Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2667/19.7T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
SUA IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DO IMPUGNANTE
REJEIÇÃO DO RECURSO
LEGITIMIDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
LESÃO GRAVE E DIFICILMENTE REPARÁVEL
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, Nº 2; 30º; 362º E 640º NCPC.
Sumário: I - A fiscalização concreta da constitucionalidade, na parte da invocação da inconstitucionalidade, reporta-se a normas, tidas por inconstitucionais, que alicerçem ou possam vir a alicerçar uma decisão jurisdicional, e não, direta e imediatamente, a esta decisão; e tal invocação deve efetivar-se, processualmente, incidentalmente que não a título principal.

II - A não indicação dos concretos pontos de facto impugnados, bem como da decisão que se pretende e das passagens da gravação, nem nas conclusões nem no corpo das alegações, acarreta, por via de regra, e ponderados critérios de proporcionalidade, a liminar rejeição do recurso da decisão da matéria de facto na parte afetada.

II - A censura da convicção do julgador da matéria de facto apenas pode emergir quando a prova apresentada pelo recorrente e a exegese conclusiva dela operada não apenas quando sugira, mas antes quando imponha tal censura.

IV – A legitimidade processual, exceção dilatória, é apreciada e decidida em função do modo como o autor delineia a causa e/ou em atenção às normas que especificamente a concedem; a legitimidade substancial, exceção perentória, reporta-se à prova das qualidades que atribuem o direito e o dever invocados pelo autor, emergindo se tais qualidades não se apurarem.

V – O requisito da «lesão grave e dificilmente reparável», constitutivo da providência cautelar comum, tem de resultar – por razões de justiça e de racionalização no acesso à providência - cabalmente provado, devendo esta prova ser aferida objetivamente e dimanar de concretos factos, a provar pelo requerente, essencialmente atinentes ao montante do prejuízo e/ou à natureza do acto lesivo, em concatenação e por reporte à nefasta repercussão na sua esfera jurídica.

Decisão Texto Integral:





ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

L...  intentou contra C... e marido, L... o presente procedimento cautelar comum.

Pediu:

a)  Seja ordenada a demolição pelos requeridos e a suas expensas, do muro que os mesmos mandaram construir defronte da moradia habitada pelo requerente, bem como a limpeza do terreno, sob pena da prática de um crime de Desobediência Qualificada.

b) Sejam os requeridos intimados no sentido de acatarem a sentença homologatória de transação proferida em 17 de Julho de 2019  e de se absterem da prática dos actos anunciados através da Notificação Judicial Avulsa cuja junção se requereu (doc. n.º 1), igualmente sob penanda prática de um crime de Desobediência Qualificada,

Caso assim não venha a ser entendido:

c)  Deverá ser havida como ilegítima, por Abuso do Direito, em conformidade com o estatuído no art.º 334.º do Código Civil, toda a descrita conduta protagonizada pelos requeridos, e como tal cominada de nulidade, com as legais consequências, que além do mais, se traduzem que na demolição, a suas expensas, do muro abusivamente construído.

d)  A condenação dos requeridos em pesada multa - nunca inferior a 20 UCs - bem como em indemnização a favor do requerente, no montante de €1.306,00 (mil trezentos e seis euros) valor que incluiu a taxa de justiça paga e os honorários do seu mandatário judicial, por litigância de má-fé.

Mais requereu, em conformidade com o disposto no 369º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a dispensa do requerente do ónus da propositura da ação principal, face à verificação segura da razão que lhe assiste.».

Citados, os requeridos deduziram oposição.

 Excecionaram a ilegitimidade do requerente e a ilegitimidade dos requeridos.

 Por impugnação disseram que  o muro edificado nada afeta a passagem do requerente para sua habitação e a razão de tal muro encontra justificação na avançada idade dos pais da requerida mulher, que pretendem ter privacidade, vir à rua apanhar sol e tranquilidade naquele espaço.

3.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto decide este Tribunal:

A) Julgar procedente o presente procedimento cautelar e, nessa conformidade, determinar que os requeridos procedem à demolição do muro, a expensas suas, assim como à limpeza do terreno, bem como que os  requeridos se abstenham da prática dos actos anunciados na notificação judicial avulsa remetida ao requerente (traduzidos na proibição de acesso à habitação onde o requerente reside, pelo caminho por onde a passagem vem sendo feita até ao presente);

B) Absolver os requeridos do pedido de condenação como litigantes de má-fé;

C) Determinar a inversão do contencioso e, em consequência, dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal.»

4.

