Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
283/18.0T8CLD-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: DECISÃO ABSOLUTÓRIA EM PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
TRÂNSITO EM JULGADO
VALOR PROBATÓRIO EM AÇÕES DE NATUREZA CIVIL
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
Data do Acordão: 05/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE CALDAS DA RAINHA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 624.º E 625.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: A decisão proferida em processo contraordenacional, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação 283/18.0T8CLD-E.C1

Relator: Felizardo Paiva.

Adjuntos: Paula Roberto.

 Mário Rodrigues da Silva


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Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., S.A., co-ré nos autos de que os presentes são um dos apensos e em que é sinistrado AA veio, por requerimento de 14.02.23, informar o seguinte:

“1. A sentença do presente processo de acidente de trabalho, datada de 12-05-2021, baseou-se em exclusivo nas informações constantes do inquérito da ACT para imputar à R. as seguintes violações de deveres de segurança e saúde no trabalho: «(…) com especial relevância, no relatório, para as alíneas c) (inexistência de proteção coletiva nos rolos, isto é, não existia qualquer barreira física entre o trabalhador e as partes móveis do equipamento, fotografias a fls. 346- 350), alínea h) (medidas de prevenção adotadas pela entidade empregadora do sinistrado para prevenir os riscos inerentes à operação efetuada aquando do acidente), alínea i) (inexistência de avaliação de riscos da tarefas/operação de alinhamento da tela transportadora da linha de lavagem de areias da pedreira, à data do sinistro), alínea j) (aplicação de medidas corretivas com implementação de procedimentos lock out, try out, tag out e elaboração e ficha de segurança para a utilização e manutenção de máquinas e equipamentos), alínea k) (apesar da frequência de ações de formação certificadas a fls. 393 e 394, o A. não frequentou formação específica para a tarefa/operação de alinhamento de telas transportadoras, apesar da mesma fazer parte das suas tarefas) (…)».

E concluiu da seguinte forma:

«O Tribunal não tem dúvidas, também, de que no momento em que o A. estava a movimentar a porca com o auxílio da chave inglesa, por razões que o próprio não conseguiu explicar, o braço, a manga do braço direito, foi colhida pela tela em movimento e, porque esta seguiu em movimento, acabou por arrancar o braço do A. – por não haver qualquer barreira/rede/proteção que impedisse o contacto com a tela transportadora, nem tão pouco mecanismo de emergência que interrompesse o funcionamento da tela transportadora (e colocado após o sinistro)».

É, portanto, desta maneira, exclusivamente com base no inquérito da ACT, que o tribunal imputou à R. a violação das normas consignadas no art. 15.º n.º 1, n.º 2, alíneas a), c) e d), e n.º 3 da Lei n.º 102/2009 e, simultaneamente, mesmo sem apurar a dinâmica do sinistro, estabeleceu o nexo de causalidade entre esta violação e o sinistro e danos sofridos pelo trabalhador.

Lendo toda a sentença, forçoso será concluir que, não fossem os autos e relatórios do inquérito da ACT, que – como é consabido – fazem fé pública, não existiriam quaisquer elementos no processo de acidente de trabalho que demonstrassem a violação de quaisquer regras de segurança e saúde no trabalho por parte da R., ou seja, a condenação da entidade empregadora neste processo assentou decisivamente naquilo que a Inspetora-Autuante autuou e registou durante as visitas inspetivas, independentemente da sua veracidade, rigor, validade ou razoabilidade.

2. A ACT aguardou que fosse proferida sentença neste processo para prosseguir com o processo (inspetivo) de contraordenação. E a decisão sancionatória que esta autoridade administrativa veio a tomar coincide plenamente, quanto às suas imputações e quanto às suas considerações de facto e de direito, com aquela sentença.

Assim foi, porque quer a sentença quer a decisão sancionatória se alicerçaram exclusivamente nos autos e relatórios do inquérito da ACT.

Portanto, a ACT imputou à R. o incumprimento dos mesmos normativos de segurança e saúde no trabalho e estabelece o mesmo nexo causal entre esse incumprimento e o sinistro/danos sofridos pelo trabalhador AA que a sentença do processo de acidente de trabalho também imputara/estabelecera.

