Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/22.0T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: TESTAMENTEIRO
LEGADOS
CUMPRIMENTO
PRESCRIÇÃO
ERRO DE ESCRITA
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – MARINHA GRANDE – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 325.º, 2325º E 2326º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O testamenteiro deve vigiar/atuar a execução das disposições testamentárias (art.ºs 2325º e 2326º do CC).

2. Se o Réu/testamenteiro assumiu a responsabilidade de dar cumprimento aos legados, o prazo de prescrição eventualmente em curso fica interrompido (art.º 325º do CC).

3. Existe lapso material se o juiz, ao manifestar o seu pensamento, usou números (cifras) diferentes dos que deveria ter usado para exprimir fiel e corretamente as ideias que tinha na mente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Carlos Moreira
Alberto Ruço
*

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

            I. AA (1ª A.), BB (2ª A.), CC (3º A.), DD (4ª A.) e EE (5ª A.) propuseram a presente ação declarativa comum contra FF, pedindo que seja condenado a pagar, a cada um dos Autores, o valor de € 8 259,91, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4 % ao ano.

           Alegaram, em síntese: Autores e Réu são legatários instituídos por GG, sua tia, por testamento outorgado em 14.9.1999, já falecida, em comum e partes iguais, de todos os valores em dinheiro e títulos de crédito; GG nomeou o Réu como seu testamenteiro, incumbindo-lhe proceder à divisão entre os legatários dos valores em dinheiro e títulos de crédito (assim como do recheio da casa), nos termos legados; por força de tal incumbência, em reunião realizada entre Autores e Réu, no dia 25.02.2006, relativamente às contas prestadas dos anos de 2003 e 2004, o Réu assumiu/aceitou que o saldo da conta bancária da herança ascendia a € 154 636; estão por dividir as quantia de € 55 773,44 e € 2 045,92 (esta, levantada da conta bancária da falecida aquando do seu encerramento).

            O Réu contestou, invocando a ineptidão da petição inicial (p. i.), a prescrição do direito dos Autores e que na reunião entre os legatários assumiu a existência de um saldo no valor indicado pelos Autores e que lhes entregou, pelo que nada deve. Concluiu pela improcedência da ação.

           Os Autores aperfeiçoaram o seu articulado e responderam à matéria excetiva, pugnando pela sua improcedência.

           Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ineptidão, firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

            Falecido o 3º A. e habilitados os seus sucessores, a saber, HH e II (por sentença proferida em 23.4.2024), estas, citadas para os termos da ação, desistiram do pedido formulado contra o Réu, desistência homologada por sentença de 12.7.2024.

           Realizado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 12.5.2025, julgou totalmente improcedente a exceção de prescrição do direito de que as Autoras se arrogam e julgou a ação intentada pelas 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Autoras totalmente procedente, condenando o Réu a entregar/pagar, a cada uma, a quantia de € 8 259,91, na qualidade de testamenteiro nomeado e em cumprimento do legado deixado no testamento lavrado no dia 14.9.1999, referente a dinheiro e títulos de créditos existentes desde o ano de 2003 e seguintes, acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre cada um daqueles montantes, à taxa legal de 4 % ao ano, desde a data de citação e até efetivo pagamento.

            Dizendo-se inconformado, o Réu apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - A Meritíssima Juiz «a quo» convidou os AA/recorridos a aperfeiçoarem a sua p. i., o que os mesmos fizeram, mediante requerimento apresentado aos autos, tendo esclarecido o Tribunal «a quo» que: “A razão de direito em que alicerçam o pedido na al. B) do petitório e a subjacente causa de pedir consiste na condenação do R. na entrega aos AA. das quantias que lhes couberam em legado no âmbito do testamento de GG e que não foram entregues pelo R., enquanto testamenteiro.” – cf. requerimento junto aos autos pelos AA/recorridos a 22/11/2022.

