Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1627/24.0T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: AÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
DANOS CAUSADOS POR ATO MÉDICO EM CENTRO DE SAÚDE
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
TUTELA EFETIVA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º, N.ºS 1 E 4, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 483.º, 493.º E 496.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 4.º, N.º 1, ALS. F), G) E H), DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS -LEI N.º 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO
ARTIGO 1.º, N.ºS 1 E 2, DO REGIME JURÍDICO DA GESTÃO HOSPITALAR – LEI N.º 27/2002, DE 8 DE NOVEMBRO
ARTIGO 66.º DO ESTATUTO DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE -DECRETO-LEI N.º 52/2022, DE 4 DE AGOSTO
ARTIGO 1.º, DO REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO - LEI N.º 67/2007, DE 31 DE DEZEMBRO.
ARTIGOS 13.º, N.º 1, AL. B), 22.º, N.º 1, 23.º, 56.º, 57.º, 63.º DO REGIME DO SETOR PÚBLICO EMPRESARIAL – DEC. LEI N.º 133/2013, DE 03 DE OUTUBRO.
Sumário: 1.- A jurisdição dos tribunais judiciais é materialmente incompetente para a ação indemnizatória, movida por um utente/particular, por responsabilidade extracontratual de uma “Unidade Local de Saúde, E.P.E.”, decorrente de danos alegadamente sofridos no âmbito de um ato médico/hospitalar praticado num hospital por aquela gerido/administrado.

2.- A jurisdição competente para conhecer dessa ação é a administrativa.

3.- Tal entendimento não incorre em vício de inconstitucionalidade por inobservância dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e do acesso ao direito e aos tribunais (art.º 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição): o impetrante continua a poder recorrer aos tribunais para ver julgada a sua causa, apenas se tendo decidido que a jurisdição competente para tanto é, não a civil/comum, mas a administrativa.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: ****

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por decisão sumária – datada de 08/07/2025 (com Ref. 12157462) – proferida pelo relator ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., foi decidido julgar «improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida», nos seguintes termos:

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou, na jurisdição comum/cível, ação declarativa comum contra

Unidade Local de Saúde da Guarda, EPE”, também com os sinais dos autos,

peticionando a condenação da R. no pagamento:

a) Da quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, pela dor física, sofrimento psicológico, trauma emocional, vergonha e humilhação causados pelas lesões sofridas e identificadas na petição inicial, nos termos dos art.ºs 496.º e 493.º do CCiv.;

b) Da quantia de € 5.320,00, título de danos patrimoniais, correspondentes aos custos de tratamentos médicos, produtos farmacêuticos, deslocações e perda de capacidade de trabalho, decorrentes das lesões provocadas pela utilização indevida de substâncias químicas;

c) Juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, invocou ([1]):

- ter sido submetido a intervenção cirúrgica, no Hospital ..., pelo qual a R. é responsável, em termos de gestão e funcionamento, no âmbito da qual foram inobservados deveres de informação, diligência, cuidado e segurança na prestação dos serviços, causando danos ao demandante, geradores, por atuação negligente, de responsabilidade civil extracontratual da R.;

- dever a ação ser julgada procedente e a R. condenada no pedido indemnizatório.

A R. contestou, defendendo-se, para além do mais, por exceção, âmbito em que invocou a incompetência material do tribunal para a ação intentada.

Alegou, para tanto:

- ser uma pessoa coletiva de direito público, de natureza empresarial, integrada no Serviço Nacional de Saúde, criada em 01/10/2008, através do DLei n.º 183/2008, de 04-09, à qual se aplica o regime estatuído no DLei n.º 52/2022, de 04/08;

- tendo o A. requerido a condenação da R. em indemnização no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, tal deverá obedecer ao regime jurídico consagrado na Lei n.º 67/2007, de 31-12, por se tratar de pessoa coletiva de direito público;

- dever ser julgada procedente a exceção de incompetência material do tribunal, à luz do art.º 4.º, n.º 1, al.ªs g) e h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

O A., no exercício do direito ao contraditório, pronunciou-se pela improcedência daquela matéria de exceção, por não estar em causa, a seu ver, um ato administrativo, no exercício de poderes de autoridade, regendo-se, ao invés, a relação jurídica subjacente pelas normas do direito civil (e não pelo direito administrativo).

