Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
974/10.3T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
SENTENÇA PENAL
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
CULPA
Data do Acordão: 06/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 548º E 550º DO CÓDIGO DE TRABALHO/2009; ARTº 15º, NºS 1, 2, ALS. A), B), H) E I), 3 E 4 DA LEI Nº 102/2009, DE 10/09; 379º, Nº 1, AL. B) DO CPP
Sumário: I – Nos termos do artº 379º, nº 1, al. b) do CPP, a sentença padece de nulidade quando condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (ou decisão da autoridade administrativa), fora dos casos e das condições previstos nos artºs 358º e 359º.

II – Segundo estes últimos preceitos, caso ocorra alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, das duas uma: se a alteração for não substancial, o tribunal comunica-a ao arguido e concede-lhe um prazo para deles se defender; se a alteração for substancial, não podem (os novos factos) serem tidos em conta, mas, sendo autonomizáveis a sua comunicação ao Ministério Público vale como denúncia.

III – Quando se fala em alteração dos factos, para os efeitos que se apreciam, está a falar-se dos “factos descritos”, não de factos totalmente independentes, que justificariam uma nova (e completa) tramitação processual.

IV – O juízo de culpa, ao imputar-se determinada omissão, pretende afastar o dano, afastando o risco – o juízo de culpa liga-se à previsibilidade, que tem em si mesmo um juízo de normalidade.

V – Se um determinado trabalhador cumpre todas as instruções que lhe foram dadas e o acidente, ainda assim, ocorre, será mais fácil a conclusão que faltou previsão; ao invés, se um trabalhador é perfeitamente temerário e descuidado, tem que se apurar se, não obstante, era previsível e possível afastar o acidente, mesmo com aquele descuido ou temeridade.

VI –A noção de contra-ordenação laboral (artº 548º do CT) pressupõe, além da tipificação legal (artº 1º do RGCO) a prática de um facto ilícito e censurável, mesmo que apenas a título de negligência, essa, de acordo com o artº 550º do CT, sempre punível.

VII – Não parece ser imputável um comportamento negligente ao empregador que não prevê determinado risco exactamente quando o técnico especializado o não prevê.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório

1.1 O processo na 1.ª instância

Nos autos que deram origem ao presente recurso de contra-ordenação foi a arguida/recorrente condenada pela ACT (Autoridade Para As Condições do Trabalho- Centro Local do Baixo Vouga) no pagamento da coima de 9.200,00€, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista no artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, no n.º 1, nas alíneas a), b), h e i) do n.º 2 e nos n.º s 3 e 4 desse mesmo preceito legal.

Inconformada, a arguida recorreu para o Juízo do Trabalho de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, tendo então defendido, além do mais, que não lhe podia ser assacada qualquer culpa, por acção ou por omissão e, por isso, devia ser absolvida da contra-ordenação imputada e da respectiva coima.

Recebido o recurso naquele Juízo, foi realizada a audiência de julgamento e, mais adiante, veio a ser proferida decisão final que manteve a condenação da autoridade administrativa, julgando improcedente a impugnação.

1.2 Do recurso para a Relação

Continuando em desacordo, a arguida recorre para esta Relação e motiva o seu recurso com as seguintes conclusões:

[…]

O Ministério Público respondeu e defendeu que, quer do teor do auto quer da decisão administrativa, resulta claramente identificada a factualidade imputada à arguida e a que título e, apesar de não fazer referência expressa à actuação negligente da recorrente, continha, ainda assim, a descrição de factos suficientes, viabilizando extrair que a sua conduta era censurável a esse título. Acrescenta que a sentença não contraria doutrina fixada no Assento n.º 1/2003, nem se vislumbra a alegada “alteração substancial dos factos” e que, por tudo, o recurso deve improceder.

O Ministério Público, nesta Relação, igualmente defendeu a improcedência do recurso e manutenção da sentença impugnada.

Corridos os Vistos, cumpre decidir.

