Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
600/22.8T8PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
PROVA ILÍCITA
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – POMBAL – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 26.º, N.º 1, 32.º, N.º 8 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 71.º E 79.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Em princípio a junção aos autos de documento obtido ilicitamente por violação de direito fundamental essencial da pessoa humana – vg. os previstos nos artigos 24º a 27º da Constituição –, não é admissível, por tal obtenção ser nula – artº 32º nº8 do mesmo compêndio legislativo.

II - Porém, essa junção pode ser concedida se existir causa de justificação de tal ilicitude - o que se verifica quando com a obtenção se pretende visar a proteção ou consecução de direito ou fito mais relevantes –, e tal junção se revelar adequada e necessária; não o podendo ser se qualquer destes requisitos não estiver presente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Carlos moreira
Adjuntos: João Moreira do Carmo
Fonte Ramos
*

ACORDAM OS JUIZES NO  TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

No processo em epígrafe em que são autores AA e esposa BB e réu/reconvinte CC,  foi proferido o seguinte

Despacho:

« Da junção de gravações em vídeo:

 Através do requerimento em referência, pretende o Réu-Reconvinte, CC, a junção, aos Autos, de diversa documentação, nomeadamente de duas gravações em vídeo, “(…) com vista à demonstração da realidade dos factos articulados sob os pontos 9º; 10º; 11º; 12º; 46º; 47º; 48º; 63º; 71º; 73º e 79º na  contestação/reconvenção e dos temas sob as als. f); g); h); i); (…)”. (itálico nosso)

 A tal junção opuseram-se, em momento oportuno, os Autores-Reconvindos por considerarem que, na ausência de consentimento do Autor-Reconvindo para a sua recolha, tais gravações representam uma violação do seu direito à imagem, configurando, assim, prova ilícita e, como tal, inadmissível.

 Conferido, ao Réu-Reconvinte, o exercício do correspondente contraditório quanto a tal argumentação, o mesmo pronunciou-se, pugnando, a final, pela admissibilidade da sua recolha e apresentação nos Autos.

 Vejamos.

De tal acervo normativo  - art.º 368º do Código Civil  e art.ºs 423º a 451º do Código de Processo Civil - não consta, contrariamente ao que sucede no âmbito do direito processual penal (art.º 126º do Código de Processo Penal), qualquer disposição de carácter geral a respeito do carácter lícito ou ilícito das provas, seja no sentido da inadmissibilidade das provas ilícitas, seja no sentido dos termos para determinação de tal ilicitude.

 A este propósito, Salazar Casanova  refere que a prova ilícita é “aquela que é obtida ou produzida com ofensa de direitos fundamentais; distingue-se da “prova ilegal” porque esta ocorre quando se desrespeitam normas de outra natureza”. (itálico nosso)

 Neste enquadramento e considerando que o disposto no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa  se reporta ao processo criminal, a doutrina e a jurisprudência têm reflectido a propósito da sua aplicabilidade, por via analógica, ao processo civil, mais concretamente no que respeita à proibição de prova constante do respectivo nº 8.

 Em sentido afirmativo, pronunciaram-se, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 11/05/2017 (processo n.º 8346/16.0T8STB-B.E1) e de 13/03/2025 (processo nº 114/24.1T8ABT.E1); os  Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/02/2021 (processo nº 4348/19.2T8ALMA.L1-7) e 15/04/2021 (processo nº 705/18.0T8CSC-A.L1-2) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/09/2022 (processo nº 84/12.9TBVZL-U.C1) .

 Como se salienta no Sumário do citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/04/2010,  p.10795/08. “I – Não sendo o CPC tão claro como o C. Proc. Pen. (art. 126º) quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (art. 204º da CRP), particularmente, e no que agora releva, às dos arts. 26º, nº1 e 32º, nº8, da CRP. II – Por isso, a disciplina normativa deste art. 32º, nº8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste art., nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no art. 26º, nº1 da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal (art. 126º, nº3 do Cod. Proc. Pen.). III – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil.”. (itálico nosso) 

Por outro lado, de acordo com o disposto no art.º 199º do Código Penal, “1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º.”.