Por decisão datada de 11/02/2025, foi conhecida a questão da incompetência material do tribunal, julgando-se procedente tal exceção, com a consequente declaração de incompetência do juízo cível onde foi intentada a ação, considerando-se, assim, competente o tribunal administrativo.

Inconformado, o A. recorre do decidido, apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões ([2]):

«A. O Tribunal a quo declarou-se incompetente para conhecer da presente ação, remetendo-a para a jurisdição administrativa.

B. O Recorrente discorda dessa decisão, por entender que a matéria em causa se insere na jurisdição comum e não na administrativa.

C. A presente ação funda-se na responsabilidade civil extracontratual do Réu, por danos sofridos em consequência de uma conduta negligente na prestação de cuidados de saúde, com base nos artigos 483.º, 493.º e 496.º do Código Civil.

D. A responsabilidade invocada não decorre do exercício de um poder público ou da aplicação de normas administrativas, mas sim de atos médicos que lesaram o A., configurando uma relação de direito privado.

E. O artigo 40.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estabelece a competência dos tribunais administrativos para ações que envolvam responsabilidade civil extracontratual do Estado ou entidades públicas, mas apenas quando decorra do exercício de funções públicas.

F. A responsabilidade médica discutida nos autos é puramente civil, sujeita às regras comuns de responsabilidade previstas no Código Civil. Pelo que,

G. a decisão recorrida violou os princípios da legalidade e da adequação jurisdicional, devendo ser revogada e reconhecida a competência do Tribunal da Guarda para prosseguir com a ação.

Nestes termos, requer-se que seja admitido e provido o presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.».

A parte recorrida contra-alegou, concluindo pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem (com manutenção aqui do regime fixado).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões do Apelante – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, o thema decidendum consiste em saber se cabe ao Tribunal recorrido, enquanto juízo cível – e não à jurisdição administrativa – a competência material para a tramitação e decisão da presente ação indemnizatória, fundada em responsabilidade extracontratual por ato do âmbito médico/hospitalar.

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os antes explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos.

         B) O Direito

Da competência material para a ação indemnizatória, fundada em responsabilidade extracontratual por ato médico/hospitalar

O Apelante defende a revogação da decisão impugnada, por considerar não se verificar a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal recorrido (Juízo Local Cível da Guarda, do Tribunal Judicial da Comarca da Gurada), ao contrário do entendimento adotado por este nos autos.

Considera, assim, o Recorrente, contra o expendido pela 1.ª instância, que a ação se baseia na responsabilidade civil extracontratual do aqui R., por danos sofridos em consequência de uma conduta negligente na prestação de cuidados de saúde, com aplicação do disposto nos art.ºs 483.º, 493.º e 496.º do CCiv., termos em que a responsabilidade invocada não decorre do exercício de um poder público ou da aplicação de normas administrativas, mas de atos médicos no quadro de “uma relação de direito privado”, afastando o enquadramento no “exercício de funções públicas”.

Por sua vez, na fundamentação da decisão em crise – com invocação de jurisprudência a respeito – foi assim enunciado:

«(…) poderemos enquadrar tal pedido e causa de pedir no instituto da responsabilidade civil extracontratual.

Por outro lado, a Ré da presente demanda e a quem os pedidos são dirigidos – Unidade Local de Saúde da Guarda – é uma pessoa colectiva de direito público, a quem é imputada a responsabilidade pelos danos invocados, alegadamente causados no âmbito da prestação de cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde.

Donde, conjugando os preceitos legais ínsitos aos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8.11), no artigo 66.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de Agosto), no artigo 4.º, n.º 1, als. f), g) e h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19.02) e no artigo 1.º, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (Lei n.º 67/2007, de 31.12) aquilatamos que os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para julgar a presente acção, tendo por referência os pedidos e causa e pedir que lhe são subjacentes.

(…) estabelece desde logo o artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

Por outro lado, preceitua o artigo 4.º, n.º 1, als. f), g) e h) do ETAF que “Compete aos Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto:

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;”.