1.3 Questões a apreciar:

1.3.1 Nulidade da decisão condenatória.

1.3.2 Errada subsunção dos factos e (não) prática da infracção imputada.

2. Fundamentação

2.1 Fundamentação de facto

O tribunal da Relação, em sede de recurso de contra-ordenações, apenas conhece da matéria de direito (artigo 51.º, n.º1 da Lei 100/09, de 14 de Setembro, diploma de onde serão as normas posteriormente citadas sem outra referência). Assim, mas sem prejuízo da apreciação da questão enunciada em 1.3.1 (que se liga aos factos numa perspectiva de apreciação jurídica), deixamos transcrita a factualidade constante da decisão da 1.ª instância, aqui sob censura. Assim:

“São os seguintes os factos apurados, com relevo para a decisão:

1. No dia 15 de Dezembro de 2009, pelas 20.45 horas, nas instalações fabris da arguida, ocorreu um acidente de trabalho com o trabalhador B..., com a categoria profissional de granulador, funções que exerce desde a sua admissão ao serviço da arguida há cerca de 10 anos.

2. O referido trabalhador, no fim do seu período de trabalho, após ter efectuado a paragem da “Prensa Granuladora”, máquina que processa a farinha para obter granulados, que acabara de funcionar, abriu a tampa do canal de passagem do produto para a Eclusa, que fica ao nível do piso, baixou-se e meteu a mão direita na abertura para limpar os detritos que viu depositados nos bordos. Estando as pás da Eclusa, situadas cerca de 30 cm abaixo da abertura, ainda em funcionamento, o trabalhador, sem se aperceber, desceu a mão mais abaixo do que contava, sendo esta apanhada pelas pás que lhe cortaram a totalidade dos dedos e parte da palma da mão.

3. A Eclusa (válvula rotativa tipo HT250/HT-350) é um dos equipamentos de trabalho agregados à prensa Granuladora que tem como função fazer passar o produto acabado de produzir na granuladora (granulado) para outro equipamento de trabalho também agregado, chamado Arrefecedor, cuja função é arrefecer o produto e retirar-lhe parte da humidade.

4. Estes equipamentos, juntamente com o Alimentador e o Condicionador constituem a linha de fabrico de granulados. A passagem do granulado da Granuladora para o Arrefecedor é efectuada através da Eclusa que possui um sistema de pás mecânicas rotativas ligadas a um rotor que é accionado por um motor eléctrico. Em funcionamento estes equipamentos de trabalho não permitem o contacto entre o operador e o produto em processamento ou com os órgãos móveis do equipamento.

5. Todos os operadores que trabalham com a Granuladora e com a Eclusa sabem como essas máquinas são constituídas e têm conhecimento da forma como devem desempenhar as suas funções, conhecendo os riscos inerentes às mesmas, designadamente que as pás do motor da Eclusa são extremamente cortantes e se mantêm em funcionamento cerca de dois minutos após a paragem da Granuladora.

6. A Eclusa quando reinicia o funcionamento tem um sistema que ventila e limpa os detritos acumulados, mas esse sistema não elimina os detritos depositados nos bordos do canal de passagem do produto que vem da granuladora, existindo instruções da arguida para os trabalhadores limparem esse canal no final do último dia de trabalho de cada semana.

7. O trabalhador C..., com a categoria profissional de ajudante de encarregado de fabrico, no período de 4 a 11 de Janeiro de 2009 deu formação de posto de trabalho/prática ao sinistrado, com o conteúdo “ Granuladora/operação, segurança e manutenção” durante 29 horas. Tal formação está documentada e não se refere especificamente às condições de limpeza da Eclusa.

8. Os técnicos de SHST, D... e E... ministraram 2 acções de formação aos trabalhadores com o seguinte conteúdo: conceitos de SHT, Cultura SHT, Acidentes de Trabalho, medidas preventivas e correctivas, riscos na A...e sua envolvente, equipamentos de protecção individual, movimentação manual e mecânica de cargas. A primeira com a duração de 4 horas teve lugar em 24.11.2007 e a segunda com a duração de duas horas em 15.12.2007. Nenhuma destas acções de formação incidiu sobre os riscos relacionados a tarefa de limpeza da Eclusa, nem se baseou em prévia identificação de perigos e na avaliação de riscos relacionados com a execução das tarefas.

