Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | DIREITO DE QUEIXA COMPARTICIPAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 09/08/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE SANTA COMBA DÃO – 2º J | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 113º E 114º CP | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. O art. 113º do CP regula a legitimidade para o exercício da queixa, dispondo sobre a titularidade e condições de exercício do respectivo direito. 2. O art. 114º do CP, por seu turno, dispõe sobre a extensão dos efeitos da queixa, estipulando que basta a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes. Esta norma tem a ver não tanto com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. 3. O autor do crime até poderá ser desconhecido do queixoso no momento da apresentação da queixa, assim como poderá ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito. 4. A expressão procedimento criminal utilizada no art. 114º do Código Penal tem essencialmente o sentido de investigação ou inquérito. Fundamental para o início do procedimento criminal, para a abertura do inquérito por crime de natureza semi-pública, é apenas e tão-só a apresentação de queixa. 5. O M.P. tem legitimidade para praticar os actos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal. 6. Averiguada em inquérito por crime semi-público a existência de comparticipantes não denunciados, deve o M.P., antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos. 7. Não exigindo a validade da queixa uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal, a dedução de pedido cível contra os comparticipantes, efectuada em tempo para a apresentação da queixa, imputando-lhes os factos com relevância criminal, fazendo apelo ao respectivo conhecimento da violação da lei penal, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal contra o co-arguido. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO:
Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos: (…) (…)
Inconformados, recorrem os arguidos retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões: 1. Tendo sido deduzida acusação particular contra o arguido J... contra quem não foi dirigida nem formalizada queixa, manifesto é que o Ministério Público extravasou a sua competência e ultrapassou a sua legitimidade, estando a acusação contra aquele ferida de nulidade insanável por violação do art. 212°/3 do CP e arts 48º e 49° do CPP; 2. Acresce, ainda, que se verifica a excepção peremptória da caducidade e extinção do direito de queixa contra o arguido J..., o que se invoca, segundo o principio geral "tempus regit actum" – art. 115º do CP., pois entre a data dos factos e a constituição de arguido decorreu prazo superior a seis meses; 3. A queixosa e H..., testemunha arrolada na acusação e no pedido civil são casados entre si e proprietários da casa de habitação, bem que se presume comum do casal, titulares e lesados do pretenso direito violado, pelo que deveriam deduzir o pedido civil conjuntamente, mas não o tendo feito é a demandante civil parte ilegítima, com a consequente absolvição dos arguidos da instância quando à acusação pelo crime imputado bem como do pedido civil, violando assim a decisão recorrida o disposto nos arts 71º, 74° do CPP, e art. 483° do CPC.; 4. O forno demolido não era coisa alheia, era bem próprio dos arguidos incorporado materialmente no solo do prédio rústico propriedade destes de que haviam tomado posse há cerca de 20/25 anos, quando por partilhas verbais o receberam do pai da arguida, cabeça de casal, algum tempo após a morte da mãe desta, ocorrida em 1980; 5. Partilhas desse e de outros prédios rústicos validadas por acordo de todos os interessados no inventário judicial instaurado em 2005, após o falecimento do pai da arguida ocorrido em 2004; 6. O pai da arguida, como cabeça de casal, anos antes de falecer havia dado autorização à filha para demolir o forno em decadência sem uso nem utilização há mais de duas décadas; 7. A propriedade dos imóveis abrange, além do mais, tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei, ou negócio jurídico, nos termos do artigo 204°/1 al. e) e nºs 2 e 3 do Cód. Civ. gozando o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – art.s 1305º do CC; 8. Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional - art. 1306°/1 do CC,; 9. Em sede de inventário judicial, acordaram todos os interessados que da casa de habitação, descrita sob a verba 14 da relação de bens, adjudicada pela interessada ora recorrida, fazia parte uma eira, casa da eira e terreno anexo, tudo com cerca de 360 m2, não fazendo constar o forno incorporado no solo do prédio rústico da recorrente delimitado do urbano da recorrida por um muro divisório comum em pedra com 30/40 cm de largura – art. 1371º do CC.; 10. Não se verificam os elementos típicos do ilícito criminal porquanto os factos praticados pelos arguidos não se subsumem nos conceitos de destruição ou desfiguração ou tornar não utilizável coisa alheia da previsão do crime de que vêm acusados; 11. Nos termos do art. 212º/l do CP., o objecto do crime de dano é uma coisa alheia móvel ou imóvel, sendo que o forno dos autos não era coisa alheia, achava-se incorporado/ligado por meio de alicerces ao solo do rústico propriedade plena dos arguidos, não onerado com qualquer tipo/espécie de servidões nominadas ou atípicas, aliás, não alegadas, pelo que os factos praticados não se subsumem em nenhum dos elementos do tipo do crime de dano, além de que este só é punível se tiver subjacente intenção dolosa; 12. Não violaram os arguidos de forma ilícita e culposa coisa alheia nem cansaram dano à recorrida, pois agiram na convicção de que o forno lhes pertencia, como sempre afirmaram e nenhuns elementos de prova dos autos são suficientes para afastar nem abalar a credibilidade da sua versão; 13. O Tribunal a quo não podia admitir e ou basear a sua convicção no depoimento da testemunha H... (marido da queixosa/demandante) por ser parte interessada na causa e também poder depor, estando legalmente impedido de depor como testemunha, nos termos dos arts. 617º e 668°/1, al d) e nº 4 do CPC., o que gera nulidade da sentença; 14. O Tribunal a quo, à luz do princípio da investigação, apesar de recolhidos todos os factos relevantes para a boa decisão da causa não os podia subtrair à "dúvida razoável" e, consequentemente, observar o princípio "in dubio pro reo ", decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência – art. 32º/2 da CRP; 15. O tribunal a quo errou já que violou de forma patente o disposto no art. 410°/2, als. a), b) e c) do CPP., por manifesta insuficiência da matéria de facto provada para decidir que os arguidos houvessem praticado o crime de dano imputado, havendo erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; 16. Quanto ao pedido civil, de acordo com o disposto no art. 496º/2 do CC., no juízo de equidade que sempre preside à fixação do montante indemnizatório, o grau de culpa e as condições económicas do agente e da vitima são elementos, além do mais alegado (excepção da ilegitimidade da mandante e nulidade da prova), critérios que, in casu, não foram tidos em consideração, mostrando-se o quantum da condenação completamente desproporcionado, foge às regras da boa prudência e da justa medida das coisas, pelo que foram violados os art°s 494º e 496º do CC.; 17. Normas violadas: os artigos 212°/1 e 3 do CP.; arts. 48º e 49º do CPP.; art. 115° do CP., arts 71°,74°/1 e 410°/2, als. a), b) e c) e 3 do CPP.; 204°/1, al e) e arts. 2 e 3 e 1305°, 1306º/1 e 1371° e arts 494° e 4960 do CC.; 617° e 668º/1, al. d) e nº 4 do CPC e art. 133°/1 al. c) do CPP e art° 32º/1 da CRP. Termos em que tudo ponderado e com o douto suprimento de Vªs Exªs, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida com a absolvição dos recorrentes do crime de dano em que foram condenados, fazendo-se, assim, inteira justiça!
O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões: - Nulidade insanável da acusação pública deduzida contra o arguido J... por falta de legitimidade do Ministério Público; - Caducidade do direito de queixa; - Ilegitimidade da ofendida, por desacompanhada do respectivo cônjuge; - Falta de verificação dos elementos objectivos do tipo legal de crime; - Violação do princípio in dubio pro reo; - Vícios previstos nas alíneas do art. 410º, nº 2, do CPP; - Desajustamento da indemnização cível arbitrada.