           2ª - Configurando, assim, o caso dos autos, uma ação de cumprimento, em que os AA/recorridos peticionam a condenação do Réu/recorrente a entregar/distribuir/pagar a cada um deles o valor de 8 259,91€, acrescido de juros de mora, correspondente aos depósitos bancários existentes na conta bancária aberta por óbito de GG e que esta legou àqueles por testamento, instituindo como testamenteiro o Réu.

            3ª - De cuja matéria de facto podemos concluir que a de cujus, GG, por testamento dispôs da sua última vontade que consistiu em deixar aos sete sobrinhos, AA/recorridos e Réu/recorrente os valores existentes em dinheiro em título de créditos e um plano de poupança no Banco 1... – Seguros, atualmente Banco 2... - Vida com a apólice n.º ...82 a JJ, nomeando como testamenteiro o réu/recorrente.

           4ª - Incumbindo, assim, ao Réu/recorrente proceder à execução do legado, entregando aos Autores/legatários/recorridos as quantias que lhes couberam e que se encontravam depositadas na quantia da de cujus, GG, nos precisos termos do testamento, ao abrigo do disposto no art.º 2325º do Código Civil (CC).

           5ª - Face à factualidade dada provada, a Meritíssima Juiz «a quo» considerou que o Réu não entregou/distribuiu/pagou aos dos Autores/recorridos o valor global de € 57 819,36, corresponde à diferença do saldo bancário existente na conta bancária da de cujus, à data do seu falecimento – 154 636€ (cf. facto provado no ponto 13), de cujo saldo foi entregue a quantia de € 94 914,84 ao beneficiário do JJ e de 947,72€ pago à empregada doméstica da falecida (cf. facto provado no ponto 15 e 16), e a quantia levantada aquando do encerramento da conta da herança, no valor de 2 045,92€ (cf. facto provado no ponto 12.6).

           6ª - Fundamentando que Réu/recorrente, na qualidade de cabeça de casal/testamenteiro, ao proceder ao resgate antecipado, no dia 15/7/2001, do valor de € 97 914,84, referente a um plano de poupança no Banco 1... – Seguros, atualmente Banco 2... - Vida com a apólice n.º ...82, cujo beneficiário era o JJ, e tendo aberto uma conta bancária em seu nome exclusivo, constituída com aquele valor e as demais quantias deixadas por morte de GG, no Banco 2..., com o IBAN  ...27, não cumpriu com a sua obrigação enquanto testamenteiro, o que equivale a dizer, que não distribuiu o valor total de 57 819,36€ (55 773,55€ + 2 045,92€) aos Autores/recorridos, pelo que condenou o mesmo a entregar/pagar a cada um dos Autores, a quantia de 8 259,91€ (acrescida de juros legais).

            7ª - Por conseguinte, a Meritíssima Juiz «a quo» entendeu que o Réu/recorrente não agiu com o dever de cuidado que devia e de era totalmente capaz e, ainda, que ao abrigo do disposto dos artigos 2332º, n.º 2 e 483º, n.º 1, do CC o Réu/recorrente, à luz de tais disposições legais agiu com culpa, sendo responsável perante os Autores legatários/recorridos, pelos danos causados.

           8ª - Ora, atendendo à delimitação do objeto de litígio proferido em sede do despacho saneador, como sendo: - “saber se o Réu, no cumprimento das funções de testador, já entregou aos Autores as quantias deixadas em testamento a estes, por GG; - saber se a obrigação de entrega dos valores peticionados prescreveu.” - cf. despacho proferido a 23/01/2023, impunha-se à Meritíssima Juiz «a quo» apreciar se a obrigação do Réu/recorrente, enquanto testamenteiro, referente à entrega das quantias deixadas em testamento estes por GG (aqui peticionadas) prescreveu.

           9ª - Não obstante, a mesma apreciar e decidir quanto à prescrição da obrigação do Réu/recorrente, afigura-se-nos que a Meritíssima Juiz «a quo» fez uma interpretação menos correta do artigo 309º e 310º, alínea b) do CC.

