Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/21.4T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MANUEL CARVALHO RICARDO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
AUTORIZAÇÃO PARA PASSAR PELO PRÉDIO SERVIENTE
CONSTITUIÇÃO POR USUCAPIÃO
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - LAMEGO – JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1265º, 1287º E 1296º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: A constituição de uma servidão de passagem por usucapião, quando o titular do prédio serviente concede uma autorização ao proprietário do prédio dominante para utilizar determinado percurso ou caminho, depende da verificação cumulativa dos requisitos previstos no art. 1265º do Código Civil (inversão do título da posse) e nos arts. 1287º e 1296º do mesmo diploma legal.

(Sumário elaborado pelo Relator )
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

AA e esposa BB, titulares dos NIF ...18 e ...46, respetivamente, casados no regime de comunhão de adquiridos e residentes em ..., ..., ...,

instauraram no Juízo Local Cível de Lamego acção comum contra

CC

 e marido DD, casados na comunhão de adquiridos, e ambos com residência na Rua ..., ... ...,

pedindo, com base na factualidade melhor descrita na petição inicial, que os réus sejam condenados a:

a) Reconhecerem que os prédios descritos nos arts. 5º e 6º da petição inicial estão onerados a favor do prédio dos autores, descrito no art. 1º da mesma peça processual, por uma servidão de passagem, a pé e de carro, constituída por usucapião, ao longo do trajeto e nos termos referidos nos arts. 10º a 16º do mesmo articulado;        

b) Restabelecerem o referido trajeto ao estado anterior ao do respetivo esbulho, por forma a permitir que os autores continuem a percorrê-lo livremente até alcançarem o seu prédio nos termos alegados nos referidos artigos da p.i.;

c) Entregarem aos autores uma chave do portão de

entrada referido nos arts. 9º e 10º da p.i., bem como a absterem-se de voltarem a ter atitudes idênticas e a nunca mais obstruírem tal trajeto, seja de que maneira for;

d) Indemnizarem os autores pelos danos morais e

materiais, pelo valor e conforme alegado no art. 20º da p.i..


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Os réus contestaram, impugnando parcialmente, de forma motivada, o acervo factual alegado pelos autores e peticionando, a final, que os mesmos fossem condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização em montante não inferior a 2.000,00 €.


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Em 31/3/2022 foi proferido despacho que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, prosseguindo os autos para audiência final, que se realizou com observância do formalismo legalmente prescrito.      

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Em 1/4/2024, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, sendo os réus absolvidos do pedido.


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Não se conformando com a decisão proferida, os autores interpuseram o presente recurso, no qual formulam as seguintes conclusões:

1. Esta ação foi julgada totalmente improcedente com base, além de um outro fundamento, na existência de uma declaração, junta aos autos pelos réus, onde os autores declaravam, por escrito, supostamente, dirigido à anterior proprietária do prédio que é agora pertença dos réus, EE, datado de 27.11.1989, que “(…) passamos no prédio da Senhora Dona EE por favor, o que muito lhe agradecemos. (…)”. Declaração essa que o tribunal, nas suas próprias palavras, não pôde deixar de valorar nos termos do preceituado nos artigos 358.º, n.º 2, e 376.º, ambos do Código Civil, sem que tenha esclarecido/fundamentado em que sentido interpretou ou deveriam ser interpretados tais normativos.

2. Entendem os apelantes que a força probatória daquele documento particular se circunscreve, apenas, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nele constam como feitas pelo respetivo subscritor, pelo que, a prova plena por ele estabelecida, a existir, respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia.

3. A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exatidão das mesmas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respetivos factos materiais.

4. Portanto, nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do seu teor, nomeadamente através da prova testemunhal produzida.

5. Estando provado que foi emitida aquela declaração, importa ainda saber se se trata de uma declaração de ciência ou declaração de vontade, pois, neste segundo caso, ainda podem ser invocados todos os vícios da vontade que poderiam ter afetado os declarantes. E como tal, quanto à veracidade da declaração feita, o documento fica sujeito à regra da livre apreciação da prova.

