Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1033/10.4TXEVR-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: REVISÃO DE INTERNAMENTO
INIMPUTÁVEL PERIGOSO
REGIME DE LIBERDADE PARA PROVA
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 91º, 92º E 94º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. As finalidades da medida de segurança de internamento são a contenção da perigosidade social do internado e a sua reintegração na sociedade.
II. A colocação em regime de liberdade para prova reclama a existência de razões para esperar que as mesmas possam já ser alcançadas em meio aberto, não se exigindo a cessação da perigosidade que fundou a aplicação da medida, e/ou condições de reintegração já acabadamente conseguidas.
Decisão Texto Integral: *

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Execução das Penas de Coimbra (J3) e no processo de revisão de internamento referente ao internado

AA, nascido a ../../1960,

colocado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra – Unidade de Sobral Cid, onde se executam em simultâneo três medidas de segurança de internamento que lhe foram aplicadas como inimputável perigoso [autor de ilícitos-típicos correspondentes a crimes de incêndio, incêndio tentado, dano e ofensa à integridade física (máximo de dez anos), de roubo tentado (máximo de oito anos), resistência e coacção sobre funcionário e injúria agravada (máximo de cinco anos), estando o limite mínimo das medidas fixado para 29/03/2021 e o máximo para 29/03/2029],

foi em 08/02/2024 proferida decisão que, acolhendo o parecer maioritário do Conselho Técnico (CT) e a promoção do Ministério Público (MP), recusou afinal a colocação do internado em regime de liberdade para prova, mantendo-se a execução do internamento.

2. Dessa decisão recorre o internado, pugnando pela concessão daquela liberdade para prova, das suas motivações de recurso extraindo as seguintes conclusões:

« I – No Código de Processo Penal [CPP] vigente, a regra é a liberdade e a prisão a excepção;

II – Nos termos do art. 91.º/1, do Código Penal [CP], “quem tiver praticado um facto ilícito típico e for inimputável, nos termos do art. 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.

III – Dispõe o art. 92.º/1, do CP, sem prejuízo do n.º 2 do art. 91.º, “o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem”.

IV – O internado compareceu para a audição, e prestou declarações, considerando que “está apto a sair a qualquer momento”.

V – Tem consciência que padece de uma doença mental, da necessidade de medicação, não oferecendo resistência à toma da mesma.

VI – O relatório clínico psiquiátrico, datado de 13/01/2021, pela médica psiquiátrica, a Dr.ª BB, relativamente ao aqui arguido, refere-se que a “perigosidade se encontra diminuída, pensaríamos numa liberdade para prova, mas não tem rede de suporte familiar e aguardamos que o serviço social o encaminhe, pelo que deverá continuar em espera”.

VII – E, o relatório da Segurança Social, datado de 29/01/2021, pela assistente social, a Dr.ª CC “(…) não tem visitas nem contactos telefónicos. Até ao presente momento não decorreu qualquer licença jurisdicional, por ser impossível planeá-la tendo em conta a sua localidade de origem associada à atual situação de pandemia, o que determina o meu parecer desfavorável à sua saída em liberdade para prova”.

VIII – Dois anos depois, o Relatório Social, datado de 21/12/2022, “continua sem qualquer contacto (telefónicos ou visitas) que nos permita trabalhar a sua reinserção social. O período de pandemia impediu a deslocação da equipa a acompanhar o doente à sua comunidade de origem (...) de forma a avaliar a atual situação no que diz respeito à aceitação no meio e condições habitacionais. Oportunamente irá ser planeada esta intervenção com o envolvimento do doente de forma a identificar elementos da comunidade que poderão constituir-se como rede de suporte para a sua futura reinserção social”.