Sem prejuízo, a jurisprudência vem, de igual modo, admitindo a utilização, como meio de prova, nomeadamente de prova documental como gravações ou fotografias obtidos de modo ilícito desde que os mesmos não respeitem ao núcleo duro da vida privada dos visados e exista uma justa causa para a sua obtenção, numa lógica de compatibilização, ao abrigo do disposto no art.º 18º da Constituição da República Portuguesa, dos direitos envolvidos.

 Veja-se, neste sentido e a título exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/06/2023  em cujo Sumário se salienta que “I - A gravação de conversas entre pai e filha menor, feitas por esta sem o consentimento daquele, constitui um ato ilegal e, em abstrato, criminoso. II - Essa gravação só excecionalmente deve ser admitida como prova e quando não seja de todo possível produzir outros meios de prova a respeito, designadamente da jovem, o que afasta a conclusão no sentido da ocorrência de um  “estado de necessidade probatório”. III - O deferimento da junção de uma gravação, correspondente à prática de um ato ilegal (e, em abstrato, criminoso) feita pela filha dos progenitores em conflito, está longe de representar, pelo menos num juízo prognóstico, o dever de cautela e a salvaguarda do interesse no seu crescimento responsável, o que também deve ser ponderado.”. (itálico nosso)

 E, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/03/2024 , em cujo Sumário se esclarece que “I. As gravações e fotografias obtidas por particulares constituem em geral prova documental. Sendo a sua admissibilidade e utilização como meios de prova reguladas no artigo 167.º, § 1.º CPP. II. Torna-se necessário averiguar a licitude ou ilicitude da conduta que esteve na sua origem, uma vez que esta é assumida pelo legislador como uma condição essencial para se poder concluir sobre o juízo de valoração processual. III. Deverá atentar-se nas normas penais que se lhes referem, nomeadamente aquelas cuja finalidade se prende com a proteção de direitos fundamentais relacionados com a personalidade humana, como a privacidade, a imagem ou a palavra. IV. A verificação da justa causa, de molde a excluir a responsabilidade criminal do particular e admissão da utilização probatória do material, tem exatamente por foco o momento da obtenção - que não coincide com a sua utilização em processo penal. V. A jurisprudência vem admitindo a sua utilização como meio de prova, se: a) o conteúdo das gravações ou fotografias não respeitar ao núcleo duro da vida privada dos visados; e b) exista uma justa causa para a sua obtenção. VI. Esse «núcleo duro» da privacidade deverá abranger quer a intimidade quer a privacidade, embora no que a esta respeita, se entenda haver uma certa elasticidade quanto ao seu exato âmbito de proteção. VII. Relativamente à compatibilização de interesses que haverá de ocorrer ao nível da prova, vem-se recorrendo à possibilidade de restrição de direitos, prevista no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, resolvendo a favor da prevalência do direito à segurança ou dos interesses inerentes à exigência coletiva de uma justiça eficaz, com base em critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade. Orientando estes o julgador na ponderação casuística, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, entre o direito à privacidade de um lado e a importância da prova face à gravidade do crime em causa, por forma a concluir sobre a sua admissibilidade ou inadmissibilidade. VIII. A justa causa na obtenção das imagens haverá, pois, de ser alcançada através de um juízo de ponderação sobre os interesses conflituantes. Preponderando nesse juízo as causas de exclusão da ilicitude, que poderão justificar o arredar da proibição da conduta do particular que obteve esses meios de prova sem consentimento.”. (itálico nosso)

 Retornando ao caso vertente, importa atentar que a gravação vídeo em questão, tendo em conta o seu conteúdo, não corresponde a prova obtida mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. 

 Sem prejuízo, a mesma foi obtida sem o consentimento das pessoas aí retratadas, mais concretamente do Autor-Reconvindo, circunstância que, aliás, vem reconhecida pelo Réu-Reconvinte.

