Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
298/23.6T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
DECISÃO SURPRESA
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 205.º, 1, DA CRP
ARTIGOS 1279.º; 1405.º, 1 E 1406.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 3.º, 3; 154.º, 1 E 2; 379.º; 607.º E 615.º, 1, B), DO CPC
Sumário: I - Só estamos perante uma decisão surpresa quando, esta, constitua uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando lhes não era exigível que a houvessem perspetivado no processo, o que não acontece quando a mesma constitui a resolução da questão colocada ao tribunal.
II - O esbulho é um ato através do qual um terceiro priva um possuidor da fruição do objeto possuído, não sendo necessário que essa privação abranja a totalidade do bem possuído, mas que a privação corresponda a uma perda completa da possibilidade de utilização do bem, impedindo a sua disponibilidade física pelo possuidor.

III - Já perante atos de mera turbação da posse, isto é, que se limitem a perturbar a fruição dos bens pelo possuidor, mesmo que assumam formas violentas, não é necessária uma intervenção tão imediata, não sendo aplicável a providência cautelar específica de restituição provisória da posse, sendo suficiente o recurso aos meios cautelares comuns - art.º 379º do C. P. Civil.

IV - Se dois comproprietários possuem simultaneamente o mesmo bem imóvel, dele fruindo, como a lei o permite, o facto de um desses comproprietários vedar ao outro um dos acessos a uma parte desse prédio, o que obriga a que este último tenha que utilizar uma outra via de acesso a essa parte do prédio, não priva este último da fruição de qualquer parte do prédio, limitando-se a dificultar-lhe essa fruição.

V - Estamos, pois, perante um mero ato de turbação da posse, para cuja reação não é adequada a providência de restituição provisória de posse, facultando a ordem jurídica outros meios de reação.

Decisão Texto Integral: Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Falcão de Magalhães
                Cristina Neves


           Requerentes: AA
BB

Requeridos: CC
         DD

                                                           *
          Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Os Requerentes deduziram procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse contra os Requeridos, pedindo que seja:
- Declarado e reconhecido que os requerentes foram esbulhados pelos requeridos, com violência, da posse que exerciam sobre o prédio art. ...00..., atrás mais bem identificado no art. 1º desta petição;
-  Ordenada a restituição aos requerentes da posse que tinham do prédio art. ...00...;
- Os requeridos condenados:
 A entregar aos requerentes, no prazo de 5 dias, uma chave do portão limítrofe à EN ...29, acima referido nos arts. 20º e 24º da petição; 
   A absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou dificulte o exercício do direito de compropriedade dos requerentes sobre o dito prédio ...00º;
 No pagamento a favor dos requerentes de sanção pecuniária compulsória no montante de 250,00 € por cada dia de incumprimento do dever de entrega da chave do portão em obediência à decisão proferida nos presentes autos.
-  Caso seja entendido que não se verifica a violência do esbulho e sendo esse requisito indispensável ao decretamento da restituição provisória de posse, deve a providência requerida ser convolada em procedimento cautelar comum, atento o disposto nos arts. 379º e 376.º, nº 3, do CPC e por via dele devem os requeridos ser condenados nos mesmos termos antes peticionados.
Conforme consta do relatório da decisão recorrida que aqui se recupera:
 Para sustentar a sua pretensão, alegaram, em suma, os requerentes que são comproprietários, juntamente com os requeridos, do prédio em crise nos autos, que lhes adveio por doação dos progenitores, o qual sempre usaram e possuíram na sua totalidade, à vista de todos e sem qualquer oposição.  Aduzem que devido à construção da estrada nacional ...29, tal prédio ficou dividido em duas partes, uma nascente e outra a poente, tendo sido nesta última que os requeridos acabaram por colocar um portão metálico para impedir o acesso a essa parte do prédio, o qual fecharam com corrente metálica e cadeado, impossibilitando desta forma os requerentes de acederem a essa parte do prédio. 
Mais alegaram que não só os requeridos se recusaram a permitir-lhes o acesso ao prédio, negando a entrega de chaves, como se dirigiu ao requerente afirmando que até podia ir para a cadeia, mas que ele não voltaria a passar naquele local.