Ora, na situação de aqui se cuida, considerando a causa de pedir e pedidos formulados, assim como a natureza jurídica da Ré, o elenco factual aduzido, o Tribunal entende que a acção deverá ser analisada e decidida pelos tribunais administrativos.

(…).» (destaques retirados).

Perante o que vem de ser exposto, logo se verifica que não há controvérsia quanto à natureza indemnizatória do pedido e quanto a fundar-se a pretensão do A./Recorrente em responsabilidade extracontratual da aqui R. – “Unidade Local de Saúde da Guarda, EPE” –, por ato médico/hospitalar, no âmbito, pois, da atividade desta ([4]).

A R., como dito na decisão em crise e o A./Recorrente não questionou, é uma pessoa coletiva de direito público, tendo os danos alegados tido lugar “no âmbito da prestação de cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde”, nada tendo sido objetado ao quadro legal traçado pelo Tribunal recorrido quanto ao regime jurídico que prevê e disciplina tal R., como “E.P.E.”.

Trata-se, então, de uma entidade pública empresarial (E.P.E.), ou seja, um tipo de empresa pública que reveste a forma de pessoa coletiva de direito público, de criação estatal, para a prossecução de fins públicos, postos a seu cargo.

Este tipo de empresa pública encontra-se previsto no regime do setor público empresarial (cfr. art.ºs 13.º, n.º 1, al.ª b), e 56.º e segs., tal como aprovado pelo DLei n.º 133/2013, de 03-10), sabido que as “empresas públicas podem exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado” (cfr. art.º 22.º, n.º 1, no mesmo diploma), e dispondo-se, quanto a matéria de competência judicial (art.º 23.º, sob a epígrafe “Tribunais competentes”, do mesmo diploma):

«1 - Para efeitos de determinação da competência para o julgamento dos litígios respeitantes a atos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo anterior, as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.

2 - Nos demais litígios, seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.».

Como dispõe o art.º 56.º do dito regime jurídico, «São entidades públicas empresariais as pessoas coletivas de direito público, com natureza empresarial, criadas pelo Estado para prossecução dos seus fins, as quais se regem pelas disposições do presente capítulo e, subsidiariamente, pelas restantes normas do presente decreto-lei». Assim, “As entidades públicas empresariais são criadas por decreto-lei, o qual aprova também os respetivos estatutos” (art.º 57.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Por fim, dispõe o art.º 63.º, quanto à “Constituição de entidades do sector empresarial local”, que «A constituição de entidades do sector empresarial local processa-se nos termos previstos no regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais, aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto» (cfr. n.º 1). É-lhes aplicável, «com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 16.º, 18.º, 22.º, 23.º, 40.º a 47.º e 49.º a 54.º» (cfr. art.º 67.º do mesmo diploma).

Dúvidas não subsistem, pois, de ser a R. um ente dotado de natureza pública, uma entidade pública empresarial (E.P.E.), sujeita ao regime jurídico mencionado, atuando no setor da saúde (modelo de entidade pública de gestão privada, adotado por diversos hospitais públicos).

Entre a jurisprudência citada na decisão em crise, encontra-se o Ac. TRC de 17-09-2019, Proc. 10066/15.3T8CBR.C1 (Rel. Moreira do Carmo), desta mesma Secção, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-   -se:

«1.- O legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

2. Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF).

3. Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF).

4. A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas que a estas estejam ligadas.

5. Estão, assim, integrados na função administrativa os actos médicos praticados num hospital que colabora com o Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente a este estão confiadas.

6. Daí que sejam os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem a acção proposta contra dois médicos e uma Clínica que colabora com o SNS, no âmbito do SIGIC, e prestou cuidados a utente deste sistema, com fundamento em actos médicos deficientemente prestados.».

E no mesmo sentido já se posicionava o Ac. TRE de 22-11-2018, Proc. 1243/17.3T8STB.E1 (Rel. Manuel Bargado), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se:

“(…)

II - Decorre do artigo 1.º, n.º 5, da lei 67/2007, de 31 de dezembro, que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (...), por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, (...), por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».

III - As normas que constituem o capítulo I do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (RJGH), aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (art.º 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (art.º 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (art.º 6º a 8º)».

IV - São da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos hospitais privados que prestem cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), em virtude da Convenção celebrada com a Administração Regional de Saúde para a prestação desses cuidados.”.