IX – Mais um ano depois, concretamente a 10/01/2022, no Relatório Social, “a situação social mantêm-se inalterável face ao último relatório social. (…) A futura reinserção social terá de contar com o suporte institucional de forma assegurar e gestão terapêutica na medida que o doente não apresente crítica consistente em relação às consequências que decorrem do consumo de produtos tóxicos. O Serviço Social encontra-se a delinear uma deslocação a ... com o objetivo de reunir com os serviços da rede social local de forma a se encontrar plano que permita ao doente beneficiar de integração social”.

X – O Recorrente tem família (cônjuge, três filhos, um irmão mais novo e primo).

XI – Tem habitação própria, tendo sido referido pelo próprio na sua audição, desconhecendo o estado em que se encontra.

XII – Continua a demonstrar vontade e conhecimentos que possibilitam a procura de trabalho na sua área de residência, concretamente na lota.

XIII – Assim sendo, salvo melhor opinião, os pressupostos que levaram à medida de segurança aplicada, já não subsistem, devendo ser concedida liberdade para prova. »

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP, sustentando a correcção do decidido e assim pugnando pela negação de provimento ao recurso, dessa resposta igualmente extraindo conclusões que são as seguintes:

« I – O tribunal fez uma justa apreciação dos factos e uma correcta interpretação e aplicação da norma do n.º 1 do art. 94.º do CP.

II – O internado cumpre, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra – Unidade de Sobral Cid –, em simultâneo, três medidas de segurança de internamento.

III – O prazo máximo de internamento termina a 29/03/2029.

IV – O internado sofre de esquizofrenia paranoide, complicada pelo consumo de substâncias em contexto de politoxicofilia (haxixe, heroína e cocaína). Não apresenta crítica consistente em relação às consequências que decorrem do consumo de produtos tóxicos, nomeadamente os efeitos que, a nível comportamental, podem incluir condutas idênticas às que motivaram o seu internamento. Durante o internamento tem-se mantido abstinente pelo que tem evoluído com boa resposta ao tratamento psicofarmacológico instituído. Para se manter estabilizado necessita de cumprir rigorosamente a terapêutica, o que em meio livre não se mostra, por enquanto, viável. A família não lhe pode prestar o apoio de que necessita. E não foi ainda possível colocá-lo numa institucional adequada.

V – Circunstâncias que não permitem concluir que há razões para esperar que a finalidade das medidas possa ser alcançada em meio aberto.

VI – Pelo que, atento o preceituado no art. 94.º/1, do CP, não se verificam os pressupostos para a colocação do internado em liberdade para prova.

VII – Essa foi a opinião do CT que reuniu a 24/01/2024.

VIII – E, na verdade, todas as informações clínicas e sociais constantes dos autos levam a essa conclusão.

IX – A decisão ora em recurso, que determinou o prosseguimento do internamento, não merece, por isso, reparo. »

   

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a argumentação da resposta do MP, igualmente manifesta o entendimento de que a decisão recorrida deve ser mantida, após o que, cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou – e assim, na sequência de exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e no caso nenhuma destas últimas se colocando, a matéria relevante, como daquelas conclusões se extrai, é simplesmente apreciar a conformidade ou não do decidido com a prescrição do art. 94.º/1, do CP– especificamente, determinar se, segundo sustenta o recorrente, podem afirmar-se verificados os pressupostos da sua colocação em regime de liberdade para prova e assim que esta fosse devida.

1.2. No mais, não tendo sido requerida renovação de provas nem isso se afigurando necessário, e não sendo a decisão recorrida uma tal que conhecesse a final do objecto do processo (nos termos do art. 97.º, n.º 1, a), do CPP), sempre caberia o julgamento do recurso em conferência (art. 419.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP), como sucedeu.   

2. É o seguinte, no que aqui pode importar, o teor da decisão sob recurso, proferida a 08/02/2024:

« (…)

III – Fundamentação

1. De facto

1) AA foi julgado inimputável perigoso, tendo-lhe sido imposta, por decisão proferida no Proc. n.º 277/19...., uma medida de segurança de internamento pelo período mínimo de três anos e máximo de dez anos, pela prática de factos ilícitos tipificados pela lei penal como crimes de incêndio, incêndio tentado, dano e ofensa à integridade física.