           10ª - Em sede de contestação, o Réu/recorrente invoca a prescrição do direito peticionado pelos Autores/recorridos nos presentes autos, fundamentando a prescrição daquele no artigo 482º do CC, ou seja, no instituto do enriquecimento sem causa.

           11ª - Apesar do Réu/recorrente, em sede de contestação enquadrar o caso sub judice naquele instituto, cuja prescrição é de 3 (três anos) e, consequentemente considerar a obrigação daquele já prescrita, uma vez que o Réu/recorrente foi citado da presente ação em 21/4/2022 - cf. ponto 17 -, o certo é que, tal enquadramento jurídico não mereceu acolhimento pela Meritíssima Juiz «a quo».

           12ª - Tendo o Tribunal «a quo» considerado que o direito de que os Autores se arrogam se enquadra na matéria do direito sucessório, e, por conseguinte, o prazo da prescrição a aplicar nos presentes autos é o prazo ordinário de “30 anos”, conforme resulta da leitura cuidada da sentença.

            13ª - Sucede, porém, que o prazo ordinário da prescrição não é de trinta (30) anos, mas sim de vinte anos - veja-se neste sentido o artigo 309º do CC -, pelo que dúvidas não restam que a mesma fez uma notória e errónea apreciação do artigo 309º do CC, que exara: “O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos.”

            14ª - Ora, o direito de que os Autores/recorridos se arrogam na presente ação consiste em exigir do Réu/recorrente o cumprimento do legado que deixado a ambas as partes, por testamento e no qual, este foi instituído testamenteiro, com a função de cumprir o legado deixado por GG.

           15ª - Conforme refere a Meritíssima Juiz «a quo» e bem, “tal direito de que os Autores se arrogam com a presente ação configura um direito disponível destes e a lei não os isenta dessa prescrição”, fundamentando, “que o direito dos Autores encontra-se consagrado na lei, na parte respeitante à matéria sucessória, e a lei confere aos Autores (aos que se consideram empobrecidos) outro instituto jurídico ou meio que não o do enriquecimento sem causa, para possam ser restituídos do valor que lhes foi legado, pelo que não terá aplicação ao caso dos presentes autos o instituto do enriquecimento sem causa.

           16ª - Ao que acresce que o Réu/recorrente na qualidade de testamenteiro cumpriu com a sua obrigação de prestar anualmente contas aos herdeiros, AA/recorrente, referente aos anos em que exerceu testamentaria, conforme se prova no âmbito da Ação Especial de Prestação de Contas 97/21...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – Juiz 2, do Tribunal da Comarca de Leiria intentada pelos Autores/recorrente contra o Réu/recorrente, uma vez que tal pedido de prestação de contas foi apreciado e decidido por sentença judicial, já transitada em julgado, tendo o Réu/recorrente sido absolvido.

           17ª - Por conseguinte, o prazo da prescrição a aplicar aos presentes autos é o prazo ordinário, relativamente ao direito invocado pelos Autores, conforme impõe o artigo 309º do CC.

           18ª - Sucede, porém, que a Meritíssima Juiz «a quo» fez uma notória e errónea apreciação do artigo 309º do CC, ao referir por diversas vezes o seguinte: “o prazo ordinário de 30 anos”, pese embora não se possa referir as fls., em virtude de as mesmas não se encontrarem numeradas, passa-se a citar:

           - “Assim, no caso dos presentes autos será de aplicar o prazo ordinário de 30 anos, de prescrição, relativamente ao direito invocado pelos Autores, uma vez que não tem aplicação qualquer um dos outros prazos mais curtos fixados na lei e previstos nos artigos 310º e 312º a 317º do Código Civil.”

            - “O direito ao legado dos Autores existe desde o falecimento da de cujus, ocorrido em ../../2001, pelo que aquele prescreverá a 28.4.2031 (...)”

            - “Assim, tendo a presente ação, destinada ao cumprimento do legado do Réu, em benefício dos Autores, dado entrada em juízo no dia 30.3.2022, nesta data ainda não se mostrava prescrito o direito invocado pelos Autores.”