Inconformados recorreram os requeridos.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Contra alegou o requerente pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º, nº 4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são, lógica e metodologicamente,  as seguintes:

1ª -   Inconstitucionalidade da decisão por violação dos artºs 3º e 266º/2 da Constituição.

2ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª – Ilegitimidade ativa e passiva.

4ª- Improcedência da providência.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clamam os recorrentes que existe inconstitucionalidade, por violação dos artºs 3º e 266ª/2 da constituição.

O artº 3º /2 refere-se à legalidade, nos seguintes  termos:

«2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.»

O artº 266º/2 estatui:

«2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.»

Desde logo há que verificar que este último segmento normativo não tem, liminar, formalmente e em tese, aplicação in casu.

É que ele  consta no titulo IX, o qual se reporta  à «Administração Pública».

Já  a matéria atinente aos  «tribunais» consta no título V.

Ademais.

A fiscalização concreta da constitucionalidade ou o pedido de declaração de inconstitucionalidade reportam-se a normas jurídicas e não a decisões do tribunais.

Estas decisões podem ser ilegais, se contrariarem lei ordinária, e só serão inconstitucionais se se alicerçarem em norma declarada inconstitucional.

Neste particular urge atentar no disposto no artº 204º da Constituição:

Artigo 204.º

(Apreciação da inconstitucionalidade)

Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

Efetivamente:

«O art. 204.º da Constituição…o ponto de partida necessário da fiscalização concreta da constitucionalidade (e da legalidade) e significa, antes de mais, que:

a) Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria (art. 209.º), exercem fiscalização – a qual implica «apreciação», e não simplesmente «não aplicação»;

b) A fiscalização dá-se nos «feitos submetidos a julgamento», nos processos em curso em tribunal, incidentalmente, não a título principal;

c) Ninguém pode dirigir-se a tribunal a pedir a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, mas é admissível que alguém se lhe dirija propondo uma ação tendente à declaração ou à realização de um seu direito ou interesse, cuja procedência depende de uma decisão positiva de inconstitucionalidade – é o que sucede hoje, muito especialmente, nas ações para efetivação de responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, segundo a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro de 2007;

d) A questão de inconstitucionalidade só pode e só deve ser conhecida e decidida na medida em que haja um nexo incindível entre ela e a questão principal objeto do processo, entre ela e o feito submetido a julgamento;

e) Trata-se de questão prejudicial imprópria, porque questão que se cumula com a questão objeto do processo …

Objeto do recurso é sempre a constitucionalidade ou a legalidade de uma norma, não a constitucionalidade ou a legalidade de uma decisão judicial.

Não abrange, obviamente, a questão principal discutida no tribunal a quo.»  - Jorge Miranda in o regime de fiscalização concreta da constitucionalidade em Portugal,  https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1119-2440.pdf

No caso vertente os recorrentes não invocam a inconstitucionalidade de qualquer norma, mas antes a inconstitucionalidade da sentença.

E isto porque, segundo eles, nela existiu:

«a violação, entre outros, do principio da legalidade, do principio da boa administração da justiça, do principio do contraditório e do principio da boa gestão processual, e do principio da fundamentação da sentença.

E mais consideram que tais vícios da sentença emergem:

«por terem sido desconsiderados os depoimentos das principais testemunhas apresentadas pelos requeridos;

E por ter sido privilegiada e adotada uma solução gravosa e prejudicial para os interesses dos requeridos – e dos outros proprietários do prédio- em detrimento de uma outra mais adequada, mais favorável e totalmente consentânea com a realidade física e jurídica;»

Está bom de ver que que esta pretensão dos recorrentes é, meridianamente, inaceitável.

Quer porque, desde logo, não cumprem o formal/processualmente exigido, pois que não suscitaram a questão a título incidental.

Quer porque, e aqui decisivamente, falham clamorosamente a subsunção jurídica da sua pretensão, nos termos em que é formulada, a saber: i) reportam-se à sentença que não a concreta norma legal na qual ela se tenha alicerçado; ii) invocam vícios que se assumem como ilegalidades, que não – desde logo por impossibilidade lógica: pois que, como se viu, a inconstitucionalidade reporta-se a normas, em si mesmas ou porque alicerçantes de decisões – como inconstitucionalidade.

Assim sendo, ou seja, assumindo-se esta pretensão como um assacar de ilegalidades à sentença, verifica-se que no rol destas está a violação de vários princípios legais, como sejam o da  legalidade, da boa administração da justiça, do contraditório e o da boa gestão processual.