6. Olhando agora outra vez para o documento em causa é fácil de ver que as declarações emitidas pelos autores constituem uma óbvia declaração de vontade, e não de ciência.

7. Por outro lado, a força probatória plena estabelecida no art. 376º, 2 CC apenas se verifica inter partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas já não no confronto de terceiros.

8. E no caso dos autos estamos manifestamente fora do contexto inter partes, pois se um dos “contraentes” está nesta ação (os autores), o outro (EE, suposta declaratária e anterior proprietária do prédio agora dos réus) não está. E só ela saberia ao certo o que ficou acordado entre ambos, portanto, desde logo, já estaria excluída a força probatória plena de tal documento nos termos do art. 376º, 2 CC.

9. Em suma, a força probatória atribuída pelo art. 376º,1 reporta-se à materialidade das declarações documentadas e não à sua exatidão. Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento, mas sim à eficácia da declaração. “As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras”.

10. Conclui-se, pois, que aos réus competia provar a autoria do documento em questão, o que, segundo a sentença, conseguiram, porém, uma vez estabelecida e provada a autoria do documento, não estavam os autores impedidos de alegar e provar quaisquer factos suscetíveis de contrariar o teor de tal declaração ou de constituir erro ou qualquer outro vício da sua vontade declarativa, o que, salvo o devido respeito, eles lograram, concretamente, através dos depoimentos das testemunhas que infra se identificarão e das próprias declarações prestadas pelo autor marido em sede de julgamento. 

11. Tal documento tinha, mas não foi, de ser conjugado com a restante prova produzida, nomeadamente testemunhal.

12. É precisamente neste aspeto que reside o fundamento da presente arguição de nulidade da sentença recorrida, pois, entendem os recorrentes que, ao longo do julgamento, foi produzida prova

testemunhal bastante e capaz de contextualizar bem como de contrariar o teor e o alcance daquela declaração, sem que o Tribunal a quo se tivesse pronunciado criticamente acerca de tais depoimentos ou, sequer, lhes tivesse feito qualquer referência.

13. Referimo-nos, concretamente e com especial destaque, aos depoimentos das testemunhas FF e GG bem como às declarações que o próprio Autor prestou em audiência final, que quanto a este aspeto foram totalmente omitidas e desconsideradas na sentença recorrida.

14. De acordo com os depoimentos, que a seguir se transcrevem, o que o autor e essas duas testemunhas tentaram esclarecer e o Tribunal a quo acabou por omitir foi que essa declaração foi passada pelos autores, a pedido da Dona EE, anterior dona do prédio dos réus, para que esta a pudesse entregar ao (falecido) pai da ré mulher, HH, que, na altura, era arrendatário dos seus prédios, porque aquele a ameaçara que deixaria de “tratar/granjear” os seus prédios caso os agora autores continuassem a passar no prédio em mérito.

15. Acrescentando aquelas testemunhas e o próprio autor que, apesar de terem emitido aquela declaração, continuaram sempre a passar por aquele prédio e que, por esse motivo, apesar daquela declaração, o tal HH, pai da ré mulher, acabou por abandonar o arrendamento que celebrara com a Dona EE, continuando, pois, os autores a utilizar a dita passagem, como se tal declaração nunca tivesse existido.

16. Ou seja, essa declaração não se destinava ou dirigia diretamente à então proprietária do prédio dos réus (D. EE), que nunca se opôs à sua passagem, mas sim ao, na altura, arrendatário (HH, pai da ré mulher), portanto, com o único objetivo de satisfazer um capricho deste (que era um mero arrendatário) e nunca com o propósito de diminuir ou condicionar os direitos que os autores já vinham a exercer, com o consentimento expresso da então proprietária, há mais de

20 anos.

