Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1870/13.8PBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: MULTA SUBSTITUTIVA DA PENA DE PRISÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 02/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE VISEU - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43.º, N.ºS 1 E 2, E 48.º, AMBOS DO CP
Sumário: A pena de multa substitutiva de pena de prisão não pode, por sua vez, ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


            Nos autos de processo comum (singular) que, sob o nº 1870/13.8PBVIS-A.C1, correm termos pela Secção Criminal da Instância Local de Viseu, da Comarca de Viseu – J3, o arguido A... , foi submetido a julgamento sendo, a final, condenado pela prática de um crime de tráfico de droga de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, a), do DL nº 15/93, de 22/1, numa pena especialmente atenuada de 3 meses de prisão, substituída por 100 dias de multa à taxa diária de €5,00. Tal decisão já transitou em julgado.

            Através de requerimento datado de 16/7/2015 (fls. 11 e seg.s deste traslado) o arguido veio requerer a substituição da pena de multa «por dias de trabalho a prestar a favor da comunidade».

            Seguidamente, por despacho datado de 8/9/2015 (fls. 13 e seg.s deste traslado), o M.mo Juiz proferiu o seguinte despacho (transcrição):

                        «O arguido A... foi condenado numa pena de prisão substituída por multa.

                        Ora, tem-se entendido que a pena de multa que resulta da substituição da pena de prisão não é passível de ser, ela própria substituída por trabalho a favor da comunidade, pese embora não se ignore entendimento jurisprudencial (sobretudo no Tribunal da Relação do Porto) e doutrinário em sentido diverso.

          Para tanto, contribui quer o elemento literal da norma inscrita no art. 43.º, n.º 2, do Código Penal – “Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença” – quer o instituto jurídico da execução desta pena, visto na sua globalidade: em caso de falta de pagamento da multa o condenado cumpre a prisão, excepto se provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, caso em que pode a execução da prisão ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, incluindo, naturalmente a prestação de trabalho a favor da comunidade – art. 49.º, n.º 3, do Código Penal, ex vi art. 43.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Penal. Nesse caso, se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a; se o forem cumpridos, a pena é declarada extinta – art. 49.º, n.º 3,

Uma interpretação diversa, no sentido da admissibilidade da substituição da pena de multa, substitutiva da prisão, por trabalho a favor da comunidade, torna aquelas normas do art. 49.º n.º 3, vazias de conteúdo.

Assim, e pelo exposto, indefiro a requerida prestação de trabalho a favor da comunidade.

Notifique.»

            Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, motivando e concluindo nos seguintes termos:

1. Como se pode ler na Revista do Ministério Público, em artigo subscrito pelo ilustre Procurador-Adjunto, Sr. Dr. B..., que aqui, com devido respeito, damos por reproduzido:

2. “O ordenamento jurídico nacional contempla a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a prestação de dias de trabalho como dois institutos autónomos e absolutamente distintos.

3. A prestação de dias de trabalho, tal como o pagamento em prestações, resume a sua aplicação à execução da pena de multa, sendo a sua admissibilidade limitada pela pré-existência daquela.

4. O condenado pode cumprir a multa de substituição por qualquer das formas que a lei coloca aos eu dispor, sendo a prestação de dias de trabalho uma delas, ao lado do pagamento em prestações ou o pagamento diferido.

5. Não é pelo facto de a pena de multa ser aplicada como pena de substituição que se alteram, restringem ou seccionam as suas formas de cumprimento (ou se preferirmos, de pagamento), o que se altera são as consequências do seu incumprimento”.

6. Porque o aqui arguido/recorrente requereu o cumprimento da pena de multa mediante a prestação de dias de trabalho, tal pretensão deve ser-lhe deferida tanto mais que, pelo já documentado e provado, esta satisfaz, de forma adequada, as finalidades da punição, ainda que a pena de multa seja substitutiva da pena de prisão.

7. “Na pena de multa de substituição, condenado poderá solicitar o seu cumprimento mediante a prestação de dias de trabalho enquanto estiver em tempo para pagar, ou seja, enquanto não existir uma situação de mora.”

8. Termos em que, por violação do legalmente disposto e, nomeadamente, do disposto nos artºs 47º, 3, 48º, 49º do CP, 489º, 490º, todos do CPP, deve o recurso ser julgado procedente, e, consequentemente, permitido que o arguido cumpra a pena de multa mediante a prestação de dias de trabalho.

            Respondeu o MP em primeira instância, concluindo pelo não provimento do recurso.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no qual conclui também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            A única questão aqui em discussão prende-se com a análise da possibilidade de substituição da pena de multa, substitutiva de prisão, por trabalho a favor da comunidade.

            O nosso labor não se encontra nada facilitado, se atentarmos em que a jurisprudência se divide entre as duas posições, crendo nós, no entanto, ser maioritária a que defende a impossibilidade da substituição.