Simplesmente, verifica-se que os recorrentes assacam estes vícios à sentença porque nela «terem sido desconsiderados os depoimentos das principais testemunhas apresentadas pelos requeridos;

E por ter sido privilegiada e adotada uma solução gravosa e prejudicial para os interesses dos requeridos – e dos outros proprietários do prédio- em detrimento de uma outra mais adequada, mais favorável e totalmente consentânea com a realidade física e jurídica».

Ou seja, os recorrentes, bem vistas as coisas, pura e simplesmente, não concordam com a sentença e os seus fundamentos.

Tanto assim que não escalpelizam e justificam como, em que medida, e com que consequências, tais princípios foram violados.

Nem esta violação se enxerga.

Por conseguinte, o quid, nuclear e relevante, recursivo, atem-se, apenas, mas suficientemente, a aquilatar da bondade  da censura assacada à sentença quanto aos  seus aludidos fundamentos e à subsunção jurídica e consequente decisão final nela operada na 1ªinstância.

Ou seja, tudo se resume a uma singela apreciação da (i)legalidade, factual e jurídica, da sentença colocada sub sursis.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº 607º, nº 5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Por conseguinte, a  lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr., neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

Até porque constitui jurisprudência sedimentada que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.2.2.

Por outro lado importa ter presente o plasmado no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Como corolário deste princípio:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.» - Ac. do STJ de 01.10.2015,  sup. cit.

Nesta senda, estatui o artº 640º do CPC:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

Na verdade:

«…a lei, cooptando o recorrente para a colaboração com o tribunal e para a autorresponsabilização, visa agilizar a intervenção da Relação na reapreciação (que é pontual, no sentido de circunscrita a certos factos e a certas provas) da matéria de facto…» - Ac. do STJ de 18.06.2019, p. 152/18.3T8GRD.C1.S1.

Efetivamente, e nesta senda:

«…A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”.» - Ac. do STJ de 26.1.2017, p. 599/15.7T8CLD.C1.S1, apud, Ac. do STJ de 18.09.2018, p. 108/13.2TBPNH.C1.S1; cfr, ainda, os Acs. do STJ de 27.10.2016, p. 3176/11.8TBBCL.G1.S1 e de 05.08.2018, p. 15787/15.8T8PRT.P1.S2.

A transcrição parcelar dos depoimentos não exime ao cumprimento daquele dever.

5.2.3.

No caso vertente, e num esforço exegético, parece que os recorrentes se insurgem contra a decisão sobre a matéria de facto – cfr. conclusões 1ª e 2ª.

Porém, visto o teor do recurso, verifica-se que nele, nem no seu corpo, nem nas conclusões,  os recorrentes cumprem, minimamente, os aludidos requisitos do artº 640º do CPC.

Efetivamente, nele não  indicam, concretamente,  nem quais os pontos de facto impugnados, nem, outrossim, dizem qual seria a decisão que, perante o seu aparente insurgimento e  se este procedesse, pretendem (não prova, prova num determinado sentido), nem, finalmente, e referindo-se a uma certa testemunha, indicam as concretas passagens da gravação, nem quaisquer outras, nas quais o seu depoimento sustentou o por eles agora aduzido.

Pelo que, neste particular, o recurso tem de ser liminarmente indeferido.

Porém, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e se considerasse que os recorrentes pretendem a não prova do facto 12, sempre esta pretensão se revelaria insustentável.

Neste particular a julgadora fundamentou nos seguintes termos:

«O facto de tal muro ter sido construído ou mandado construir pela requerida e seu marido resulta da circunstância de ter sido esta a dirigir ao requerente a notificação judicial avulsa referida nos factos provados, aliada à circunstância de a mesma não o ter impugnado na oposição que apresentou, justificando apenas que o teria feito a pedido ou a mando de seus pais, para acautelar a privacidade e sossego destes…

Ademais, como foi hoje verificado no local, os interesses de protecção de privacidade e resguardo dos pais da requerida não impunham de todo a edificação do muro nos moldes como foi efectuada, podendo perfeitamente acautelar tais interesses se a divisória fosse erigida a uma distância que não tolhesse a luz e visibilidade do alçado principal da casa habitada pelo requerente.».

Perante esta fundamentação os recorrentes invocam que eles atuaram apenas como representantes dos seus pais, o que resulta da carta de 05.05.2019 e que a Testemunha ... depôs nesse sentido.

Mas de tal carta não pode concluir-se tal como os recorrentes pretendem.