Na mesma linha também o anterior Ac. STJ de 08-10-2015, Proc. 1085/14.8TBCTB-A.C1.S1 (Cons. Maria Clara Sottomayor), também em www.dgsi.pt, podendo extrair-se do respetivo sumário:

“I – Nos termos da alínea i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

II – Decorre do artigo 1.º, n.º 5, da lei 67/2007, de 31 de dezembro, que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (...), por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respectivos trabalhadores, (...), por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».

(…)”.

E, outrossim, o Ac. STJ de 16-03-2023, Proc. 4297/13.8TBVFR.P1.S1 (Cons. Catarina Serra), em www.dgsi.pt, podendo ler-se no respetivo sumário: «Da leitura conjugada do disposto no artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8.11), no artigo 37.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (DL n.º 11/93, de 15.01), no artigo 4.º, n.º 1, al. i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19.02, na versão da Lei n.º 59/2008, de 11.09) e no artigo 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (Lei n.º 67/2007, de 31.12) resulta que os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para julgar uma acção de responsabilidade civil proposta contra a Santa Casa da Misericórdia de Arouca por danos causados no âmbito da prestação de cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde nos termos de convenção.».

Também o Tribunal de Conflitos se vem posicionando, de há muito, neste mesmo sentido, como o mostram, entre outros, os seguintes arestos:

- Ac. TConf. de 21-04-2016, Proc. 06/15 (Cons. Maria do Céu Neves), em www.dgsi.pt, podendo ler-se na respetiva fundamentação:

«Por seu turno o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei nº 27/2002 de 08/11 dispõe no seu artº 1º, nº 2: «A rede de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, os estabelecimentos privados que prestam cuidados aos utentes do SNS nos termos de contratos celebrados ao abrigo do disposto no Capítulo IV e os profissionais com quem sejam celebradas convenções».

E no nº 1 do artº 2º do referido Regime Jurídico dispõe-se: «Os hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde podem revestir uma das seguintes figuras jurídicas: a) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira, com ou sem autonomia patrimonial; b) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial e natureza empresarial; c) Sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos; d) Estabelecimentos privados, com ou sem fins lucrativos com quem sejam celebrados contratos, nos termos do nº 2 do artigo anterior» - sub. nosso.

No que respeita ao regime a que estão sujeitos os estabelecimentos privados, estabelece o artº 20º [capítulo IV do RJGH]:

«1º. Os hospitais previstos na al. d) do nº 1 do artº 2º, regem-se:

a) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas com fins lucrativos pelos respectivos estatutos e pelas disposições do Código das Sociedades Comerciais;

b) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, pelo disposto nos respectivos diplomas orgânicos e subsidiariamente, pela lei geral aplicável;

2. O disposto no número anterior não prejudica o cumprimento das disposições gerais constantes do capítulo I»

Temos assim que as normas que constituem o capítulo I do RJGH, aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (artº 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (artº 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (artº 6º a 8º).

E da observação destas normas extrai-se que os hospitais que revistam a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, que estejam integrados na rede de prestação de cuidados de saúde, por força de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, anexo à Lei nº 27/2002 de 02/11 têm a respectiva actividade disciplinada por um conjunto de regras que decorrem do facto da entidade privada ter sido chamada a desenvolver, em colaboração com o Estado, uma tarefa de interesse público.

Assim sendo e atendendo à narrativa dos factos constantes da causa de pedir, é óbvia a conclusão que os mesmos foram praticados no âmbito de uma relação jurídica de prestação de cuidados de saúde em que o hospital privado – Hospital da Prelada – em virtude do contrato celebrado com a Administração Regional de Saúde, tem a sua actividade disciplinada por normas de direito administrativo.

Deste modo, e atendo o disposto nos artºs 4º, nº 1, al. i) do ETAF e 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 [que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas] a competência, em razão da matéria, para conhecer da presente acção pertence à jurisdição administrativa.»;

- Ac. TConf. de 06-02-2014, Proc. 024/12 (Cons. Costa Reis), em www.dgsi.pt, podendo ler-se no respetivo sumário:

«I - O Centro Hospitalar de Lisboa Oriental, EPE, é uma pessoa colectiva pública integrada na administração indirecta do Estado, estando os trabalhadores que nele exercem funções públicas sujeitos à disciplina do D.L. nº 503/99, de 20 de Novembro.