9. Apenas em Novembro de 2009, a Técnica de Higiene e Segurança D... da Empresa F..., que presta serviços de saúde, higiene e segurança no trabalho à arguida, elaborou o trabalho de avaliação de riscos nas instalações fabris da arguida constante do relatório inserto de fls. 97 a 118 dos autos, designadamente da linha de produção de granulados, o qual a fls. 16 identifica os perigos da granuladora e indica as medidas preventivas a adoptar, cuja implementação ainda não foi efectuada pela arguida, como resulta de fls. 21 do mesmo relatório, e nada refere quanto à Eclusa ou ao canal de passagem para a mesma.

10. Após a ocorrência do acidente, em Fevereiro de 2010, a técnica de higiene e segurança D... elaborou o relatório de identificação de perigos e avaliação de riscos relativo ao posto de trabalho de operador de granuladora, inserto a fls. 125 dos autos, entregue à ACT, no qual referiu que o canal de saída para do produto granulado para a etapa seguinte onde se situa uma eclusa a jusante está protegido por uma tampa e a eclusa não se encontra ao alcance imediato, anotando que esta tampa não se encontra ligada a uma mecanismo de segurança que interrompa a eclusa no caso de abertura da tampa e propôs a afixação de alertas visuais para o perigo de amputação e a aplicação de um dispositivo de segurança - interruptor fim-de-curso na tampa do canal de saída. Este interruptor desligaria a Eclusa sempre que a tampa fosse levantada.

11. Na inspecção judicial ao local verificou-se que existe um aviso alertando para o perigo de amputação de membros, mas o interruptor de fim-de-curso ainda não foi colocado.

12. A Granuladora e a Eclusa foram adquiridas pela arguida no estado de novas e no pressuposto de estarem devidamente homologadas e certificadas, foram instaladas e testadas pela entidade vendedora e não sofreram qualquer alteração técnica pela arguida que as utiliza para as respectivas funções.

13. A manutenção técnica dos referidos equipamentos é feita por uma empresa externa contratada pela arguida, fazendo os trabalhadores apenas as tarefas de manutenção mais simples.

14. No dia do acidente, o trabalhador B... não tinha instruções para proceder à limpeza dos bordos do canal de acesso à eclusa mas quando parou a granuladora e viu que havia lá resíduos resolveu limpá-los.

15. Segundo o mapa do quadro de pessoal relativo ao ano de 2008, o volume de negócios da arguida foi de €14.131.352,18”.

Na mesma decisão, a propósito dos factos não provados, escreveu-se o seguinte:

“Com interesse para a decisão não se provaram os seguintes factos:

- Que a arguida nunca instruções aos seus trabalhadores para procederem à limpeza do canal de passagem do produto para a Eclusa e ignorava que se efectuasse manualmente a limpeza dos respectivos bordos junto à abertura.

- Que não seja necessário efectuar a limpeza do canal de passagem do produto da granuladora para a eclusa.

- Que não faça parte das funções de operador da granuladora proceder à limpeza do canal de passagem do produto para a eclusa.

- Que as instalações fabris da arguida, onde se encontram a granuladora e a eclusa têm sido objecto de acções inspectivas e fiscalizações externas efectuadas por entidades legalmente competentes e legalmente habilitadas para o efeito que nunca alertaram a arguida para qualquer conduta omissiva em relação às referidas máquinas.

- Que a arguida contratou a empresa José Braga Unipessoal, Lda. para prestação dos serviços de saúde, higiene e segurança no trabalho e que os técnicos desta empresa realizaram avaliações de risco aos equipamentos em questão, nomeadamente à granuladora e nunca lhe reportaram a existência de indícios de quaisquer perigos ou sugeriram quaisquer medidas preventivas complementares às já existentes”.