 Ora, de acordo com o disposto no art.º 79º do Código Civil, “1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada. 2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. 3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.”.

 No caso em apreço, não se encontra dispensado o consentimento do retratado por ausência de enquadramento no convocado art.º 79º/2 do Código Civil, desde logo pelo facto de não estar em causa um lugar público ou facto de interesse público ou decorrido publicamente, visando, por outro lado, a gravação, directamente, a colheita da imagem do Autor-Reconvindo e sendo, ademais, de presumir a sua oposição à sua realização. Acresce que inexistem “exigências de polícia ou de justiça” que, numa lógica de compatibilização dos direitos envolvidos, possa sustentar a admissibilidade de tal meio probatório, tanto mais que existem, nos Autos, outros meios de prova com a capacidade de sustentar a pretensão do Réu-Reconvinte de demonstração da demolição do muro em causa, demolição que, aliás, os Autores-Reconvindos reconhecem, oferecendo justificação para a mesma.

   Veja-se, a este propósito, o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/09/2022, onde se discorre a propósito da “(…) a questão de saber como e em que termos pode e deve ser efectuado, para efeitos de licitude e admissibilidade do meio probatório em questão, um juízo de ponderação sobre os interesses em causa e sobre a eventual prevalência de um deles em relação ao outro. A jurisprudência – sobretudo da área criminal, onde a questão surgirá com maior frequência – tem vindo a considerar que a captação de imagens feitas por particulares em locais públicos ou de livre acesso ao público e que não respeitem ou não interfiram com o “núcleo duro” da vida privada da pessoa visionada correspondem a meio probatório admissível, ainda que não tenha existido consentimento do visado, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infração criminal –cfr. Acórdão do STJ de 28/09/2011 (processo n.º 22/09.6YGLSB.S2), da Relação de Lisboa de 02/03/2017 (processo n. 1374/15.4Y5LSB.L1-9), Acórdão da Relação de Coimbra de 24/02/2016 (processo n.º 2638/12.4TALRA.C1), Acórdão da Relação do Porto de 23/10/2013 (processo n.º 585/11.6TABGC.P1)[6]. A questão prende-se, desde logo, com o disposto no art.º 79.º, n.º 2, onde se determina – em relação ao direito à imagem – que a exposição ou reprodução do retrato (fotografia ou vídeo) não depende de consentimento quando as exigências de polícia ou de justiça assim o justifiquem, não existindo, portanto, qualquer ilicitude. São essas exigências de polícia ou de justiça que, em determinadas circunstâncias (desde que as imagens não respeitem ao “núcleo duro” da vida privada da pessoa visionada), justificam a admissibilidade do meio de prova em causa quando ele se destina a provar a prática de um ilícito criminal (cfr. jurisprudência acima referida). Miguel Teixeira de Sousa[7] aborda a  questão, no âmbito do processo civil e a propósito da intromissão abusiva no direito à privacidade, situando-a ao nível das causas de exclusão da ilicitude. Ou seja, a prova ilícita (por intromissão abusiva no direito à privacidade) pode ser justificada (e, como tal, admitida) se se verificar uma causa de exclusão da sua ilicitude, o que, segundo o referido autor, acontece quando ocorrer aquilo que designa por “estado de necessidade probatório”, seja porque o facto probando, pela sua natureza, só pode ser provado pela prova ilícita, seja porque a parte tem dificuldade (objectiva ou subjectiva) de produzir essa prova. Ainda segundo o referido autor, a exclusão da ilicitude da prova – e a sua consequente admissibilidade – pressupõe ainda que a intromissão na vida privada seja proporcional ao direito que a parte onerada pretende tutelar em juízo, ou seja, “…o fim – que é a tutela do direito da parte onerada – deve ser considerado prevalecente sobre o meio – que é a intromissão na vida privada da outra parte”, em termos de justificar que a parte tenha que suportar uma intromissão na sua vida privada em função da tutela do direito da outra parte.  Em bom rigor, será essa a ideia que também está subjacente ao n.º 2 do citado art.º 79.º …devendo, por isso, entender-se que essa situação se verifica – retirando ilicitude ao facto e à prova – quando a exposição ou reprodução vise fazer a prova de determinado facto quando essa prova não pode ser – ou dificilmente poderá ser – feita por outro modo e desde que o direito ou interesse que com ela se pretende tutelar deva prevalecer sobre o direito à imagem, em termos de justificar que o  “retratado” suporte a recolha e uso da sua imagem em função da tutela daquele direito ou  interesse.”. (itálico nosso)