Produzida prova sem audição dos Requeridos, foi proferida decisão nos seguintes termos:
“1) Declarar e reconhecer que os requerentes foram esbulhados pelos requeridos, com violência, da posse que exerciam sobre o prédio do art. 500º.
2) Ordenar a restituição aos requerentes da posse que tinham do prédio art. ...00....
3) Condenar os requeridos CC e mulher DD a entregar aos requerentes, no prazo de 5 dias, uma chave do portão limítrofe à EN ...29, acima referido.
 4) Condenar os requeridos CC e mulher DD a absterem-se de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte o exercício do direito de compropriedade dos requerentes sobre o dito prédio ...00º;
5) Condenar os requeridos CC e mulher DD no pagamento a favor dos requerentes de sanção pecuniária compulsória no montante de 150,00 € por cada dia de incumprimento do dever de entrega da chave do portão em obediência à decisão proferida nos presentes autos.”

Após notificação da decisão, os Requeridos deduziram oposição alegando[1] :
…que de facto o prédio em causa pertence ao requerente e ao requerido em compropriedade, datando a doação de 08.07.1998, sendo que já nessa altura o mesmo estava dividido pela EN ...29, ainda que todos desconheçam a data concreta do atravessamento. Dizem que antes da EN ...29, o acesso era feito através de caminho pedonal, em terra batida referido no requerimento inicial, dando este apenas acesso ao prédio ...00.º, sendo os vizinhos a poente da Estrada de ... servidos por caminhos pedonais com início da estrada.
 Os requeridos afirmam que a sua casa não existia, iniciando a construção anos mais tarde, na extrema poente, sendo falso que o caminho servia de acesso à casa dos requeridos.
Com o corte da estrada pela EN ...29, foi criado um novo acesso, a partir da Estrada ... e a norte do prédio ...00.º, constituído por terra batida, com o sentido nascente/poente até ser interceptado pela referida estrada, seguindo depois para norte, paralelamente à EN...29, passa por baixo desta, e após, vira no sentido sul e segue paralela à EN ...29, e já a poente desta, muito para além da extrema sul do prédio ...00.º.
Acrescentam que o caminho foi recentemente calcetado, mas apenas entre a Estrada ... e a intercepção da EN ...29, sendo o único acesso de carro ao prédio ...00.º, e o acesso a todos os prédios situados a poente da EN ...29. Já o caminho referido em 12 e 13 do requerimento inicial, após a intercepção pela EN...29, foi prolongado no sentido Norte, sempre em paralelo com esta até confluir com o caminho referido acima. E este caminho, pedonal, serve os requerentes para acederem a pé ao prédio ...00.º sem terem necessidade de utilizar o novo acesso que fica mais distante da sua casa. Sendo que a passagem a pé da parte do prédio ...00.º para a EN...29 foi criada à revelia das Infra-Estruturas de Portugal que havia vedado todos os terrenos confinantes.
Argumentam, igualmente, os requeridos que começaram a construir a sua casa anos mais tarde, tendo sido a mesma inscrita na matriz no ano de 1999, e quando nela passaram a residir, com os três filhos menores, depararam-se com dificuldades no acesso à mesma nas deslocações que tinham que fazer, porquanto tinham que percorrer o caminho entre a casa e a Estrada ..., com passagem por baixo da EN...29, de cerca de 1Km, sempre a pé, sujeitos a intempéries, ao piso lamacento, e que não permitia a circulação de automóvel ligeiro, nem que fosse chamada uma ambulância. Razão pela qual o requerido requereu junto do ICERR licença para construção de um acesso e colocação de um portão na vedação da EN...29, tendo a mesma sido concedida em 28.02.2000, e o requerido liquidado os inerentes encargos, custeando em exclusivo todas as despesas com a abertura do acesso e colocação do portão. Em 2022 teve necessidade de substituir o portão e solicitou e obteve junto da InfraEstruturas de Portugal licença de utilização privativa do Domínio Público Rodoviário para alteração/substituição do portão de acesso. Decorrendo, segundo afirma, da dita licença que a mesma foi concedida ao requerido, para acesso à sua habitação e não ao prédio ...00.º, que a concessão não faz presumir a propriedade ou posso sobre o prédio onde foi criado o acesso e implantado o portão, que a transmissibilidade da sua titularidade está sujeita à prévia e expressa autorização da entidade concedente, e que o requerido responde por todos os danos causados e que resultem da actividade autorizada. Os requeridos admitem que até Outubro de 2022 os requerentes utilizaram o portão de acesso à habitação dos requeridos para acederem, apenas a pé, à parte poente do prédio ...00.º, mas já para acederem de tractor ou outra alfaia agrícola, utilizavam o novo acesso criado aquando da passagem na EN...29. Acrescentam que requerente e requerido são irmãos e que para facilitar o acesso dos requerentes ao prédio ...00.º, o requerido autorizou que utilizassem o acesso, pedindo que deixassem o portão fechado, uma vez que a EN...29 tem muito trânsito e ocorrem acidentes, e caso sucedesse algo a responsabilidade seria do requerido. Referem os requeridos que no início do mês de Outubro de 2022, o requerente colocou um esteio no limite da parcela do art.º 500.º situada a poente da EN...29, que impede os requeridos de transitar com o tractor pelo caminho aberto aquando da passagem da estrada, e o requerido fechou então o portão com aloquete, proibindo os requerentes de passar. Após o que procederam a obras de substituição do portão, colocando nele um aloquete. Por fim, os requeridos dizem que os requerentes continuam a aceder, granjear e colher os produtos agrícolas na parte do prédio ...00.º situada a poente da EN...29, utilizando para o efeito o caminho que tem início na Estrada ... e passagem por baixo da EN...29, o que aliás, diz sempre terem feito porque só tinham autorização para passar a pé. E, entretanto, para passar a pé, os requerentes cortaram os arames da vedação da EN...29, e ainda dizem que com a entrega das chaves do portão neste processo passaram em jeito de provocação de tractor pelo portão, utilizando-o ainda para aceder a outro prédio que possuem a sul do prédio ...00.º. 
Concluem, dizendo que inexiste qualquer prédio encravado e têm outros caminho. 
 