 É que nela a qualidade representativa da requerida reporta-se a um assunto diverso e que não tem a ver, ao menos necessariamente,  com o teor aqui em causa.

Efetivamente, aquela missiva refere-se a uma autorização concedida ao requerente para providenciar a abertura de serventia na rua cova da moura.

Aqui está em causa apurar quem mandou construir o muro.

São, pois, realidades diversas.

Acresce que o facto 12 é ainda provado com base no afastamento do facto aduzido pelos recorrentes para justificar que a construção do muro se deveu aos seus pais, a saber: tal construção não era necessária para lhes conceder  privacidade e resguardo; o que, aliás, foi comprovado através de um meio de prova irrefutável: a inspeção ao local.

Enfim, como se disse, os recorrentes nem sequer esclarecem, concretamente, como e em que medida, a testemunha ... se pronunciou, no sentido de se não dar como provado o ponto 12.

Assim se concluindo que a prova aduzida não tem a dignidade e força bastantes para, como exige a lei, impor a censura da convicção da julgadora, ou seja, convencer, sem margem de dúvida, que esta menos bem andou na apreciação dos meios probatórios produzidos e que tal má, ou menos boa, apreciação, impunha a não prova do facto daquele ponto.

5.2.4.

Por conseguinte os factos a considerar são os apurados na 1ªinstância, a saber:

...

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Estatui o artigo 30.º do CPC

Conceito de legitimidade

1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Este preceito prescreve sobre a legitimidade processual, exceção dilatória que implica a absolvição da instância.

Como é consabido, a legitimidade processual afere-se pela posição  - titularidade -  da parte: o autor titular do direito e o réu sujeito da obrigação - em relação ao objeto do processo, à matéria que nesse  nele se dilucida e escalpeliza.

Assim, para  se aferir da legitimidade, há que comparar os sujeitos da relação jurídica subjacente com os sujeitos da relação jurídica processual.

E, como também é consabido, uma vexata quaestio surgiu, neste particular, na doutrina e na jurisprudência e que teve como protagonistas maiores os Profs. Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães.

Para aquele a parte só é legítima quando é titular da efetiva e real relação jurídica controvertida.

Para este tal coincidência não é necessária, sendo a parte legítima se for sujeito da relação material controvertida, tal como a configura o autor.

Ora esta posição e consagração legal reduz a ilegitimidade a um vício raro de académica configuração. Como sejam os casos em que A demanda B pedindo a condenação de C ou pedindo a condenação de B a pagar a D cfr. Prof. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, ed. Da AAFDL, 1978, 2º vol.p.170.

Porém, a (i)legitimidade pode ainda resultar de disposições legais ou negociais especiais que  concreta e especificamente regulem os poderes de agir de qualquer interessado ou sujeito de direitos.

É o que ainda dimana do disposto no artº 33º, nº 1  do CPC: « se…a lei ou o negócio exigir a intervenção de vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade».

Para além da legitimidade processual pode falar-se ainda em legitimidade material, substantiva ou “ad actum”,  cuja falta consubstancia exceção perentória que implica a absolvição do pedido.

Esta  consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

E se se reconhecer que a relação jurídica delineada e invocada pelo autor,  quer quanto ao seu facto constitutivo (causa petendi), quer quanto ao sujeito passivo, quer quanto ao seu objeto,  não existe,  tal é caso de ilegitimidade material, e a questão passa do campo da forma para a vertente do  mérito, sendo então caso de  improcedência do pedido – cfr. Ac. STJ de 18.10.2018, p. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 in dgsi.pt.

5.3.2.

O caso vertente.

A julgadora decidiu nos seguintes termos:

«Da ilegitimidade do requerente:

Sustentam os requeridos que o requerente é parte ilegítima, por demandar desacompanhado da sua ex-cônjuge, irmã da requerida, filhas de pais comuns. Porém, como resulta do disposto no artigo 1286.º do Código Civil, em matéria da defesa da composse, «cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro».

Face ao disposto em tal normativo e uma vez que o requerente se apresenta a defender a composse, não é lícito aos requeridos opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro.

Improcede, pois, a excepção suscitada.

Da ilegitimidade dos requeridos:

Atenta a relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo requerente, imputando aos requeridos a prática do acto alegadamente violador da composse (em concreto, a edificação do muro), são estes partes legítimas, por serem quem tem interesse directo em contradizer.»

E, perante o aludido no ponto anterior, e o circunstancialismo envolvente do caso, assim é.

O cerne essencial do objeto do processo atém-se à demolição do muro.