2.2 Fundamentação de direito

1.3.1 Da nulidade

Entende a recorrente que a decisão em censura padece de nulidade, porquanto “a diferente matéria factual que consta, por um lado, da decisão administrativa judicialmente impugnada e, por outro, da sentença de que se recorre, implica alteração substancial ou, e assim não se entendendo, sempre importará alteração não substancial” e, “porque aqui não verificado o imposto, quer no artigo 358.º, ou, quer no artigo 359.º, ambos do CPP, é, assim, nula a decisão (artigo 379.º n.º 1 alínea b) do CPP).

Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), a sentença padece de nulidade, quando condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia[1], fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. Segundo estes últimos preceitos, caso ocorra alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, das duas uma: se a alteração for não substancial, o tribunal comunica-a ao arguido e concede-lhe um prazo para deles se defender; se a alteração for substancial, não podem (os novos factos) serem tidos em conta, mas, sendo autonomizáveis, a sua comunicação ao Ministério Público vale como denúncia.

Quando se fala em alteração dos factos, para os efeitos que se apreciam, está a falar-se dos “factos descritos”, não de factos totalmente independentes, que justificariam uma nova (e completa) tramitação processual. Se assim for (conclusão a que se chegará, ou não, segundo um critério naturalístico) a alteração pode ser, como se adiantou, substancial ou não substancial. A primeira acontece quando a alteração tenha por efeito um agravamento da posição do arguido no processo, seja pela possível condenação em ilícito diverso seja pela elevação dos limites da sanção (Manuel Simas Santos, Manuel Leal-Henriques e João Simas Santos, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pág. 435). A alteração não substancial acontece quando, ao invés, os factos que resultam da discussão da causa não conduzam à imputação de um crime diverso ou à agravação dos limites sancionatórios, mas, ainda assim, tenham relevo para a decisão da causa. Sempre, num caso ou noutro, para a nulidade da sentença ocorrer, esses factos têm de ter fundado a condenação.

No caso presente, a discordância da recorrente, a sua defesa de uma alteração relevante, decorre da circunstância de o tribunal, na sentença e diversamente do que considerava a decisão administrativa, se ter fundado, além do mais, não na limpeza da eclusa (causa da abertura da tampa) mas na limpeza dos “bordos do canal de passagem do produto” (ponto n.º 6 da matéria de facto). A decisão administrativa, efectivamente, havia descrito a limpeza da eclusa como causa da acção do trabalhador sinistrado e desse facto se defendeu a arguida, dizendo que a eclusa não precisa de ser limpa, por ter um sistema que limpa os detritos acumulados, como, de facto, veio a considerar-se provado na 1.ª parte do aludido ponto de facto n.º 6.

Ora, salvo o devido respeito por outra opinião, parece-nos que a imputação feita à recorrente é a da omissão de identificação e avaliação dos riscos que ocorrem – e se concretizaram – com a abertura, mesmo que desnecessária e descuidada, da tampa da eclusa. O fim desse acto (limpar os bordos e não a eclusa, propriamente dita) representa uma novidade na defesa da arguida, mas não é uma alteração substancial dos factos. É alteração, na medida em que a sentença lhe dá relevo na decisão da causa, mas dela não resulta uma agravação do mesmo tipo incriminador ou a modificação deste. 

Importa ainda ter presente que, afastada a qualificação da alteração dos factos descritos como alteração substancial, nos parece de sufragar o entendimento que decorre do Ac. da Relação de Lisboa de 15.2.1995 (CJ, 1995, Tomo II, pág. 134), segundo o qual – repetimos, não havendo alteração substancial – o tribunal de 1.ª instância não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto da decisão administrativa. Acresce que, de acordo com a (nova) redacção do artigo 47.º, a eliminação da proibição da chamada reformatio in pejus, mais acentua essa liberdade de determinação do âmbito da prova. Ainda assim, parece-nos de distinguir entre produção de prova e o seu resultado, bem como a limitação que decorre da conjugação do artigo 379.º, n.º1, alínea b) com os artigos 359.º ou 358.º, todos do CPP.