II - Por isso, os competentes para julgar uma acção administrativa interposta por um destes trabalhadores contra aquele por virtude da incapacidade resultante de um acidente sofrido no exercício de funções, são os tribunais administrativos.» ([5]);

- Ac. TConf. de 19-06-2024, Proc. 02837/22.0T8STB.E1-A.S1 (Cons. Nuno Gonçalves), em www.dgsi.pt, podendo ler-se no respetivo sumário:

«É da competência material dos tribunais administrativos e fiscais conhecer de ação em que o autor pretende ser indemnizado nos termos gerais de direito pelos danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente causados pelo réu, um centro hospitalar EPE, uma entidade publica integrada na administração indireta do Estado com a prática discriminatória, no âmbito do vínculo jurídico de natureza pública (contrato administrativo de provimento) existente entre ambos, que não lhe permitiu ascender na carreira que o perseguiu disciplinarmente e não quis contribuir para que não fosse acusado e julgado em processo criminal, do qual foi absolvido.»;

- Ac. TConf. de 04-11-2009, Proc. 020/09 (Cons. João Camilo), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se:

«São competentes os tribunais administrativos para o conhecimento de acção proposta contra um médico de um hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde e uma seguradora em que é pedida indemnização pela prestação deficiente de cuidados de saúde, no âmbito das suas funções de médico oftalmologista ao serviço do hospital».

Daqui pode inferir-se – com o que se concorda – que um hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde, mesmo que transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos ou no âmbito de uma E.P.E. (enquanto pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado) ou até quanto a estabelecimentos privados, com ou sem fins lucrativos com os quais sejam celebrados contratos, participa no escopo da função administrativa, que compreende um conjunto de atos destinados à prestação de serviços de saúde, tendo em vista a satisfação das necessidades coletivas, com integração na rede de prestação de cuidados de saúde, que ao Estado cabe assegurar e prosseguir, na defesa do interesse público que lhe está confiado.

Termos em que, também no caso dos autos, tratando-se de uma E.P.E., pode dizer-se que estão integrados na função administrativa os atos médicos praticados num hospital que se insere no Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente a este estão confiadas.

Donde que sejam, também aqui, os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem uma ação indemnizatória, intentada por um utente/particular, destinada a efetivar a responsabilidade extracontratual decorrente de ato médico/hospitalar praticado em tal E.P.E..

Não vemos, pois, quaisquer razões para divergir – antes pelo contrário – deste entendimento reiterado de Tribunais da Relação, do STJ e do Tribunal de Conflitos, sendo que na citada fundamentação antecedente já estão respondidas as questões colocadas pelo aqui A./Apelante.

Nesta perspetiva, inexiste, logicamente, qualquer invocada violação de lei ou de princípios jurídicos.

Nada, pois, a censurar à decisão recorrida, estando justificada a ponderação que conclui pela incompetência da jurisdição comum/cível, por ser competente, em razão da matéria, a jurisdição administrativa.

Improcedendo, assim, a apelação, cabe ao A./Recorrente, parte vencida, suportar as custas do recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

[…].

II - Discordando do assim decidido, vem o A./Apelante reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria da decisão singular proferida recaia acórdão deste Tribunal da Relação, concluindo, nesta ótica, pela recursiva prolação de distinto veredicto, por continuar a entender que a competência para julgar o pleito pertence ao Juízo Local Cível da Guarda.

Não foi apresentada resposta à reclamação formulada.

III - Apreciando

Não tem razão – salvo sempre o devido respeito – a parte reclamante.

Vejamos.

O A./Reclamante reitera os argumentos já anteriormente apresentados e sobre os quais se debruçou a decisão sob reclamação.

Assim, afirma que «não ignora a jurisprudência invocada, mas entende que a mesma não deve ser aplicada cegamente e sem atender à natureza específica da relação subjacente, sob pena de afastar indevidamente a jurisdição comum de matérias que lhe pertencem por natureza».