2) Por decisão proferida no Proc. N.º 198/17...., foi julgado inimputável perigoso, tendo-lhe sido imposta uma medida de segurança de internamento pelo período máximo de oito anos, pela prática de factos ilícitos tipificados pela lei penal como crime de roubo tentado.

3) Por decisão proferida no Proc. n.º 389/17...., foi julgado inimputável perigoso, tendo-lhe sido imposta uma medida de segurança de internamento pelo período máximo de cinco anos, pela prática de factos ilícitos tipificados pela lei penal como crimes de resistência e coacção sob funcionário e injúria agravada.

4) O limite mínimo das medidas de segurança aplicadas encontra-se fixado para 29/03/2021 e o máximo para 29/03/2029.

5) O internado padece de esquizofrenia paranoide, complicada pelo consumo de substâncias em contexto de politoxicofilia (haxixe, heroína e cocaína).

6) O internado tem-se mantido abstinente pelo que tem evoluído com boa resposta ao tratamento psicofarmacológico instituído, verificando-se remissão dos sintomas psicóticos, mas com persistência de traços mal adaptativos de personalidade de tipo anti social.

7) Não apresenta crítica consistente em relação às consequências que decorrem do consumo de produtos tóxicos, nomeadamente os efeitos que, a nível comportamental, podem incluir condutas idênticas às que motivaram o seu internamento.

8) No exterior, não tem familiares próximos que possam servir de protecção e apoio e ainda não foi possível arranjar colocação institucional adequada.

9) Sem a devida e rigorosa supervisão, pode deixar de tomar a medicação, o que faria com que existisse risco de cometimento de factos da mesma espécie dos que levaram à aplicação das medidas de segurança.

10) O internado tem o 4º ano de escolaridade.

11) Depois de ter deixado a escola trabalhou numa oficina de pintura de automóveis e mais tarde como motorista de longo curso.

12) Casou com 20 anos, tendo de tal casamento uma filha com 40 anos.

13) Posteriormente passou a trabalhar na construção civil.

14) Depois do divórcio teve um outro relacionamento, de que nasceu o seu filho DD, com 39 anos de idade.

15) Mais tarde voltou a casar, tendo um outro filho, maior.

16) Aquando da prática dos factos em causa nos autos estava separado da mulher residindo sozinho numa garagem, sem luz e tomava as refeições num restaurante de um amigo.

17) O internado não mantém o contacto com os filhos, não recebendo visitas, nem telefonemas.

18) Ainda não beneficiou de licenças de saída jurisdicionais.

2. Motivação

Os factos supra indicados tiveram por base o teor do relatório social de fls. 175, do Relatório Clínico-Psiquiátrico de fls. 172, bem como da audição do internado e os pareceres emitidos em CT.

IV – Direito

Preceitua o art. 91.º/1, do CP, que “quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do art.  20.°, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.

Por seu turno, o n.º 2 do citado preceito normativo estabelece que “quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.

Estatui ainda o art. 92.º/1, do CP, que “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem”.

Assim sendo, e com excepção do preceituado no n.º 3 do art. 92.º, do citado diploma legal, o internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável, sendo a revisão da sua situação obrigatória decorrido um ano sobre o início do internamento (ou da decisão que o tiver mantido), podendo a situação, em casos justificados, ser apreciada fora daquela revisão obrigatória, para a cessação ou liberdade para prova, mas sempre respeitando o período mínimo de internamento definido no art. 91.º/1, do CP (cfr. art. 93.º/1, e 94.º, do CP).

Finalmente, se da revisão referida no art. 93.º, do CP, resultar que há razões para esperar que a finalidade da medida possa ser alcançada em meio aberto, o tribunal coloca o internado em liberdade para prova, conforme o disposto no art. 94.º, do CP.