 Estado de necessidade probatório que, conforme se explanou, inexiste nos presentes Autos.

 Em face de todo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, em face da sua inadmissibilidade legal, não se admite a junção, aos Autos, da gravação em vídeo apresentada pelo Réu-Reconvinte, a qual deve ser desentranhada e devolvida ao mesmo, sem prejuízo da preservação de cópia, em suporte digital, junto do suporte físico dos mesmos Autos. »

2.

Inconformado recorreu o réu/requerente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª) Os meios probatórios constituídos por vídeo, sobre a invasão, esbulho e violência; fora, obtidos única e exclusivamente com o intuito e desiderato de prova documental, para prova dos factos articulados e assinalados na Contestação/Reconvenção e, dos termos do acordo retro assinalados, por razões e exigências processuais, com vista à descoberta da verdade, esclarecimento dos factos e prova dos danos e modus operandi, tomados pelos AA/reconvindos.

2ª) Por quem tem o direito a oferecer e a requerer tempestivamente, como prova.

3ª) A decisão de, não admitir tais documentos, não é a mais consentânea, com os princípios constitutivos do Código Civil e Processual Civil, nem com a mens legis.

4ª) A decisão tomada pelo tribunal a quo por erro de interpretação e aplicação, não é assertiva, com o direito aplicável, deve ser revogada e substituída por outra, a admitir tais meios de prova.

5ª) Mostra-se violado o disposto nos arts.: 20º, nº 1; 202º, nº 2 da CRP; arts.: 70º; 79º; 341º; 342º do CC; arts.: 1º; 483º; 410º; 411º; 413º e 425º do CPC.

6ª) O recurso deve merecer provimento, revogando-se o douto despacho em causa.

Contra alegaram os autores pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

I. Irresignado com a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, vem o recorrente interpor recurso de apelação, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que ordene a admissão aos autos de 2 (duas) gravações de vídeo, cuja junção foi requerida pelo apelante por requerimento impetrado nos autos, em 21 de abril de 2025. 22 Cfr. Contestação com reconvenção de 14 de junho de 2022 (referência 8802727); requerimentos de 25 de outubro de 2022 (referências 9142012, 9142013, 9142014); requerimento probatório de 23 de fevereiro de 2024 (referência 10550169); requerimento 18 de abril de 2024 (referência 10722320); requerimento probatório de 14 de fevereiro de 2025 (referência 11607921). 23 Cfr. Despacho saneador de 08 de fevereiro de 2024 (referência 106057756); despacho de 02 de abril de 2024 (referência 106638891); despacho de 05 de fevereiro de 2025 (referência 109779272); despacho de 20 de fevereiro de 2025 (referência 109970131). 24 Referência 8990944.

II. Da visualização das gravações de vídeo em apreço afere-se que, para além do recorrente, o recorrido consubstancia um dos indivíduos cuja imagem é retratada em plano, razão pela qual, em cumprimento do disposto no artigo 79.º, n.º 1, do Código Civil, a captação da sua imagem, por intermédio de meios mecânicos/eletrónicos e, bem assim, a utilização da mesma, carece do seu consentimento.

III. O recorrido não consentiu a gravação e a utilização dos respetivos ficheiros de vídeo. Falta de consentimento que, apesar de se presumir, é inteiramente reconhecida pelo recorrente no requerimento de 20 de maio de 2025.