Veio a ser proferida decisão nos seguintes termos:
 Em face de tudo exposto, julgo procedente a oposição deduzida pelos Requeridos CC e DD, e, consequentemente, revogo a decisão liminarmente proferida em 02.06.2023.
Mais decido não convolar a providência cautelar de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum, e consequentemente, não decretar qualquer providência, por falta de requisitos legais.

                                                           *

Os Requerentes interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida ao não fundamentar nem indicar o processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção da julgadora, relativamente aos factos que considerou não indiciados, violou os direitos de acesso ao direito e aos tribunais e também a um processo equitativo e justo, consagrados nos arts. 20º, nºs 1 e 4, e 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa;
2. A decisão recorrida ao não fundamentar nem indicar o processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção que levou a julgadora, a considerar não indiciado o facto que com o nº 19 que tinha sido dado como indiciariamente demonstrado na decisão liminar do procedimento cautelar, violou os arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do C. P. Civil; 
Quando assim não se entenda:
3. A sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, os arts,. 1.406º do C. Civil e 377º do C. P. Civil ao considerar que nenhum esbulho fora praticado pelos apelados;
4. Estão verificados os pressupostos - posse, esbulho e violência - legalmente exigidos para que a restituição provisória de posse seja decretada; 
Ainda que assim não se entenda
5. A decisão recorrida ao decidir não convolar a restituição provisória de posse em procedimento cautelar inominado, sem exercício do contraditório, violou o art. 3º do C. P. Civil e cometeu a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do mesmo diploma;
ou, pelo menos
6. Violou, por errada interpretação a aplicação, os arts. 367º, nº 3 e 412º do C. P. Civil.
Nestes termos, nos mais de Direito e com o sempre douto suprimento de V. Ex.as deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e  determinando a devolução dos autos à primeira instância, a fim de que seja proferida nova decisão com observância do disposto no artº 607º nº 4 do C. P. Civil, ou, quando assim não se entenda, deve revogar-se a decisão recorrida, proferindo-se outra que mantenha a providência nos precisos termos em que foi inicialmente decretada, como é de inteira JUSTIÇA

Não foi apresentada resposta.

