Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
124/21.0T8OLR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
RUPTURA DO CASAMENTO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLEIROS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 1781.º, ALÍNEA D), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A reforma da Lei 61/2008 de 31.10 acentuou, decisivamente, o contrato de casamento como   um campo de auto-realização e bem estar dos cônjuges, máxime na sua dimensão afetiva e emocional, em detrimento, ou com menorização, da  sua consideração e defesa enquanto  célula estruturante  de organização social.

II -  Tal traduziu-se na eliminação da culpa como pressuposto da sua dissolução, sendo esta de decretar quando se provem factos cuja gravidade e/ou reiteração, apreciada(s) essencialmente no âmbito daquele campo e dimensão, clamem a conclusão de que o contrato é  nefasto ou contraproducente  para a consecução do seu aludido fito primordial.

III - Provado, nuclearmente, que
i) desde há cerca de 3 ou 4 anos a esta parte, a ré, professora, começou a chamar o autor de cabrão, acusando-o de ter amantes, vendo no telemóvel deste as chamadas telefónicas que recebia e fazia, vendo as mensagens que enviava e recebia, entrando nas suas redes sociais, chegando a fazer publicações nas redes sociais como se fossem da autoria dele e mandando mensagens do telefone do autor, fazendo-se passar por este;
ii) desde pelo menos Janeiro de 2021 que o casal passou a dormir em quartos separados, não mantendo vida em comum, levando vidas separadas e independentes;
iii) não compartilham casa, refeições, nem mantêm qualquer contacto íntimo, não dormindo na mesma cama;
iv) o autor não quer reatar a vida em comum com a ré, tem de concluir-se  pela rutura definitiva do casamento  para o efeito da al. d) do art.º 1781.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: João Moreira do Carmo
Fonte Ramos

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

AA, intentou contra BB ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Pediu:

Que fosse dissolvido o casamento celebrado entre ambos, com fundamento na existência de actos que demonstram a ruptura definitiva do casamento, nos termos do disposto no artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil.

Alegou, em síntese:

Desde há 3 ou 4 anos a ré, começou a agredi-lo verbalmente chamando-o, nomeadamente, de cabrão, acusando-o de ter amantes, vendo no telemóvel deste as chamadas telefónicas que recebia e fazia, vendo as mensagens que enviava e recebia, entrando nas suas redes sociais, chegando a fazer publicações nas redes sociais como se fossem da autoria dele, sendo que a partir de há cerca de oito meses a esta parte, não têm qualquer tipo de comunhão de vida, levando vidas separadas e independentes, não saem juntos, não têm qualquer vida social em comum, dormindo em quartos separados, não mantendo qualquer relação de casal.

Foi designada data para a realização da tentativa de conciliação a que alude o artigo 931.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo-se frustrado, por ter faltado a ré.

Citada a ré contestou.

Negou os factos do autor e manifestou o seu espanto pelo facto de o marido intentar a ação.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Em face do exposto, julga-se procedente o pedido do autor, com fundamento no disposto no artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil e, em consequência, decide-se determinar o divórcio e consequente dissolução do casamento celebrado, no dia 10 de Abril de 1999, entre AA e BB, a que se refere o assento de casamento n.º ...19 do ano de 2013, processo n.º ...13, da Conservatória do Registo Civil ....»

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) O autor requereu a dissolução do casamento celebrado com a ré, com fundamento na existência de factos que demonstram a rutura definitiva do casamento;

b) Alegou para os devidos efeitos como fundamento do divorcio sem consentimento de um dos cônjuges “quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura do casamento” – alínea d) do artigo 1781.º do CC;

c) Porquanto, não é aplicável face à matéria de facto provada qualquer outro dispositivo previsto no presente artigo.