IV. A reprodução dos ficheiros de vídeo não se enquadra em lugar público, não pressupõe um facto de interesse público, nem decorreu publicamente.

V. Ponderada a factualidade subjacente à requerida junção de 2 (duas) gravações de vídeo, nomeadamente para prova dos factos vertidos nos artigos 9.º a 12.º, 46.º a 48.º, 63.º, 71.º, 73.º e 79.º da contestação com reconvenção e, outrossim, dos temas enunciados sob as alíneas f) a i), verificamos que, no caso vertente, não imperam quaisquer exigências de polícia ou de justiça que possam sustentar a admissibilidade de tal meio probatório, porquanto tais factos poderão, eventualmente, ser considerados “provados” com recurso a diversos e distintos meios de prova, designadamente por declarações e depoimento de parte, prova documental, pericial, por inspeção e testemunhal, os quais foram requeridos pelo recorrente e admitidos pelo Tribunal de 1.ª instância.

VI. O conteúdo dos ficheiros de vídeo retrata (somente) a demolição do muro em causa. Facto que os recorridos (já) reconhecem no artigo 48.º da Réplica, apresentada em 05 de setembro de 2022.

VII. O aludido estado de necessidade probatório inexiste nos presentes autos.

VIII. Incumpridos os pressupostos condensados no n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil, carecia, então, o recorrente do consentimento do recorrido para proceder à gravação e posterior utilização dos respetivos ficheiros de vídeo, o que nunca logrou obter em cumprimento do n.º 1 do referido artigo.

IX. Atendendo ao previsto nos artigos 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 79.º, n.os 1 e 2, do Código Civil, os ficheiros de vídeo em apreço configuram, deste modo, prova ilícita.

X. Entendemos, pois, não se justificar qualquer alteração à decisão, sendo que, no caso em apreço, a Meritíssima Juiz a quo fundamentou devidamente, conjugando todos os elementos carreados para o processo.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é a seguinte:

(In)admissibilidade da junção aos autos das gravações em vídeo.

4.

Apreciando.

São os seguintes os preceitos essenciais a ter em consideração:

Artigo 26.º nº1 da Constituição.

1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

Artigo 32º nº8   da Constituição.

8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

Art.º 79º do Código Civil.

 “1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.

2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.

3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.”.

A decisão recorrida explanou, curial e adequadamente, quanto aos critérios e requisitos tidos pela doutrina e pela jurisprudência como necessários para se  concluir pela licitude ou pela ilicitude da obtenção do documento, bem assim como pela admissibilidade ou pela inadmissibilidade da  sua junção aos autos.

Reiterando o expendido na decisão, dir-se-á, sinóticamente, que no atinente à (i)licitude na obtenção do documento tal tem a ver com a violação, ou não,  de direitos fundamentais essenciais  da pessoa humana, o designado «núcleo duro da vida privada».

Os quais, para além do direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade e à segurança – artºs  24º, 25º e 27º da Constituição - , são os constantes no citado artº 26º nº1,  supra citado, do mesmo Diploma Legal.

 Sendo porém de notar que, mesmo que a obtenção do documento seja liminar, genética e  formalmente ilícita, por violar qualquer um dos aludidos direitos, esta ilicitude pode ser irrelevada se existir uma causa de justificação de tal obtenção ilícita, vg. se ela se verificar por razões de realização da justiça.

Justificação, ao menos em certa medida e até certo ponto, emergente da ponderação entre, por um lado,  a gravidade da ilicitude e do jaez e magnitude do direito violado e, por outro lado,  do cariz e relevância do  fundamento/direito alegado como causa justificante – cfr. para além das citações constantes no despacho o Ac. TRE de 28.06.2011, p. 2499/08.8TAPTM.E1; o Ac. TRP de 23.10.2013, p. 585/11.6TABGC.P1 e o Ac. TRC de 24.02.2016, p. 2638/12.4TALRA.C1,  todos in dgsi.pt.