3. Porém, em sede de sentença do recurso de contraordenação, veio este douto tribunal (o mesmo que proferira a sentença do presente processo de acidente de trabalho) a tecer o seguinte julgamento acerca da decisão sancionatória da ACT: «Toda a prova foi avaliada à luz das regras de experiência comum e estribada na livre convicção do julgador, resultando claro que a versão construída em sede de inspeção, com base nos elementos apontados, foi acolhida acriticamente na decisão proferida, sem se averiguar qual a concreta responsabilidade da arguida na avaliação dos riscos respeitantes à tarefa (de alinhamento) em causa, ao seu modo de execução ou à configuração do equipamento.

A factualidade dada como não provada respeitante ao elemento subjetivo e conclusivamente descrito na decisão administrativa, resulta de não se poder enquadrar qualquer conduta omissiva da arguida no que respeita à avaliação de riscos daquela tarefa específica – (…), inexistindo qualquer prova quanto à dinâmica específica do acidente ocorrido, ou quanto ao modo com o trabalhador sinistrado procedeu à tarefa em causa.

(…)

Os autos, em face quer da prova obtida pela entidade administrativa, quer da produzida pela arguida, demonstram que:

- a Pedreira beneficia de um “Plano de Lavra”, elaborado em setembro de 2003, aprovado pela Direção de Serviços de Recursos Geológicos da Direção Regional de Lisboa e Vale do Tejo do Ministério da Economia, do qual consta um Plano de Segurança e Saúde no Trabalho (PSST) com análise dos riscos da atividade de exploração, identificação das medidas de prevenção e distribuição de sinalização, por forma a evitar/minimizar o aparecimento de riscos e doenças profissionais;

- que desde que foi elaborado, não houve qualquer alteração no local, nas condições, na organização, nos métodos e /ou instrumentos de trabalho da Pedreira, que possa influenciar, modificar ou agravar os riscos profissionais ou que obrigue à adoção de quaisquer medidas preventivas para além das já existentes;

- que a empresa exploradora da mesma (B..., SA), através dos serviços de SST, procede à vigilância e avaliação contínua e permanente das instalações e equipamentos, com consulta aos próprios trabalhadores, para avaliação quer dos riscos profissionais ou tomada de novas medidas preventivas;

- que todos os trabalhadores da Pedreira, incluindo o sinistrado, receberam formação sobre as regras contidas naquele Plano e dos serviços de SST;

- que em 27/02/2016 o trabalhador identificado em 2 frequentou ação de formação profissional sobre Segurança de Máquinas e Equipamentos, com a duração de 16 horas;

- que os trabalhadores da linha de lavagem, tendo sido consultados em 26/10/2016, em matéria de SHST pela “B..., SA”, não identificaram quaisquer riscos em relação à mesma;

- que sempre que a empresa exploradora da Pedreira, através do seu Departamento de RH e/ou dos Serviços de SST se apercebia que os trabalhadores da Pedreira não atuavam com pleno respeito das

prescrições de segurança, prontamente os redarguia e emitia ordens para que retificassem a sua conduta.

(…)

Decorre da factualidade provada que: a tarefa de alinhamento da tela é realizada com uma chave inglesa de, pelo menos, 40 cm, de comprimento e não implica o acesso a qualquer zona móvel da linha de lavagem, efetuando- se da parte exterior com a referida chave inglesa, sendo que a mão do operador fica afastada da tela por uma distância de (pelo menos) 40 cm; na parte exterior do equipamento, fazendo parte integrante deste, e antes da zona de acesso à porca de alinhamento, estão colocadas duas barras em ferro, em forma de “X”; a tela de lavagem não estava munida de qualquer protetor que impedisse o acesso dos

trabalhadores aos seus elementos móveis, mas dispõe de um dispositivo (cabo) para imobilizar a tela antes de proceder ao alinhamento; a zona onde se executa o alinhamento é exígua e apertada, dada a existência de uma parede ao lado, e apenas é acedido pelos trabalhadores quando há necessidade de realizar essa tarefa/operação; e que todos os trabalhadores, incluindo o sinistrado, receberam instruções específicas da “B..., SA” para imobilizar o equipamento (linha de lavagem) antes de proceder ao alinhamento da tela; não obstante, todos eles (incluindo o sinistrado), em contrário das instruções recebidas, procediam ao alinhamento com o equipamento ligado (por ser mais rápido), nunca tendo ocorrido, até à data do acidente com o identificado trabalhador, qualquer espécie de sinistro.