 Cuja edificação o requerente imputa aos requeridos e a mais ninguém – artº 30º do requerimento inicial.

E, apenas contra eles, pedindo a sua demolição.

Logo, arrogando-se ele comproprietário da casa e possuidor dos 150 m2 a ela contíguos, a legitimidade, desde logo na aludida vertente estritamente adjetiva ou formal, está assegurada.

Até porque, como bem se refere na decisão, a própria lei  atribui ao compossuidor, e ao comproprietário, tal legitimidade – artºs 1286º e 1405º nº 2 do CPC.

Na perspetiva substantiva, e porque a lei, em face da qualidade de compossuidor ou comproprietário, lhe atribui o direito de agir em juízo, ela está outrossim assegurada.

Ademais, este conceito de legitimidade algo coincide ou se confunde com a própria decisão de mérito.

Pois que para aferir da mesma é necessário, por via de regra, a produção de prova relativamente à qualidade invocada.

No caso vertente as aludidas qualidades do requerente estão provadas.

Por conseguinte a sua legitimidade está, em qualquer ótica, assegurada

E o mesmo se diga quanto à legitimidade dos requeridos pois que, reitera-se, a construção ilegal e com afetação dos direitos do requerente, por este apenas a eles é assacada.

E sendo que se provou que a construção do muro da discórdia pelos requeridos foi erigido – pontos 12 a 14 dos factos provados.

Assim se atingindo a final conclusão de que, in casu, a causa não deve ser decidida em função desde  logo e  apenas perante um mero pressuposto processual, como seja a ilegitimidade, mas antes entrando no fundo da questão e decidi-la perante a interpretação das normas legais aplicáveis quanto ao mérito.

5.4.

Quarta questão.

A julgadora decidiu nos seguintes, sinóticos, termos:

«Os procedimentos cautelares constituem o meio processual adequado para afastar a perda de eficácia de uma decisão judicial, para acautelar o efeito útil da acção, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito. Por outro lado, o requerente deve requerer a providência adequada a afastar o periculum in mora, a assegurar a efectividade do direito ameaçado, assim conservando ou antecipando o direito em causa (artigos 2.º, n.º 2 e 362.º, n.º 1 do Código do Processo Civil)…

Como decorre dos termos conjugados do disposto nos artigos 362.º e 368.º, n.º s 1 e 2 do Código do Processo Civil, o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

 probabilidade séria da existência do direito tido como ameaçado (fumus boni juris);

 fundado receio de que o retardamento da acção a propor ou já pendente cause ao titular do direito lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora);

 que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas;

 que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado;

 que o prejuízo resultante da providência para o requerido não exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

Por outro lado, o Tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida (artigo 376.º, n.º 3 do Código do Processo Civil), podendo ponderar a aplicação da providência que repute adequada à situação concreta.

E se quanto à existência do direito ameaçado bastará um juízo de probabilidade ou verosimilhança (ao requerente bastará fazer a prova sumária do mesmo), já se exige um juízo de certeza quanto ao periculum in mora, isto é, tem de existir, objectivamente, um receio suficientemente justificado de lesão grave e dificilmente reparável desse direito ou interesse.

Revertendo ao caso concreto, em face dos factos dados como indiciariamente provados, resulta que o requerente habita a casa em causa e, nos termos expressos da autorização que lhes foi concedida, a ele e à então mulher, a acrescer ao espaço ocupado por tal habitação, terão direito a utilizar outros 150 m2 de terreno.

É certo que a habitação está ligada a alguns anexos, desconhecendo-se a concreta área ocupada por estes, mormente se preenche a totalidade destes 150 m2 adicionais referidos na autorização.

Os requeridos não alegaram nem demonstraram esta circunstância, o que, conjugado com a prática até então adoptada, sem oposição de ninguém, de utilização do espaço em frente à habitação para parqueamento de veículos (não só do requerente mas também dos requeridos e dos pais da requerida), torna legítima a conclusão de que tal espaço era, pelo menos, de uso comum dos comproprietários.

Com efeito, a situação registal do prédio, como emerge do teor da respectiva certidão de registo predial, é ainda de compropriedade, não tendo sido cessada tal situação de indivisão.

Nos termos do artigo 1406.º, n.º 1 do Código Civil, «na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto  que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».

Adianta o n.º 2 do mesmo artigo 1406.º do Código Civil que «o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título».

Donde, o muro edificado, no local onde o foi, paralelo ao lado frontal da moradia habitada pelo requerente, distando da mesma cerca de 1,50 m, viola esta composse que o requerente e a sua ex-mulher vinham exercendo sobre aquele espaço comum.