* *
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
* *
Vejamos a primeira questão suscitada, qual seja, a da nulidade insanável da acusação pública deduzida contra o arguido J... por falta de legitimidade do Ministério Público. Sustentam os recorrentes que a M… apresentou queixa apenas contra a arguida e ora recorrente G…, em parte alguma dos autos se vislumbrando que tenha sido apresentada também queixa contra o recorrente J.... Exigindo o art. 212º, nº 3, do Código Penal, a apresentação de queixa pelo crime de dano como pressuposto de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação e vistas as limitações à sua legitimidade consagradas nos arts. 49º a 52º do Código de Processo Penal, não deveria a acusação contra o J... ter sido recebida, padecendo assim o processo de nulidade insanável. A resposta do Ministério Público, acompanhada, aliás, pela ofendida, sustentou-se na consideração de que o nosso sistema processual penal há muito adoptou o princípio da extensão dos efeitos da queixa contra um dos comparticipantes, consagrado no art. 114º, pelo que a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, concluindo pela sua legitimidade para o exercício da acção penal contra o arguido. Estamos, indiscutivelmente, no domínio dos crimes semi-públicos, já que o art. 212º, nº 3, do Código Penal impõe expressamente a apresentação de queixa como pressuposto do procedimento criminal. A questão colocada pelo recurso neste particular aspecto vem a traduzir-se fundamentalmente em saber como se articulam as normas vertidas nos artigos 114º e 115º, nº 3, do Código Penal. Estipula o primeiro daqueles normativos que “a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”. Por seu turno, o nº 3 do art. 115º dispõe que “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”. Como interpretar estas duas normas, à primeira vista inconciliáveis? As normas em questão incluem-se ambas no Título IV do Livro I do Código Penal, que versa o tema da queixa e acusação particular. Não se oferece como razoável uma interpretação que procure ver naquela aparente incompatibilidade uma contradição, tanto mais que por força do art. 9º, nº 3, do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. O argumento de ordem sistemática aponta, pois, para a necessidade de encontrar a lógica daquelas estatuições legais numa perspectiva de complementaridade e não de confronto. A evolução histórica do preceito permite verificar que no Código Penal de 1982 o não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime era regulado a par da desistência de queixa. Dispunha então o art. 114º, nº 3, que “a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveitam aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa”. A autonomização da regulamentação destas duas situações – desistência de queixa e não exercício tempestivo contra um dos comparticipantes – verificou-se com a entrada em vigor do DL nº 48/95, de 15 de Março, que procedeu à revisão do Código Penal. O nº 2 do art. 115º, na redacção desse diploma, correspondia à redacção do actual nº 3 e visou consagrar autonomamente o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime, na base da constatação de que em direito penal o que releva é o crime, não sendo admissível escolher quem deverá ser perseguido em caso de comparticipação [1]. A resposta à questão suscitada há-de encontrar-se necessariamente na interpretação teleológica da norma, reportada ao fim ou objectivo por ela visado, em contraponto com a demais regulamentação do sistema. O traço distintivo resulta com clareza da análise global do Título IV do Livro I do Código Penal, como se verá já de seguida. A primeira norma deste título, o art. 113º, regula a legitimidade para o exercício da queixa, dispondo sobre a titularidade e condições de exercício do respectivo direito. O art. 114º, por seu turno, dispõe sobre a extensão dos efeitos da queixa, estipulando que basta a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes. Esta norma tem a ver não tanto com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. O autor do crime até poderá ser desconhecido do queixoso no momento da apresentação da queixa, assim como poderá ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito. A expressão procedimento criminal utilizada no art. 114º do Código Penal tem essencialmente o sentido de investigação ou inquérito. Fundamental para o início do procedimento criminal, para a abertura do inquérito por crime de natureza semi-pública, é apenas e tão-só a apresentação de queixa. Apresentada esta apenas contra um dos comparticipantes, os seus efeitos estendem-se aos demais. O que não significa, no entanto, que essa extensibilidade afaste ou exclua o funcionamento dos demais pressupostos de validade. Se é certo que o M.P. tem legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal contra os comparticipantes na fase de inquérito com base na apresentação de queixa contra apenas um deles, em bom rigor já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado do princípio da indivisibilidade a que antes aludimos e é esse o alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal. Na verdade, os arts. 115º e 116º regulam os três modos distintos de extinção do procedimento criminal – extinção do direito de queixa por caducidade (decorrente do não exercício tempestivo do direito), nos termos previstos no art. 115º; renúncia, nos termos previstos no art. 116º, nº 1; e desistência, conforme o previsto no art. 116º, nº 2 – enquanto que o art. 114º é uma norma claramente virada para a investigação a desenvolver numa fase anterior à acusação. Ora, resulta dos autos que a ofendida inicialmente apresentou queixa exclusivamente contra a arguida G.... A comparticipação de J..., marido da arguida, veio a ser apurada no decurso do inquérito (resultou da inquirição da testemunha D..., a fls. 36), tendo conduzido à sua constituição como arguido. Sem precedência de notificação à ofendida para, querendo, apresentar queixa contra o comparticipante identificado no decurso do inquérito (em bom rigor, impunha-se a realização dessa notificação), o M.P. deduziu acusação contra ambos os arguidos (fls. 96). A ofendida foi notificada da dedução de acusação (fls. 107), presumindo-se que só com essa notificação tomou conhecimento da responsabilidade do co-arguido, e deduziu pedido de indemnização civil contra ambos os arguidos (fls. 120). Quando o fez estava em tempo para apresentar queixa contra o comparticipante. E a dedução de pedido cível nos termos em que foi feita, reportando-se a ambos os comparticipantes como arguidos, imputando-lhes os factos com relevância criminal, fazendo apelo ao respectivo conhecimento da violação da lei penal, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal contra o co-arguido. Com essa actuação, sanou o vício de que padecia a acusação, decorrente da falta de verificação de um pressuposto processual. Na verdade, a validade da queixa não exige uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal [2].