d) Por exclusão da alínea a), o douto tribunal a quo veio dar como provado que só em junho de 2021 o autor foi viver para a casa da sua tia, por força de um cancro que lhe foi diagnosticado e à necessidade de fazer tratamento não perfazendo, por isso, o tempo mínimo de um ano obrigatório à data de entrada da PI em juízo nem tão pouco à data da referida sentença para se considerar a separação de facto das partes;

e) Por exclusão da aplicabilidade da alínea b) do mesmo artigo, considerou o tribunal recorrido por não provado que “o autor não se encontra na posse de todas as suas faculdades mentais”, não tendo sido suscitado qualquer questão em relação à ré neste sentido;

f) E ainda, por considerar o douto tribunal recorrido que a ré continua a participar ativamente na vida do autor, por força dos pontos 14. a 18. dos factos provados, exclui-se o disposto na alínea c) do artigo anterior;

g) Restando, por isso, a linha geral prevista pela alínea d) do artigo 1781.º do CC, que não se vislumbra tão linear quanto à sua interpretação.

h) Efetivamente, para aplicação desta alínea terá de se verificar a existência de facto grave que inviabilize o casamento, sendo exemplo disso a violência doméstica.

i) No entanto, veio o douto tribunal a quo considerar estarem previstos os pressupostos bastantes e necessários para julgar procedente por provado a pretensão do autor,

j) Para tanto alegou o douto tribunal recorrido, apenas, a ausência de partilha de cama há mais de um ano e a relação conflituosa entre ambos, conforme resulta da fundamentação de direito da sentença;

k) Ora, considera a ré que esses motivos não se afiguram bastantes para preencher os pressupostos da alínea d) anteriormente mencionada, porquanto:

l) Considerou o douto tribunal a quo por provado o facto de a ré ter acompanhado o autor a alguns médicos, incluindo a Lisboa, na tentativa de ser seguido na Fundação ...;

m) Deu como provado ainda, que a ré acompanhou o autor ao IPO ...;

n) Além disso, ficou provado que a ré, no presente ano letivo, concorreu unicamente a ..., no intuito de acompanhar o autor, por força do seu estado de saúde, apesar de ter plena consciência que na qualidade de docente poderia não ser colocada.

 o) E por isso, importa ressalvar a posição do Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão n. º 215/19.... quanto aos factos, o seguinte:

1. O atual regime do divórcio, instituído pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge e alargou os fundamentos objetivos da rutura conjugal através da cláusula geral prevista no artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil.

2. A rutura definitiva do casamento a que alude a mencionada alínea d) pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito, sem o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

3. A cláusula geral e objetiva da rutura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na al. d) do art. 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência.

4. A demonstração da rutura definitiva – presumida no caso das alíneas a), b) e c) do art. 1781.º do CC ao fim de um ano – implicará a prova da quebra grave dos deveres enunciados no art. 1672.º do CC e da convicção de irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal.

p) Devendo observar-se, por isso, os pressupostos previstos no artigo 1672.º do CC: “os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.”.

q) Defende o Tribunal da Relação de Coimbra no processo n. º 373/20.... que “numa ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge as expressões “vida de casal” ou “vida comum de casal”, “não fazer vida de casal” e “organizar a sua vida de forma separada” não constituem conceitos de direito.”;

r) Ou seja, a rutura definitiva do casamento tem de ser, por isso, revelada por um ou mais factos, não sendo suficiente para o efeito, os factos que traduzam um mero ato de vontade de um dos cônjuges, não sendo reconduzível a um índice objetivo, suficiente para demonstrar a falência irreversível do casamento, o firme propósito de um dos cônjuges em não restabelecer a convivência conjugal (TRL, 23.11.2011: CJ, 2011, 5.º - 310).

s) Neste sentido, não se compreende a decisão do douto tribunal a quo, uma vez que considerou por provado o acompanhamento e apoio incondicional por parte da ré ao autor, sem qualquer oposição por parte deste.

t) Sendo que, o autor, em junho de 2021, apenas, foi viver para casa da sua tia para ficar salvaguardado de possíveis doenças contraídas, nomeadamente, a COVID19, uma vez que a sua comunhão com a ré e o filho menor de ambos é propicio a uma propagação maior do vírus, considerando que os mesmos estão em contacto com centenas de pessoas diariamente.

u) Pelo que, a simples objetividade da conduta do autor de ter saído e deixado de pernoitar no quarto do casal é, por si só, insuficiente para se poder formular em juízo de censura conducente à conclusão de violação, por este, o dever de coabitação.