                                                           *

1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, as questões a apreciar são:
a) A sentença é nula por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto?
b) A sentença é nula por não ter assegurado o contraditório no que respeita ao pedido de convolação para o procedimento cautelar comum?
c) Verificou-se uma situação de esbulho que justifica a providência decretada?

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2. Nulidades da sentença
Os Recorrentes imputam à decisão o vício da nulidade por falta de fundamentação, invocando para tanto, que não fundamentou nem indicou o processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção que levou a julgadora, a considerar não indiciado o facto que com o nº 19 tinha sido dado como indiciariamente demonstrado na decisão liminar do procedimento cautelar.
O art.º 154º, n.º 1, do C. P. Civil, impõe um dever geral de fundamenta­ção de todas as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, acrescentando no n.º 2 que a justificação não pode consistir na mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
As sentenças devem obedecer a uma certa forma, forma essa que se en­contra estabelecida no art.º 607º, do C. P. Civil e que também é aplicável aos despachos.
O art.º 205º, n.º 1, da Constituição impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei, sendo essa a fundamentação da decisão indispensável, nomeadamente, em caso de recurso para se saber em que se fundou.
Este dever de fundamentação é um importante corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais.
Também o art.º 615º, n.º 1, b), do C. P. Civil, prescreve a nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifi­quem a decisão.
Da alegação dos Recorrentes resulta, quanto a este aspeto a discordância do julgamento efetuado quanto à fundamentação da matéria de facto, especialmente no que respeita ao facto julgado não provado e que anteriormente tinha sido julgado provado.
Ora, só a falta de fundamentação e não uma incorreta fundamentação integra a nulidade invocada, pelo que, não se verificando essa ausência de fundamentação, não incorre a decisão recorrida na nulidade apontada pelos Recorrentes.
Imputam ainda os Recorrentes o vício da nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, d), do C. P. Civil, alegando que a decisão de não convolação da providência sem exercício do contraditório, constitui decisão surpresa que determina a nulidade da decisão por excesso de pronúncia.
Dispõe o n.º 3, do art.º 3º, do C. P. Civil:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessi­dade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
Nesta norma consagra-se o princípio do contraditório através da proibição da decisão-surpresa, isto é, da decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes [2].
Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
Mesmo a entender-se que a prolação da decisão com omissão do cumprimento do contraditório determinaria a sua nulidade por excesso de pronúncia - art.º 615º, n.º 1, al. d), do C. P. Civil -, uma vez que sem a prévia audição das partes o tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão, o que não é líquido, por ser uma questão controvertida,  cumpre dizer que a decisão proferida não constitui uma decisão surpresa, porquanto, tendo a mesma sido tomada na sequência de um pedido expressamente  formulado pelos Recorrentes, estes tiveram oportunidade de a prever e das razões, pelas quais, na sua perspetiva o mesmo devia ser acolhido.
Só estamos perante uma decisão surpresa quando, esta, constitua uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando lhes não era exigível que a houvessem perspetivado no processo, o que não acontece quando a mesma constitui a resolução da questão colocada ao tribunal.
Improcede assim a invocada nulidade.