Ainda na linha da questão acabada de tratar, invocam os recorrentes a caducidade do direito de queixa contra o arguido J.... Também neste particular aspecto não lhes assiste razão, como, aliás, já se deixou antever. Tanto quanto resulta dos autos, apenas com a notificação da acusação deduzida, notificada à ofendida por notificação postal simples com prova de depósito expedida em 02/06/2009, esta tomou conhecimento da comparticipação. Só então se iniciou o prazo de 6 meses para apresentação de queixa contra o co-autor. Em 24/06/2009, deu entrada em juízo o pedido de indemnização cível que, como se referiu, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal também contra o arguido J.... Consequentemente, não ocorreu caducidade do direito de queixa.
Passemos, pois, à questão seguinte, ainda uma questão de legitimidade, desta feita reportada à pessoa da queixosa M…, com fundamento no facto de esta ser casada com H..., tendo adquirido a casa de habitação em que se situava o forno destruído em inventário, sendo de presumir que se trata de bem comum do casal, pelo que o procedimento criminal, para ser eficaz, dependeria também da apresentação de queixa pelo marido da queixosa. É manifesta a falta de razão que assiste aos recorrentes. Estando em causa procedimento criminal por crime de natureza semi-pública, o art. 113º, nº 1, do Código Penal resolve a questão suscitada, atribuindo expressamente legitimidade para apresentação de queixa ao ofendido, considerado como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Por outro lado, nos crimes contra a propriedade, o proprietário tem evidente legitimidade para a apresentação de queixa, bastando, nos casos em que o direito de propriedade pertença a mais do que uma pessoa, que qualquer dos titulares do direito de queixa o exerça, para desencadear o procedimento criminal e para legitimar a dedução do pedido cível visando a indemnização pelo prejuízo sofrido. No caso vertente a ofendida é a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e foi lesada pelos factos praticados, já que sofreu danos ocasionados pelo crime, daí resultando a sua legitimidade tanto para a queixa que apresentou como para o pedido cível formulado (arts. 113º, nº 1, do Código Penal e 74º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Os arguidos pretendem discutir a questão da propriedade do forno que destruíram alegando que não se tratava de coisa alheia, pondo assim em causa a verificação de um dos elementos objectivos do tipo legal de crime que lhes foi imputado, já que o crime de dano previsto no art. 212º, nº 1, pressupõe o carácter alheio da coisa destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada. Contudo, esta é questão de facto que teve resposta do tribunal recorrido na consideração do forno como propriedade da ofendida (facto provado nº 1) e que não foi especificamente impugnada nos termos legais – os recorrentes não observaram o formalismo previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP. De resto, os recorrentes confundem manifestamente a propriedade do forno com a propriedade do terreno onde aquele se encontrava implantado. As considerações de direito que tecem a esse propósito poderiam revelar-se pertinentes em eventual acção cível em que se discutisse a propriedade do terreno, mas são totalmente desajustadas no caso que agora cuidamos de apreciar. Acresce que não tinha a ofendida que alegar e provar factos tendentes à demonstração da sua posse sobre o forno com vista a daí retirar quaisquer conclusões sobre o seu direito de propriedade, como pretendem os recorrentes. Estamos no domínio do processo penal e a acusação tinha apenas que se limitar a indicar quem era o proprietário do forno, na perspectiva da acusação deduzida. Também no pedido cível não era exigível mais, já que a prova da propriedade do forno decorrente do alegado em sede criminal satisfaz o correspondente pressuposto na vertente do direito à indemnização pelos danos sofridos. Questão distinta é a de saber se o descrito na acusação corresponde ou não à verdade. Contudo, esta é questão que não respeita à nulidade ou validade da acusação e do pedido cível deduzidos, mas sim à prova e à consequente responsabilidade penal dos arguidos, ou à ausência dela. De todo o modo, a motivação da decisão de facto exarada na sentença revela uma análise cuidada, com clara indicação dos meios de prova de que o tribunal se serviu, procedendo ao seu exame crítico com pleno respeito pelas regras da experiência comum, não se vislumbrando quaisquer razões que permitam questionar as conclusões vertidas na matéria de facto, seja no que concerne à propriedade do forno, seja no que respeita à convicção com que os recorrentes agiram, seja relativamente a qualquer dos demais factos considerados como provados.