Dito de outro modo, independentemente da liberdade consentida pela artigo 47.º, nomeadamente pelo seu n.º 2 (compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir), dever-se-ia ter dado cumprimento ao artigo 358.º do CPP, porquanto este cumprimento é condição de afastamento da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º1, alínea b) do mesmo diploma. Efectivamente, não o tendo feito e tendo fundado a decisão condenatória no facto alterado, cometeu-se a nulidade de excesso de pronúncia.

Sem embargo, entendemos que daí não resulta forçosamente a anulação da decisão da 1.ª instância e a devolução do processo ao tribunal recorrido. Com efeito, nos termos do artigo 51.º da Lei 107/99 (em moldes semelhantes à previsão do RGCO), a decisão desta Relação pode ser no sentido de anular a sentença da 1.ª instância, devolvendo o processo ao tribunal recorrido (n.º 2, alínea b), mas igualmente a de alterar a decisão, sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida (n.º 2, alínea a)[2].

Quer porque estamos perante uma nulidade sanável (artigo 120.º e 121.º do CPP) quer pela possibilidade conferida pelo citado artigo 51.º, n.º 2, alínea a), a devolução do processo à primeira instância só faz sentido se, com os factos fixados pelo tribunal, a condenação da recorrente for de manter.

Por isso, passamos a apreciar a segunda questão objecto de recurso.

1.3.2 Subsunção dos factos e prática da infracção

Defende a recorrente que a sentença da 1.ª instância aplicou mal o direito aos factos, porque os constantes dos autos não permitem imputar-lhe a violação pela qual foi condenada e deles não resulta qualquer actuação culposa da sua parte.

Vejamos, em primeiro lugar, o conteúdo normativo da infracção que, imputada à recorrente, justificou a sua condenação no pagamento de uma coima. Como se disse no início, a arguida foi condenada pela violação do disposto no artigo 15.º, n.º1, n.º 2, alíneas a), b), h) e i), n.º 3 e n.º 4 da Lei 102/2009, de 10 de Setembro. Segundo estes preceitos, “ 1- O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho. 2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da actividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: a) Identificação dos riscos previsíveis em todas as actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na concepção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na selecção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta veja inviável, à redução dos seus efeitos; b)Integração da avaliação dos riscos para a segurança e saúde do trabalhador no conjunto das actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adoptar as medidas adequadas de protecção (…) h) Priorização das medidas de protecção colectiva em relação às medidas de protecção individual; i) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à actividade desenvolvida pelo trabalhador. 3 – Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as actividades, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de protecção da segurança e saúde do trabalhador. 4 – Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da actividade em condições de segurança e saúde”.   

Vejamos agora o que se escreveu, fundamentando a condenação, na decisão sob censura:

A arguida alicerça a sua defesa essencialmente no facto de a Eclusa não carecer de limpeza, sendo, por isso, desnecessária e a actuação do trabalhador que esteve na origem do acidente. Importa desde já referir, que independentemente das causas que possam ter estado na origem do acidente tal não é directamente o objecto dos presentes autos.

O que cumpre verificar nestes autos é se a arguida na altura do acidente cumpria as obrigações previstas no artigo 15º do D.L. 102/2009 de 10.9, cuja inobservância lhe é assacada.

E se as autoridades administrativas não podem presumir a prática da contra-ordenação com base na simples ocorrência do acidente, a arguida também não pode concluir que o facto de o comportamento do trabalhador ter contribuído para a ocorrência do mesmo, a isenta de responsabilidade pelo incumprimento das regras de segurança.

É que, face os factos provados, conclui-se que o trabalhador teve um comportamento imprevidente que contribuiu de facto para o acidente, pois, naquele dia não tinha instruções para limpar o canal de passagem do produto da granuladora para a eclusa e sabendo que as pás desta só param cerca de dois minutos depois da paragem da granuladora devia ter aguardado antes de levantar a tampa e introduzir a mão para proceder à limpeza.