Vale por dizer que configura um acto unilateral dos requeridos, violador das regras do uso da coisa comum, que o Direito não permite nem consente, sequer à luz do interesse de privacidade visado proteger (dos pais da requerida), porquanto, como bem resultou da inspecção judicial, tal interesse podia perfeitamente ser acautelado por modo que não atentasse contra os interesses do requerente como o muro edificado o faz.»

5.4.2.

Acrescentando algo mais ao aludido pela julgadora no que, em tese, se pode dizer quanto às providências cautelares, máxime a de jaez comum, que está aqui instaurada, diremos o seguinte:

Estatui o art. 2º, nº 2 do CPC:

 «A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários a acautelar o efeito útil da ação

Os procedimentos cautelares são, assim, meios provisórios de tutela do direito, destinados a evitar o perigo de demora do desfecho definitivo de ações.

Visam impedir que, durante a pendência de qualquer ação declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.

Com as providências cautelares visa-se alcançar uma decisão provisória do litígio, quando ela se mostre necessária para assegurar a utilidade da decisão, o efeito útil da ação definitiva a que se refere o artigo 2.°, n° 2, do CPC, ou seja, a prevenir as eventuais alterações da situação de facto que tornem ineficaz a sentença a proferir na ação principal, que essa sentença (sendo favorável) não se torne numa decisão meramente platónica - A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 23 e  Ac. da R C de  18-10-2005, p. 2692/05, dgsi.pt.

Efetivamente, casos há em que a formação lenta e demorada da decisão definitiva expõe o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico; para afastar estes riscos, admite-se a emanação de uma providência provisória, destinada a durar enquanto se não profere julgamento definitivo.

Em suma, o que justifica esta figura jurisdicional é o “periculum in mora”, o prejuízo da demora do processo.

Tal como se plasma na sentença, no que tange ao direito acautelado, não é exigível uma verificação exaustiva e definitiva, sendo suficiente a sua mera probabilidade ou verosimilhança, isto é a sua aparência, o chamado "fumus boni juris".

No concernente ao fundado receio exige-se, em regra, que na altura da instauração do procedimento cautelar esteja em curso uma situação de lesão do direito ainda não integralmente consumada ou, apenas, ocorra uma situação de lesão iminente, isto é, que ainda não tenha ocorrido, mas que com toda ou muita probabilidade virá a ocorrer.

Assim, neste ponto, não exige a lei que se verifique, ao tempo da apresentação do requerimento do procedimento em juízo, um prejuízo concreto e atual, certo ser suficiente o fundado receio que outrem cause ao requerente, antes da instauração da ação principal ou durante a sua pendência, lesão grave e de difícil reparação. O que pode verificar-se através da simples prova de factos preparatórios que permitam prever a ocorrência de um evento objetivamente idóneo a prejudicar o direito.

Já no atinente à lesão entende-se que - maxime em sede de procedimentos cautelares comuns, de cariz residual e a que a lei não atribuiu suficiente importância para os acolher expressa e especificadamente - que apenas as lesões graves e de difícil reparação ou irreparáveis merecem a tutela provisória.

Consequentemente, ficam afastadas do círculo de interesses acautelados por ele, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões graves mas facilmente reparáveis - Cfr. António Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil - III Vol. 3ª ed. pág. 101.

O requisito do justo receio de lesão grave e de difícil reparação do direito é matéria de facto, pressupondo a ocorrência de um fundado receio de prejuízos reais e certos, relevando de uma avaliação objetiva e ponderada da realidade e não de uma apreciação subjetiva e emocional.

Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um ato qualquer, mas sim aquele que é capaz de gerar uma dificuldade notável, importante, para o exercício do direito.

Ora para se aferir desta realidade, certeza e objetividade, é necessário provarem-se factos concretos que apontem nesse sentido, como sejam, v.g., o montante minimamente aproximado do prejuízo invocado e a repercussão que o mesmo poderá ter na esfera jurídica do interessado.

Para o que importa apurar das condições económicas do requerente e requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou do ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados – - Cfr. Manuel Rodrigues in Lições de processo preventivo e conservatório, coligidas por Adriano Borges Pires e Ernesto Pereira de Almeida, pág 67, cit em LP Moitinho de Almeida, Providências Cautelares não Especificadas, 1981, p.22 e no Ac. do STJ de 28.09.1999, dgsi.pt,p.99A678 e Ac. do STJ de 26.01.2006, dgsi.pt.p.05B4206.