v) Além disso, a ré ao assumir a sua responsabilidade no acompanhamento do autor a todas as consultas do foro oncológico, faz prova que esta sempre fez sucessivas tentativas de aproximação e reconciliação, razão pelo qual é licita a conclusão de que o autor nunca considerou aquele comportamento ilícito e culposo da ré como comprometedor da possibilidade da vida em comum.

w) Com a clausula geral “quaisquer outros factos, que independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento”, a lei não acolheu o divórcio a pedido, antes reforçou o sistema de divórcio-rutura, baseado em índices objetivos de falência irreversível do casamento, o que, efetivamente não se verifica, face aos factos dados por provados pelo tribunal recorrido.

x) Assim, considera a ré que a douta sentença recorrida violou por errada interpretação, o disposto na alínea d) do artigo 1781.º do CC, devendo, por isso, ser revogada, porquanto não se vislumbra qualquer fundamento para ser decretado o divórcio entre as partes.

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

 Improcedência da ação.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar:

1. O autor e a ré casaram, sob o regime da comunhão de adquiridos, no dia 10 de Abril de 1999, casamento levado ao registo sob o n.º ...19 do ano de 2013, processo n.º ...13.

2. Da referida união resultou nasceu um filho, ainda menor, CC, nascido no dia .../.../2006.

3. Logo, desde o início do casamento a ré, devido à sua profissão, era colocada em diversos pontos do país.

4. Quando a ré foi colocada em locais distantes de casa, esta deslocava-se todos os fins-de-semana a casa.

5. Ultimamente, desde há cerca de 3 ou 4 anos a esta parte, a ré começou a chamar o autor de cabrão, acusando-o de ter amantes, vendo no telemóvel deste as chamadas telefónicas que recebia e fazia, vendo as mensagens que enviava e recebia, entrando nas suas redes sociais, chegando a fazer publicações nas redes sociais como se fossem da autoria dele.

6. Mais, chegou a mandar mensagens do telefone do autor, fazendo-se passar por este.

7. Durante o primeiro período de confinamento, em 2020, o casal esteve na casa de férias que possui em Salvaterra do Extremo.

8. Desde pelo menos Janeiro de 2021 que o casal passou a dormir em quartos separados, não mantendo vida em comum, levando vidas separadas e independentes.

9. Não saem juntos, não têm qualquer vida social em comum.

10. As visitas a familiares ou amigos comuns são feitas separadamente.

11. Não compartilham refeições como casa, não mantêm qualquer contacto íntimo, não compartilhando cama.

12. Em Junho de 2021, devido ao agravamento do seu estado de saúde devido a cancro que lhe foi diagnosticado e à necessidade de fazer tratamento, o autor foi residir para casa da sua tia, em ....

13. O autor foi viver para casa da tia em ..., porque não queria que o filho o visse tão debilitado e por já não manter qualquer relação de casal com a ré.

14. A ré acompanhou o autor a alguns médicos, incluindo em Lisboa, na tentativa de ser seguido na Fundação ....

15. A ré acompanhou o autor ao IPO em ....

16. Actualmente o autor mantém a casa arrendada em ... e a ré reside, também em ..., noutra casa que, entretanto, arrendou, apenas mantendo o contacto por causa do filho de ambos.

17. O autor não quer reatar a vida em comum com a ré.

18. A ré, no presente ano lectivo, concorreu unicamente a ..., sabendo que corria o risco de não ser colocada, com o único intuito de acompanhar o filho e o autor, atendendo ao estado de saúde deste.

6.

Apreciando.

A julgadora decidiu aduzindo o seguinte, para nós sinótico mas essencial, discurso argumentativo:

«As causas do divórcio sem consentimento do outro cônjuge encontram-se sujeitas ao princípio da tipicidade, na medida em que as causas previstas no artigo 1781.º do Código Civil implicam, necessariamente, a existência de ruptura definitiva do casamento.

Nos termos do artigo 1781.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, são fundamentos do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges:

“a) A separação de facto por um ano consecutivo;

b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade da vida em comum;

c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;

d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.”.