Porém, ao invés do alegado pela arguida, a tarefa que o trabalhador se propunha realizar não era desnecessária e inútil, pois se a eclusa propriamente dita não necessita de limpeza porque o sistema de ventilação elimina os detritos acumulados, esse mesmo sistema não elimina os detritos que se acumulam nos bordos do canal de passagem do produto da granuladora para a eclusa que o trabalhador se propunha limpar embora só tivesse instruções para o fazer no último dia de trabalho da semana.

Portanto, necessitando esse canal de passagem do produto da granuladora para a eclusa de limpeza, a arguida através dos respectivos serviços de segurança, higiene e saúde, estava obrigada a identificar os riscos inerentes a tal tarefa e a adoptar os procedimentos adequados para os evitar, dando prioridade às medidas de protecção colectiva.

Ora, como resulta dos factos provados apenas em Novembro de 2009, a técnica de higiene e segurança D... da empresa F... contratada pela arguida para a prestação de serviços de higiene, segurança e saúde elaborou o relatório de avaliação de riscos nas instalações fabris inserto de fls 97 a 118 dos autos, nomeadamente na linha de produção de granulados e esse relatório identificou os perigos da granuladora, mas é omisso relativamente à eclusa e ao respectivo canal de acesso e, além disso, as medidas preventivas aí preconizadas não foram adoptadas.

E só após o acidente, em Fevereiro de 2010, a técnica de higiene e segurança elaborou o relatório de identificação de perigos e avaliação de riscos referente ao posto de trabalho de operador de granuladora, indicando o risco existente no canal de saída do produto para a eclusa e propondo a instalação de um mecanismo de interrupção da eclusa sempre que houvesse abertura da tampa, mecanismo esse que até à data a arguida não instalou.

Portanto, concluímos que, de facto, a arguida não efectuou uma avaliação completa dos riscos, nem procedeu adopção de medidas adequadas de protecção colectiva relativamente à totalidade do equipamento utilizado pelo trabalhador, omissão que integra a previsão do n.º 2 alíneas a) e b) do artigo15.º da Lei 102/2009, e, portanto, também não deu cumprimento integral às obrigações previstas nas alíneas h) e i) do nº 2 e nos nº3 e 4 do mesmo preceito legal, pelo que incorreu na prática na contra-ordenação que lhe é assacada, sendo certo que tal conduta omissiva da arguida não deixou de contribuir tal como a imprevidência do trabalhador para a ocorrência do acidente, pois se o mecanismo proposto pela técnica de segurança estivesse instalado quando o trabalhador levantou a tampa do canal de passagem para a eclusa esta deixaria de funcionar, evitando o acidente.

Resta acrescentar que o facto de a granuladora e a eclusa terem sido adquiridas no estado de novas pela arguida, no pressuposto de se encontrarem devidamente homologadas e certificadas e sido instaladas e testadas pela entidade vendedora, encontrando-se a funcionar para as respectivas funções, não exime a arguida de proceder à identificação dos riscos decorrentes da sua utilização no processo produtivo e à adopção dos procedimentos necessários a assegurar as condições de segurança e saúde aos trabalhadores ao longo de todo o referido processo.

Destarte, a arguida não agiu com a diligência que lhe era exigível enquanto entidade empregadora e incorreu na prática da contra-ordenação que lhe é imputada (…).”

Começa a sentença por dizer que as causas do acidente não fazem parte do objecto destes autos.

