. Ao dizer que “o valor alcançado … é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitido” relaciona a majoração com o grau de satisfação dos créditos reclamados. Ao afirmar que o “valor alcançado é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos” associa a majoração com o montante dos créditos satisfeitos. Mas se nenhum dos sentidos é excluído pela letra, aquele que tem nela a melhor expressão é o que lhe foi dada pela decisão recorrida. Com efeito, enquanto este dá conteúdo útil a tudo que se afirma no preceito, o sentido que lhe é dado pela recorrente despreza um dos segmentos do preceito, concretamente aquele que afirma que o valor da remuneração variável é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Como já se escreveu acima, a recorrente justifica esta desconsideração, dizendo que a referência ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se encontra entre vírgulas, pelo que se trata de uma referência lateral que não entrava nos elementos a ter em conta no cálculo. De acordo com esta lógica argumentativa o n.º 7 do artigo 23.º devia ser interpretado como se os termos dele fossem os seguintes: “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos”. Esta leitura do preceito tem contra si o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, na parte em que dispõe que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Com efeito, por força dela é de presumir que o legislador, ao estabelecer que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Ora, o pensamento que está compreendido no referido segmento é o de que a majoração depende também do grau de satisfação dos créditos. Na verdade, quando se diz que um valor é calculado em função de um certo elemento quer-se dizer que o valor depende desse elemento. Segue-se do exposto que a letra do preceito aponta no sentido da interpretação feita pela decisão recorrida. Depõe igualmente neste sentido os respectivos antecedentes legislativos. Vejamos. O artigo 23.º do estatuto do administrador da insolvência que está sob interpretação tem como antecedentes o artigo 20.º da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho (estatuto do administrador da insolvência revogado pela Lei n.º 22/2013)) e a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro. O artigo 20.º do anterior estatuto, à semelhança do que sucede com o actual, previa uma remuneração fixa, uma remuneração variável e uma majoração desta última, mas remetia para portaria conjunta dos Ministros da Finanças e da Justiça o montante da remuneração fixa e o cálculo da variável e da majoração. No que dizia respeito à remuneração variável, dispunha que o administrador auferia tal remuneração em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado na tabela constante da portaria (n.º 2 do artigo 20.º). No que tocava à majoração da remuneração variável, dispunha que o valor alcançado por aplicação da tabela constante da portaria era majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria (n.º 4 do artigo 20.º). Ao abrigo da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, o Governo aprovou a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, que compreendia o montante fixo de remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz e as tabelas relativas ao montante variável de tal remuneração. A tabela relativa à majoração da remuneração variável era composta por duas colunas, em conformidade com o que previa o n.º 4 do artigo 20.º: uma relativa à percentagem dos créditos admitidos que fora satisfeita e outra com a indicação dos factores de majoração. A conjugação do n.º 4 do artigo 20.º com a tabela não deixava dúvidas quanto ao seguinte: Esta solução estava em linha com a razão de ser da remuneração variável, concretamente: incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível para a satisfação dos credores. Quanto maior fosse a percentagem de créditos satisfeitos maior seria a remuneração variável. O estatuto aprovado pela Lei n.º 32/2004 foi revogado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou novo estatuto do administrador judicial, ainda em vigor, embora com as alterações que lhe foram introduzidas pelos seguintes diplomas: Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, Decreto-lei n.º 52/2019, de 17 de Abril, lei n.º 79/21, de 24-11 e Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro. No novo estatuto a remuneração do administrador passou a estar prevista no artigo 23.º. As disposições deste preceito sobre a remuneração variável e respectiva majoração (números 2 e 5) não diferiam das disposições do anterior estatuto sobre igual matéria. Em 2019, a redacção dos números 2 e 3 do artigo 23.º foi alterada pelo Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril. As alterações consistiram no seguinte: A redacção do artigo 23.º volta a ser alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, redacção que é a relevante para o caso. Comparando a redacção anterior com a actual, a primeira diferença que importa assinalar entre elas é a de que esta deixou de remeter a fixação dos valores da remuneração do administrador para diploma regulamentar (portaria). A regulamentação da remuneração passou a ser feita no estatuto (artigo 23.º). Este passou a ser auto-suficiente em matéria de fixação dos valores da remuneração do administrador. A regulamentação passou a ser a seguinte: Comparando as redacções dos preceitos relativos à majoração da remuneração variável, vemos que a nova redacção manteve a afirmação de que majoração é feita em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e satisfeitos. A alteração residiu apenas no semento final do preceito: onde antes se dizia, “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” diz-se agora “em 5% do montante dos créditos satisfeitos”. O sentido da alteração é apenas o seguinte: na versão actual, em vez de se aplicarem os factores referidos na Portaria (Anexo II), aplica-se a taxa de 5%. E, assim, qualquer que seja o grau de satisfação dos créditos aplica-se sempre a mesma taxa (5%). A ilação a tirar desta evolução legislativa é a de que o grau (percentagem) de satisfação dos créditos reclamados e admitidos mantém-se como um dos factores determinantes da majoração da remuneração variável. Se assim não fosse, seria de esperar que a proposta de Lei que esteve na origem da alteração do artigo 23.º do actual estatuto do administrador da insolvência fizesse menção a tal alteração, o que não sucedeu. Na verdade, a proposta de lei em questão, que foi apresentada pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata, como proposta de alteração à proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª que deu origem ao processo legislativo que culminou com a aprovação a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, é completamente omissa quanto às razões da alteração do artigo 23.º do estatuto. Por último cabe dizer que não vale contra a decisão a alegação de que a interpretação da decisão não era compatível com o elemento teleológico. Vejamos. Socorrendo-nos mais uma vez das palavras de Manuel Andrade, “na indagação do sentido mais justo deve tomar-se em conta a razão da lei (ratio legis – a valoração dos interesses que lhe está subjacente a finalidade que a inspirou …” (obra supracitada página 27). Sabe-se qual é o objectivo da remuneração variável. Eles foram expostos na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] nos seguintes termos: “No que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da actividade”. A interpretação da decisão recorrida, ao relacionar a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos, está em inteira conformidade com o propósito de a remuneração variar “em função da efectiva satisfação dos créditos”. Diga-se, por fim, que na interpretação afirmada nesta decisão foram tidos em consideração os seguintes acórdãos proferidos nesta 1.ª secção cível sobre casos análogos: o proferido, em 28 de Setembro de 2022, na apelação n.º 2495/20.78ACB [cuja relatora foi a ora 1.ª juíza-adjunta e cuja primeira juíza-adjunta foi a ora 2.ª juíza-adjunta] e o proferido, em 11 de Outubro de 2022, na apelação n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1 [no qual o ora relator interveio como 1.º juiz-adjunto e a ora 1.ª juíza-adjunta interveio como 2.ª juíza-adjunta]. Por todo o exposto, improcede a alegação de que a decisão violou o n.º 7 do artigo 23.º do estatuto do administrador judicial. * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas. Coimbra, 25 de Outubro de 2022
|