Doutro modo, a seu ver, acabariam comprometidos «os princípios da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º da CRP), e seria contrári[o] à jurisprudência do TEDH sobre o direito de acesso a um tribunal» (cfr. pontos 2 e 10 do Reclamante).

Apreciando.

Não se vê, salvo o devido respeito, como pudessem estar em causa, com atropelo, os princípios da tutela jurisdicional efetiva e do acesso ao direito e aos tribunais.

É que do que havia de decidir-se era da atribuição de competência a uma de duas diversas ordens jurisdicionais; não a recusa de competência, em moldes que deixassem o demandante desprotegido, por não encontrar tribunal que conhecesse da sua pretensão.

Entre julgar materialmente competente a jurisdição administrativa ou os tribunais judiciais/comuns/cíveis, foi entendido na decisão recorrida e, do mesmo modo, na decisão singular (confirmatória) ora sob reclamação, que competente é o tribunal administrativo, com a consequente incompetência material do juízo cível onde a ação foi intentada.

Daí o seguinte sumário, que consta da decisão sob reclamação:

«1. - A jurisdição dos tribunais judiciais é materialmente incompetente para a ação indemnizatória, movida por um utente/particular, por responsabilidade extracontratual de uma “Unidade Local de Saúde, E.P.E.”, decorrente de danos alegadamente sofridos no âmbito de um ato médico/hospitalar praticado num hospital por aquela gerido/administrado.

2. - A jurisdição competente para conhecer dessa ação é a administrativa.».

Com a decorrente decisão recursiva singular de improcedência da apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Termos em que, sem inobservância do disposto no art.º 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, persistem intocados os ditos princípios da tutela jurisdicional efetiva e do acesso ao direito e aos tribunais: o impetrante (A./Recorrente/Reclamante) continua a poder recorrer aos tribunais para ver julgada a sua causa, apenas se tendo decidido que a jurisdição competente para tanto é, não a civil/comum (onde foi intentada a ação), mas a administrativa (de que, por isso, o demandante terá de socorrer-se).

No mais, mantém-se/confirma-se aqui a posição já assumida pelo Relator na decisão singular sob reclamação, cujos fundamentos, a que se adere, já foram anteriormente transcritos.

Donde que, tendo em conta o conjunto jurisprudencial citado naquela decisão singular, não se vejam, como ali exarado, «quaisquer razões para divergir – antes pelo contrário – deste entendimento reiterado de Tribunais da Relação, do STJ e do Tribunal de Conflitos», inexistindo «qualquer invocada violação de lei ou de princípios jurídicos».

O Reclamante defende posição diversa, o que é legítimo e compreensível, mas não mostra que tenha havido erro na decisão sumária proferida, nem que seja errada a dita reiterada posição jurisprudencial – incluindo deste TRC, tal como do STJ e do Tribunal de Conflitos –, a que cabalmente se adere.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, improcede a reclamação, com custas pelo A./Reclamante, perante o seu (total) decaimento.

IV – Síntese conclusiva (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…)

***

V - Decisão

Nos termos expostos, decide-se, em Conferência, indeferir a reclamação apresentada, mantendo-se, no seu preciso teor, a decisão sumária confirmatória em apreço.

Custas da reclamação a suportar pelo A./Reclamante (vencido).

Coimbra, 28/10/2025

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

Fernando Monteiro (1.º Adjunto)

Luís Cravo (2.º Adjunto)


([1]) Segue-se, no essencial, por economia de meios, o teor do relatório da decisão recorrida.
([2]) Cujo teor se deixa transcrito.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Como reconhece o Recorrente, “o A. foi submetido a uma cirurgia no Hospital ..., em ..., unidade pertencente à Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E.” (cfr. art.º 5.º da sua alegação recursiva).
([5]) E, com o mesmo Relator, o Ac. TConf. de 02-10-2008, Proc. 012/08, em www.dgsi.pt, constando do respetivo sumário: «III - A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública. // IV- Estão, assim, integrados na função administrativa os actos médicos praticados num hospital que, apesar de ter sido transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, continuou integrado no Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente que a este estão confiadas. // V - Daí que sejam os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem a acção proposta contra dois médicos de um hospital sociedade anónima com fundamento em actos médicos deficientemente prestados.».