            - Ademais, nos termos do disposto do art.º 323º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, a prescrição interrompe-se pela citação judicial e que, neste caso ocorreu no dia 21.4.2022. Porém, uma vez que a aquela citação se realizou em prazo superior a 5 dias da propositura da presente ação, por causa não imputável aos Autores, a prescrição do direito dos Autores teve-se por interrompida logo que aqueles cinco dias decorreram, i. e., no dia 04/4/2022, pelo que, nesta data ainda não se tinham completado 21 anos

            - “Conclui-se, assim, que o direito invocado pelos Autores nos presentes autos se encontra sujeito ao prazo ordinário de prescrição, de 30 anos, não se encontrando prescrito, na data da citação ficta do Réu (verificada em 04.4.2022).”

            19ª - Tal interpretação notória e errónea do Tribunal «a quo» da matéria de direito, in casu do artigo 309º do CC conduz a uma decisão diversa da ora recorrida.

            20ª - Aplicando-se no caso em apreço o prazo da prescrição de 20 anos, e tendo em conta que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito poder ser exercido, ao abrigo do disposto dos art.ºs 306º, n.º 1 e 308º, n.º 1, do CC, dúvidas não restam, que o direito dos autores existe desde o falecimento da de cujus, a qual faleceu em ../../2001, facto dado como provado no ponto 5.

           21ª - Pelo que, o direito dos Autores/recorridos prescreveu a 28.4.2021.

            22ª - Ora, dos factos dados como provados, mais resulta que os Autores/recorridos interpuseram a presente ação no dia 30/3/2022 e que o Réu/recorrente foi citado para os termos da mesma em 21/4/2022 - cf. factos dados como provados nos pontos 16 e 17 -, pelo que, conclui-se que à data da citação do Réu/recorrente o direito peticionado e reclamado pelos Autores/recorridos na presente ação já se encontrava prescrito.

           23ª - Pelo exposto, afigura-se-nos que a matéria de direito aplicável in casu, impunham uma decisão diversa da ora recorrida - considerar/julgar-se totalmente procedente, por provada, a exceção perentória de prescrição do direito de que os Autores se arrogam, invocada pelo Réu e, consequentemente, julgar-se a presente ação intentada pelos Autores totalmente improcedente, e absolver-se o Réu do pedido, quer no respeita à entrega dos valores peticionados a titulo de cumprimento do legado deixado em testamento pela de cujos, quer no se refere ao pagamento dos juros de mora.

           24ª - Acresce que a Meritíssima Juiz «a quo» condenou o Réu/recorrente a entregar/pagar/restituir aos Autores/recorridos, o valor global 57.819,36€, o qual inclui a quantia de 12.500€, a título de juros de mora relativos à obrigação da entrega da poupança ao beneficiário, JJ, facto que a mesma considerou como provado no ponto 12.5.

           25ª - Fundamentando, que atenta a factualidade dada como provada (factos provados nos pontos 2 a 7) que o Réu/recorrente procedeu a resgaste antecipado da quantia de 97.914,84€, nomeadamente, no dia 15/7/2001, junto da Instituição Bancária respetiva, referente ao plano poupança no Banco 1... – Seguros, atualmente Banco 2... -Vida, constituído pela GG, a qual indicou como beneficiário deste, o Sr. JJ;

            26ª - Mais fundamenta que da factualidade assente, resulta que o Réu/recorrente, na qualidade de cabeça de casal/testamenteiro, ao proceder ao resgate antecipado do valor referente a tal plano poupança destinado ao beneficiário, o mesmo tinha a obrigação de proceder à entrega a quem de direito, isto é, ao seu beneficiário, JJ, pelo que, não agiu com o dever de cuidado que devia e de era totalmente capaz, sendo previsível como possível, o vencimento de juros de mora devidos àquele, pela não entrega atempada de tal quantia que era daquele por direito, à data de falecimento da testadora, a GG.