17. Vejamos o que disse o autor e as referidas testemunhas: (…)

81. Assim, eliminando-se a alínea e) dos factos não provados e passando a mesma a constar dos factos provados, com a mesma redação, bem como modificando-se a redação dos indicados factos provados (7, 8 e 11), conforme imediatamente acima se referiu, deverá julgar-se a presente ação totalmente procedente, no pressuposto de que os prédios descritos no 5º e 6º item da petição inicial estão efetivamente onerados a favor do dos autores, descrito no 1º, por uma servidão de passagem, a pé e de carro, constituída por usucapião, ao longo do trajeto e nos termos referidos nos itens de 10º a 16º, inclusive, condenando-se os RR a restabelecerem o referido trajeto ao estado anterior ao do respetivo esbulho, por forma a permitir que os autores continuem a percorrê-lo livremente até alcançarem o seu prédio nos termos alegados nos referidos itens da petição inicial e a entregarem aos autores uma chave do portão de entrada, referido em 9 e 10, bem como a absterem-se de voltarem a ter atitudes idênticas e a nunca mais obstruírem tal trajeto, seja de que maneira for.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Questões objecto do recurso:

- Nulidade da decisão recorrida;

- Alteração da matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal recorrido;

- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante.


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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1- Os AA são proprietários de um prédio rústico sito no lugar ..., inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob artigo ...17, secção B, constituído por vinha da região demarcada do Douro, a confrontar a norte, nascente e poente com EE e sul com II, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o Nº ...15 e aí inscrito a seu favor, sob Ap. ...00 de 2010/03/15;

2. Tal prédio veio à posse da autora em 1967, por partilha amigável da herança deixada por seus pais;

3. Desde então que os AA têm vindo a usar e fruir do mesmo, cultivando-o, colhendo-lhe os frutos, fazendo-os seus, pagando os impostos e, sempre agindo, até à data e à vista de toda a gente, na fundada convicção de serem eles os seus únicos donos e como tal sendo reconhecidos sem qualquer oposição;

4. Os RR. são donos de um prédio rústico, sito em ..., lugar do ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., sob o artigo ...51, secção B, composto por vinha da região demarcada do Douro, de cultura arvense de sequeiro, a confrontar a norte com JJ, sul com os autores, nascente com herdeiros de HH e poente com EE;

5. O prédio referido em 4, na sua extrema nascente, encontra-se separado da via pública por um outro imediatamente contíguo, de natureza urbana e destinado a habitação, também dos RR, constituído por andar e armazém, inscrito a favor deles sob o artigo ...88 da respetiva matriz da mesma freguesia;

6. O referido prédio dos AA. não tem comunicação direta com a via pública;

7. Para levarem até ao mesmo adubos, produtos fitossanitários, máquinas e materiais, e dali transportarem as respetivas colheitas até à via pública, designadamente as uvas, azeitonas e outros produtos hortícolas, lograram os AA. que a anterior dona dos prédios dos RR., EE, já falecida, lhes autorizasse a passagem pelos seus prédios, agora dos RR., tolerando tal uso pelos mesmo, familiares e respetivos trabalhadores, o que os AA. passaram a fazer, conscientes de tal tolerância;

8. Tal sucedeu desde logo, porque a falecida EE era tia da Ré e cunhada da Autora, sendo uma pessoa afável e reconhecida, existindo amizade e respeito recíproco, sendo o A. quem a conduzia no seu carro quando esta lho solicitava;

9. Em função da autorização concedida, para acederem ao seu prédio, tanto os AA. como os trabalhadores por si contratados, passaram a entrar no prédio dos RR através de um portão localizado entre este e o de KK, que se situa imediatamente a norte, e que, em vida da D. EE estava sempre aberto, mas que os RR, após o seu falecimento, ocorrido em 2004, decidiram manter fechado, entregando aos AA. a respetiva chave para que pudesse continuar a passar;

10. Após entrarem por tal portão, seguiam pelo logradouro do prédio urbano agora dos RR, no sentido nascente-poente, através de um caminho amplo que contorna aquela casa pelo lado norte do seu logradouro, alcançando, após 20 metros, a parte inicial do prédio rústico dos RR identificado em 4, prosseguindo o acesso a partir daí, ao longo de mais de 20 e de 30 anos, com a largura de 1,5 metros e cerca de 50 metros de comprido, até se alcançar, na sua extrema sul, o prédio dos AA, trajeto esse cujo traçado e dimensões os RR vieram a alterar, há já alguns anos, transformando-o num estradão com 3 metros de largo, que os AA passaram também a usar, de carro, a partir de 2004;