É verdade que não estamos perante um processo emergente de acidente de trabalho, e também é certo que a (demonstrada) imprudência do trabalhador não afasta, de per si, a responsabilidade contra-ordenacional do empregador. Ainda assim, o modo como ocorreu o acidente revela, no próprio contexto da sentença, a transformação do risco em dano, e o juízo que se faça sobre aquele, a sua previsão ou a falta dela, não pode ser alheio, num juízo causal de prognose póstuma, ao efectivamente acontecido na ocasião do sinistro. Dito de outro modo, o juízo de culpa, ao imputar determinada omissão pretende afastar o dano, afastando o risco. O juízo de culpa liga-se à previsibilidade, que tem em si mesmo um juízo de normalidade. Por isso, nunca pode ser totalmente alheio à concretização do risco (ao dano), quando ele, como aconteceu, ocorre. Não estando em causa o acidente, enquanto realidade jurídica, não pode deixar de estar em causa o modo como ocorreu, enquanto realidade naturalista que revela a transformação do risco em dano e permite perguntar: era previsível? Com efeito, se um determinado trabalhador cumpre todas as instruções que lhe foram dadas, e o acidente, ainda assim, ocorre, será mais fácil a conclusão que faltou previsão; ao invés, se um trabalhador é perfeitamente temerário e descuidado, tem que se apurar se, não obstante, era previsível e possível afastar o acidente, mesmo com aquele descuido ou temeridade. Com efeito, não nos parece defensável o alheamento da causa efectiva ao juízo de previsibilidade e à imputação da responsabilidade de acautelar o evento danoso.

O que dizemos tem a ver com o juízo de culpa. E aceita, necessariamente, que a própria noção de contra-ordenação laboral (artigo 548.º do CT) pressupõe, além da tipificação legal (artigo 1.º do RGCO) a prática de um facto ilícito e censurável, mesmo que apenas a título de negligência, essa, de acordo com o artigo 550.º do CT, sempre punível (Manuel M. Roxo – Luís C. Oliveira, O Processo de Contra-Ordenação Laboral e da Segurança Social, Almedina, 2009, pág. 21).

E, quando falamos de negligência, significa que se não previu, e devia ter previsto, ou se previu e nada se fez no sentido de evitar a concretização do risco. O artigo 15.º do CP esclarece, com efeito, que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstância, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto”. Como ensinava Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 433) a razão de ser da punição da negligência reside na circunstância de o agente “não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis preparar-se para – sempre que uma conduta que projecta seja adequada para os produzir – representar esses resultados (negligência inconsciente) ou para os representar justamente (negligência consciente)”. Por outro, a definição legal de negligência, é especialmente importante pela afirmação contida no proémio do citado artigo 15.º do CP, pois é aí “que se contém o tipo de ilícito (a violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, isto é, a violação do cuidado objectivamente devido) e o tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais)” – Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 352.

A propósito do artigo 550.º do CT, pergunta João Soares Ribeiro (Contra-Ordenações Laborais, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 329) se haverá nas contra-ordenações uma presunção de negligência. E responde em termos que nos parecem totalmente correctos: “Pensamos que não. A culpabilidade deve ser apreciada na instrução do processo de contra-ordenação, de acordo com os factos apurados, sendo certo que, na maioria dos casos, só poderá extrair-se das regras da experiência comum dos homens ou resultar de prova prima facie extraída desses factos.”

As considerações precedentes pretendem salientar, em geral e no caso presente, a necessidade de imputar – e demonstrar – que se devia ter agido de outro modo, ou que é censurável não se ter agido de outro modo, ou, mais concretamente, que se devia ter previsto ou, tendo-se previsto, que se devia ter agido.

Descendo aos factos e à sua subsunção, podemos verificar que a sentença, tal como a decisão administrativa, partem de duas constatações para afirmar o juízo culposo, a negligência da recorrente: 1 – Só em Novembro de 2009 a recorrente tratou de cuidar da previsão dos riscos (apenas em Novembro de 2009, a técnica de higiene e segurança D... da empresa F... contratada pela arguida para a prestação de serviços de higiene, segurança e saúde elaborou o relatório de avaliação de riscos nas instalações fabris inserto de fls 97 a 118 dos autos, nomeadamente na linha de produção de granulados e esse relatório identificou os perigos da granuladora) e, ainda assim veio a fazê-lo de modo incompleto (mas é omisso relativamente à eclusa e ao respectivo canal de acesso e, além disso, as medidas preventivas aí preconizadas não foram adoptadas); 2 – Só após o acidente foi elaborado um relatório, pela respectiva técnica detectando e tentando eliminar o risco que esteve ligado ao acidente (E só após o acidente, em Fevereiro de 2010, a técnica de higiene e segurança elaborou o relatório de identificação de perigos e avaliação de riscos referente ao posto de trabalho de operador de granuladora, indicando o risco existente no canal de saída do produto para a eclusa e propondo a instalação de um mecanismo de interrupção da eclusa sempre que houvesse abertura da tampa, mecanismo esse que até à data a arguida não instalou).