De todo o modo, decisivo é que tenham ocorrido quaisquer factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, acarretem a ruptura definitiva do casamento, traduzida na falta de vontade de um dos cônjuges em restabelecer a vida em comum, tornando, assim, impossível a manutenção do vínculo matrimonial.

…A demonstração da ruptura definitiva é, pois, presumida nos casos das alíneas a), b) e c), ao fim de um ano (prazo a que alude a norma).

Pelo contrário, a alínea d), do referido artigo 1781.º, encerra uma cláusula geral, na qual se inserem um ou mais factos, independentemente de prazo, contanto que os mesmos sejam objectivos e reveladores da ruptura definitiva do casamento, designadamente, a quebra grave dos “deveres conjugais” (no mesmo sentido de ausência de duração mínima para a verificação da alínea d), do artigo 1781.º, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.10.2013, no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1...

Contudo, o legislador não concretizou o conceito indeterminado de ruptura definitiva do casamento sendo que, a esta parte, deve fazer-se um juízo objectivo dos factos alegados e provados.

A culpa é irrelevante para efeitos de decretamento do divórcio, mas poderá, efectivamente, ser factor de ponderação do preenchimento daquele conceito…

No entanto, a ruptura definitiva do casamento não tem de ser necessária ou taxativamente preenchida com os fundamentos (meramente enunciativos) tipificados nas várias alíneas do artigo 1789.º do Código Civil, ao invés, pode ser preenchida com outras causas ou fundamentos que, embora não expressamente previstos, sejam substancialmente análogos e que demonstrem que o casamento em causa chegou ao fim e que a sua continuação (meramente formal) implicaria uma insuportável imposição a um ou a ambos os cônjuges na perspectiva da sua dignidade e liberdade.

No caso concreto, perante os factos considerados provados, verifica-se que o autor e a ré não vivem juntos desde Junho de 2021, ou seja, por período inferior a um ano.

Mas também resulta provado que, desde pelo menos Janeiro de 2021 que o casal passou a dormir em quartos separados, não mantendo vida em comum, levando vidas separadas e independentes, embora mantendo contacto por causa do filho.

Provou-se também que desde há cerca de 3 ou 4 anos a esta parte, a ré começou a chamar o autor de cabrão, acusando-o de ter amantes, vendo no telemóvel deste as chamadas telefónicas que recebia e fazia, vendo as mensagens que enviava e recebia, entrando nas suas redes sociais, chegando a fazer publicações nas redes sociais como se fossem da autoria dele, chegando a mandar mensagens do telefone do autor, fazendo-se passar por este.

Acresce também que o autor não tem o propósito de reatar a vida em comum com a ré, ao que acresce que lhe foi diagnosticado uma doença cancerígena e tal fez com que pretendesse sair de casa não só para o filho não o ver mas também para não manter a relação com a ré, o que levou a que esta acabasse por arrendar uma casa.

No que concerne exclusivamente à relação de casal, é notório que os factos provados (ausência de partilha de cama desde há mais de um ano, ausência de partilha de casa há mais de 8 meses, e a relação conflituosa entre ambos, …estando a ré actualmente a viver numa casa que a própria arrendou), todos conjugados entre si e acrescendo o propósito do autor em não reatar a vida em comum com a ré, levam a concluir pela existência de ruptura definitiva do casamento, na medida em que é inegável a impossibilidade de manutenção do vínculo matrimonial, atendendo à falta de vontade do autor em restabelecer a vida em comum.

Assim, mesmo que seja evidente que o autor e a ré sempre mantiveram contacto por causa do filho, sendo que a ré inclusivamente acompanhou aquele ao médico, tal não invalida que o casamento se encontre em ruptura, pois que a manter-se o afastamento de ambos, estando já a ré a viver numa outra casa que arrendou, e mantendo o autor o propósito de se divorciar e não voltar a fazer vida de casal com a ré, ….é de concluir, sem margem para dúvida, que está demonstrado o rompimento definitivo do casamento nos termos atrás explicitados.»