No fundo, os recorrentes não impugnam o provado com base na falta de elementos de prova ou numa valoração absolutamente ilógica da prova produzida, mas sim com base na valoração que eles próprios fazem da prova produzida, questionando a livre convicção do tribunal recorrido. Nos termos em que formulam a sua impugnação o que os recorrentes pretendem é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que eles próprios entendem que deveria ter sido a retirada da prova produzida, essencialmente com base nas suas próprias declarações, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso [3]. Acresce ainda que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” [4], razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum [5]. Com efeito, ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” [6]
Numa outra vertente, dizem os recorrentes nas suas conclusões que “o Tribunal a quo não podia admitir e ou basear a sua convicção no depoimento da testemunha H... (marido da queixosa/demandante) por ser parte interessada na causa e também poder depor, estando legalmente impedido de depor como testemunha, nos termos dos arts. 617º e 668°/1, al d) e nº 4 do CPC., o que gera nulidade da sentença” (conclusão 13). Ora, esta não é uma verdadeira «conclusão» do recurso, já que foca aspecto não tratado na motivação. As conclusões devem constituir o resumo sintético da motivação do recurso. É essa a conformação que lhes é apontada pelo nº 1 do art. 412º do Código de Processo Penal e que serve, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso [7], operando a vinculação temática do tribunal superior pela definição do âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem. Mas, se por um lado, as conclusões delimitam o âmbito do recurso, por outro lado, precisamente porque devem constituir uma síntese da motivação, não podem abordar questões não tratadas na motivação. Se o fizerem, como sucede no caso em análise, tais questões não serão conhecidas, por as “conclusões” correspondentes não traduzirem a síntese de matéria antes tratada no corpo da motivação.
Prosseguem os recorrentes invocando violação do princípio in dubio pro reo. Contudo, a prova produzida, tal como foi analisada e explicitada, não gerou qualquer dúvida que devesse levar à consideração dos factos como não provados. Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com pleno respeito pelos princípios que disciplinam a prova sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação desse princípio que, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [8]. No caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação do provado, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando coerentemente os elementos que serviram para fundar a convicção do tribunal. O posicionamento dos recorrentes, sustentando que deveria ter sido outro o quadro factual provado encontra-se totalmente à margem do condicionalismo legal. O erro notório na apreciação da prova em que se traduziria a violação do in dubio pro reo não reside na desconformidade entre a decisão de facto assumida pelo julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente - carecendo esta última de qualquer relevância jurídica - verificando-se apenas quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar da motivação invocada uma conclusão diversa da que foi extraída pelo tribunal recorrido na fixação da matéria de facto. Nesta perspectiva, a violação do princípio em questão apenas poderia ser afirmada se, face aos factos que a 1ª instância teve como provados e aos respectivos fundamentos, se evidenciasse que, na dúvida, o tribunal recorrido tinha optado por decidir contra o arguido. Ora, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum. Consequentemente, não ocorre violação daquele princípio nem foi beliscado o preceito constante do art. 32º, nº 2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa.
Os recorrentes visaram ainda nas suas conclusões os vícios previstos nas als. a), b) e c) do art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Na motivação abordaram apenas o erro notório na apreciação da prova. Trata-se, no entanto, de matéria que se encontra no âmbito dos poderes de conhecimento oficioso da instância de recurso [9], pelo que de todos conheceremos. Conforme expressamente resulta do nº 2 do citado art. 410º, os vícios referidos nas respectivas alíneas a) a c) apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [al. a)], que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [10]. O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão. Por fim, a al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [11]. Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta qualquer daqueles vícios. Na verdade, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos elementos a que atribuiu relevância, explicitando um critério lógico, coerente e objectivo. Os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão que veio a ser adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão, não denotando a sentença em crise, seja pelo seu teor literal, seja por recurso às regras da experiência comum, qualquer erro evidente e imediatamente detectável na valoração da prova
Quanto ao pedido cível, o valor da indemnização por danos patrimoniais foi fixado de acordo com a prova produzida, não merecendo qualquer censura. Já o montante correspondente aos danos não patrimoniais foi equitativamente fixado em € 1.000,00 (mil euros), actualizado à data da decisão em primeira instância, valor que se oferece como ajustado às circunstâncias do caso, sendo de manter sem reservas.
* *
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a douta sentença recorrida. Por terem decaído integralmente em recurso que interpuseram, condenam-se os recorrentes – cada um deles – na taxa de justiça, já reduzida a metade, de 4 UC.
* *
Coimbra, ____________ (texto processado pelo relator e revisto por todos os signatários)
__________________________________ (Jorge Miranda Jacob)
__________________________________ (Eduardo Martins)
|