            27ª - E, ainda, que ao abrigo do disposto dos artigos 2332º, n.º 2 e 483º, n.º 1, do CC o Réu/recorrente, à luz de tais disposições legais agiu com culpa, sendo responsável perante os Autores legatários/recorridos, pelos danos causados, isto é, pelo valor de 12.500€, devidos a títulos de juros, pelo retardamento da entrega do plano poupança em benefício de terceiro, in casu, JJ.

           28ª - Não obstante, a referida quantia 12.500€ que a Meritíssima Juiz «a quo» condenou o Réu a pagar/restituir aos Autores/recorridos a título de juros de mora pela demora da entrega do plano poupança existente, em benefício do aludido JJ encontra-se prescrita, ao abrigo do disposto do artigo 310º, alínea d) do CC.

            29ª - Tanto mais, impunha-se à Meritíssima Juiz «a quo» apreciar e decidir se o pedido dos Autores à obrigação de entrega dos valores peticionados prescreveu, conforme resulta do despacho saneador proferido nos presentes autos, quanto ao objeto do litígio, o que o Tribunal «a quo» não fez.

           30ª - A Meritíssima Juiz «a quo» fez uma interpretação menos correta do artigo 310º, alínea d) do CC, que exara: que exara: “Prescrevem no prazo de 5 anos: d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades.”

            31ª - Por conseguinte, o valor de 12.500€ deve ser descontado do saldo bancário existente no plano poupança existente (na quantia de 97.914,84€), conforme facto dado como provado no ponto 6, e, por conseguinte, o Réu/recorrente dele ser absolvido.

            32ª - Pelo exposto, dúvidas não restam, face à decisão ora posta em crise e à fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida, bem como, da motivação da decisão de facto ali explanada, que a Meritíssima Juiz «a quo» fez uma interpretação menos correta dos artigos 309º e 310, alínea d), do CC.

           Remata pugnando que seja julgada totalmente procedente a exceção perentória de prescrição, improcedendo a ação e absolvendo-se o Réu do pedido.

            As AA./recorridas responderam concluindo que deve rejeitar-se o recurso (cujo objeto é exclusivamente circunscrito a matéria nova não invocada nem discutida na “ação principal”) ou, caso assim não se entenda, deverá improceder.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, da admissibilidade do recurso e se ocorre a invocada exceção.


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            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

           1) Por documento escrito, intitulado por testamento, lavrado no dia 14.9.1999, no ... Cartório Notarial ..., GG declarou ser da sua vontade que, com o seu falecimento, todos os valores em dinheiro, títulos de crédito e recheio da sua casa de habitação, denominada por Quinta ..., com exceção do recheio das dependências agrícolas, passassem a pertencer, em comum e em partes iguais, aos seus sete sobrinhos: 1.1. KK; 1.2. EE; 1.3. LL; 1.4. AA; 1.5. BB; 1.6. FF; e 1.7. CC.

           2) No testamento referido em 1), GG declarou também nomear o seu sobrinho FF (Réu) como testamenteiro, atribuindo-lhe as funções de, entre o mais, e para além das funções indicadas no artigo 2326º, do Código Civil, proceder à divisão dos valores em dinheiro e títulos de crédito, assim como do recheio da casa, nos termos em que tais bens foram legados.

           3) Em 23.3.1996, GG, constituiu um plano de poupança no Banco 1... - Seguros, atualmente Banco 2... - Vida com a apólice n.º ...82, no valor de 15 375 000$00 e indicou como beneficiários do mesmo, em caso de sua morte, os seus herdeiros legais.

           4) No dia 07.6.1996, GG alterou o beneficiário do plano de poupança, em caso da sua morte, referido em 3), passando aquele a ser única e exclusivamente JJ.

            5) GG faleceu no dia ../../2001.

           6) No dia 15.7.2001, a quantia existente no plano poupança referido em 3) e 4) era de € 97 914,84.