            O despacho recorrido sustenta que essa dupla substituição não é admissível, enquanto queo arguido, no seu recurso, sustenta o contrário.

            Na resposta que apresentou à motivação do recurso, o MP sustenta a posição assumida no despacho recorrido.

            Entrando na análise da questão.

            Determina o artº 43º, 1, do CPP que «a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artº 47º»

            Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, «se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no nº 3 do artº 49º».

            Do regime jurídico da multa substitutiva da prisão, assim brevemente traçado, parece resultar, desde logo, a sua essencial distinção do regime jurídico da multa aplicada a título principal.

            Em primeiro lugar, se o regime legal fosse o mesmo, não haveria necessidade de operar as remissões cirúrgicas que são feitas pelos nºs 1 e 2 daquele artº 43º; todas as normas atinentes à multa directamente aplicada seriam comuns à multa resultante da substituição da prisão. Ou, então, essa remissão seria feita em bloco.

            Mas não foi isso que o legislador fez: estendeu ao caso apenas a aplicabilidade do artº 47º, que tem a ver com a concretização da pena de multa (nº 1), com a determinação do seu montante diário (nº 2) e com a possibilidade do seu pagamento em prestações (nºs 3 a 5). Do mesmo modo operou expressa remissão para o nº 3 do artº 49º, estabelecendo, assim, a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão substituída, caso o condenado prove que o não pagamento da multa lhe não é imputável.

            Se o legislador operou essa remissão parcial, só podemos concluir que a globalidade do regime não é aplicável ao caso, pois que se ele o pretendesse, o teria feito do mesmo modo. O legislador, que temos de presumir inteligente e esclarecido, terá consagrado «as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artº 9º, 3, do CC). A isto acresce que na interpretação da lei penal não podemos lançar mão da interpretação extensiva, já que a tal se opõem os princípios da legalidade e o da tipicidade e dada a natureza pública do direito penal.

            Como se não bastasse, há outra característica diferenciadora essencial entre as penas de multa aplicadas directamente e aquelas outras resultantes da substituição de pena de prisão de curta duração (inferior a um ano): - Se esta última não for paga, o condenado cumpre a pena aplicada na sentença, por inteiro (artº 43º, 2), ao passo que no caso de não pagamento da primeira, a prisão subsidiária corresponde a 2/3 dos dias de multa fixados na sentença (artº 49º, 1).

            Se o legislador, a propósito do regime legal da pena de substituição operou expressa remissão para apenas algumas normas do regime geral da multa, teremos de entender que apenas essas – e mais nenhumas – são aplicáveis. Assim sendo, fica de fora a aplicabilidade ao caso do artº 48º do CP. Se o legislador o tivesse querido, na sua presumida sapiência, tê-lo-ia feito de forma expressa, como o fez a propósito de outras pontuais questões.

Mas não o fez.

Por essa razão, estando vedado ao intérprete presumir-se mais inteligente do que o legislador, resta-lhe observar o entendimento que deriva directamente da lei e que conduz ao afastamento da aplicabilidade do referido artº 48º ao caso concreto.

Como começámos por dizer, existe algum dissenso jurisprudencial acerca desta questão que ora nos ocupa; consideramos, todavia, ser maioritária a jurisprudência que vai no sentido do ora por nós defendido, entre a qual a resultante do acórdão da RP de 11/6/2014, proferido no proc. nº 659/12.6PIVNG-A.P1 e bem assim dos acórdão desta Relação, de 23/9/2015, proferido no processo nº 126/14.3GATBU-A.C1, e bem assim os acórdãos citados pela Ex.ma Magistrada do MP em primeira instância e bem assim pelo Ex.mo PGA, no seu parecer.

Aliás, como avisadamente alerta o Ex.mo PGA, «haverá que entender o requerimento do recorrente no processo, como uma pretensão de demonstração da sua não possibilidade de pagamento da multa, que aliás corresponde à parte substancial do que alega no mencionado pedido, impondo-se pois averiguar da possibilidade do pagamento da multa que o mesmo alega e aplicar, se for caso disso, o estatuído neste preceito»; tal preceito é o que resulta da norma do artº 49º, 3, do CP, que vimos já ser aplicável ao caso, com as necessárias adaptações. Haverá que ponderar da sua eventual aplicação, no momento oportuno.

Concluindo: a pena de multa, substitutiva de pena de prisão, não pode, por sua vez, ser substituída por trabalho a favor da comunidade. Os casos de não pagamento, imputável ao condenado ou não, encontram pleno tratamento nas normas do artº 43º, 1 e 2, do CP e bem assim naquelas outras para que elas expressamente remetem.

Termos em que, na improcedência do recurso, se acorda em confirmar o despacho recorrido.

Custas pelo arguido, com taxa de justiça fixada em 3 UC’s.

Coimbra, 17 de Fevereiro de 2016

(Jorge França - relator)

(Cacilda Sena - adjunta)