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3. Os factos:
Foram julgados indiciariamente provados os seguintes factos:
Da decisão prévia a audição dos Requeridos:
1. Encontra-se registado a favor dos Requerentes e Requeridos, em partes iguais, o prédio rústico sito na ..., limite de ..., freguesia do município ..., composto de terra de sequeiro, lameiro, pastagem, vinha e terreno rochoso, com a área de 0,910000 ha., confrontado de Norte com Jovem da Assunção Grelo, de Sul com EE, de Nascente com estrada e de Poente com FF, inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...00º.
 2. Este prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº ...06 foi doado ao Requerente e ao Requerido por seus pais, GG e HH, e está registado a favor de ambos os donatários, pela ap.... de 2006/03/06.
 3. Por si, ante proprietários e ante possuidores, há mais de 20 anos que Requerentes e Requeridos aproveitam e percecionam, no próprio interesse, de todos os produtos e utilidades do dito prédio, bem como no pagamento de todos os seus encargos, nomeadamente contribuições e impostos.
4. Requerentes, requeridos, ante proprietários e ante possuidores ignoravam lesar direitos de outrem e, efetivamente, nenhum lesavam.
5. Em data que os Requerentes não podem precisar, mas que situam por volta de 1990, o traçado da EN ...29 foi materializado através do prédio ...00º, no sentido Norte/Sul, dividindo-o em duas partes: uma a Nascente da estrada, identificada com a letra “A” no doc. nº 3, e outra a Poente, identificada com a letra “B”.
6. Antes da tal divisão, o acesso ao prédio ...00º era efetuado pela sua extrema Nascente, a partir do local da Estrada ... identificado com a letra “A” no doc. nº 4.
 7. Seguindo-se depois por um caminho em terra batida, com cerca de 3,5 m. de largura, que se desenvolvia até à extrema Poente do prédio com o traçado referenciado pelas letras “A”, “B”, “C” e “D” no doc. nº 4.
 8. Permitindo o acesso às casas que Requerente e Requerido lá construíram e às parcelas criadas no prédio ...00º pela sua afetação a culturas agrícolas diversas.
9. Para além de ter dividido o prédio ...00º em duas partes, a EN ...29 cortou também o caminho referido no art. 13º.
10. Por isso, para a parte Nascente do prédio, identificada pela letra “A” no doc. nº 4, o acesso de pé e carro continuou a fazer-se pela Estrada ..., usando a entrada identificada pela letra “A” no documento nº 4.
 11. Quer a passagem dessa parte para a EN ...29, quer a efetuada em sentido contrário, passou apenas a ser possível a pé e por onde terminam os rails metálicos que a ladeiam, local identificado pela letra “E” no doc. nº 4;
12. Já para a parte Poente do prédio, identificada pela letra “B” no doc. nº3, foi criado um acesso, com cerca de 4 m. de largura, a partir da EN ...29, referenciado pela letra “C” nos docs. nºs 4, 5, 5A e 6.
13. Fronteiro a esse acesso, para impedir a entrada franca nessa parte do prédio, foi implantado um portão metálico, de porta dupla, com cerca de 4 metros de largura que trancava apenas com uma fechadura de trinco simples.
 14. Em data que não podem precisar, mas que situam na segunda quinzena de dezembro de 2022, os requeridos começaram a fechar também as portas do portão com uma corrente metálica unida com um aloquete, impedindo os Requerentes de entrar na parte Poente do prédio ...00º como até então entravam.
15. Em 2022/12/26, o Requerente, através da sua Advogada, intimou o requerido a retirar o portão ou entregar-lhe uma chave do mesmo, de forma a poder aceder ao prédio ...00º como até então acedia. 