(…)

A avaliação de riscos profissionais não tem de ser realizada por referência a concretas tarefas, mas apenas prever os riscos que as condições físicas e a organização das suas instalações podem representar para os trabalhadores ou prestadores ocasionais.

E de acordo com a factualidade acima descrita, o risco de acidente na zona de lavagem, bem como o sinistro ocorrido com o identificado trabalhador, seriam totalmente imprevisíveis quer pela arguida, quer pela “B..., SA” enquanto empresa exploradora da pedreira.

(…)

Quedando-nos no plano hipotético, quanto às circunstâncias como ocorreu o acidente de trabalho, tudo indica que o mesmo resulta de um comportamento pouco prudente do identificado trabalhador, que não imobilizou o respetivo equipamento, em contrário de elementares regras de segurança, em face das informações recolhidas nas formações que lhe foram ministradas e das orientações recebidas para realização aquela concreta tarefa. Não podendo assacar-se à arguida qualquer responsabilidade pela prática da infração imputada, impondo-se a sua absolvição no que respeita ao Processo ...72....» (pp. 19, 29 a 33 e 35).

A sentença do recurso de contraordenação desconstruiu, assim, todas as imputações e considerações constantes do inquérito e decisão da ACT e que, como já vimos supra, foram utilizadas decisivamente na fundamentação e desfecho da sentença do presente processo de acidente de trabalho. Efetivamente, o provimento da impugnação da decisão da ACT implica, necessária e logicamente, que a imputação de um [suposto] incumprimento das regras consignadas no art. 15.º, n.º 1, n.º 2, alíneas a), c) e d), e n.º 3 da Lei n.º 102/2009 tenha sido judicialmente invalidado, caindo por terra todas as imputações e juízos efetuados na sentença dos presentes autos.

4. Face ao exposto, afigura-se-nos que existe uma notória contradição de julgados, nomeadamente entre a decisão proferida por este douto tribunal no âmbito do recurso de contraordenação, transitada em julgado em 26-04-2023, e a decisão proferida pelo mesmo tribunal no âmbito do presente processo de acidente de trabalho, transitada em julgado somente em 09-06-2023 (cfr. certidão de 06-07-2023, ref.ª 104376101).

E, assim sendo, não pode a R. deixar de dar cumprimento ao disposto no art. 625.º n.º 1 do CPC[1].

É que, com o devido respeito por opinião diversa, tendo a R. sido absolvida no processo de recurso de contraordenação, entende que não tem de dar cumprimento à decisão dos presentes autos, que transitou posteriormente à daqueloutro processo, assim como não tem de dar cumprimento ao disposto no despacho de 29-11-2023 (ref.ª 105562821)”.


+

Na sequência do requerido foi proferido em 15.01.24, o despacho que se transcreve:

A questão suscitada pela R. “A...” não preenche os pressupostos para a aplicação do art.º 625.º do Código de Processo Civil aos presentes autos[2].

Com efeito, não estamos perante duas sentenças proferidas sobre a mesma pretensão:

- nos presentes autos, apuraram-se os direitos do A. a ser ressarcido por força do acidente de trabalho sofrido, no que também se decidiu sobre a responsabilidade da R. à luz do disposto no art.º 18.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, mas também por insuficiência do montante da retribuição anual transferida para a R. “C...”;

- nos autos de impugnação judicial cuja certidão foi agora junta apurou-se da responsabilidade da R. “A...” emergente de ilícitos contra- ordenacionais.