11. Acesso que os AA. utilizaram num e noutro sentido – desde 1967, pedonal, e a partir de 2004, carral, num e noutro caso, até às vindimas de 2020 – sempre o tendo feito ininterruptamente, à vista da anterior proprietária, da dos RR. e de toda a gente, sem a oposição de ninguém, de boa-fé;

12- Sempre existiram e continuam a existir sinais aparentes e permanentes reveladores da passagem, quer nos prédios dos RR. quer no dos AA., onde são perfeitamente visíveis o portão e os caminhos suprarreferidos, bem como na zona de confinância e de ligação entre ambos os prédios;

13- Em 2020, em função de obras realizadas no prédio urbano, para o afetarem ao turismo rural, mas também por desentendimento entre o arrendatário do prédio dos AA. e o réu marido, os RR. deixaram de permitir a passagem, mudado a fechadura do portão e impedindo-os de continuarem a transitar por ali;

14- Por escrito datado de 27.11.1989, os AA. declararam que “(…) passamos no prédio da Senhora Dona EE por favor, o que muito lhe agradecemos. (…)”.


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2.2. Factos não provados.

Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

a. O prédio dos AA. não tem acesso à via pública a não ser pelos prédios dos RR.;

b. Os autores ofereceram toda a pedra necessária à construção de um rego ao longo da estrema sul do prédio agora pertença dos RR., na altura de EE;

c. Os RR. antes de fecharem o portão como descrito em 9, falaram com os autores ouvindo-os sobre tal possibilidade, tendo estes aceitado após lhes entregarem a respetiva chave

d. Os AA., com vista a facilitarem o acesso ao seu próprio prédio através daquele caminho, chegaram mesmo a arrancar, na altura, algumas videiras que se encontravam plantadas na estrema norte deste seu prédio, justamente no limite da sua confinância com o dos RR, criando, assim, uma entrada mais larga e, portanto, mais cómoda, tanto à entrada como à saída;

e. Os AA. agiram como descrito em 11., na convicção de que lhes assistia, para tanto, o direito de por ali transitarem livremente por possuírem direito próprio de passagem;

f. A alteração do traçado da passagem feito pelos RR. e indicado em 10 foi feita a ponto de poder afetar parte das extremas definidoras dos limites entre ambos os prédios e os RR. fizeram-no sob condição, imposta pelos AA, de o acesso deixar de ser apenas a pé posto, e passar a ser pelo novo trajeto, também com carro de tração a motor, o que os RR aceitaram;

g. O prédio dos RR. a única forma de acederem desde o caminho público até ao prédio dos AA. e vice-versa, com vista a poderem efetuar o seu granjeio com normalidade, e a transportarem os bens referidos nos factos provados;

h. Estão os AA impedidos de aceder, cultivar e explorar o seu prédio, pelo que, destinando-se o terreno à cultura de vinha na Região Demarcada do Douro, da oliveira e doutras árvores de fruto, nos ramos, portanto, da produção de uvas para o fabrico dos ditos vinhos “do Porto”, “de mesa” e do azeite, tais práticas são-lhes de todo inviáveis;           

i. É, assim, fundamental e urgente o restabelecimento da passagem, a fim de evitar que os AA. continuem a sofrer danos cada vez mais irreparáveis;

j. Os AA. têm danos no valor de 3.000,00€, por se terem incomodado e continuarem a afligir-se ao verem-se privados de um direito que lhes assiste, e ao verem praticamente abandonada a parte mais rentável do seu terreno, com despesas de transportes que não teriam de suportar e perda de lucros.


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2.3. Da arguida nulidade da decisão recorrida.

(…)

2.4. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

(…)


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2.5. Enquadramento jurídico.

No presente litígio vieram os apelantes peticionar a constituição de uma servidão de passagem, pelos fundamentos oportunamente expostos na petição inicial.