Sendo certo que a ocasião temporal de imputação da culpa – como é expresso na sentença – é a ocasião do acidente, sendo correcto que o primeiro critério de imputação negligente à violação do “cuidado objectivamente devido” e não sendo da afastar o modo de ocorrência do sinistro como explicação (ou não) para o afastamento do dever exigido, a pergunta relevante é a de saber se os factos demonstram que a arguida agiu com culpa, no caso, com negligência.

Salvo melhor opinião, entendemos que não. Nenhum elemento de facto revela que, antes da ocorrência do acidente era previsível ele acontecer (daquele modo); nenhum elemento de facto revela que era previsível, objectivamente, o risco de alguém, instruído para não o fazer e sabendo que o não devia fazer, abrir a tampa da eclusa, que – igualmente sabia – ainda estava em movimento de pás cortantes. O modo como sucedeu o acidente é claramente imprevisível; deve (no sentido de dever jurídico e objectivo, que é o que está em causa) prever-se o imprevisível?

Por outro lado, contrariamente ao sentido que foi dado na sentença, não nos parece ser imputável um comportamento negligente ao empregador que não prevê determinado risco, exactamente quando o técnico especializado o não prevê. No juízo da sentença, a falta de previsão da empresa F... reflecte-se no empregador, quando nos parece, que ela significa, ao invés, a inexigibilidade de previsão.

No juízo de culpa que tem de fazer-se, o que os factos revelam é que nem a empresa especializada previu aquele risco, porque, precisamente, só com o acidente (em que um trabalhador levanta a tampa e mete a mão na eclusa) ele foi detectado. O que a sentença não equaciona, mas nos parece relevante, é que se a especialista não previu o risco, certamente não existia. E o modo como o acidente ocorreu revela, parece-nos, que efectivamente não era um risco: a eclusa, em si mesmo, não o era; o comportamento temerário, desconforme ao ensinado e avisado, também não podia ser previsto.

E se assim é para o tempo anterior à ocorrência do acidente, parece-nos manifesto que o tempo posterior e as diligências feitas, então, pelo empregador, feitas depois do acidente, irreleva (e irrelevam) ao juízo de culpa.

Por tudo o que se deixa dito, entendemos que a matéria de facto (mesmo a considerada e independente do que ficou dito a propósito da nulidade) não demonstra que se possa imputar à recorrente um comportamento culposo (mesmo que tão só negligente). Por isso, deve a recorrente/arguida ser absolvida da prática da infracção e da coima aplicada, carecendo de sentido a devolução do processo à 1.ª instância para cumprimento da omissão referida aquando da apreciação da nulidade.

3. Decisão:     

Por tudo quanto ficou dito, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o presente recurso e, em conformidade, absolver a recorrente A..., SA da prática da infracção pela qual foi condenada e do pagamento da coima aplicada.

Sem custas.


José Eusébio Almeida (Relator)
Manuela Fialho


[1] Onde se diz acusação ou pronúncia deve ler-se, no que aqui importa, decisão da autoridade administrativa.
[2] “Claro está que o Tribunal da Relação não está limitado a estas decisões, podendo p. ex. absolver o recorrente, etc. Pode dizer-se que, aqui, o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista, apreciando apenas matéria de direito” – Adalberto Costa, Contra-Ordenações Laborais e da Segurança Social, VidaEconómica, 2010, pág. 106.