Assim, os fins e a natureza das questões objeto de uma e de outra ação afastam a possibilidade de estarmos perante «a mesma pretensão» a que se refere o n.º 1 do art.º 625.º.

Nestes termos, por não haver casos julgados contraditórios, indefere-se o requerido”.


***

II. Não se conformando com esta decisão dela a ré A... veio apelar, concluindo:

I. Por sentença de 12-05-2021, a R. foi condenada no âmbito dos presentes autos de acidente de trabalho.

II. Por acórdão de 22-10-2021 proferido em sede de apelação, aquela sentença foi totalmente confirmada, mantendo-se a condenação da R..

III. Por acórdãos de 15-12-2022 e de 24-05-2023, foram julgados improcedentes os recursos de revista normal e excecional apresentados pela R.,

IV. Tendo o último aresto dos presentes autos (portanto, o acórdão de 24-05- 2023) transitado em julgado no dia 08-06-2023.

V. Após a prolação da sentença de 12-05-2021, a ACT retomou o processo inspetivo-contraordenacional (que tinha estado parado desde 15-06-2018 até 31-05-2021) e concluiu-o com a aplicação de decisão sancionatória coincidente com aquela sentença.

VI. A R. apresentou recurso de contraordenação, que correu termos no mesmo tribunal dos presentes autos, sob o n.º 1287/22....,

VII. No âmbito do qual, por meio de sentença de 17-03-2023, a R. foi absolvida de todas as contraordenações que lhe vinham imputadas,

VIII. Sentença que transitou em julgado em 26-04-2023.

IX. As questões centrais sobre as quais o presente processo de acidente de trabalho e aquele recurso de contraordenação incidiram eram exatamente as mesmas, assim como o contexto jurídico e factual também o era.

Não obstante,

X. o sentido das decisões de um processo e do outro acabou por ser totalmente contraditório. Com efeito,

XI. Lendo toda a sentença do presente processo de acidente de trabalho, forçoso será concluir que, não fossem os autos e relatórios do inquérito da ACT, que – como é consabido – fazem fé pública, não existiriam quaisquer elementos no seu âmbito que demonstrassem a violação de quaisquer regras de segurança e saúde no trabalho por parte da R. Ou seja,

XII. a condenação da entidade empregadora nestes autos assentou decisivamente naquilo que a Inspetora-Autuante autuou e registou durante as visitas inspetivas, independentemente da sua veracidade, rigor, validade ou razoabilidade.

XIII. Porém, a sentença do recurso de contraordenação (proferida pelo mesmo tribunal) desconstruiu todas as imputações e considerações constantes do inquérito e decisão da ACT, concomitantemente desconstruindo também a fundamentação da sentença do presente processo de acidente de trabalho.

Efetivamente,

XIV. o provimento da impugnação da decisão da ACT implica, necessária e logicamente, que a imputação de um [suposto] incumprimento das regras consignadas no art. 15.º, n.º 1, n.º 2, alíneas a), c) e d), e n.º 3 da Lei n.º 102/2009 tenha sido judicialmente invalidado, caindo por terra todas as imputações e juízos efetuados na sentença dos presentes autos.

XV. Assim, em conformidade com o disposto no art. 625.º n.º 1 do CPC, entende a R. que se verifica uma insuprível e incontestável contradição de julgados e que, tendo a sentença do recurso de contraordenação transitado em data anterior à da sentença dos presentes autos (relembre-se: aquela a 26-04-2023; esta a 08-06-2023), deve prevalecer e cumprir-se a que passou em julgado em primeiro lugar, ou seja, deve prevalecer e cumprir-se a sentença do recurso de contraordenação.

XVI. Perante esta contradição de julgados e perante a infirmação da prova que serviu de base à sentença dos presentes autos de acidente de trabalho, a R. apresentou recurso de Revisão, que se encontra a correr os seus termos no douto Tribunal da Relação de Coimbra – 6.ª secção – sob o n.º 283/18.....

XVII. Não obstante, o douto tribunal a quo notificou, ainda assim, a R. para comprovar o cumprimento da condenação por si determinada.