16. Tal intimação seguiu por carta registada com aviso de receção e foi recebida pelo requerido em 2022/12/30.
17. Sem qualquer resposta, pelas 17 horas do dia 5 de janeiro de 2023 o Requerente confrontou o requerido com a impossibilidade de acesso às culturas por si efetuadas no prédio ...00º devido ao encerramento do portão e o renovado pedido de entrega da respetiva chave teve a seguinte resposta, proferida em tom agressivo: “Eu até posso ir para uma cadeia, mas tu não voltas a passar por aqui”.
18. Entretanto os Requeridos construíram um murete em granito e alteraram o portão, transformando-o num portão de correr – doc. nº6 - e colocaram na extremidade Poente do mesmo um aloquete que continua a impedir a sua abertura e o acesso ao prédio ...00º a quem não possua a respetiva chave.
19.
20. Quando os requerentes para entrar no prédio ...00º cortaram os arames da vedação dos terrenos confinantes com a zona da estrada, pertencente à “Infraestruturas de Portugal, S.A.”, logo os Requeridos, através da sua filha, participaram tal facto criminalmente.
 21. O que motivou a instauração de um processo de contraordenação.
Da oposição:
1. Apesar de registado a favor do requerente AA e do requerido CC no ano de 2006, o título translativo da propriedade referente ao prédio com o art.º matricial 500.º em causa nestes autos, neste caso, a doação, data de 08.07.1998;
2. Nessa altura, já o prédio ...00.º estava dividido pela EN ...29, embora desconheçam a data concreta em que o atravessamento ocorreu;
3. Antes da passagem da EN ...29, o acesso ao referido prédio era feito através do caminho pedonal, em terra batida;
4. Tal caminho apenas dava acesso ao prédio ...00.º, sendo os prédios vizinhos e situados a Poente da Estrada de ... servidos por caminhos, igualmente pedonais, com início na estrada.
5. A entidade pública que procedeu à construção do troço da EN ...29, criou um novo acesso, igualmente a partir da Estrada ... e a Norte do prédio ...00.º. 
6. Este novo acesso é constituído por um caminho em terra batida, com o sentido Nascente/Poente, até ser interceptado pela EN ...29, depois segue para Norte, paralelamente à EN ...29, passa por debaixo da EN ...29 e, após, vira no sentido Sul, e segue, sempre em paralelo com a EN ...29, e já a Poente desta, muito para além da extrema Sul do prédio ...00.º.
7. Tal caminho foi calcetado, há cerca de 2 meses, apenas entre a Estrada ... e a intercepção da EN ...29.
8. Quanto ao caminho descrito pelos Requerentes em 12 e 13 do seu articulado após a intercepção pela EN ...29, foi prolongado no sentido Norte, sempre em paralelo com a mesma até confluir com o caminho descrito em 5 e 6.
9. Este caminho, que se manteve pedonal, serve os Requerentes para acederem a pé ao prédio ...00.º sem terem necessidade de utilizar o novo acesso, que fica mais distante da sua casa.
10. Sendo que a passagem a pé da parte do prédio ...00.º foi criada à revelia da entidade “Infraestruturas de Portugal” que, aquando da passagem da dita estrada, vedou todos os terrenos com ela confinantes, quer a Nascente quer a Poente.
11. Os Requeridos começaram a construir a sua casa vários anos após a divisão do prédio ...00.º, tendo a mesma sido inscrita na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o art.º ...30, no ano de 1999.
12. Quando nela passaram a residir com os seus três filhos menores, e como tinham um carro ligeiro, os Requeridos depararam-se com grandes dificuldades no acesso à mesma.