           7) No dia 15.7.2001, o Réu, na qualidade de cabeça-de-casal/testamenteiro da herança aberta por óbito de GG, procedeu ao resgate antecipado da quantia descrita em 6), munido de carta datada de 15.7.2001, assinado por GG, gerando a convicção nos funcionários do Banco 2... Vida de que aquela ordem de reembolso era legítima.

           8) JJ moveu ação civil contra, entre outros, o Réu FF, através do qual aquele peticionou a condenação deste, a título subsidiário, na devolução e entrega àquele da quantia de € 100 809,11, acrescida dos juros de mora vincendos devidos à taxa de 7 % até integral pagamento.

           9) A ação referida em 8) foi extinta, por inutilidade, atenta a entrega da quantia referida em 6) a JJ pelo Réu.

            10) À data do seu falecimento, GG era titular da conta bancária com o IBAN  ...08, do Banco 2..., com depósitos à ordem e produtos financeiros.

            11) No dia 27.9.2006, a conta bancária mencionada em 10) foi encerrada a pedido do Réu FF, contendo um saldo no valor de € 2 045,92.

           12) O Réu retirou da conta bancária da herança de GG, as seguintes quantias:

           12.1. - € 8 978, no dia 17.12.2003, correspondente a pagamento de serviços prestados como testamenteiro, através de cheque bancário com o n.º ...50;

           12.2. - € 1 741 e € 673, no dia 01.6.2004, correspondentes a pagamento de honorários ao advogado do Réu quanto a assuntos a este respeitante, debitadas através de cheques bancários com os n.ºs ...51 e ...52, respetivamente;

            12.3. - € 272,50 e € 58,24, no dia 03.6.2004, correspondentes a despesas de deslocação a Tribunal e cópias de documentos no âmbito de assuntos que respeitavam exclusivamente ao Réu, debitadas através de cheques bancários com os n.ºs ...53 e ...54, respetivamente;

           12.4. - € 1 830, no dia 10.8.2004, correspondente a pagamento de provisão no processo crime respeitante ao Réu, debitada através de cheque bancário com o n.º ...55;

           12.5. - € 12 500, no dia 13.7.2006, correspondente a pagamento de juros de mora devidos pelo atraso na devolução pelo Réu da quantia mencionada em 6) a JJ; não provado que tenha retirado da conta bancária do de cujus;

            12.6. - € 2 045,92 correspondente à quantia levantada da conta bancária, no dia 27.9.2006, aquando do seu encerramento.

            13) No dia 25.02.2006, o Réu informou os Autores, em reunião, que o saldo bancário da conta da herança, por referência aos anos de 2003 e 2004, é de € 154 636, saldo esse que não contabiliza as quantias referidas em 12.1 a 12.4 e que o Réu assumiu serem da sua exclusiva responsabilidade.

            14) Nas mesmas circunstâncias mencionadas em 12), o Réu FF informou os Autores que abriu conta bancária em seu nome exclusivo, constituída com as quantias deixadas por morte de GG, no Banco 2... com o IBAN  ...27.

            15) No âmbito do exercício da sua função referida em 2), o Réu procedeu à entrega das seguintes quantias:

            15.1. - € 97 914,84, correspondente à poupança devida a JJ;

           15.2. - € 947,72, relativo a montante indemnizatório pago a empregada doméstica de GG.

           16) Os Autores indicados em 1.2 a 1.5 intentaram a presente ação contra o Réu FF no dia 30.3.2022.

           17) O Réu foi citado para os termos da presente ação no dia 21.4.2022.

            2. E deu como não provado:

           a. O Réu entregou aos Autores identificados em 1), as quantias correspondentes à diferença entre o saldo mencionado em 13) e as quantias mencionadas em 15), acrescida da quantia referida em 12.6, no valor total de € 8 259,91, a cada um.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

           Salvo os casos de conhecimento oficioso, os recursos servem para modificar decisões dos Tribunais de menor categoria e não para discutir questões novas que lhes não foram postas - não podem ser apreciadas questões novas, uma vez que se destinam apenas a fazer reapreciar questões já julgadas no tribunal recorrido.[1]

           In casu, pese embora a perspetiva levada à contestação (invocação da prescrição à luz do disposto no art.º 482º do CC), vemos impugnado o entendimento (diverso) expresso na sentença recorrida, ou seja, visa-se, apenas, a mera reapreciação do julgado no tribunal recorrido.