Este discurso apresenta-se, na sua essencialidade relevante, quer em tese, quer atentos os factos e circunstancias envolventes do presente caso, curial e adequado, pelo que urge corroborá-lo e chancelá-lo.

Dir-se-á ainda o seguinte.

Estamos no domínio do chamado divórcio  constatação de rutura cuja ênfase e relevância foram, sensível e impressivamente, realçados pela Lei 61/2008 de 31.10.

Por confronto com a anterior redação do art. 1779º, sob a epígrafe «violação culposa dos deveres conjugais», este art. 1781º intitula-se «rutura do casamento».

 Ou seja, a única diferença sensível entre os dois preceitos reporta-se à supressão do requisito da culpa no decretamento da dissolução do vínculo matrimonial.

Efetivamente, de entre os três conceitos-modelo distintos sobre a natureza jurídica do divórcio («divórcio-sanção», «divórcio remédio» e «divórcio como simples constatação de rutura do casamento»), o legislador nacional,  influenciado pela evolução dos tempos, das mentalidades e das atuais conceções sociais da família e do casamento, optou claramente em 2008 pelo modelo do «divórcio como simples constatação de rutura do casamento».

O fundamento da rutura traduz-se na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, a que alude o artigo 1577º, do CC, isto é, quando a «affectio conjugalis» e a cumplicidade entre os cônjuges baixou ao grau zero de satisfação para um deles, e este pretende por termo ao contrato.

Nestas circunstâncias,   o tribunal não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento.

Com o afastamento do fundamento da culpa (pressuposto sempre de difícil avaliação), visou-se evitar, na maior medida possível, a transformação do processo de divórcio num litígio persistente, destrutivo e emocionalmente doloroso para os cônjuges.

Exceto quanto a tal requisito deverá manter-se a densificação e alcance semântico da anterior expressão legal do divórcio litigioso: violação dos deveres conjugais que, pela sua gravidade ou reiteração, seja de molde a comprometer a possibilidade de vida em comum.

Assim, o segmento normativo da al. d) do artº 1781º do CC  tem de  ser interpretado com referência aos art.s 1672º e ss., do citado diploma legal, onde se especificam os deveres conjugais.

Destarte, deve o cônjuge autor alegar e provar, não apenas a  objetividade da violação do dever conjugal, como ainda factos tendentes a provar a gravidade da violação cometida ou a reiteração das faltas; factos de que possa aferir-se a conclusão de que a vida em comum se acha comprometida em consequência da violação ou das violações praticadas.

Não serão atendíveis quaisquer ofensas, mas tão somente as que, nas circunstâncias concretas em que ocorreram e na atenção das condições reais dos cônjuges, possam qualificar-se como graves, ou seja, as que, segundo as regras da experiência e considerando os padrões da sociedade em que nos encontramos inseridos, atinjam valores e bens morais do outro cônjuge, de forma a que não lhe seja exigível manter a vivência em comum com o outro cônjuge.

Neste particular, a exegese é semelhante à que antes era exigida perante a previsão legal da gravidade ou reiteração, comprometedoras da possibilidade de vida em comum.

A gravidade não é aferida tanto na sua substância, mas no efeito ou resultado duradouro que ela produziu no relacionamento dos cônjuges, não sendo de prever a reconciliação dos mesmos cônjuges.

Sendo que para tal constatação/conclusão reconhece-se: «alguma flexibilidade na actividade decisória do tribunal, na avaliação da relevância dos factos provados.» - Rita Xavier, in  Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidade Parentais, Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, Coimbra, 2009, pág. 25.

Por outras palavras, a (im)possibilidade de viver em comum com o outro cônjuge é uma conclusão a extrair dos factos assentes e tem que basear-se no clima em que eclodiram e nas consequências que originaram esses mesmos factos, sendo certo que a manutenção do matrimónio não poderá representar a quebra da dignidade de qualquer dos cônjuges.

Na verdade, e isto é fulcral, tem de ter-se presente que com a aludida lei  de 2008,  o legislador alterou o paradigma na perspetivação do contrato de casamento, e pretendeu dar acolhimento e consagração legal aos movimentos e conceções ético-sociais relativas ao  mesmo que evoluíram e singraram no passado século, especialmente no seu último quartel.