XVIII. A R. informou o douto tribunal a quo da supramencionada contradição de julgados e do facto de se encontrar em curso recurso de revisão, concluindo que, por isso, não tem de dar cumprimento à decisão dos presentes autos segundo o art. 625.º n.º 1 do CPC.

XIX. Contudo, por decisão de 15-01-2024, o tribunal a quo avançou, em súmula, que “os fins e a natureza das questões objeto de uma e de outra ação afastam a possibilidade de estarmos perante «a mesma pretensão» a que se refere o n.º 1 do art.º 625.º” e que “Nestes termos, por não haver casos julgados contraditórios, indefere-se o requerido.”.

XX. A R. não se conforma com o ora decidido, pois a ratio legis do normativo consignado no art. 625.º n.º 1 do CPC é precisamente o de impedir que os tribunais tomem decisões incompatíveis entre si, seja no que respeita à matéria de facto ou de direito, seja no que respeita à eficácia de tais decisões, por forma a proteger o princípio constitucional da certeza, segurança e confiança jurídicas, inclusivamente a própria confiança dos cidadãos nos tribunais.

XXI. É totalmente inadmissível que, perante a mesma matéria de facto e de direito e acerca das mesmas imputações, a R. seja simultaneamente absolvida e condenada pelo mesmo tribunal, sendo obrigada a cumprir uma condenação que transitou posteriormente à absolvição.

XXII. Como tal, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que reconheça a contradição de julgados e que determine a inaplicabilidade da  entença de 12-05-2021 por ser incompatível com o trânsito em julgado da sentença do recurso de contraordenação.

Termos em que, deverá a decisão de 15-01-2024 proferida pelo douto tribunal a quo ser revogada e substituída por acórdão que reconheça a contradição existente entre a sentença de 12-05-2021 e a sentença de 17- 03-2023 e que, em cumprimento do disposto no art. 625.º n.º 1 do CPC, determine a prevalência e cumprimento apenas desta última, porquanto transitou em julgado em primeiro lugar.


+

Contra alegou o autor sinistrado, concluindo:

(…).


+

Respondeu também o MºPº em 1ª instância alegando que:

(…).


+

O Exmº PGA emitiu fundamentado parecer nos seguintes termos:

(…).

7. Por tudo o exposto, somos de parecer, no respeito por opinião contrária, que a douta Apelação deve(rá) ser rejeitada, por extemporânea, ou caso assim não se entenda, deve ser julgada improcedente.


+

O recorrente respondeu a este parecer.

***

II – Os factos a considerar são os narrados no relatório do presente acórdão.

***

III - Conforme decorre das conclusões da alegação da recorrente que, como se sabe, delimitam o objeto dos recursos, a questão a decidir reside em saber se, no caso, tem aplicação o disposto no artº 625º do CPC (casos julgados contraditórios)

Previamente suscita-se a questão de saber se a decisão é recorrível e, sendo-o, se a apelação foi interposta em tempo.

Decidindo:

O recorrente impugna a decisão proferida em 15 de janeiro do corrente ano que decidiu não ser aplicável o disposto no artº 625º do CPC, por inexistirem casos julgados contraditórios e, nessa medida, não se encontrar a recorrente dispensada de cumprir o decidido nos autos de acidente de trabalho.

Esta decisão não reveste a natureza de mero expediente.

Despacho de mero expediente é aquele que se destina a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes (n.º 4 do art.º 156º do Código Processo Civil) ou, no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo.

Ora, o despacho de 15 de janeiro do corrente ano decidiu uma questão jurídica que interferiu no conflito entre as partes não se destinando simplesmente a regular os trâmites processuais.

Daí a sua recorribilidade.

Relativamente à sua extemporaneidade.

Não colhe o argumento de que o despacho proferido em 15.01.2024 mais não faz do que reiterar os despachos anteriores e que o recorrente devia ter impugnado o despacho de 29.11.2023.

Com efeito, o despacho recorrido foi o único que apreciou a questão de saber se ocorre uma contradição de julgados sendo de aplicar, ou não, o disposto no art. 625.º do CPC.

Consequentemente, entende-se que o recurso não é intempestivo.