           Assim, a presente apelação tem por objeto a reapreciação das questões julgadas em 1ª instância, e não a introdução de questões novas.

            4. Prosseguindo.

            Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art.º 342º, n.º 1 do CC[2]). A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º 2).

            Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam (art.º 2024º).

           Os sucessores são herdeiros ou legatários (art.º 2030º). Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (n.º 2).

           O legatário pode reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que esta seja certa e determinada (art.º 2279º).

           O testador pode nomear uma ou mais pessoas que fiquem encarregadas de vigiar o cumprimento do seu testamento ou de o executar, no todo ou em parte: é o que se chama testamentaria (art.º 2320º). A nomeação pode recair sobre um herdeiro ou legatário (art.º 2321º, n.º 2).

           O testamenteiro tem as atribuições que o testador lhe conferir, dentro dos limites da lei (art.º 2325º)

           Se o testador não especificar as atribuições do testamenteiro, competirá a este: a) Cuidar do funeral do testador e pagar as despesas e sufrágios respetivos, conforme o que for estabelecido no testamento ou, se nada se estabelecer, consoante os usos da terra; b) Vigiar a execução das disposições testamentárias e sustentar, se for necessário, a sua validade em juízo; c) Exercer as funções de cabeça-de-casal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080º (2326º).

           O testamenteiro é obrigado a prestar contas anualmente (2332º, n.º 1). Em caso de culpa, responde o testamenteiro perante os herdeiros e legatários pelos danos a que der causa (n.º 2).

            5. Na situação em análise, as mencionadas cláusulas/disposições testamentárias constituem exemplos típicos de legados[3] e dúvidas não restam de que o Réu, na qualidade de testamenteiro, tinha o dever legal de vigiar/atuar a sua execução - cf., nomeadamente, art.ºs 2325º e 2326º e II. 1. 1), 2), 10) e 13), supra

            6. O legatário sucede em bens determinados/concretos. É um sucessor particular ou singular.

           No legado per vindicationem, cuja fórmula mais antiga era do ou lego, o legatário recebia do testador a propriedade e podia exercer ação real (rei vindicatio) contra quem quer que possuísse o objeto.

           Independentemente da qualificação do legado (v. g., considerada a distinção romanista em legados per vindicationem e legados per damnationem), surge sempre o problema do seu cumprimento, traduzido, em regra, na entrega da coisa legada (art.º 2270º).[4]

           7. Decorre dos autos que o Réu incumpriu o dever de providenciar pela execução das disposições testamentárias em causa, incumprimento que integra a factualidade que funda a pretensão feita valer em juízo[5] e que ficou (parcialmente) provada.

           O valor global a repartir (em partes iguais) pelos sete legatários era/é de € 55 773,44 [€ 154 636 - € 98 862,56], porquanto importa atender ao montante depositado dito em II. 1. 13), supra e que incluiria, necessariamente, a quantia indicada em II. 1. 11) e 12)/12.6. supra [cf., ainda, II. 1. 15), supra].

           Foi assim legado a cada um € 7 967,63 (sete mil novecentos e sessenta e sete euros e sessenta e três cêntimos).

           8. Diz o Réu/recorrente que operou a prescrição ordinária prevista no art.º 309º[6] - cf., nomeadamente, “conclusões 17ª e 20ª”, ponto I., supra.

           Sem quebra do respeito devido por entendimento contrário, afigura-se que não tem razão.

           Na verdade, a ação foi instaurada em 30.3.2022, o Réu foi citado em 21.4.2022 e, pelo menos, em 25.02.2006, o Réu assumiu a responsabilidade de dar cumprimento aos legados, pelo que, qualquer prazo de prescrição eventualmente em curso, foi então interrompido - cf. art.ºs 325º[7] e 326º e, principalmente, II. 1. 13), 16) e 17), supra.