Os ora recorrentes sustentaram que o referido direito real teria sido adquirido por via de usucapião, o que foi contestado pelos apelados, com base na argumentação que integra o correspondente articulado.

Como é sabido, o art. 1547º, nº1, do Código Civil [1], permite a constituição de servidões através do conhecido instituto da usucapião, sendo necessário, por esse motivo, que estejam reunidos os pressupostos a que aludem os arts. 1287º e 1296º do mesmo Código.         

Dispõe o citado art. 1287º que “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”.

Por sua vez, o referido art. 1296º prescreve o seguinte: “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé.” [2].

A par dos requisitos, de carácter objectivo, que o legislador consagrou (posse durante o lapso temporal que referimos) é ainda exigido um elemento subjectivo [3], que se prende com intenção, por parte do possuidor, de agir como beneficiário direito real em causa [4].

Não existindo esse propósito, considera-se que não estamos perante um verdadeiro possuidor, mas sim perante ou detentor ou possuidor precário.

É o que resulta do art. 1253º do Código Civil, cuja redacção integral é a seguinte:

São havidos como detentores ou possuidores precários:

a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;

b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.” [5].

Face a este regime, o detentor não pode adquirir, por via de regra, o respectivo direito real, salvo nos casos previstos no art 1290º, igualmente do Código Civil, o qual prescreve o seguinte:

Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.” [6].

Revertendo para o caso dos autos, verifica-se que o Tribunal a quo, de forma correcta, face à factualidade relevantemente provada – acervo que não sofreu alterações em sede de recurso –, entendeu que não estavam reunidos os pressupostos da usucapião.

Com efeito, os apelantes têm utilizado o caminho descrito nos autos ao abrigo de uma autorização que lhes foi concedida pela anterior proprietária do imóveel onde o mesmo se situa, o que significa que os recorrentes são possuidores ou detentores precários, com os efeitos daí resultantes, designadamente no que diz respeito à impossibilidade (legal) de verem constituída a seu favor uma servidão de passagem.

Não está demonstrado que tenha existido inversão do título da posse, pelo que os actos materiais praticados sobre o prédio que se encontra na titularidade dos apelados não têm a virtualidade de constituir, através de usucapião, o direito real em apreço.

Nesta conformidade, deve o recurso improceder, com as legais consequências.


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III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 14 de Janeiro de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Francisco Costeira da Rocha

(1º adjunto)

Sílvia Pires

(2ª adjunta)



[1] A redacção integral do art. 1547º, nº1, do Código Civil, é a seguinte: “As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.”.
[2] O art. 1260º do Código Civil estabelece o seguinte quadro sobre esta matéria:
1. A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem.
2. A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé.
3. A posse adquirida por violência é sempre considerada de má fé, mesmo quando seja titulada.”.
[3] Neste sentido, cf., a título meramente exemplificativo, os seguintes Arestos, todos do STJ:
- Acórdão de 23/10/2007 (relator Azevedo Ramos), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2007:07A3050.F5/,;
- Acórdão de 21/10/2010 (relator Barreto Nunes), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2010:120.2000.S1.8B/
- Acórdão de 7/2/2013 (relator Serra Baptista), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2013:1952.06.2TBVCD.P1.S1.34/.
[4] Como salienta Mota Pinto (“Direitos Reais”, 1971, pág. 183,“O outro elemento da posse é o “animus”, que se traduz num elemento de natureza psicológica”. É necessário para haver posse, além desta situação material de exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos realizados.”
No mesmo sentido, cf. Henrique Sousa Antunes, “Direitos Reais”, reimpressão, 2023, págs. 291 a 304, e A. Santos Justo, “Direitos Reais, 8ª edição, 2023, pág. 173.
[5] Sobre as situações que a norma prevê, cf. Pires de Lima/Antunes Varela/M. Henrique Mesquita, “Código Civil Anotado”. Vol. III, 2ªe edição revista, reimpressão, 1987, págs. 8 a 11.
[6] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela/M. Henrique Mesquita, ob. cit., página 69.