Depois, mesmo que a obtenção do documento seja lícita ou a sua ilicitude esteja justificada, nos termos sobreditos, a sua junção aos autos apenas fará, natural e logicamente, sentido, se ela se revelar adequada e necessária.

A adequação passa pela perspetivação do jaez e do valor probatório do documento para operar a prova dos factos  probandos a que é destinado.

A necessidade intui-se por apurar se o mesmo se apresenta como único, ou, ao menos, essencial e determinante,  meio de prova para tais factos.

Assim norteados, atentemos no nosso caso concreto.

Estamos com a julgadora quando expende que. «…a gravação vídeo em questão, tendo em conta o seu conteúdo, não corresponde a prova obtida mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. »

 Mais ela plasma que:

«Sem prejuízo, a mesma foi obtida sem o consentimento das pessoas aí retratadas, mais concretamente do Autor-Reconvindo, circunstância que, aliás, vem reconhecida pelo Réu-Reconvinte.

 …não se encontra dispensado o consentimento do retratado por ausência de enquadramento no convocado art.º 79º/2 do Código Civil, desde logo pelo facto de não estar em causa um lugar público ou facto de interesse público ou decorrido publicamente, visando, por outro lado, a gravação, directamente, a colheita da imagem do Autor-Reconvindo e sendo, ademais, de presumir a sua oposição à sua realização. Acresce que inexistem “exigências de polícia ou de justiça” que, numa lógica de compatibilização dos direitos envolvidos, possa sustentar a admissibilidade de tal meio probatório…»

Nesta vertente já dissentimos em parte.

Certo é que as gravações não  foram consentidas pelos visados.

Pelo que elas se assumem, liminar e tendencialmente, como ilícitas.

Porém, dimana dos autos que foram realizadas no âmbito do conspeto e objeto decorrente dos mesmos, mais concretamente  para se poder provar a demolição do muro por banda dos autores.

Considerando o modo e o local das gravações, não nos parece que a violação do direito à privacidade e à imagem dos autores atinja uma gravidade elevada, até porque as imagens destinavam-se únicamente a serem divulgadas no processo.

Por outro lado, a finalidade das gravações era fazer prova nos autos no sentido de convencer da existência e bondade do seu (do réu) direito.

Destarte, na ponderação razoável, proporcional e equitativa, entre os dois direitos,   entendemos que o direito à prova para a realização da justiça sobreleva sobre aquele direito à privacidade da imagem/retrato, o qual não transparece gravemente afetado.

Pelo que aquela liminar ilicitude estaria justificada por uma das causas previstas no nº2 do artº 79º, qual seja, por uma «exigência de justiça».

Não obstante, é aludido na decisão - o que o recorrente não coloca em crise e até confirma -, que:

«…existem, nos Autos, outros meios de prova com a capacidade de sustentar a pretensão do Réu-Reconvinte de demonstração da demolição do muro em causa, demolição que, aliás, os Autores-Reconvindos reconhecem, oferecendo justificação para a mesma. »

Ou seja, não apenas foram carreados para o processo outros meios probatórios aparentemente idóneos  para  a prova dos mesmos factos probandos, como, inclusive,  estes factos, pelos vistos, já estão assentes por confissão dos autores.

Consequentemente inexiste in casu o requisito da necessidade, absoluta ou até relativa, da junção de tal elemento de prova.

Pelo que, concatenando esta inexistência com o facto de - e não obstante ser defensável, como se viu, que a ilicitude das gravações está justificada -, elas serem matricialmente ilícitas e, de algum modo e  em alguma medida, afetarem, ou, com forte plausibilidade, poderem afetar o direito à privacidade da imagem/retrato dos autores, a conclusão final a retirar, na  equilibrada ponderação dos direitos e interesses em dialética, é que a sua junção aos autos não se mostra a opção mais adequada e razoável, a qual, assim, deve ser negada.

Improcede o recurso.

5.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2025.11.20.