           9. Ainda que exista erro/lapso no prazo indicado na sentença [30 anos - que todos sabemos não figurar no art.º 309º invocado na sentença!], podemos concluir que o prazo ordinário da prescrição (20 anos), admitido pelas partes perante a 2ª instância, não se completou.[8]

           Tratando-se, é certo, de situação não isenta de dificuldades, também aqui, “o juiz, ao manifestar o seu pensamento, usou (...) números (cifras) diferentes dos que deveria ter usado para exprimir fiel e corretamente as ideias que tinha na mente”. [9]

           10. De resto, nesse mesmo sentido (quanto ao cômputo do período temporal que releva) converge o alegado pelo Réu/recorrente nos art.ºs 25º a 27º da contestação.[10]

           11. Não completado o prazo de prescrição do direito invocado pelas AA./recorridas, não poderá o Réu recusar o cumprimento ou opor-se ao exercício do direito - cf. art.º 304º, n.º 1, a contrario.

            12. Relativamente à problemática dos juros pagos a JJ, não se vê qual a pertinência e/ou razão de ser da invocada “prescrição” de juros.

           A importância em causa foi paga e suportada pelo Réu/recorrente - cf. II. 1. 12)/12.5., supra.

           Tendo em conta o que se escreveu em II. 1.12), supra, este concreto ponto da matéria de facto reclamava porventura uma diferente arrumação sistemática.

            Contudo, não se compreende a que título poderia tal atuação do Réu, e suas circunstâncias, vir ainda afetar a posição jurídica das AA./recorridas, desde logo, pela simples e decisiva razão de que o Réu se conformou com o enquadramento da sua atuação enquanto testamenteiro, feita na sentença recorrida, na base do disposto nos art.ºs 483º, n.º 1 e 2332º, n.º 2 [cf., ainda, II. 1. 6) a 9), supra].

            13. Assim, ante a factualidade provada e o expendido no ponto 7., supra, o Réu deverá pagar a cada uma das AA. a quantia de € 7 967,63, a título de cumprimento dos legados, com a consequente parcial procedência da apelação.


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           III. Pelo exposto, procedendo parcialmente a apelação, e revogando nessa medida a sentença recorrida, condena-se o Réu a entregar/pagar, a cada uma das AA., a quantia de € 7 967,63 (sete mil novecentos e sessenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), mantendo-se o demais decidido.

           Custas nas instâncias pelas AA. e pelo Réu, na proporção do decaimento.


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11.11.2025



[1] Cf., designadamente, J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 5 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 31.3.1993, 13.01.2004-processo 03A4066 e 18.5.2006, publicados no BMJ, 425º, 473; “site” da dgsi e CJ-STJ, XIV, 2, 85, respetivamente.
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 24.
[4] Vide, designadamente, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões - Noções Fundamentais, 6ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1996, págs. 177 e 193 e seguintes.

[5] Cf., por exemplo, acórdãos da RC de 08.9.2020-processo 2972/19.2TBLRA.C1 [com o sumário: «1. Sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma ação declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica. (...)»]
[6] Que assim reza: «O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos
[7] Que estabelece: «A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido (n.º 1). O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam (n.º 2).»

8 Relevaria igualmente a causa de suspensão prevista no art.º 318º, alínea c), conjugado com o art.º 2332º - como se referiu na sentença recorrida -, realidade/hipótese que se “descurou” em razão da errada extensão do prazo a que se aludiu e que, como é evidente, não consta da norma invocada (art.º 309º).

[9] Sobre a matéria, cf., de entre vários, acórdão da RC de 28.01.2025-processo 436/21.3T8VIS-C.C1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Alegou-se, por exemplo, no art.º 27º: «Donde se conclui que os aqui AA., há mais de 16 anos que têm conhecimento dos valores e débitos que o R. alegadamente se locupletou indevidamente.»