No caso dos autos, da factualidade dada como demonstrada, decorre que o internado continua a não reunir as condições necessárias para a concessão de liberdade para prova.

Com efeito, constata-se que, do ponto de vista clínico, o internado padece de esquizofrenia paranoide, complicada pelo consumo de substâncias em contexto de politoxicofilia (haxixe, heroína e cocaína).

Em internamento tem-se mantido abstinente pelo que tem evoluído com boa resposta ao tratamento psicofarmacológico instituído, verificando-se remissão dos sintomas psicóticos, mas com persistência de traços mal adaptativos de personalidade de tipo anti social.

Com efeito, não apresenta crítica consistente em relação às consequências que decorrem do consumo de produtos tóxicos, nomeadamente os efeitos que, a nível comportamental, podem incluir condutas idênticas às que motivaram o seu internamento.

Na verdade, sem a devida e rigorosa supervisão, pode deixar de tomar a medicação, o que faria com que existisse risco de cometimento de factos da mesma espécie dos que levaram à aplicação das medidas de segurança.

Ora, no caso dos autos, verifica-se que o internado não tem familiares próximos que possam servir de protecção e apoio, e ainda não foi possível arranjar colocação institucional adequada.

Na verdade, apesar de ter três filhos, os mesmos não mantém contacto com o internado, não lhe telefonando, nem sequer efectuando qualquer visita.

Aliás, tem sido por falta de suporte familiar e/ou institucional que o internado ainda não beneficiou de licenças de saída jurisdicionais.

Nestes termos, acompanhando o teor dos relatórios juntos aos autos e do douto parecer que antecede e os pareceres emitidos em CT, entende-se, na ausência do condicionalismo exógeno passível de sustentar a evolução até agora apresentada pelo internado, não existirem condições para a colocação do internado em regime de liberdade para prova.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Na sua argumentação, o recorrente, a despeito de apelar a factos que vão além dos consignados na decisão recorrida, verdadeiramente não a coloca em crise neste plano, não configurando, imperfeitamente que fosse, qualquer impugnação da decisão de facto; o que, considerando que ao escrutínio oficioso dela, também se lhe não lobriga qualquer vício dos previstos no art. 410.º/2, do CPP, deixa o recurso incidente na matéria de direito apenas e, como acima ficou enunciado, especificamente sobre a correcta aplicação ou não do art. 94.º/1, do CP, coisa que obviamente cabe apreciar tendo por referente a factualidade que a decisão recorrida alinhou e que fica intocada. Isto assente, tem de sublinhar-se que no plano do enquadramento conceptual da questão em apreço, o ponto de partida implícito naquela decisão recorrida é em absoluto inquestionável: as finalidades da medida de segurança de internamento são a contenção da perigosidade social do internado e a sua reintegração na sociedade, e a colocação em regime de liberdade para prova reclama a existência de razões para esperar que as mesmas possam já ser alcançadas em meio aberto (art. 40.º/1, 91.º/1, e 94.º/1, do CP). Note-se, desde já, que se não trata de exigir uma cessação da perigosidade que fundou a aplicação da medida, e/ou condições de reintegração já acabadamente conseguidas, o que de resto importaria, isso sim, o fim puro e simples do internamento (art. 92.º/1, do CP, e naturalmente desde que respeitada a duração mínima dele de três anos ou que ficar aquém destes fosse compatível com a defesa da ordem jurídica e a paz social – art. 91.º/2, do CP).