13. Para saírem e regressarem a casa, nomeadamente, nas idas à escola, ao médico, em lazer, os Requeridos tinham de percorrer o caminho entre a casa e a Estrada ..., com passagem por debaixo da EN ...29, e que tem cerca de 1 Km, sempre a pé, sujeitos às intempéries, pois o piso em terra, irregular, muitas vezes lamacento, não permitia a circulação de um automóvel ligeiro.
14. Caso fosse preciso, não era possível chamar uma ambulância a casa.
15. Em face de tais circunstâncias, e em acordo com o Requerente, o Requerido CC solicitou, junto do “ICERR – Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária” licença para a construção de um acesso e colocação de um portão na vedação da EN ...29.
16. Em 28 de Fevereiro de 2000, o referido Instituto concedeu a requerida licença.
17. No decorrer do ano de 2022, e perante a necessidade de substituir o portão, o Requerido solicitou junto da “Infraestruturas de Portugal”, e obteve, licença de utilização privativa do Domínio Público Rodoviário para alteração/substituição do portão de acesso.
18. Decorre do teor da referida licença, nomeadamente, que a concessão não faz presumir a favor do Requerido a propriedade ou posse sobre o prédio onde foi criado o acesso e implantado o portão; que a transmissibilidade da sua titularidade está sujeita à prévia e expressa autorização da entidade concedente, ou seja, da “Infraestruturas de Portugal”; que o Requerido responde por todos os danos causados e que resultem da actividade autorizada.
 19. Até Outubro de 2022, os Requerentes utilizaram o portão de acesso à habitação dos Requeridos, para acederem à parte Poente do prédio ...00.º.
20. O Requerente AA e o Requerido CC são irmãos e sempre se deram bem até então.
21. Naquele troço da EN ...29 havia, como há, muito trânsito, com ocorrência de vários acidentes, alguns deles graves.
22. No início do mês de Outubro de 2022, a relação entre os irmãos sofreu um forte revés, em virtude de o Requerente AA ter colocado um esteio no limite da parcela do prédio ...00.º situada a Poente da EN ...29, e que impede os Requeridos, de transitar com o tractor pelo caminho aberto aquando da passagem da referida estrada.
23. Foi nessa sequência que o Requerido marido, no final do mês de Outubro de 2022, fechou o portão com um aloquete, proibindo os Requerentes de por ele passar.
24. Foi nessa sequência que o Requerente AA, através da sua Advogada, interpelou o Requerido CC para a retirada do portão ou, em alternativa, entregar-lhe uma chave do mesmo.
25. Entretanto, os Requeridos procederam às obras de substituição do portão, nos termos requeridos e concedido pela “Infraestruturas de Portugal”, nele colocando um aloquete.
26. Desde que os Requeridos fecharam o portão, em finais de Outubro de 2022, os Requerentes continuaram a aceder, granjear e colher produtos agrícolas na parte do prédio ...00º situada a Poente da EN ...29.
27. II beterraba e erva para os animais, lavraram o terreno, semearam batatas, milho, feijão, pepinos, e plantaram repolhos e couves;
28. Procederam à rega de tais produtos e à sua colheita.
29. Para esse efeito, e até à entrega das chaves pelos Requeridos, na sequência do decretamento da providência, os Requerentes utilizaram o caminho que tem início na Estrada ... e passagem por debaixo da EN ...29.
30. Para passarem a pé, os Requeridos cortaram os arames da vedação da EN ...29, o que motivou o processo de contraordenação.
31. As condições e dificuldades mencionadas em 13. ainda se verificam.