A proteção cautelar abarca não apenas os prejuízos imateriais ou morais, mas também os patrimoniais ou materiais.

Ora quanto a estes:

 «…o critério deve ser bem mais estrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva» - cfr. Abrantes Geraldes, ob.cit.p.99 e sgs.

Não bastando, assim, um qualquer despiciendo ou minudente dano, lesão ou prejuízo, mas antes um prejuízo qualitativa e/ou quantitativamente relevante e, na perspetiva das possibilidades das partes, rectius do requerido, irreparável ou de difícil reparação.

Só assim se justificando o chamamento desta – como, regra geral, de qualquer outra – providência, a qual tem cariz excecional e apenas pode ser usada em situações de urgência e cabal necessidade, inequívoca e liminarmente indiciada, ou seja, quando a ação de que é dependente não possa, atempada, adequada e suficientemente, apreciar e tutelar – pelas vias normais e com plena igualdade de armas dos litigantes – o pedido do autor.

 Sob pena de se banalizar a figura procedimento cautelar, fomentando-se o recurso abusivo ao mesmo, com todos os inconvenientes daí advenientes, designadamente para a consecução da justiça material, pois que, por via de regra, aqui o contraditório não é exercitado ou é-o com as limitações ou condicionante: vg. limitação do número de testemunhas, supressão de articulados, encurtamento dos prazos etc. – cfr. artºs 292º a 295º e 362º e segs.

Com os decorrentes perigos ou riscos do prolatar de decisões injustas, quanto mais não seja por comparação com as ações definitivas correspondentes, decorrente das menores exigências em termos probatórios, o que pode acarretar graves consequências, pois que as providencias podem garantir, desde logo e independentemente do resultado que se obtiver na ação principal, um determinado efeito ele, próprio gravoso e de difícil reparação: Cfr. cfr. A. Geraldes, ob. Cit. p.111. e Ac. da Relação de Lisboa de 30-05-2006, p. 2562/2006-1, dgsi.pt, de que o presente também foi relator.

Este entendimento sai ainda reforçado se atentarmos que a magnitude e a afetação dos interesses dos litigantes é abrangentemente ponderada pela lei.

 De tal sorte que a providencia, mesmo que à partida assistisse razão ao requerente, pode ser recusada quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

  Ou mesmo após a fase liminar e tendo já sido decretada pode ser substituída por caução – artº 368º nºs 2 e 3.

E até em sede de procedimentos especificados, como seja o embargo de obra nova, no qual se permite a autorização para a continuação da obra embargada, a requerimento do embargado, em dois casos:

   - quando se reconheça que a demolição restituirá o embargante ao estado anterior à continuação;

   - quando se apure que o prejuízo resultante da paralisação da obra é muito superior ao que poderá advir da sua continuação -  artº 401º do CPC 

  Ora se a aferição da magnitude do prejuízo dos litigantes releva até em fases processuais  já mais avançadas, mal se compreenderia que ela não tivesse qualquer relevância logo no seu início, quanto mais não seja para se fazer uma triagem relativamente aos casos em que são alegados danos cuja irrelevância ou minudência não justifique este procedimento excecional e urgente, indeferindo-se os mesmos liminarmente e, assim, se ganhando em termos de racionalização dos meios e da sua adstrição ao julgamento daqueloutros que efetivamente clamam aquela urgência.

5.4.3.

No caso vertente.

Perscrutada a matéria de facto provada nela não se antolha lastro bastante para, com a certeza ou fortíssima plausibilidade legalmente exigível, se concluir que a construção do muro pelos requeridos cause ao requerente lesão grave e dificilmente reparável.

Nem, aliás, o requerente invocou no requerimento inicial factos concretos  bastantes para, em função da sua possível prova, convencer o tribunal sobre a presença de tal requisito.

O qual apenas poderia emergir se ele alegasse e provasse, vg. e prototipicamente, a perda de um certo e determinado quantum e, bem assim, outras circunstancias  atinentes à sua situação económico financeira e dos requeridos, em função das quais  se pudesse concluir pela  relevante magnitude de tais perdas, e, bem assim,  que elas provocavam uma intolerável afetação de tal sua situação  e, ainda, que a lesão seria, se a ela não se obviasse nesta providência,  irreparável ou difícil reparação.

Ora nada disto foi alegado e provado.

Sendo de notar que, apesar do muro ter sido construído, ele não impede o acesso do requerente à sua casa, o que poderá fazer, aliás, nos termos por ele admitidos, porque acordados, na transação que firmou na anterior providência – cfr. ponto 17 dos factos provados.