Tais conceções sobrelevaram, na abordagem das relações familiares, máxime, no atinente ao contrato de casamento, a dimensão afetiva, emocional e subjetiva, sublimando, nas relações conjugais, os afetos e o bem estar dos cônjuges enquanto indivíduos.

Destarte, e considerando, primacialmente, os elementos histórico e teleológico da hermenêutica jurídica, é hodiernamente tido como assente que, para o legislador produtor do atual acervo legal pertinente, o casamento é apenas, ou essencialmente, uma forma de auto-realização  dos indivíduos e só tem sentido se e enquanto cumprir essa função.

Tudo em detrimento ou com menorização, até certo ponto, do casamento enquanto instituição jurídico-social no âmago e âmbito da qual os cônjuges assumem deveres recíprocos com vista a um projeto de vida em comum, e sedimentando a relação de sorte a que ela constitua a célula estruturante do tecido social e comunitário.

A consequência mais relevante desta nova conceção legal é, como supra se expôs, a irrelevância da culpa relativamente aos factos que podem consubstanciar as previsões legais para o decretamento do divórcio, ou seja, basta a  ocorrência objetiva de tais factos, com a dimensão e magnitude tida por bastante, para que o divórcio seja decretado.

Ainda que, de jure constituendo, esta opção não deixe de ser suscetível de crítica,  porque algo alheada da realidade ético-cultural da nossa sociedade e assente num pressuposto – igualdade plena de géneros – que, na realidade e pelo menos em vários  campos, aspetos e/ou estratos socio- culturais,  ainda se não verifica, certo é que ao juiz cumpre apenas aplicar a lei vigente atenta a melhor postura hermenêutica da mesma.

Mas, convenhamos, não de um modo  estritamente formal e subserviente.

Tudo visto e ponderado pensamos dever ser esta a mais pertinente e adequada abordagem jurisdicional a cada caso concreto: o julgador deve ter em consideração a ratio e teleologia legal no atinente ao instituto do casamento e aos fundamentos para a sua dissolução; mas deve ser-lhe ser sempre conferida uma margem interpretativa em função da qual ele possa concluir se se encontram, ou não, presentes factos com força e dignidade bastantes para implicar a extinção do vínculo contratual.

O caso vertente.

 Atentos os factos apurados em 14, 15 e 18, ele não se assume como paradigmático no sentido de demonstrar uma extrema rutura  da vida conjugal.

Mas  os seus  restantes contornos fáctico-circunstanciais – pontos 5 e 6, 8 a 11, 13, 16 e 17 - vislumbram-se com dignidade e força bastantes para firmar a convicção/conclusão sobre a inadmissibilidade de sujeitar os cônjuges  à manutenção de um casamento para os quais - máxime o autor -, já não é fonte de harmonia, convivência, colaboração e paz de espírito; mas, ao invés,  se assume como génese de arrelias, constrangimentos, discussões, etc, em suma: fonte permanente inquinadora da qualidade de vida dos cônjuges.

Na verdade, urge ter presente que os cônjuges parecem ser pessoas de um estrato socio cultural médio ou médio alto – a ré é professora – e pessoas despertas, sagazes e sensíveis.

  Em função do que, outrossim tem de concluir-se que as palavras proferidas e os atos praticados, dados como provados, tendo-o sido e estando ainda a sê-lo, ademais ao  longo de um alargado lapso temporal de muitos meses ou até anos, naturalmente ferem os sentimentos de cada um deles e prejudicam a sua qualidade de vida.

Acresce estar provado também que o autor não quer refazer a vida em comum.

Assim sendo, o contrato de casamento, quer na vertente de satisfação dos interesses e direitos individuais dos cônjuges outorgantes, quer, inclusive, enquanto célula e instituição social que se pretende útil e profícua para a comunidade, já não se mostra relevante e produtor dos efeitos pretendidos.

Pelo que a solução mais adequada será declarar a sua extinção.

Improcede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2022.11.09