Da contradição de casos julgados:

Sob a epígrafe “casos julgados contraditórios” dispõe o artº 625º do CPC que: “Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”.

A propósito do âmbito de aplicação deste normativo lê-se (sumário) no Ac. do STJ 04.07.2019 P. 3076/03.5TVPRT-A.P1.S1 in www.dgsi.pt que: “I. A eficácia do caso julgado material exclui toda a situação ou efeito contraditório ou incompatível com aquele que ficou definido na decisão transitada, tendo por finalidade evitar decisões concretamente incompatíveis, isto é, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas. II. A regra da prevalência da primeira decisão transitada em julgado, enunciada no artigo 625º, nº1 do Código de Processo Civil, vale apenas e tão só se a segunda decisão for contraditória com a primeira decisão, ou seja, se decretar efeitos jurídicos incompatíveis com os efeitos decretados pela primeira decisão. III. A contradição prevista no artigo 625º, nº1 do Código de Processo Civil deve referir-se não apenas ao sentido das decisões (condenação e absolvição), mas também aos próprios termos das condenações. IV. Há contradição de julgados não apenas quando a parte dispositiva da segunda decisão é essencialmente diferente da primeira, independentemente de os fundamentos serem ou não os mesmos, mas também quando a parte dispositiva da segunda decisão é idêntica à da primeira, mas a sua fundamentação é essencialmente diferente. V. Diferentemente, há repetição ou conformidade de julgados se a parte dispositiva da segunda decisão e a sua fundamentação não for essencialmente diferente à da primeira decisão. VI. Se a segunda decisão transitada em julgado for conforme com a primeira decisão transitada em julgado, ou seja, se decretar os mesmos efeitos jurídicos, deve ser cumprida a segunda decisão, tornando-se ineficaz a decisão mais antiga a partir da segunda decisão em diante”.

No caso, das duas decisões proferidas (no processo de acidente de trabalho e no processo de contraordenação) não resultaram efeitos jurídicos incompatíveis, nem os termos das decisões são incompatíveis.

Como se refere no despacho impugnado “não estamos perante duas sentenças proferidas sobre a mesma pretensão” e “os fins e a natureza das questões objeto de uma e de outra ação afastam a possibilidade de estarmos perante «a mesma pretensão»”.

Mas, no caso concreto, há que levar em conta que estamos perante uma sentença cível proferida no âmbito do processo especial por acidente de trabalho e uma sentença equivalente a uma sentença penal, proferida no âmbito de um processo contraordenacional, sujeito às regras previstas na Lei nº 107/2009 de 14/09, ao qual são aplicáveis subsidiariamente a normas adjetivas do C. Proc. Penal e as substantivas previstas no Cód. Penal por força do disposto no artº 60º da citada Lei e artºs 32º e 41º do RGCO aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10.

Como a sentença proferida no âmbito do processo contraordenacional foi de absolvição, cai-se no âmbito de aplicação do artº 624º do CPC que sob a epígrafe “eficácia da decisão penal absolutória” dispõe “1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário[3].

Assim sendo, nenhuma contradição pode verificar-se entre a duas decisões, funcionando a sentença penal como uma simples presunção legal da não existência dos factos, presunção esta ilidível.

Ou seja, a sentença penal apenas tem influência no que respeita às regras do  ónus da prova, prevalecendo a presunção dela decorrente sobre outras quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei (nº 2 do citado normativo).


***

IV - Termos em que, se decide julgar a apelação totalmente improcedente com integral confirmação da decisão impugnada

*

Custas a cargo da apelante.

*

Sumário[4]:

(…).


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Coimbra, 16 de maio de 2024

***

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)



[1] Sublinhado nosso.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Sublinhado nosso. Este preceito não abarca toda e qualquer sentença absolutória, designadamente aquele em  que a absolvição emerge do principio in dubio pro reo, mas apenas aquela em que seja demonstrado, pela positiva, que o arguido não praticou os factos que eram imputados e que servem de sustentação à pretensão de natureza cível deduzida autonomamente
[4] Da responsabilidade do relator.