3.2. O que se exige, para a colocação do internado em regime de liberdade para prova, mas sendo para isso suficiente, é que as subsistentes perigosidade do internado ou obstáculos à sua reintegração se tenham pela respectiva natureza ou intensidade tornado susceptíveis de atalhar em meio aberto, sem necessidade já do internamento – caso em que mantê-lo seria desde logo inadequado e em última análise desconforme com a cláusula de proporcionalidade que condiciona a aplicação (e logicamente a manutenção) das medidas de segurança – cfr. o art. 40.º/3, do CP, norma com que obviamente estão em linha os art. 91.º/1/2, 92.º/1/2, e 94.º/1, também do CP. Por outro lado, e porque as condições do internado e a sua perigosidade são realidades dinâmicas, sujeitas a mutações ou evoluções diversas potencialmente as mais diversas, incluindo as induzidas pela execução da medida, seus sucessos e insucessos, a revisão da situação respectiva pode ter lugar a todo o tempo e a requerimento dele, sob invocação de eventuais causas justificativas da cessação do internamento, e é oficiosa e obrigatória, decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o haja mantido (art. 93.º/1/2, do CP), revisão a fazer-se nos termos dos art. 156.º a 161.º, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEP), aprovado pela Lei 115/2009, de 12/10, e sendo que se em qualquer dos casos se verificarem aqueles pressupostos da colocação em regime de liberdade para prova, então deve ser esta decidida.

3.3. Assim enquadrado, é precisamente este o problema em causa: o internamento iniciou-se em 01/04/2019 e, sendo que consideradas as três medidas em execução, tem como limite mínimo 29/03/2021 e máximo 29/03/2029, fora já uma primeira vez revisto, sendo então mantido; a revisão aqui em causa é já a segunda, e ao contrário do que foi o entendimento do tribunal recorrido, que uma vez mais o manteve, considera o recorrente que é devido aquele regime de liberdade para prova, essencialmente sob argumento de estar consciente da sua doença e da necessidade de medicação, de com efeito tomá-la e de ter família (até habitação, embora ignorando em que condições e encontra esta), bem como ainda de ter vontade e capacidades para procurar trabalho. E com efeito tira-se da factualidade assente na decisão recorrida, designadamente, que embora ao tempo da prática dos factos estivesse separado da esposa, a viver só numa garagem sem electricidade e a tomar refeições no restaurante de um amigo, tem três filhos maiores (desse e de anteriores relacionamentos), e que, habilitado somente com o 4.º ano de escolaridade, tinha tido ocupações laborais diversas, resultando além disso que se vem mantendo abstinente do consumo de estupefacientes e, também por isso, tem evoluído com boa resposta ao tratamento psicofarmacológico, apresentando remissão dos sintomas psicóticos. Sucede porém que de igual modo resulta persistirem nele, e no quadro da esquizofrenia paranoide de que padece, complicado pela politoxicofilia, os traços mal adaptativos de personalidade anti social, continuando a não apresentar crítica consistente relativamente às consequências comportamentais do consumo de drogas, e além disso que se mostra quebrado o relacionamento com os ditos familiares, que o não visitam ou sequer contactam.

3.4. Bem se compreende, quanto a esse último dado, a insatisfação do recorrente, ao enfatizar que a separação geográfica e a própria privação da liberdade a que está sujeito serão em si mesmas factores muito relevantes da dita quebra relacional, mas em boa verdade e a despeito de manifestamente terem esse potencial, não pode sem mais afirmar-se que sejam com efeito a causa eficiente dela, pelo contrário podendo até inferir-se o prévio afastamento das referidas condições de vida que tinha. O facto, objectivo, é que essa ligação, admitindo que possa ser restabelecida, para já e há muito não existe, insistindo-se no óbvio: os filhos não o visitam e nem mesmo o contactam. Ora, o relevo disto é evidente, quando se pondere que sem rigorosa supervisão não pode confiar-se na fidelidade à toma de medicação, e que a persistência de incapacidade crítica quanto aos efeitos do consumo de drogas mina gravemente a possibilidade de expectativa de que se mantenha abstinente. Breve, mesmo concedendo na redução da perigosidade e no desenvolvimento de capacidades pessoais para uma reintegração sucedida, as mesmas nem podem dar-se por cessadas e conseguidas, respectivamente, nem sequer por já compatível o conseguimento disso com a continuidade do tratamento agora em meio aberto. Ou, dito de outro jeito, o que até aqui se logrou com o internamento parece claramente continuar a depender da sua execução, não sendo razoável, nas condições referidas, a expectativa de que sem ele a evolução se mantivesse e, sobretudo, que não sobreviessem pelo contrário involuções que, na sequência de descaso pela medicação e/ou consumos de drogas, conduzissem afinal à prática de novos factos ilícitos-típicos.