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4. O direito aplicável
O Requerente e o Requerido são comproprietários de um prédio rústico, onde construíram cada um a sua casa e que agricultam, aproveitando e percecionando, no próprio interesse, de todos os produtos e utilidades do dito prédio.
O art.º 1405º, n.º 1, do C. Civil, permite que os comproprietários exerçam, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular, podendo, separadamente, participar nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes, dispondo o n.º 1, do art.º 1406º:
Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Os Requerentes propuseram procedimento cautelar de restituição provisória da posse, alegando que os Requeridos impediram que aqueles acedessem à parte do prédio situada a poente da E.N. ...29, quando construíram um murete em granito e alteraram o portão de acesso a essa parte do prédio, pela referida estrada, transformando-o num portão de correr, tendo colocado na extremidade Poente do mesmo um aloquete que impede a sua abertura a quem não possua a respetiva chave.
Sem audição da parte contrária, considerou-se que a situação alegada se encontrava indiciariamente verificada pelo que se decretou a providência requerida.
Contudo, após apresentação da oposição pelos Requeridos, demonstrou-se que os Requerentes continuavam a poder aceder a essa parte do prédio por outro local, utilizando o caminho que tem início na Estrada ... e passagem por debaixo da EN ...29, pelo que continuaram aí a colher beterraba e erva para os animais, lavrado o terreno, semeado batatas, milho, feijão, pepinos, e plantado repolhos e couves, assim como procederam à rega de tais produtos e à sua colheita.
Pode este acesso utilizado pelos Requerentes após a realização das obras no referido portão que os impede de aceder diretamente a esta parte do prédio pela EN ...29 ser mais incómoda para eles, uma vez que se trata de um caminho com alguma extensão em terra batida, mas não é possível afirmar que os Requerentes tenham ficado impossibilitados de aceder e continuar a usufruir daquela parte do prédio do qual são comproprietários. Eles podem continuar a fruir a parte do prédio em causa, mas utilizando uma outra via de acesso que se afigura ser mais espinhosa. E é o que têm feito.
A decisão recorrida, tendo esta realidade presente, revogou o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse, por entender não se verificar uma situação de esbulho.
O procedimento cautelar de restituição provisória da posse, que se individualiza pelo seu decretamento sem contraditório e sem necessidade de verificação de uma situação concreta de periculum in mora, foi o meio encontrado pelo legislador para exprimir uma desaprovação enérgica e imediata perante um ato de desapossamento violento [3]. A necessidade de a ordem jurídica disponibilizar um meio de reação rápido e eficaz, embora transitório, perante este tipo de situações, já remonta aos interditos possessórios do direito romano e após ter expressão nas nossas Ordenações, obteve consagração no art.º 487º do Código de Seabra [4], tendo o C. P. Civil de 1876 (art.º 494º) admitido esse instrumento de tutela da posse como preliminar da ação de restituição da posse [5]. Só com o C. P. Civil de 1939 este procedimento veio a integrar, com autonomia, o capítulo dos processos preventivos e preparatórios que a reforma de 1961 veio denominar de procedimentos cautelares. Entretanto o C. Civil de 1966 manteve a existência deste procedimento entre os meios de defesa da posse - art.º 1279º -, encontrando-se hoje processualmente regulado nos artigos do C. P. Civil de 2013.
Neste longo percurso histórico a possibilidade de recurso a este meio processual célere e eficaz de restituição da posse, em que se prescinde da observância de algumas das garantias de um processo equitativo, foi sempre um exclusivo das situações de esbulho.
Se foi a utilização de violência que justificou a sua consagração, sempre se considerou que, só quando alguém é privado da posse de um bem, se justifica a possibilidade do recurso a tal meio expedito de reposição da situação de facto anterior a esse ato.
O esbulho é um ato através do qual um terceiro priva um possuidor da fruição do objeto possuído, não sendo necessário que essa privação abranja a totalidade do bem possuído, mas que a privação corresponda a uma perda completa da possibilidade de utilização do bem, impedindo a sua disponibilidade física pelo possuidor.
Já perante atos de mera turbação da posse, isto é, que se limitem a perturbar a fruição dos bens pelo possuidor, mesmo que assumam formas violentas, não é necessária uma intervenção tão imediata, não sendo aplicável a providência cautelar específica de restituição provisória da posse, sendo suficiente o recurso aos meios cautelares comuns - art.º 379º do C. P. Civil. Nestes casos, já não se verifica o receio de um desapossamento definitivo, não se justificando a adoção de uma medida de devolução imediata da coisa ao controlo material do possuidor, mas apenas a aplicação de providências adequadas a assegurar uma fruição cómoda do bem [6].
Neste caso, em que dois comproprietários possuem simultaneamente o mesmo bem imóvel, dele fruindo, como a lei o permite, o facto de um desses comproprietários vedar ao outro um dos acessos a uma parte desse prédio, o que obriga a que este último tenha que utilizar uma outra via de acesso a essa parte do prédio, não priva este último da fruição de qualquer parte do prédio, limitando-se a dificultar-lhe essa fruição.
Estamos, pois, perante um mero ato de turbação da posse, para cuja reação não é adequada a providência de restituição provisória de posse, facultando a ordem jurídica outros meios de reação, pelo que se revela correta a decisão que revogou o decretamento daquela providência.
Deve, por isso, o recurso ser julgado improcedente, e confirmar-se a decisão recorrida.

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Decisão:
Nos termos acima expostos, julgando-se improcedente a apelação, confirma-se a decisão proferida.

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Custas pelos Recorrentes.

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                                                                                              23.4.2024


[1] Como consta do relatório da decisão recorrida.
[2] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in C. P. Civil Anotado, vol. 1º, pág. 9, ed. 1999, Coimbra Editora.

[3] Dominados pela ideia de que a violência, mais do que qualquer outro facto violador da posse, perturba a paz pública, criaram os antigos um processo possessório rápido contra o esbulho violento e no qual as duas caraterísticas fundamentais são a simplificação de formalidades, e a não intervenção do réu, em harmonia com o princípio spoliatus ante omnia restituendus (Manuel Rodrigues, A posse. Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 1981, p. 364).

[4] Sobre a história no nosso direito deste procedimento cautelar, José Alberto Gonzalez, Restituição Provisória de Posse, em Lusíada, n.º 15 (2016), p. 99-114.

[5] Sobre este incidente preliminar, Dias da Silva, Processos Civis Especiais, 2.ª ed., França Amado, 1949, p. 505-512.
[6] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., Almedina, 2001, p. 41, e Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 2015, p. 265.