 Aliás, o requerente, intitulando a providência de comum, espraia-se, algo contraditoriamente, acerca de outras providencias especificadas, como seja a restituição provisória da posse, invocando violência que não se provou ter-se verificado.

Certo é que a providência foi interposta como comum, assim foi decidida, e assim deve ser apreciada em recurso.

Ademais.

A situação presente é bastante complexa e arrasta-se já há algum tempo, com vários processos, vicissitudes múltiplas e cedências recíprocas.

Se bem intuímos, essencial e determinantemente, resta apurar se ao requerente assiste, ou, não, jus à propriedade ou posse de 150m2 para além da área de implantação da casa que habita, pertencentes ao prédio rústico relativamente ao qual existem vários comproprietários.

Ora se bem se alcança, o muro foi construído no entendimento de que a propriedade ou posse de tal área, na sua totalidade, ou, quiçá, apenas parcialmente, não pertence ao requerente.

Se pertence, ou não pertence, não é  ainda líquido.

 Quer, vg., pelos termos da declaração de cedência dos pais da requerida e ex sogros do requerente;  quer pelo facto, aludido na sentença, de que para além da casa o requerente já erigiu alguns anexos.

Assim sendo, e dada a complexidade da situação, a questão não pode ficar já definitivamente resolvida -  inclusive com a inversão do contencioso – com base em factos apenas indiciariamente provados,  decorrentes de uma prova algo sumária, e com base em meras conjeturas, como as vertidas na sentença: – «requerente e mulher terão (não no sentido afirmativo de «têm», mas apenas no sentido aleatório de «poderão ter»)  direito a utilizar outros 150 m2 de terreno.».

Em todo o caso, e seja como for no futuro, desde já, os recorrentes devem reduzir a altura do muro à sua altura legal 1,80 m, em toda a sua extensão, desde logo por admissão  e cedência sua.

E, pensa-se, as partes terão todo o interesse em chegar a um consenso quanto à questão, deixando de parte alguma carga emocional ao que parece derivada de relações familiares desfeitas, quanto mais não seja para evitarem trabalhos e despesas que não se justifiquem ou se revelem desproporcionadas com os interesses em confronto.

 O que, em princípio, passa por cedências recíprocas quanto à área dos discutidos 150m2, devendo, parece, a área dos anexos ser considerada.

Em todo o caso, a decisão, porque violadora  da lei na parte em que esta exige o requisito da lesão grave e dificilmente reparável, o qual, como se disse, perante os factos provados, não está presente, não pode ser mantida.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º, nº7 do CPC.

I - A fiscalização concreta da constitucionalidade, na parte da invocação da inconstitucionalidade, reporta-se a normas, tidas por inconstitucionais, que alicerçem ou possam vir a alicerçar uma decisão jurisdicional, e não, direta e imediatamente, a esta decisão;  e tal invocação deve efetivar-se, processualmente,  incidentalmente que não a título principal.

 II - A não indicação dos concretos pontos de facto impugnados,  bem como da decisão que se pretende e  das passagens da gravação, nem nas conclusões nem no corpo das alegações, acarreta, por via de regra, e ponderados critérios de proporcionalidade, a liminar rejeição do recurso da decisão da matéria de facto na parte afetada.

II - A censura da convicção do julgador da matéria de facto apenas pode emergir quando a prova apresentada pelo recorrente e a exegese conclusiva dela operada não apenas quando sugira, mas antes quando imponha tal censura.

IV – A legitimidade processual, exceção dilatória, é apreciada e decidida em função do modo como o autor delineia a  causa e/ou em atenção às normas que especificamente a concedem; A legitimidade substancial, exceção perentória, reporta-se à prova das qualidades que atribuem o direito e o dever invocados pelo autor, emergindo se tais qualidades não se apurarem.

V – O requisito da «lesão grave e dificilmente reparável», constitutivo da providência cautelar comum, tem de resultar – por razões de justiça e de racionalização no acesso à providência -  cabalmente provado, devendo esta prova ser aferida objetivamente, e dimanar de concretos factos, a provar pelo requerente, essencialmente atinentes ao montante do prejuízo e/ou à natureza do ato lesivo, em concatenação e por reporte à nefasta repercussão na sua esfera jurídica.

7.

Deliberação.

Termos em que se julga o recurso procedente e, consequentemente, se revoga a sentença, com as legais consequências.

Custas pelo requerente.

Coimbra, 2021.02.23