3.5. Naturalmente, não vai no que antecede qualquer indevida exigência de inteira segurança sobre a regularidade comportamental ulterior do internado, se colocado em regime de liberdade para prova, exigência que aliás seria a negação do instituto, ao nível conceptual e ao da possibilidade da sua efectiva vigência. O que se reclama, mas é isso que temos de concordar não poder afirmar-se, é, com a incerteza e o risco próprios do perspectivar de coisas futuras, um prognóstico racional, assente nos dados passados e actuais disponíveis, avaliados de acordo com a normalidade das coisas e segundo as regras da experiência comum. Deste jeito postas as coisas, e considerando que o quadro psicopatológico do recorrente e a sua politoxicofilia o levaram a uma pluriofensividade criminal bastante significativa, que a despeito do tempo que o internamento por isso imposto já leva, e da estabilização do seu estado com ele conseguida, ainda não tem crítica sobre as consequências dos consumos, que não dispõe de apoio familiar e muito menos próximo e capaz da supervisão necessária, que não foi ainda possível encontrar alternativas institucionais, e que aliás e por isso também ainda não pôde sequer ser testado com licenças de saída jurisdicionais, resulta, enfim, que qualquer expectativa de viabilidade de lograr os fins da medida de segurança em meio aberto, relevaria de uma temerária aposta e não de um juízo de prognose razoavelmente fundado, como todavia tem de ser. Em suma, a mais de não poder dar-se por cessado o estado de perigosidade que, na sequência do cometimento dos ilícitos-típicos, levou à imposição do internamento, também não é viável a conclusão de que já pudessem lograr-se-lhe as finalidades preventivas gerais e especiais em meio aberto.

3.6. Não deixamos porém de referir, antes de encerrar, que a mais do que respeita à eventual contribuição do seu significativo afastamento geográfico, relativamente ao meio de origem, para a referida quebra relacional com os filhos (e outros hipotéticos familiares ou amigos que ao menos em tese pudessem constituir-se em rede de apoio), também é compreensível o lamento do recorrente relativamente à circunstância de, passados já quase cinco anos sobre o início de execução do internamento, e independentemente das vicissitudes intercorridas, o serviço social manifestar, no relatório de 10/01/2024, que “encontra-se a delinear uma deslocação a ... com o objectivo de reunir com os serviços da rede social local de forma a se encontrar plano que permita ao doente beneficiar de integração social”. Com o devido respeito, mesmo admitindo que uma tal deslocação fosse imprescindível (i.e., que não bastasse a articulação com os técnicos dos serviços congéneres locais), e aliás compreendendo as dificuldades funcionais várias que possam enfrentar, é francamente insatisfatório que os serviços ainda não tenham apurado (e, sendo o caso, explorado) as hipóteses na família e/ou comunidade, as alternativas institucionais, ou a pura e simples inviabilidade de qualquer das perspectivas – apuramento que se tornará verdadeiramente insustentável protelar mais. Mas isso não altera os dados disponíveis, e por agora e como já apreciados estes, o que sobra é a dita inviabilidade de concluir que as finalidades da medida pudessem alcançar-se em meio aberto; e, com isso, a conformidade da decisão recorrida com os art. 91.º/1/2 e 94.º/1, do CP, improcedendo os argumentos de recurso, a que deve ser negado provimento, com a inerente manutenção daquela.                       

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do internado AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em três UC’s (art. 513º, n.º 1 e 3, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 22 de Maio de 2024

Pedro Lima (relator)

Isabel Valongo (1.ª adjunta)

Alexandra Guiné (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente