Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1358/22.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: FURTO DE VEÍCULO
SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS
ÓNUS DA PROVA DA SUBTRACÇÃO
PROVA INDIRECTA
CONTRAPROVA A CARGO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º; 352.º; 356.º; 358.º, 1 E 359.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 607.º, 5, DO CPC
Sumário: I – O tomador de seguro, em acção que intente contra a seguradora para lhe exigir o pagamento da indemnização em função de furto do veiculo, ainda que este tenha ocorrido sem testemunhas e sem deixar vestígios, tem de fazer a prova da subtracção inerente, enquanto facto principal da causa de pedir que invoca.
II – A prova que se lhe exige, e que lhe é possível, é, necessariamente, a indirecta e critica, cabendo-lhe, por isso, à partida, alegar o maior número possível de factos que tornem plausível a existência do furto, de modo a criar, do ponto de vista lógico, a maior verosimilhança que consiga relativamente à sua ocorrência.

III – Atenta a mera alegação pelo tomador de seguro de factos indiciários, não é exigível à seguradora fazer prova positiva e concludente da inexistência do furto, restando-lhe a contraprova relativamente aos factos alegados para neutralizar as aparências invocadas, visando criar no espírito do julgador um estado de dúvida séria relativamente à autenticidade do conteúdo da participação policial do furto.

IV – Caberá ao segurado, para obter a procedência da acção, produzir prova que anule esse estado de dúvida, de molde a gerar no tribunal a convicção de que é mais provável que tenha ocorrido o furto do que não tenha ocorrido.

Decisão Texto Integral:

           Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I – AA , instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra A... SA., pedindo a sua condenação a reconhecer a obrigação de o indemnizar pelos danos patrimoniais decorrentes do furto do veículo no valor de 16.550,00€; pelos danos patrimoniais decorrentes do furto do notebook no valor de 250,00€; pelos prejuízos por si suportados com o cancelamento da matrícula do veículo; pelos danos não patrimoniais, que computa em 1.000,00€; e na sua condenação no pagamento de juros desde a data da citação até efetivo e integral pagamento de todas as quantias.

             Alegou, para o efeito, ter celebrado com a R. um contrato de seguro obrigatário de responsabilidade civil automóvel e seguro facultativo de danos próprios, relativamente à circulação do veículo com a matrícula ..-EC-.. da marca BMW, ... LCI Diesel, versão ..., o qual lhe foi furtado, nas condições de tempo e local por si referidos.

            A R. contestou, defendendo-se por impugnação.

            Teve lugar audiência prévia, na qual foi fixada à causa o valor de € 17.810,00 (dezassete mil oitocentos e dez euros), foi  proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio, seleccionados os temas da prova e admitidos os meios de prova.

            Realizada julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.

             II – Do assim decidido, apelou o A., que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

            I . O presente Recurso vem interposto da Sentença datada de 30-06-2023, a qual julgou a Ação totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.

           II. Salvo o devido respeito pela Sentença ora recorrida, o recorrente entende que não andou bem o tribunal a quo ao decidir como decidiu.

          III. No dia 9-11-2022, teve lugar a audiência prévia, em que o A. aceitou por acordo os factos alegados em contestação que coincidiam com os factos da petição inicial.   

IV. O A. pretendia, ao abrigo do princípio da cooperação, contribuir para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (artigo 7.º do CPC).

           V. Não pretendia o A. contrariar a própria pretensão, desfazendo-se tanto dos factos essenciais como dos factos instrumentais da causa de pedir imprimida na petição inicial que havia apresentado, porquanto, conforme determina o artigo 5.º do CPC, “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.”

           VI. Ora, o A. pretendia confirmar as informações relativas: ao contrato de seguro e ao veículo sua propriedade, à sua rotina habitual (veículo mais utilizado, rotas diárias e estacionamento habitual), às chaves do veículo que tinha na sua posse, ao resultado das inspeções - decorrente da prova documental, e as comunicações e interações com os funcionários da Ré, nomeadamente, o que lhe foi transmitido, o que apreendeu e a impressão com que os funcionários da Ré ficaram.

            VII. Concretamente, quanto ao ponto 17 dos factos dados como provados (art. 32º da contestação): o A. pretendeu confirmar que estacionava, muitas vezes, o veículo no estacionamento interior do Posto da GNR onde trabalhava.

           VIII. Não quis, de todo, transmitir que estacionava “sempre” o veículo no estacionamento interior - aliás, conforme explanou aos funcionários da R. (averiguadores), e, nos presentes autos, na petição inicial apresentada e em sede de declarações de parte, não existia regra quanto ao estacionamento, o A. estacionava no exterior quando não existia estacionamento no interior, no horário de trabalho que iniciava às 16h.

           IX. Concretamente, quanto aos pontos 25, 26, 32 e 33 dos factos dados como provados (arts. 52º, 55º, 67º, 68º da contestação): o A. pretendeu confirmar que utilizava sempre a mesma chave através do comando, e nunca utilizou a ranhura; por esse motivo, nunca se apercebeu que uma chave não tinha ranhuras, nem se apercebeu que não era original da marca; ao ser confrontado pelo funcionário da Ré (averiguador), ficou, efetivamente, confuso e surpreendido.

           X. Esta é a extensão do que pretendia o A. declarar, quando questionado em sede de audiência prévia. O A., ao ouvir a explicação do funcionário da Ré (averiguador), compreendeu que as duas chaves eram efetivamente diferentes e compreendeu ainda que havia a possibilidade de existir outras chaves (nomeadamente, de anteriores proprietários).

            XI. O A. não aceita o teor dos factos na interpretação dada pela Mma. Juiz na recorrida sentença.         

           XII. Os factos referidos assumidos por acordo contrariam a prova produzida em audiência.

           XIII. A Mma. Juiz a quo conheceu parcialmente do mérito da causa no despacho saneador, sem ter analisado provas essenciais apresentadas, quer com os articulados, quer em audiência final.

         IV. Não se encontrava, naquele momento, por tal, já habilitada, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.

           XV. O A. não compreendeu o alcance da aceitação daqueles factos.

           XVI. Assim sendo, a sentença proferida consiste numa decisão-surpresa, na parte em que sobrevaloriza e erradamente interpreta a vontade declarada do A.~

           XVII. Com todo o respeito que é devido, existe erro na interpretação da vontade do autor na audiência prévia que tomou lugar.

           XVIII. Esse erro originou a sobre valorização dos factos alegadamente aceites em audiência prévia.

            XIX. E inutilizou prova feita a favor da pretensão do A..

           XX. Sem que esse se tivesse apercebido, até ao momento da prolação da sentença.         

XXI. O Autor, aquando da data da audiência prévia, nem sequer compreendeu a interpretação que estava a ser dada às suas palavras.

             XXII. Na prática, a vontade real não correspondeu à vontade declarada, ou melhor, interpretada.

            XXIII. O Tribunal a quo, no despacho saneador, não advertiu as partes de que o mesmo serviria para a prolação de saneador sentença, ou seja, que os artigos da contestação estavam dados como provados integralmente,

            XXIV. Pois não dispensou a prova dos mesmos, em audiência final.

           XXV. Impunha-se uma advertência às partes, de modo a assegurar que não iria existir uma decisão surpresa, como sucedeu,

           XXVI. E para garantir que as mesmas pudessem exercer convenientemente o seu direito ao contraditório,

           XXVII. Situação que constitui uma nulidade insanável. Porquanto,

            XXVIII. É nula a sentença que viole o princípio da proibição das decisões-surpresa, consagrado no art.º 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

             XXIX. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.

           XXX. A decisão proferida violou o princípio da proibição das decisões surpresa, consagrado no art.º 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que se consubstancia na interdição das decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

           XXXI. Impugnável por meio de recurso, conforme admite o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2019 (14227/19.8T8PRT.P1).

           XXXII. Acresce que, o A. fez prova dos factos constantes da PI, o que demonstra que a vontade real do mesmo não era confirmar os factos descritos na contestação da ré (os transcritos supra), na interpretação que foi dada.

           XXXIII. O A. pretendia, tão-só, colaborar com a justiça, confirmando as circunstâncias relativas ao contrato e relativas ao teor da conversa com o averiguador da Ré, BB.

           XXXIV. Em sede de despacho saneador, a Mma. Juiz a quo decidiu que: “Considerando que a factualidade constante dos arts.: - 3o, 5o, 6o, 15o a 20o da p.i. está provada por acordo”

           XXXV. Sem esclarecer, na mesma sede, qual interpretação dada às palavras do A. O que não permitiu, a respetiva reclamação por parte do A., querendo, caso se tivesse apercebido que tinha sido mal interpretado).

            XXXVI. E sem dispensar a produção de prova para os referidos factos.

           XXXVII. Ademais, porque ao A. cabe o ónus de prova dos factos que constituem fundamento da ação, conforme determinado pelo art. 342.º do CC, o A. apresentou testemunhas, juntou prova documental (superveniente), e alegou, em sede de audiência final.

           XXXVIII. Em sede de Sentença, tomou-se a assunção pelo Autor da referida factualidade imprimida na Contestação, para suportar uma interpretação extensiva, não coincidente ao que pretendia o Autor,

             XXXIX. A leitura atenta da decisão imprimida na Sentença ora recorrida faz notar que houve uma interpretação extensiva dos factos dados como provados “por acordo” em Audiência Prévia, nomeadamente, nos seguintes excertos: “Os factos constantes: - dos pontos 2) a 4), 6), 8) a 11) e 13) a 34) dos factos provados estão-no por acordo – vd. Acta da Audiência Prévia, em que a respectiva factualidade foi expressamente aceite.”

             XL. Aliás, aqueles factos dados como provados sustentaram inteiramente a decisão vertida em sentença, diretamente nos factos dados como provados transcritos supra e indiretamente no caso dos factos dados como não provados relativos à verificação do furto do veículo.

            XLI. Foi dado como provado o Facto 17, no entanto, conforme já se referiu, não sobrou provado que o Autor estacionava sempre o EC (e o Audi Q7 de que é proprietário) dentro do parque interior do Posto da GNR.

           XLII. Entendeu a Mma. Juiz a quo dar como provado por acordo.

            XLIII. No entanto, prova em contrário foi realizada.

           XLIV. E nenhuma prova que comprovasse que o A. estacionava “sempre” o veículo no interior do parque foi realizada (os averiguadores referiram-se, claro, ao estacionamento habitual do A., tendo por base o que lhes foi transmitido pelo A. e colegas).

           XLV. Quanto ao Facto 25, também foi considerado “automaticamente” provado através um raciocínio automatizado entre o facto (erradamente, porque contrário à vontade real do A.) dado como provado em sede de audiência prévia e a tese de “questionamento” apresentada pela Ré (para não assumir a responsabilidade que fora transferida).

           XLVI. Acontece que, o A., concretamente, quanto aos pontos 25, 26, 32 e 33 dos factos dados como provados (arts. 52º, 55º, 67º, 68º da contestação): pretendeu confirmar que utilizava sempre a mesma chave através do comando, e nunca utilizou a ranhura; por esse motivo, nunca se apercebeu que uma chave não tinha ranhuras, nem se apercebeu que não era original da marca; ao ser confrontado pelo funcionário da Ré (averiguador), ficou, efetivamente, confuso e surpreendido.

           XLVII. Esta é a extensão do que pretendia o A. declarar, quando questionado em sede de audiência prévia. O A., ao ouvir a explicação do funcionário da Ré (averiguador), compreendeu que as duas chaves eram efetivamente diferentes e compreendeu ainda que havia a possibilidade existir outras chaves (nomeadamente, de anteriores proprietários).

             XLVIII. Quanto ao Facto 28, novamente, as declarações do A. em audiência prévia foram interpretadas abusivamente, influenciando a decisão da causa, o que apenas se tornou claro no momento da prolação da sentença.

           XLIX. O A. aceitou expressamente o que decorria dos documentos admitidos, nomeadamente, os registos dos quilômetros percorridos demonstravam uma discrepância.

             L. Situação que o A. explicou dever-se ao facto de o veículo ter sido sujeito à alteração do quadrante, o que provocou uma redução no número de quilómetros registados

           LI. Situação que comprova o facto dos quilómetros registados para o ano anterior ao último registo serem tão reduzidos.

           LII. Ou seja, o A. quis confirmar que usou o veículo discutido nos autos diariamente, mas que não é possível concluir tal facto dos registos numéricos.

            LIII. O Facto 29 é assumido pelo A. (transversalmente em todas as suas intervenções processuais) na parte que inicia em “referiu”.

           LIV. Porque conclusivo o Facto 31 também foi dado como provado. No entanto, o A. nunca pretendeu “admitir” que “faltou à verdade” mas tão somente que era verdade que se deslocava diariamente no veículo e que (ainda que não coincidentemente) os registos numéricos não correspondiam à utilização real do mesmo,

            LV. E que aquele foi o teor da conversa tida com o averiguador da Ré.

           LVI. Todos referem que era o carro usado habitualmente para levar as filhas à escola e ir para o trabalho.

           LVII. Na sentença recorrida, denota-se um aproveitamento do Facto 32 aceite pelo A. em audiência prévia (atente-se ao que já se expôs sobre a discrepância entre a vontade declarada e a vontade real do A.), para concluir que “é de molde a questionar o mencionado furto”.

             LVIII. O A. pretendia aceitar o facto até “dito veículo”.

             LIX. Mais uma vez, o A. não pretendeu confirmar que “ocultou À Ré” qualquer facto, mas tão só que aquele foi o teor da conversa tida com o averiguador da Ré.

           LX. O Facto 33 é totalmente verdade, só não é verdade a conclusão que foi retirada da assunção pelo A. Na verdade, o A. ficou atrapalhado, porque efetivamente nunca se tinha apercebido que a chave não estava lavrada. Nunca tinha utilizado a ranhura da chave.

             LXI. Acresce que, conforme sobra provado através do Doc. 5 junto com a Contestação, o veículo teve 8 (proprietários).

           LXII. Por tudo quanto se expôs, se denota que foi feita prova bastante no sentido de contrariar a convicção do que o tribunal recorrido tinha compreendido como assumido por acordo.

           LXIII. Os factos exatamente como expostos em contestação foram dados como provados de forma neutra, conforme se explanou. Interpretar a atitude colaborativa do A. como foi interpretada, sabota a sua pretensão e agride a sua margem de defesa.

           LXIV. A interpretação feita pelo tribunal recorrido da norma jurídica constante do artigo 6.º, n.º 1 (dever de gestão processual) no sentido de basear a decisão final da causa na assunção pela parte de factos contrários à prova que vem produzindo e prejudiciais à sua pretensão deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP).

            LXV. Por outro lado, o tribunal quo porque decidiu praticamente tendo por base os factos dados como provados por acordo em sede de audiência prévia, desconsiderou a (suficiente) prova produzida em audiência final.

           LXVI. Quanto à verificação do furto, a sentença recorrida entendeu dar como não provado os seguintes factos: “No dia 15-06-2021 o veículo segurado foi furtado na via pública (art. 7º da p.i.)” e “No fim do turno, cerca das 00:00 horas e quando se deslocava em direção ao seu veículo para regressar a casa, o A. constatou que o mesmo tinha sido furtado (art. 12º da p.i.).”

           LXVII. O A. nunca escondeu, ele próprio, a sua estranheza às circunstâncias em que o veículo foi furtado.

           LXVIII. As difíceis circunstâncias em que ocorreu o furto do veículo não são motivo suficientemente forte (ou digno, sequer) para justificar o afastamento da responsabilidade da companhia de seguros Ré.

           LXIX. A estranheza que causa este incidente (que é o mesmo que dizer: a astúcia dos ladrões) não pode, basear a decisão final, conforme aconteceu na sentença recorrida.

            LXX. A figura da “dúvida” não tem lugar primordial no processo civil.

           LXXI. Acresce que a sentença recorrida desconsiderou, por completo, o meio de prova junto em audiência final pelo A., nomeadamente, conforme se lê na ata de 20 de março de 2023, “a notícia do jornal de noticias de Coimbra, datada de ontem, 19/3/2023, referente ao assalto de viaturas, uma delas a 5 metros do posto da GNR de Miranda de Corvo, para demonstrar que se trata de uma situação usual e reiterada e demonstrando que o local onde a viatura se encontra estacionada, não tem influência para a prática de crimes, relativa às mesmas, nomeadamente furto e assaltos.”

            LXXII. A prova superveniente é relevante pois demonstra que as circunstâncias dificultadas à prática do furto não determinam a sua inocorrência por completo.

            XXIII. A notícia deveria ter sido convenientemente considerada. Ao invés, foi sobrevalorizada as descrições (parciais e interessadas) dos averiguadores da Ré (testemunhas) da dificuldade de furtar modelos de veículos da marca em questão.

           LXXIV. Lê-se, na sentença que: “Começando pela dificuldade inerente à subtracção de um veículo daquela marca e modelo, a testemunha CC, averiguador de sinistros, descreveu de forma pormenorizada os diversos passos e obstáculos que um ladrão, ainda que com perícia, experiência e conhecimentos técnicos, teria que vencer para se introduzir no habitáculo do veículo em questão e o retirar do local onde estaria imobilizado.”

           LXXV. Descrições, como se entende, teórico-técnicas, sem lugar como real meio de prova em que se sustenta a decisão.

           LXXVI. Embora, conforme se lê na sentença recorrida “estas circunstâncias tornam especialmente arriscado perpetrar um furto de veículo à porta do Posto da GNR de Souselas e a 25 metros do Comando Territorial de Coimbra da GNR, numa artéria citadina e com constante movimento de pessoas e veículos nas suas imediações”, arriscado não é sinónimo de impossível.

           LXXVII. No entanto, as mesmas testemunhas da Ré, referiram (em consonância com o documento junto em audiência - e infelizmente ignorado) ter conhecimento de vários furtos de BMW’s na mesma zona de Coimbra, na mesma altura.

             LXXVIII. Razão pela qual deveria ter sido considerada a prova documental superveniente junta em audiência, pois traduz que, embora técnica e circunstancialmente inexplicável naquele tribunal, é possível realizar um furto de automóvel, nas “barbas” da polícia e que o veículo em discussão nos presentes autos corresponde a um modelo frequentemente furtado.

           LXXIX. O facto dado como não provado “Em 15-6-2021, o veículo referido em 1) tinha um valor comercial não inferior a € 16.550,00 (art. 3º da p.i.).” vem provado no documento 1 junto com a Petição Inicial que demonstra que o montante segurado foi € 16.550,00.

           LXXX. Não assumir que o valor real do veículo é o valor segurado contradiz, aliás, o douto entendimento plasmado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 22- 11-2018 (18262/17.2T8LSB.L1-2), porquanto, o mesmo sumariza o seguinte: “O valor dado a um veículo automóvel para efeitos de seguro que possa ser imputado à organização de meios de uma seguradora, designadamente pela introdução de dados do veículo num sistema informático utilizado pela mesma, precedida de uma vistoria, e que é aceite pelo segurado, corresponde ao valor real do veículo e/ou pode ser considerado como sendo um valor obtido por acordo antecedido de uma perícia (um sucedâneo do acordo previsto no art. 131 da LCS), pelo que, por regra, não tem razão de ser a invocação de falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real ou de falta de acordo quanto ao valor (sendo que essa invocação, pela seguradora, nestas circunstâncias, sempre se poderia dizer manchada pelo abuso de direito: art. 334 do CC).”

            LXXXI. A sentença recorrida não se refere ao motivo pelo qual não considerou como provado o valor comercial do veículo.

           LXXXII. Entretanto, acresce que o veículo beneficiou de alterações (ou “extras”) e encontrava-se em ótimo estado de conservação

           LXXXIII. Motivo pelo qual se entende que o veículo não desvalorizou para além dos € 16.550,00.

           LXXXIV. O A. provou ainda que diligenciou pela procura do veículo!

           LXXXV. Várias testemunhas prestaram o seu depoimento relativamente à participação do furto no posto da GNR de Souselas e às diligências levadas a cabo pelo A.

           LXXXVI. O facto “- O A. tinha dentro do veículo o seu notebook pessoal, avaliado em cerca de 250,00€, atendendo o seu estado de usado (art. 23º da p.i.).” ficou provado

           LXXXVII. O facto “- A recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro participado tem trazido preocupação, nervosismo e insónias ao A. (art. 33º a 35º da p.i.).” ficou provado,

           LXXXVIII. O facto “- O A. não tem dinheiro para comprar outro carro (35º da p.i.).” ficou provado.

             LXXXIX. Os factos “- O A. tinha já vendido o outro carro de que era proprietário e teve que desfazer o negócio, o que causou grande mau estar perante o comprador, pois se assim não fosse ficaria sem qualquer carro para circular e para se deslocar para o trabalho e levar e buscar as suas filhas à escola e às suas atividades (art. 37o da p.i.).” e “O que também se está a traduzir num prejuízo para o A. pois o carro que tinha vendido está a desvalorizar e já não o irá conseguir vender pelo mesmo valor (art. 38o da p.i.).” sobrou provado,

           XC. Por tudo quanto se expôs, deveria ter sido dado como provado a verificação do furto, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas pelo A., porquanto foi realizada prova suficiente.

            XCI. Ao invés, a sentença recorrida, tendeu e atendeu à tese da Ré, baseada nos factos aceites em audiência prévia (em engano do A., quer quanto à extensão da aceitação dos factos, quer quanto à interpretação retirada das declarações);

           XCII. Sobrevalorizou as descrições (parciais e desacompanhadas de meio de prova credível, como seria a pericial) das testemunhas da Ré.

           XCIII. A questão que se coloca é: Que mais prova poderia apresentar o A. para demonstrar que o seu veículo desapareceu? Pois bem,

           XCIV. O Tribunal a quo julgou mal, interpretando e aplicando erradamente o direito ao caso em questão.

           XCV. A Sentença recorrida decide que “Da matéria de facto provada não resulta a subtração do veículo do A. (e do notebook que, alegadamente, se encontrava no seu interior), sem o seu conhecimento e consentimento.”

           XCVI. Considerou ainda: “Deste modo, não tendo o A feito prova dos factos constitutivos do seu direito, tem o pedido formulado de improceder.”

           XCVII. Ora, conforme se expôs supra: o Autor celebrou com a Ré um contrato de seguro, pelo qual transferiu para aquela a responsabilidade pelo risco de danos próprios relativamente ao seu veículo, o qual abrangia os danos decorrentes de furto ou roubo, sendo o capital seguro, para esse efeito, 16.550€.

           XCVIII. No dia 15-06-2021, o veículo foi furtado na via pública, no período compreendido entre as 21h20 e 00h, após o A o ter estacionado na via pública, na Av. .., junto ao edifício da GNR - Comando Territorial - conforme prova apresentada (já discriminada supra).

            XCIX. Como tal verificou-se o evento (furto do veículo) de que dependia o pagamento do seguro pela seguradora.

           C. O veículo estava avaliado no montante de €16.550€, pelo que é este o valor pela qual a R. tem de indemnizar o A. pelo risco que assumiu, mediante a celebração do referido contrato de seguro.

           CI. O Autor teve ainda que suportar o custo referente ao cancelamento da matrícula do veículo junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., o que se traduziu numa despesa de 10 euros - facto para o qual foi apresentada prova, conforme se expôs supra.

            CII. Foi também furtado o notebook 250 - facto para o qual foi apresentada prova, conforme se expôs supra.

            CIII. Pelo que, se discorda, concretizadamente, da sentença que decide pela improcedência da ação “não tendo o A feito prova dos factos constitutivos do seu direito”.

         CIV. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (18262/17.2T8LSB.L1-2) decide que: “O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança.”

           CV. O que o A. fez, conforme se expôs, motivo pelo qual a sentença a quo deveria ter preservado entendimento coincidente.

          CVI. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-11-2022 (2842/20.1T8STS.P1) sumariza que “não é de exigir ao autor, tomador do seguro, prova concludente no sentido da verificação dos elementos típicos que integram o crime de furto (subtração com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa - v. art. 203.º, n.º 1 do CPenal), bastando para o efeito prova indireta e indiciária (de primeira aparência), que pode passar pela apresentação de denúncia às autoridades policiais, em conjugação com outros elementos de prova coadjuvantes que possam conduzir à formulação de um juízo de verosimilhança relativamente àquela denúncia, não contrariado de forma relevante pelos elementos trazidos à lide pela seguradora.”

           CVII. Apesar deste entendimento superior, o tribunal a quo decidiu “Porém, no dia 15-6- 2021, ninguém viu o A. a conduzir o mencionado veículo de matrícula ..-EC-.. ou tampouco o viu estacionado no local em que o A. afirma que o deixou. Acresce que a Ré Seguradora invocou e provou factos susceptíveis de abalar a versão do sinistro invocada pelo A.”, do qual discorda o A., porquanto:

           CVIII. As regras da experiência ditam, unanimemente, que a condução até ao emprego e o respetivo estacionamento do veículo é uma rotina marcadamente solitária.

           CIX. Ainda que algum colega de trabalho tenha avistado o A., esse avistamento apagarse-á rapidamente da memória, confundido na familiaridade da mesma rotina, do mesmo espaço e das mesmas pessoas.

           CX. Daí que deveria ter a Mma. Juiz ter tido em conta a dificuldade de fazer prova das circunstâncias específicas do estacionamento do veículo n(o que parecia ser) um qualquer dia igual a tantos outros.

            CXI. Assim sendo, não se compreende como é que a tese da R. seguradora, baseada, nas circunstâncias de lugar, para não assumir a responsabilidade para si transferida pelo contrato de seguro, teve provimento.

           CXII. A mesma teorizou sobre a dificuldade em concretizar o furto, naquelas circunstâncias de espaço e tempo, e atendendo à suposta complexidade electrónica do veículo.

           CXIII. Sendo que o A. mostrou, através das declarações e depoimento do A. e das testemunhas que apresentou, mas também, através da prova superveniente que juntou em audiência final sobre outro furto ocorrido em idênticas circunstâncias que a dúvida da Ré não era suficiente.

           CXIV. Todos os factos alegados pela Ré (quilometragem e chaves) são, salvo melhor opinião, IRRELEVANTES e manifestamente insuficientes para suscitar qualquer dúvida razoável sobre a ocorrência de tal furto.

           CXV. A tese da Ré do furto simulado, a ser verdade, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, retira qualquer sentido na prévia viciação intencional da centralina.

           CXVI. As testemunhas da Ré vieram precisamente relatar as suspeitas de que o furto não se passou como relatado pelo A., tentando levantar a suspeita de que o A. tenha encenado o furto.

            CXVII. A prova produzida pela R. é manifestamente insuficiente para suscitar dúvidas sobre a prova do A.

            CXVIII. Com efeito, não conseguimos vislumbrar a razão do A. ter encenado o furto, dizendo que estacionou o veículo junto ao posto da GNR, onde trabalha, quando, se esse fosse o seu propósito, poderia dizer que este tinha corrido em qualquer outro sítio.

            CXIX. Aliás, o facto de referir que estacionou o veículo junto a um posto da GNR – poderia até representar um perigo adicional, uma vez que, normalmente, estes espaços têm câmaras ou agentes vigilantes, pelo que, a querer simular um furto que não existiu, o A. estaria a correr maiores riscos, do que se dissesse que o furto tinha ocorrido num outro sítio.

           CXX. Ora, não se sabe que outra prova poderia o A. ter apresentado para provar a existência do furto, para além da que apresentou.

           CXXI. O A. suportou o custo de todos os transtornos pela Recusa da Ré em assumir o prejuízo, nomeadamente, além de ficar desprovido do seu veículo, incorreu em despesas ao constituir mandatário para formular comunicações à Companhia, e para instaurar a presente ação.

            CXXII. Por todos estes prejuízos, tem que ser indemnizado.

            CXXIII. Às referidas quantias que a Ré terá que pagar ao Autor, acrescem os respectivos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento – artigo art. 799º/1 e 2, arts.804º/1 e 2  e 805º e 806º do C.Civil, o que se requer.

           

           A R. apresentou contra-alegações, que não finalizou com conclusões, opondo-se  naquelas às alterações da matéria de facto, bem como à da decisão de direito.

            III – A - O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

            1-Por apresentação de 5-1-2015, a propriedade do veículo com a matrícula ..-EC-.. da marca BMW, ... LCI Diesel, versão ... foi registada a favor do Autor (art. 1º da p.i.).

             2- Em 15/05/2018, o Autor e a Ré celebraram um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, tendo por objecto a responsabilidade civil obrigatória emergente da circulação do veículo referido em 1) (art. 3º da contestação).

           3- Para além da cobertura obrigatória emergente do risco de circulação do EC, o Autor subscreveu também a cobertura facultativa do risco de “furto ou roubo” do referido veículo com o capital seguro de € 16.550,00 (art. 3º, 5º e 20º da p.i. e art. 5º da contestação).

           4- O contrato de seguro, ao qual veio a ser atribuída a apólice n.º ...85, foi celebrado com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, tendo as partes estabelecido como data de início de produção dos seus efeitos, o dia 15/05/2018 (art. 6º da p.i. e 4º da contestação).

           5- Da condição especial da apólice denominada “Furto ou Roubo”, fazem parte as seguintes cláusulas contratuais: “Cláusula 1.ª - Definições FURTO OU ROUBO Para efeito da presente Condição Especial considera-se: FURTO OU ROUBO: O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados). Cláusula 2.ª - Âmbito da cobertura Em derrogação do disposto na alínea a) do n.º 4 da cláusula 5.ª, a presente Condição Especial garante ao Segurado o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtração de peças fixas e indispensáveis à sua utilização. Cláusula 3.ª - Exclusões Para além das exclusões previstas nas cláusulas 5.ª e 40.ª das Condições Gerais, não ficam garantidas ao abrigo da presente Condição Especial as seguintes situações: a) Danos que consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados para o Tomador do Seguro e/ou Segurado em consequência de privações de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro; b) Furto ou roubo cometido por pessoas que coabitem ou dependam economicamente do Tomador do Seguro/Segurado, pessoas que se encontram ao seu serviço, ou por quem, em geral, aqueles sejam civilmente responsáveis; c) Danos diretamente produzidos por lama ou alcatrão ou outros materiais utilizados na construção das vias; d) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o teto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares; e) Danos em capotas de lona. Cláusula 4.ª - Condições de funcionamento da cobertura 1. Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. 2. Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.” (art. 8º e 14º da contestação).

           6- O A. é militar da Guarda Nacional Republicana, prestando serviço no Comando Territorial de Coimbra (art. 9º da p.i.).

           7- No dia 16-06-2021, cerca das 00:05 horas, o A. dirigiu-se ao Posto da GNR de Souselas, onde participou o furto contra desconhecidos (art. 8º e 13º da p.i.).

            8- No dia seguinte, o A. comunicou o furto à B..., Lda, empresa mediadora de seguros junto da qual havia celebrado o contrato de seguro com a R., e aquela comunicou o mesmo à Ré. (art. 15º da p.i.)

           9- No dia 17-09-2021, a Ré comunicou ao A. que declinava qualquer responsabilidade e que não se encontrava disponível para liquidar os danos decorrentes do furto por via extrajudicial (art. 17º da p.i.).

           10- O mandatário do A. endereçou à R. uma carta registada, datada de 30-09- 2021, a solicitar uma explicação para a posição assumida (art. 18º da p.i.)

           11- Em resposta, no dia 12-10-2021, a Ré comunicou ao mandatário do A. que: (…) Após análise da mesma somos a informar de que, face aos elementos probatórios obtidos no decorrer da averiguação realizada pelos nossos serviços técnicos, entendemos que não nos é possível estabelecer um nexo causal entre o participado e o sinistro ocorrido. Salientamos que os elementos adicionais solicitados por V. Exa., tratando-se de documentação interna desta Companhia, não poderão ser disponibilizados extrajudicialmente. Ficamos deste modo impossibilitados de assumir a responsabilidade pelos danos reclamados, pelo que, mantemos a posição anteriormente transmitida (…) (art. 19º da p.i.).

           12- Em 28-1-2022 o Autor procedeu ao cancelamento da matrícula do veículo junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., com o que despendeu € 10,00 (art. 22º da p.i.).

           13- Em 17 de Junho de 2021, o Autor participou à R. um sinistro de furto, nos seguintes termos: “Aos 15 de Junho 2021 estacionei o meu veículo na Avenida ..., local onde trabalho. Eu deixei o veículo pelas 16H00 estacionado em frente ao edifício da GNR, e por volta das 24H00 quando terminei o meu serviço e me ia deslocar para casa, deparei-me que a mesma teria sido furtada e não se encontrava no local.” Cf. Doc. n.º 3 que ora se junta e aqui se dá por reproduzido (art. 17º da contestação)

            14- A Avenida ..., ... constitui o endereço do Posto da GNR de Souselas, situando-se a cerca de 20/25 metros do Comando Territorial da GNR, no concelho de Coimbra (art. 19º da contestação).

             15- Trata-se de um local onde entram e saem constantemente, e sem hora marcada, militares da GNR que ali prestam serviço ou que ali se deslocam (art. 20º da contestação).

            16- No aludido local, encontra-se permanentemente um Guarda no Posto da GNR de Souselas, bem como, um outro, também em permanência, na portaria do Comando Territorial da GNR de Coimbra (art. 21º da contestação).

           17- De acordo com o apurado junto do Posto da GNR de Souselas e, bem assim, junto do Comando Territorial da GNR de Coimbra, o Autor estacionava sempre o EC (e o Audi Q7 de que é proprietário) dentro do parque interior do Posto da GNR (art. 32º da contestação).

           18- A Avenida ... configura uma recta, bem iluminada e com grande movimento de pessoas e automóveis, na medida em que configura uma zona habitacional, onde inúmeras residências possuem portas e janelas voltadas para o local (art. 34º da contestação).

           19- No local, a Avenida ... é um arruamento com cerca de dez metros de largura e de boa visibilidade, porque superior a 50 metros, dotado de passeios para peões com cerca de três metros de largura (art. 35º da contestação).

           20- A apólice do EC regista uma participação de sinistro enquadrada da cobertura de “quebra isolada de vidros”, apresentada em 10.7.2019, regularizado e pago pela Ré (art. 37º da contestação).

            21- O veículo seguro apresenta o registo de um sinistro por furto dos rodados, participado em 31.7.2015 à então C..., S.A., que foi regularizado e pago por esta última (art. 38º da contestação).

            22- O Autor possuía e possui dois veículos, a saber: o motociclo ..-..-XM, com contrato de seguro obrigatório celebrado com a Ré; e o veículo automóvel de matrícula ..-CG-.., da marca e modelo “Audi Q7”, com seguro obrigatório celebrado com a congénere da Ré “Companhia de Seguros D..., S.A., desde 19.11.2020, com registo de um sinistro participado em 25.05.2021, ao abrigo da condição especial de “quebra isolada de vidros” (art. 39º da contestação).

            23- No final do diálogo com o averiguador da Ré, e para instruir o respectivo processo de sinistro, o Autor redigiu uma declaração pelo seu próprio punho, por via da qual descreveu, livre e espontaneamente, aquele que foi o teor da conversa tida com o averiguador, fazendo-o nos seguintes termos: “No dia 15.6.2021 pelas 15H45M estacionei o veículo ..-EC-.. na Avenida ... frente posto GNR, antes da passadeira, tendo acabado percurso entre casa e este local, onde fui trabalhar entre as 16 horas e as 24 horas. Tranquei o veículo devidamente e informo que pelas 21H20M desloquei-me ao exterior do edifício (depois de jantar), verificando que o veículo estava no mesmo local. Após términus do serviço, quando me preparava para o regresso a casa, deparei-me com o desaparecimento do veículo que prontamente, comuniquei no posto da GNR, aferindo que ninguém se apercebeu de nada. Tentei logo a seguir à queixa encontrar o veículo com alerta à rede GNR e PSP, mas sem efeito. Tinha +/- meio depósito. Tem via verde mas sem passagens recentes. Sou eu quem faz as revisões em casa e levava à ITP” Cf. doc. 4 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos (art. 46º da contestação).

           24- O A. facultou ao averiguador da Ré duas chaves do veículo e autorizou a respectiva leitura e análise das informações constantes da memória das mesmas, referindo-lhe que eram as duas únicas chaves que possuía do veículo seguro, as quais lhe tinham sido entregues aquando da sua aquisição em 05.01.2015 (art. 47º e 48º da contestação).

           25- Apenas uma delas correspondia à chave original do EC e que a outra correspondia a uma cópia efectuada sem a intervenção e autorização da marca (art. 52º da contestação).

           26- Tratava-se de uma chave que ainda possuía a respectiva lamina por lavrar, ou seja, era uma chave que não possuía quaisquer ranhuras, sendo destinada a ser adaptada à fechadura de qualquer viatura automóvel que usasse aquele formato de chave (art. 55º da contestação).

             27- O EC efectuou inspecções obrigatórias nas seguintes datas, apresentando os seguintes quilómetros percorridos: .

             IPO a 09/07/2015 ---------------- 243 717kms .

             IPO a 09/05/2016 ---------------- 271 633kms (+27 916kms) .

            IPO a 20/07/2017 ---------------- 210 308kms (-61 325kms) .

            IPO a 17/07/2018 ---------------- 222 090kms (+11 782kms) .

            IPO a 22/07/2019 ---------------- 237 356kms (+15 266kms) .

             IPO a 21/07/2020 ---------------- 248 905kms (+11 549kms) (art. 61º da contestação).

           28- Entre as inspecções realizadas nos dias 09.05.2016 e 20.07.2017, o veículo seguro foi sujeito a uma viciação da sua centralina, ao nível do registo do número de quilómetros percorridos, ocorrendo uma redução do número de quilómetros (art. 62º da contestação).

            29- O Autor faltou à verdade quando referiu ao averiguador da Ré que utilizava o EC diariamente nas suas deslocações, porquanto, em cerca de 11 meses, o veículo seguro teria percorrido 290 quilómetros (art. 63º da contestação).

           30- De acordo com a leitura da chave secundária do EC, aquando da sua última utilização (28/07/2020), o veículo seguro registava ter percorrido 249.156 kms, pelo que a diferença para a chave principal, cuja última utilização ocorreu cerca de 11 meses após, indicava ter percorrido apenas mais 69 quilómetros (art. 64º da contestação).

            31- O veículo seguro não era utilizado diariamente pelo Autor nas suas deslocações (art. 65º da contestação).

           32- O veículo seguro possuía mais do que duas chaves para o accionar e o Autor estava na posse de, pelo menos, uma terceira chave do dito veículo, facto que ocultou à Ré (art. 67º da contestação).

             33- Quando o averiguador da Ré devolveu as chaves do EC ao Autor e lhe exibiu a lâmina por lavrar da chave secundária, este ficou visivelmente atrapalhado e comprometido, dizendo que nunca reparara que a chave estava naquelas circunstâncias e que sempre funcionara perfeitamente (art. 68º da contestação).

             34- O A. celebrou com a Companhia de Seguros D..., S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatória, com a cobertura de furto ou roubo do veículo, com a apólice n.º ...43, que vigorou na anuidade entre 24.3.2017 e 01.3.2018 (art. 71º da contestação)-

           III - B - O Tribunal da 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:

           - Em 15-6-2021, o veículo referido em 1) tinha um valor comercial não inferior a € 16.550,00 (art. 3º da p.i.)

           - No dia 15-06-2021, pelas 15h45, o A. deixou o veículo estacionado na via pública, na Av. ... em Coimbra, junto ao Edifício da GNR do Comando Territorial de Coimbra, tendo-se dirigido ao seu local de trabalho, uma vez que o seu turno de trabalho se iniciava pelas 16h00 (art. 10º da p.i.).

           - Cerca das 21h20, quando o A, se deslocou ao exterior do edifício, o veículo ainda se encontrava estacionado no local onde o A. o havia deixado (art. 11º da p.i.).

           - No dia 15-06-2021 o veículo segurado foi furtado na via pública (art. 7º da p.i.).          - No fim do turno, cerca das 00:00 horas e quando se deslocava em direção ao seu veículo para regressar a casa, o A. constatou que o mesmo tinha sido furtado (art. 12º da p.i.).

            - O A. tinha dentro do veículo o seu notebook pessoal, avaliado em cerca de 250,00€, atendendo o seu estado de usado (art. 23º da p.i)

           - A recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro participado tem trazido preocupação, nervosismo e insónias ao A. (art. 33º a 35º da p.i.).

            - O A. não tem dinheiro para comprar outro carro (35º da p.i.).

             - O A. tinha já vendido o outro carro de que era proprietário e teve que desfazer o negócio, o que causou grande mau estar perante o comprador, pois se assim não fosse ficaria sem qualquer carro para circular e para se deslocar para o trabalho e levar e buscar as suas filhas à escola e às suas atividades (art. 37º da p.i.).

            - O que também se está a traduzir num prejuízo para o A. pois o carro que tinha vendido está a desvalorizar e já não o irá conseguir vender pelo mesmo valor (art. 38º da p.i.).

            - Na apólice referida em 34), o risco de furto ou roubo do EC estava garantido com um capital de € 14.000,00 e sem franquia (art. 72º da contestação).

            IV – Do confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, resulta constituir objecto do recurso, a apreciação das seguintes questões;

           - se a decisão recorrida é nula, por se constituir uma decisão surpresa, na medida em que o A. não foi previamente advertido na audiência prévia relativamente à  extensão e  interpretação que iria ser dada a alguns dos factos  por ele  reconhecidos  nessa audiência;

           - se, a entender-se de outro modo, resulta violado o principio constitucional da tutela efectiva, constante do art 20º da CRP;

           - se, de todo o modo, esses factos não se devem ter como provados, por ter sido feita prova contrária no julgamento;

           - se, em todo o caso, se deve entender ter ele feito prova suficiente para se dar como provado o furto e os demais factos julgados não provados na 1ª instância.

  

           Antes de se iniciar a apreciação das questões enunciadas, importa perceber a singularidade da prova em processos como os presentes, em que está em causa a prova de factos que por definição se praticam de forma escondida e tanto quanto possível de modo a não produzirem vestígios, como é, por excelência, o caso do furto de veículos, em que o segurado, por assim ser,  não dispõe de testemunhas presenciais da subtracção  ou sequer vestígios da mesma, sem que no entanto deixe de lhe ser exigível em acção que intente contra a seguradora para lhe exigir o pagamento da indemnização estipulada no contrato fazer a prova dessa subtracção, enquanto facto principal da causa de pedir que invoca.

            Os tribunais, em acções deste tipo, têm vindo a evidenciar que basta ao segurado  fazer  prova indireta, indiciária e de primeira aparência, da ocorrência do furto, na qual  se integra a apresentação de denúncia às autoridades policiais[1], prova  a que se deve somar  a  da  realização de diligências conducentes à descoberta do veiculo, exigências, aliás, em sintonia com as que constam das cláusulas do seguro por danos próprios enquanto  condições para o funcionamento da  cobertura, como sucede no caso do seguro dos autos, em função da cláusula 4ª das Condições Especiais da apólice, e que, em consequência,  integram também elas a causa de pedir na acção.

            Cumpridas estas exigências, cabe ao A./segurado invocar todos os elementos de que em concreto possa dispor e que tornem plausível aquela subtracção ainda que sem vestígios, e/ou que se mostrem coadjuvantes desse facto principal, de modo a  criar, do ponto de vista lógico, a maior verosimilhança que consiga relativamente àquela.             Em situações desse tipo, que são as dos presentes autos, esses elementos de prova podem ser muito poucos, sem que, não obstante essa limitada alegação se possa ou deva   formular, à partida, um juízo negativo a respeito da verdade implicada na participação policial. Por outras palavras – o segurado não pode, à partida, ser censurado por não dispor de qualquer prova representativa relativamente à prática do furto.

            A prova que se lhe exige nestas situações extremas  de furto sem testemunhas nem vestígios é, natural e necessariamente, indirecta, e, no que a esta respeita, não histórica (ou representiva), mas antes critica ou  indiciária [2],  consequentemente, inteiramente integrada - no que respeita à ocorrência do furto -  por factos instrumentais (factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito) .

           Na prova indiciária, o objecto da prova não é directamente o facto principal. O meio de prova não incide sobre o facto a provar mas sobre um outro, que, por sua vez, representará um “indicio” daquele.  O juiz retira uma ilação de um facto, para outro, até chegar ao facto principal, servindo-se de presunções, legais ou naturais, ou de prova prima facie.

           Em situações como a dos autos, não interferem, que se veja, presunções legais,  mas presunções judiciais, em que se destaca a  prova prima facie, também dita prova de primeira aparência, prova em que a presunção judicial tem  especificamente por base a experiência da vida - o que acontece normalmente -  sendo desse acontecer normal que se torna possível inferir a veracidade do facto presumido.

           Cabe, pois, ao autor, em acções deste tipo, rodear-se da  alegação e prova de factos indiciários que possam vir a permitir  ao tribunal  alcançar a convicção da realidade do facto, in casu, a da verificação do furto – isto é,  o tribunal tem de vir a concluir, efectuada toda a actividade probatória por uma e outra parte, que é mais provável que tenha ocorrido o furto do que  não tenha ocorrido, só assim logrando o autor a procedência da acção.

            Sucede que esta convicção do tribunal tem que ter ultrapassado a barreira que corresponde à normal impugnação daqueles factos pela seguradora, a quem, atenta a mera alegação pelo A. de factos indiciários, não  é exigível fazer prova positiva e concludente da inexistência do furto, e que, por isso, orientará a sua alegação e prova no sentido de neutralizar a que resulta  das aparências invocadas pelo tomador de seguro, logrando a improcedência da acção desde que consiga criar no espírito do julgador um estado de dúvida séria relativamente à autenticidade do conteúdo da participação policial do furto.

           Estamos, pois, no que respeita à medida necessária da impugnação da prova [3], no âmbito da prova bastante, que corresponde ao grau menor no valor das provas legais, e que é  aquela que «cede perante contraprova»[4] (ou prova contrária [5] ou convicção negativa).

           Situação fértil para as seguradoras, aliás, no seu pleno direito, objectarem na contestação com todos os elementos logicamente admissíveis para tentarem afastar a  prova indiciária de primeira aparência, cabendo ao segurado, e normalmente já na audiência de julgamento, anular o valor da contraprova produzida pela seguradora.   

           È neste contexto de prova indiciária do ponto de vista da alegação, e bastante, do ponto de vista de impugnação, que nos movemos na acção, e é também em função desses pressupostos probatórios que se tem de avaliar se assiste razão ao apelante no concernente às duas  primeiras questões acima evidenciadas.

           Para o efeito, tenha-se em consideração que a R. seguradora pediu na contestação  o depoimento de parte do A. relativamente à matéria por ela alegada nos arts 17, 19 a 21, 32, 34, 35, 37 a 39, 41 a 48, 52, 55, 61 a 65, 67, 68 e 71 da referida peça processual, e que, na audiência preliminar, estando presente o A. e a sua Exma mandatária,  tal como consta da respectiva acta,  «a Sr.ª Juiz deu a palavra ao A. para se pronunciar sobre a factualidade vertida nos arts. 17, 19 a 21, 32, 34, 35, 37 a 39, 41 a 48, 52, 55, 61 a 65, 67, 68 e 71 da contestação (em relação à qual foi requerido depoimento de parte), tendo a sua Ilustre mandatária e o próprio Autor, aqui presente, aceite tal factualidade, admitindo-a, expressamente».

            Nessa sequência, e ainda como consta da acta dessa diligência, foi enunciado o objecto do litigio como correspondendo «ao direito do A. a ser ressarcida pela R. dos prejuízos para si resultantes do furto do seu veículo no dia 15-6-2021», referindo-se, de imediato que, «os factos constantes dos arts. 1º, 3º (quanto ao capital seguro), 5º, 6º, 9º, 15º a 20º da p.i. e 3º, 4º, 17º, 19º a 21º, 32º, 34º, 35º, 37º a 39º, 41º a 48º, 52º, 55º, 61º a 65º, 67º, 68º e 71º da contestação estão provados por acordo e documento».

            Enunciados que foram, de seguida, os temas da prova, veio a ser proferido despacho, já no referente à admissão dos meios de prova, que, no que aqui releva, admitiu  as declarações de parte do Autor, nos termos por ele  requeridos, referindo relativamente ao  depoimento de parte do Autor, requerido pela R., que o mesmo «fica prejudicado pela assunção pelo mesmo da factualidade em relação à qual esse mesmo depoimento de parte tinha sido requerido», sem que tivesse havido qualquer reacção por parte do A.

           A Exma Juíza considerou provados na sentença todos aqueles factos, concretamente, e como acima se fez constar:

           13- Em 17 de Junho de 2021, o Autor participou à R. um sinistro de furto, nos seguintes termos: “Aos 15 de Junho 2021 estacionei o meu veículo na Avenida ..., local onde trabalho. Eu deixei o veículo pelas 16H00 estacionado em frente ao edifício da GNR, e por volta das 24H00 quando terminei o meu serviço e me ia deslocar para casa, deparei-me que a mesma teria sido furtada e não se encontrava no local.” Cf. Doc. n.º 3 que ora se junta e aqui se dá por reproduzido (art. 17º da contestação)

            14- A Avenida ..., ... constitui o endereço do Posto da GNR de Souselas, situando-se a cerca de 20/25 metros do Comando Territorial da GNR, no concelho de Coimbra (art. 19º da contestação)

            15- Trata-se de um local onde entram e saem constantemente, e sem hora marcada, militares da GNR que ali prestam serviço ou que ali se deslocam (art. 20º da contestação).   16- No aludido local, encontra-se permanentemente um Guarda no Posto da GNR de Souselas, bem como, um outro, também em permanência, na portaria do Comando Territorial da GNR de Coimbra (art. 21º da contestação).          

           17- De acordo com o apurado junto do Posto da GNR de Souselas e, bem assim, junto do Comando Territorial da GNR de Coimbra, o Autor estacionava sempre o EC (e o Audi Q7 de que é proprietário) dentro do parque interior do Posto da GNR (art. 32º da contestação).

           18- A Avenida ... configura uma recta, bem iluminada e com grande movimento de pessoas e automóveis, na medida em que configura uma zona habitacional, onde inúmeras residências possuem portas e janelas voltadas para o local (art. 34º da contestação).

             19- No local, a Avenida ... é um arruamento com cerca de dez metros de largura e de boa visibilidade, porque superior a 50 metros, dotado de passeios para peões com cerca de três metros de largura (art. 35º da contestação).  

           20- A apólice do EC regista uma participação de sinistro enquadrada da cobertura de “quebra isolada de vidros”, apresentada em 10.7.2019, regularizado e pago pela Ré (art. 37º da contestação).

            21- O veículo seguro apresenta o registo de um sinistro por furto dos rodados, participado em 31.7.2015 à então C..., S.A., que foi regularizado e pago por esta última (art. 38º da contestação).

            22- O Autor possuía e possui dois veículos, a saber: o motociclo ..-..-XM, com contrato de seguro obrigatório celebrado com a Ré; e o veículo automóvel de matrícula ..-CG-.., da marca e modelo “Audi Q7”, com seguro obrigatório celebrado com a congénere da Ré “Companhia de Seguros D..., S.A., desde 19.11.2020, com registo de um sinistro participado em 25.05.2021, ao abrigo da condição especial de “quebra isolada de vidros” (art. 39º da contestação).      

            23- No final do diálogo com o averiguador da Ré, e para instruir o respectivo processo de sinistro, o Autor redigiu uma declaração pelo seu próprio punho, por via da qual descreveu, livre e espontaneamente, aquele que foi o teor da conversa tida com o averiguador, fazendo-o nos seguintes termos: “No dia 15.6.2021 pelas 15H45M estacionei o veículo ..-EC-.. na Avenida ... frente posto GNR, antes da passadeira, tendo acabado percurso entre casa e este local, onde fui trabalhar entre as 16 horas e as 24 horas. Tranquei o veículo devidamente e informo que pelas 21H20M desloquei-me ao exterior do edifício (depois de jantar), verificando que o veículo estava no mesmo local. Após términus do serviço, quando me preparava para o regresso a casa, deparei-me com o desaparecimento do veículo que prontamente, comuniquei no posto da GNR, aferindo que ninguém se apercebeu de nada. Tentei logo a seguir à queixa encontrar o veículo com alerta à rede GNR e PSP, mas sem efeito. Tinha +/- meio depósito. Tem via verde mas sem passagens recentes. Sou eu quem faz as revisões em casa e levava à ITP” Cf. doc. 4 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos (art. 46º da contestação).

           24- O A. facultou ao averiguador da Ré duas chaves do veículo e autorizou a respectiva leitura e análise das informações constantes da memória das mesmas, referindo-lhe que eram as duas únicas chaves que possuía do veículo seguro, as quais lhe tinham sido entregues aquando da sua aquisição em 05.01.2015 (art. 47º e 48º da contestação).

           25- Apenas uma delas correspondia à chave original do EC e que a outra correspondia a uma cópia efectuada sem a intervenção e autorização da marca (art. 52º da contestação).

           26- Tratava-se de uma chave que ainda possuía a respectiva lamina por lavrar, ou seja, era uma chave que não possuía quaisquer ranhuras, sendo destinada a ser adaptada à fechadura de qualquer viatura automóvel que usasse aquele formato de chave (art. 55º da contestação).

             27- O EC efectuou inspecções obrigatórias nas seguintes datas, apresentando os seguintes quilómetros percorridos:

IPO a 09/07/2015 ---------------- 243 717kms .

IPO a 09/05/2016 ---------------- 271 633kms (+27 916kms

IPO a 20/07/2017 ---------------- 210 308kms (-61 325kms)

 IPO a 17/07/2018 ---------------- 222 090kms (+11 782kms)

 IPO a 22/07/2019 ---------------- 237 356kms (+15 266kms

 IPO a 21/07/2020 ---------------- 248 905kms (+11 549kms) (art. 61º da contestação).

           28- Entre as inspecções realizadas nos dias 09.05.2016 e 20.07.2017, o veículo seguro foi sujeito a uma viciação da sua centralina, ao nível do registo do número de quilómetros percorridos, ocorrendo uma redução do número de quilómetros (art. 62º da contestação).

           29- O Autor faltou à verdade quando referiu ao averiguador da Ré que utilizava o EC diariamente nas suas deslocações, porquanto, em cerca de 11 meses, o veículo seguro teria percorrido 290 quilómetros (art. 63º da contestação).

           30- De acordo com a leitura da chave secundária do EC, aquando da sua última utilização (28/07/2020), o veículo seguro registava ter percorrido 249.156 kms, pelo que a diferença para a chave principal, cuja última utilização ocorreu cerca de 11 meses após, indicava ter percorrido apenas mais 69 quilómetros (art. 64º da contestação).

           31- O veículo seguro não era utilizado diariamente pelo Autor nas suas deslocações (art. 65º da contestação).

           32- O veículo seguro possuía mais do que duas chaves para o accionar e o Autor estava na posse de, pelo menos, uma terceira chave do dito veículo, facto que ocultou à Ré (art. 67º da contestação).

             33- Quando o averiguador da Ré devolveu as chaves do EC ao Autor e lhe exibiu a lâmina por lavrar da chave secundária, este ficou visivelmente atrapalhado e comprometido, dizendo que nunca reparara que a chave estava naquelas circunstâncias e que sempre funcionara perfeitamente (art. 68º da contestação).

           Insurge-se, agora, o A., relativamente à “extensão e interpretação da vontade por ele declarada”, entendendo que apenas pretendia, de modo a colaborar  com o tribunal, (conclusãoVI ) - «confirmar as informações relativas: ao contrato de seguro e ao veículo sua propriedade, à sua rotina habitual (veículo mais utilizado, rotas diárias e estacionamento habitual), às chaves do veículo que tinha na sua posse, ao resultado das inspeções - decorrente da prova documental, e as comunicações e interações com os funcionários da Ré, nomeadamente, o que lhe foi transmitido, o que apreendeu e a impressão com que os funcionários da Ré ficaram».

           -Assim, relativamente ao ponto 17 dos factos dados como provados (art. 32º da contestação): (apenas) «pretendeu confirmar que estacionava, muitas vezes, o veículo no estacionamento interior do Posto da GNR onde trabalhava, não tendo querido  transmitir que estacionava “sempre” o veículo nesse estacionamento interior»;

           -Relativamente aos pontos 25, 26, 32 e 33 dos factos dados como provados (arts. 52º, 55º, 67º, 68º da contestação); (apenas) «pretendeu confirmar que utilizava sempre a mesma chave através do comando, e nunca utilizou a ranhura; por esse motivo, nunca se apercebeu que uma chave não tinha ranhuras, nem se apercebeu que não era original da marca; ao ser confrontado pelo funcionário da Ré (averiguador), ficou, efetivamente, confuso e surpreendido», pois, «ao ouvir a explicação do funcionário da Ré (averiguador), compreendeu que as duas chaves eram efetivamente diferentes e compreendeu ainda que havia a possibilidade de existir outras chaves (nomeadamente, de anteriores proprietários); ficou atrapalhado porque efetivamente nunca se tinha apercebido que a chave não estava lavrada. Nunca tinha utilizado a ranhura da chave»;

            - Quanto ao Facto 28, «aceitou expressamente o que decorria dos documentos admitidos, nomeadamente, que os registos dos quilômetros percorridos demonstravam uma discrepância.  Situação que explicou dever-se ao facto de o veículo ter sido sujeito à alteração do quadrante, o que provocou uma redução no número de quilómetros registados. Quis confirmar que usou o veículo discutido nos autos diariamente, mas (aceita) que não é possível concluir tal facto dos registos numéricos».

             -Relativamente ao facto 29, «nunca pretendeu “admitir” que “faltou à verdade” mas tão somente que era verdade que se deslocava diariamente no veículo e que (ainda que não coincidentemente) os registos numéricos não correspondiam à utilização real do mesmo», «e que aquele foi o teor da conversa tida com o averiguador da Ré.».

           - Relativamente ao facto 32, (apenas) pretendia aceitar o facto até “dito veículo”: «não pretendeu confirmar que “ocultou À Ré” qualquer facto, mas tão só que aquele foi o teor da conversa tida com o averiguador da Ré».

           Referindo ainda o apelante, para corroborar o seu ponto de vista, que «não compreendeu o alcance da aceitação daqueles factos» (conclusão V); que «na prática, a vontade real não correspondeu à vontade declarada, ou melhor, interpretada» (Conclusão XXII .

           

           Entende-se que o esforço desenvolvido pelo apelante para minimizar o alcance da  aceitação a que procedeu dos factos a que vinha pedido o seu depoimento de parte se mostra  inglório.

           Se a parte – devidamente acompanhada de advogado - admite sem mais os factos relativamente aos quais vem pedido o seu depoimento de parte, está, pura e simplesmente a prescindir desse depoimento e, inerentemente, a confessar tais factos nos exactos termos da respectiva alegação. 

 

           Refere o art 356º CC que «a confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou em prestações de informações ou esclarecimentos ao tribunal».

           Sabe-se que a confissão corresponde a uma declaração de ciência, pela qual uma pessoa reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável - «dum facto cujas consequências jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto à outra parte, nos termos do era 342º do CC, cfr art 352º do mesmo Código».

           Nas palavras de  Manuel Andrade, que se está a citar, [6] «reconduz-se a um testemunho (no sentido lato de declaração de ciência) qualificado pelo objecto  (ser o testemunho contrário ao interesse do autor». 

           Está em causa a confissão–prova (confissão de factos), qualificada jurídica, e maioritariamente, não como um negócio jurídico, mas como simples acto jurídico, «dispensando, por isso mesmo, no confitente a vontade ou a consciência dos respectivos efeitos legais, ou pelo menos a vontade ou a consciência de assumir vinculação jurídica».

           Acrescentando  Manuel de Andrade [7]que «não se requer (…) para qualquer forma de confissão  a vontade ou mesmo só a consciência dos respectivos efeitos jurídicos. Basta a vontade de emitir a respectiva declaração de ciência».

           Explicando: «A confissão, portanto, não se traduz numa declaração de vontade  (de ter como provados  os factos sobre que versa, de renunciar à possibilidade  de provar o contrário desses factos, etc); mas tão somente numa declaração voluntária (de ciência)»,  torna claro «ser dispensável, segundo a orientação hoje em dia prevalente, o animus confitente, da doutrina tradicional, tomado como o requisito ou elemento intencional distinto daquela simples vontade de declarar».

           Sem esquecer que a confissão judicial pode ter lugar nos articulados, como pode ter lugar em qualquer outro acto do processo e, «quando escrita, faz prova plena contra o confitente – art 358º/1 CC), por isso não admitindo prova do contrário (senão em restritos termos – 359º CC ) por estar em causa uma prova pleníssima[8]».

           Tudo isto para evidenciar que nenhuma razão assiste ao A. quando pretende  circunscrever o alcance dos factos que confessou e fazer valer que a sua vontade real não corresponderia à declarada e que o tribunal teria que ter essa divergência em consideração. 

           Por um lado, por não ser necessário animus confitenti, por outro, por não ser necessário vontade ou sequer consciência dos respectivos efeitos jurídicos, e sequer estar em causa um negocio jurídico..

           E, definitivamente, porque o A.  não poderia desconhecer a importância -  do mero ponto de vista lógico – mais a mais, acompanhado como estava pela sua Exma Advogada - dos factos que confessou, sem que neles tenha tido o cuidado de introduzir, nesse acto,  quaisquer reservas, numa acção, como a presente, que, pelas razões acima referidas, vive de factos instrumentais para a prova do determinante facto essencial que comporta – o da real verificação do furto.

            Tratou-se, salvo o devido respeito, de um erro estratégico, com cujas consequências o A. tem que arcar.

           Nem se diga que cabia a Exma Juiz advertir o A. para essas consequências, pois que igualmente não tem que o fazer quando o depoimento de parte é prestado na audiência de julgamento.

            Sem que, com isso, venha, obviamente, a produzir uma decisão surpresa ou a condicionar o princípio da tutela jurisdicional efectiva.

            É que a  decisão surpresa implica que à parte não seja exigível prever a questão que acaba por determinar a decisão[9]  – o que não sucede na situação dos autos -  e a  violação da tutela jurisdicional efetiva pressupõe que o processo não  proporcione às partes a realização concreta, real e efetiva do direito violado, o que não ocorreu, desde logo, porque o A., devidamente acompanhado pela sua Advogada, aceitou tomar posição sobre os factos em causa em vez de sobre eles se vir a pronunciar em depoimento de parte.

        Dispõe o art. 607º/5 CPC que «o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».

            Norma, em função da qual, não pode o apelante pretender que relativamente aos factos que livremente confessou na audiência prévia foi feito em julgamento prova contrária, pois que, como se referiu, a confissão judicial escrita faz prova plena contra o confitente – art 358º/1 CC-  por isso não admitindo prova do contrário, por estar em causa uma prova pleníssima.

            O que se veio de dizer, se torna incólumes os factos confessados pelo A. na audiência prévia, nos precisos termos em que o foram, não significa, apesar de tudo, que os mesmos implicassem obrigatoriamente o insucesso da acção.

           O que a Exma Juíza quo compreendeu perfeitamente, inserindo os factos em causa no panorama global da totalidade da prova produzida em julgamento, a cuja apreciação seguidamente  procedeu, como resulta da fundamentação da decisão da matéria de facto que produziu, e que aqui se transcreve, quase na íntegra:

           «Para responder aos factos foi considerada toda a prova produzida, no seu conjunto e em confronto, tendo em conta as regras gerais sobre o ónus da prova (art. 342º do Código Civil), bem como aquelas a ter em conta nos casos de dúvida sobre a realidade dos factos, conforme dispõe o art. 414º do C.P.C.

            Os factos constantes:

           - dos pontos 2) a 4), 6), 8) a 11) e 13) a 34) dos factos provados estão-no por acordo – vd. Acta da Audiência Prévia, em que a respectiva factualidade foi expressamente aceite.

           - do ponto 1): está-o pelo documento n.º 5 junto com a contestação (histórico do registo de propriedade do veículo;

           - do ponto 5): mostra-se provado pelo doc. n.º 1 da contestação – condições especiais do contrato de seguro;

            -do ponto 7) mostram-se provados pelo auto de notícia que constitui o documento n.º 3 junto com a p.i., conjugado com o depoimento da testemunha DD, militar da GNR que recebeu a denúncia;

            - do ponto 12) mostram-se provados pelos documentos n.ºs 7 a 10.

           Quanto aos factos que mereceram resposta negativa tal resultou da ausência de prova sobre essa factualidade, pela parte à qual a mesma incumbia, atentas as regras do direito probatório material.  (…)

            Antes de mais, há que referir que é inequívoco que no dia 16-06-2021, cerca das 00:05 horas, o A. dirigiu-se ao Posto da GNR de Souselas, onde participou o furto da viatura identificada no ponto 1) dos factos provados.

            Quanto ao furto do veículo e pelas circunstâncias em que o mesmo ocorreu, o A., ouvido em declarações de parte, explicou que, no dia 15-6-2021 se deslocou no veículo de matrícula ..-EC-.. para o seu local de trabalho, no destacamento de trânsito da GNR de Coimbra, sito na Av. .., onde fazia turno entre as 16 e as 24 horas. Mais referiu que tentou estacionar o veículo no interior das instalações da GNR, mas não havia lugares disponíveis, pelo que o estacionou na via pública, em local destinado aos utentes que se deslocam à GNR. Descreveu igualmente a forma como actuou quando, ao terminar o seu turno de trabalho, se apercebeu que a viatura tinha desaparecido do local onde a deixara estacionada.

           Porém, no dia 15-6-2021, ninguém viu o A. a conduzir o mencionado veículo de matrícula ..-EC-.. ou tampouco o viu estacionado no local em que o A. afirma que o deixou.

           Acresce que a Ré Seguradora invocou e provou factos susceptíveis de abalar a versão do sinistro invocada pelo A.

           Começando pela dificuldade inerente à subtracção de um veículo daquela marca e modelo, a testemunha CC, averiguador de sinistros, descreveu de forma pormenorizada os diversos passos e obstáculos que um ladrão, ainda que com perícia, experiência e conhecimentos técnicos, teria que vencer para se introduzir no habitáculo do veículo em questão e o retirar do local onde estaria imobilizado. Efectivamente, a referida testemunha referiu que, para além do risco de o carro ter alarme, naquele veículo, estroncar a fechadura, sempre levaria três a quatro minutos e partir um vidro seria muito ruidoso e representaria um risco acrescido, considerando o local onde o A. alegadamente o terá estacionado (a cerca de 20/25 metros do Comando Territorial da GNR). Por outro lado, as barreiras electrónicas de que aquele modelo é dotado para evitar ser furtado – sistema eletrónico de codificação de chaves e chip imobilizador na ignição – exigem, para tornear este sistema, ser conhecedor do mesmo e estar preparado para o vencer com hardware e software apropriados, o que, ainda assim, não demoraria menos do que dez minutos.

           Conforme refere a Ré, estas circunstâncias tornam especialmente arriscado perpetrar um furto de veículo à porta do Posto da GNR de Souselas e a 25 metros do Comando Territorial de Coimbra da GNR, numa artéria citadina e com constante movimento de pessoas e veículos nas suas imediações – conforme referiu a testemunha EE, chefe da secção de cinotecnia do Comando da GNR de Coimbra, trabalham entre 200 e 300 pessoas naquele local.

           Também a factualidade invocada e provada pela Ré a propósito das chaves do veículo é de molde a questionar o mencionado furto, nas referidas circunstâncias.

            Se não, vejamos.

            Na Audiência Prévia, o A. aceitou expressamente a seguinte factualidade invocada pela Ré:

            - que afirmou ao averiguador da ré que as duas chaves que lhe facultou eram as únicas chaves que possuía do veículo seguro, as quais lhe tinham sido entregues aquando da sua aquisição, em 05.01.2015;

            - apenas uma delas correspondia à chave original do EC e a outra correspondia a uma cópia efectuada sem a intervenção e autorização da marca;

          - a chave indicada pelo A. como chave secundária ainda possuía a respectiva lâmina por lavrar, ou seja, era uma chave que não possuía quaisquer ranhuras, sendo destinada a ser adaptada à fechadura de qualquer viatura automóvel que usasse aquele formato de chave;

            - o EC efectuou inspecções obrigatórias nas seguintes datas, apresentando os seguintes quilómetros percorridos: . IPO a 09/07/2015 ---------------- 243 717kms . IPO a 09/05/2016 ---------------- 271 633kms (+27 916kms) . IPO a 20/07/2017 ---------------- 210 308kms (-61 325kms) . IPO a 17/07/2018 ---------------- 222 090kms (+11 782kms) . IPO a 22/07/2019 ---------------- 237 356kms (+15 266kms) . IPO a 21/07/2020 ---------------- 248 905kms (+11 549kms);

          - o veículo seguro foi sujeito a uma viciação da sua centralina, ao nível do registo do número de quilómetros percorridos, ocorrendo uma redução do número de quilómetros, entre as inspecções realizadas nos dias 09.05.2016 e 20.07.2017;

            - o Autor faltou à verdade quando referiu ao averiguador da Ré que utilizava o EC diariamente nas suas deslocações, porquanto, em cerca de 11 meses, o veículo seguro teria percorrido 290 quilómetros;

           - de acordo com a leitura da chave secundária do EC, aquando da sua última utilização (28/07/2020), o veículo seguro registava ter percorrido 249.156 kms, pelo que a diferença para a chave principal, cuja última utilização ocorreu cerca de 11 meses após, indicava ter percorrido apenas mais 69 quilómetros;

            - o veículo seguro não era utilizado diariamente pelo Autor nas suas deslocações;

            - o veículo seguro possuía mais do que duas chaves para o accionar e o Autor estava na posse de, pelo menos, uma terceira chave do dito veículo, facto que ocultou à Ré; - quando o averiguador da Ré devolveu as chaves do EC ao Autor e lhe exibiu a lâmina por lavrar da chave secundária, este ficou visivelmente atrapalhado e comprometido, dizendo que nunca reparara que a chave estava naquelas circunstâncias e que sempre funcionara perfeitamente.

           As testemunhas FF e CC, averiguadores de sinistros, explicaram que as chaves deste modelo da BMW possuem um sistema integrado de memória que procede ao registo actualizado de diversas informações relacionadas com o funcionamento do veículo, nomeadamente as que constam do computador de bordo, registando, entre outras informações, a data em que pela última vez accionaram o motor do veículo e quais os quilómetros que o mesmo tinha percorrido até essa mesma data.

           Ora, a viciação na centralina do veículo do A., admitida pelo próprio nos termos supra referidos, que explica o retrocesso de quilómetros entre as inspecções realizadas nos dias 09.05.2016 e 20.07.2017, é contraditória com a justificação por si dada, em sede de declarações de parte: a substituição do quadrante.

          Também a circunstância de o Autor estar na posse de, pelo menos, uma terceira chave do dito veículo, o que negou em sede de declarações de parte, retira credibilidade a essas mesmas declarações e gera dúvidas quanto ao motivo pelo qual ocultou à Ré essa terceira chave. Conforme referiu BB, averiguador de sinistros, com essa outra chave “é fácil pô-lo noutros mercados”. De resto, essa mesma terceira chave contém, necessariamente, o mesmo tipo de informações registadas pelas outras duas o que, considerando a sua não disponibilização pelo Autor, inviabilizou a respectiva leitura.

           Finalmente, a participação de quatro sinistros no espaço temporal de seis anos (o que está em discussão nos presentes autos e os referidos nos pontos 20), 21) e 22) dos factos provados), enquadram o Autor num perfil de segurado com anormal sinistralidade, face ao comum dos segurados.

           Todos estes elementos conjugados entre si justificam a impossibilidade de formular um juízo de verosimilhança relativamente à ocorrência do sinistro participado.

           Ou seja, a seguradora Ré logrou provar circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita pela queixa apresentada pelo A.».

           Concorda-se com a apreciação da prova efectuada pela 1ª instância, entendendo também este Tribunal que «a seguradora Ré logrou provar circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita pela queixa apresentada pelo A.».

           Efectivamente,  ainda que se entenda que não obstante o que consta do ponto  17  da matéria de facto – onde se diz que «De acordo com o apurado junto do Posto da GNR de Souselas e, bem assim, junto do Comando Territorial da GNR de Coimbra, o Autor estacionava sempre o EC (e o Audi Q7 de que é proprietário) dentro do parque interior do Posto da GNR» - se deve, naturalmente,  entender que o A. o fazia normalmente, não se excluindo que estacionasse fora desse parque interior do Posto da GNR quando não houvesse lugar nesse parque, a verdade é que  as circunstâncias do local não se mostravam propicias ao furto em causa (cfr factos 15 a 19) , a menos que a subtracção do veiculo fosse efectivada por meios elecrónicos e/ou com chaves do mesmo. Por isso impressiona tão negativamente que o A. tenha admitido estar na posse de uma terceira chave do veiculo, como impressiona negativamente que o tenha ocultado à R.  (facto 32).

           Mas, outras circunstancias há, trazidas aos autos pela testemunhas da R. que intervieram na averiguação do furto participado, máxime a testemunha CC, que sugerem fortemente que o A.  tenha falseado aspectos vários.

            Assim,  a mal explicada redução do número de quilómetros entre 2016 e 2017, menos 61 325 Kms  (a substituição do quadrante na sequencia  de  avaria na centralina, com que o A. se justificou, desde que feita fora da marca e sem factura, não aponta para uma involuntária  redução de Kms), que pode fazer, efectivamente, crer, que já então o A. teria vontade  de vender o  veiculo em causa, sendo que se o não conseguisse, sempre lograria com essa sua actuação a maior valorização do mesmo junto da Cº de Seguros  D... com quem contratou seguro de danos próprios  em 24/3/2017  (cfr fls 107/108), aliada à circunstância  do pouco interesse comercial do veiculo, em função de, sendo a respectiva matricula de Junho de 2007 (cfr Condições Particulares da apólice) ser muito elevado o respectivo IUC ( cerca de 700 €  anuais  à data da participação do furto).

            Como  choca a circunstância da leitura das chaves ( a  da cópia  efectuada sem intervenção e autorização da marca e que possuía surpreendentemente a respectiva lâmina por lavrar, leitura essa,  apenas conseguida na  “E...”)  apontar para a conclusão de que, ao contrário do que o referiu o A. aos averiguadores, uma das duas chaves que lhes facultou para leitura e análise das informações, não  lhe ter sido entregue aquando da aquisição do veiculo por ser necessariamente posterior à adulteração dos Kms, levando a crer que o A. se enganara  na entrega das chaves ao averiguador, entregando-lhe a chave cópia em vez da terceira chave que admitiu possuir, por isso se tendo embaraçado e comprometido quando o averiguador lhe mostrou aquela  chave  com a lâmina por lavrar.

            Incomoda também perceber que o A. falseou ainda a informação dada à seguradora quando lhe referiu que utilizava o veiculo em causa nas suas deslocações para o trabalho – o que, nas suas palavras, implicava 30/40 Km por cada uma – quando a leitura de ambas as chaves obriga à conclusão de que o A. se deslocou muito pouco nesse veiculo.  É que, no que respeita à chave da marca, a mesma registou na respectiva leitura como último registo de utilização, o dia  15/6/2021, pelas 15,40 (dia e hora essas, correspondente às declarações do A.), acusando a quilometragem de 249.195, valor que, relativamente ao da última inspecção  – 21/7/2020, mais de um ano antes  - difere apenas 290 Km; e no que respeita à chave cópia,  entre 28/7/2020,  data que a mesma regista como a da última utilização do veiculo, e a data referida como a do furto,  essa diferença é marcadamente diminuta – sendo de 39 km.

            Também esta pouca utilização do veiculo no ano transacto ao do alegado furto, dá corpo à ideia de que o A. já se procuraria desfazer do veiculo, por o mesmo já não corresponder aos seus interesses de circulação. O que em si não seria censurável, não fosse o A. ter referido aos averiguadores que utilizava o EC diariamente nas suas deslocações.

            Tudo factos que concorrem suficientemente para afastar a prova de 1ª aparência decorrente da participação do furto e a consequente demonstração do mesmo.

           Neste quadro, torna-se irrelevante que sejam relativamente frequentes furtos de veículos BMW com características semelhantes ao do  A. e da ocorrência recente de furtos em Santo Tirso como resulta da noticia trazida aos autos pelo A. na audiência de julgamento.

           Também neste quadro, e como é evidente, não pode deixar de se manter como matéria não provada, a de que:  

           - No dia 15-06-2021, pelas 15h45, o A. deixou o veículo estacionado na via pública, na Av. ... em Coimbra, junto ao Edifício da GNR do Comando Territorial de Coimbra, tendo-se dirigido ao seu local de trabalho, uma vez que o seu turno de trabalho se iniciava pelas 16h00 (art. 10º da p.i.).

           - Cerca das 21h20, quando o A, se deslocou ao exterior do edifício, o veículo ainda se encontrava estacionado no local onde o A. o havia deixado (art. 11º da p.i.).

           - No dia 15-06-2021 o veículo segurado foi furtado na via pública (art. 7º da p.i.).          - No fim do turno, cerca das 00:00 horas e quando se deslocava em direção ao seu veículo para regressar a casa, o A. constatou que o mesmo tinha sido furtado (art. 12º da p.i.).

            Relativamente à questão de saber se o valor comercial do veiculo em causa, em 15/6/2021, não era inferior a € 16.550,00 (art. 3º da p.i.), para além do facto em apreço deixar de ter qualquer relevância – e já não a tinha à partida, por ter de valer o valor pelo qual o mesmo foi segurado, diminuído em função da tabela de desvalorização (03) constante das Condições Particulares da Apólice – a prova produzida pelas testemunhas do A. foi tudo menos precisa relativamente a esse valor comercial.

            Saber se o A. tinha dentro do veículo o seu notebook pessoal, avaliado em cerca de 250,00€, atendendo o seu estado de usado (art. 23º da p.i), é absolutamente irrelevante porque esse bem não é objecto do seguro. 

            Saber se  o A. não tem dinheiro para comprar outro carro (35º da p.i.),  se  tinha já vendido o outro carro de que era proprietário e teve que desfazer o negócio, o que causou grande mau estar perante o comprador, pois se assim não fosse ficaria sem qualquer carro para circular e para se deslocar para o trabalho e levar e buscar as suas filhas à escola e às suas atividades (art. 37º da p.i.), o  que também se está a traduzir num prejuízo para o A. pois o carro que tinha vendido está a desvalorizar e já não o irá conseguir vender pelo mesmo valor (art. 38º da p.i.), só pode, salvo o devido respeito, corresponder a manobras de diversão por parte do A . destinadas a retirar centralidade ao que importa, desde logo, porque o pedido formulado na acção não comporta esses apontados prejuízos.

            Quanto à possível preocupação, nervosismo e insónias ao A. em face da recusa da  R. em assumir a responsabilidade pelo sinistro participado, se existem, dever-se-ão, em grande parte, às declarações  pouco coerentes que fez  junto dos averiguadores e a sua atitude processual nos presentes autos na audiência prévia, e de que atrás se falou .

            Conclui-se, pois, pela improcedência da apelação, havendo que confirmar a sentença recorrida.

            V- Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelo apelante.

                                                               Coimbra, 7 de Maio  de 2024
(Maria Teresa Albuquerque)
(Pires Robalo)
(Luís Carvalho Ricardo)

(…)

               [1] -Ac. da RL de 22/11/2018, Proc 18262/17.2T8LSB.L1-2 (Pedro Martins): «O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação»

               Esta acção foi julgada improcedente na 1ª instância e procedente na Relação.

              -Ac. da RG 16/5/2019, Proc 3164/17.0T8VNF.G1 (Paulo Reis): «Em ação na qual é peticionada indemnização por danos sofridos em consequência do furto do veículo, invocando-se para o efeito a existência de contrato de seguro celebrado com a ré/apelante abrangendo tal cobertura, incumbe ao autor/recorrido provar o alegado desaparecimento do veículo em consequência de furto, por se tratar de facto constitutivo do direito à indemnização que reclama; II - Ainda que não se revele exigível ao autor que, nas circunstâncias enunciadas, faça prova direta e pessoal do desaparecimento do veículo, o juízo probatório a empreender ao nível da alegado desaparecimento do automóvel contra a vontade do seu detentor deve centrar-se, no essencial, na formulação de um juízo de verosimilhança suficiente para sustentar uma adequada confirmação das questões de facto enunciadas, as quais se traduzem, então, na fundada probabilidade de tal veículo ter sido deixado pelo autor, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar por este descritas, com a constatação do seu desaparecimento sem motivo aparente»

                Esta acção foi julgada parcialmente procedente na 1ª instância e improcedente na Relação, e estava nela em causa um veículo de marca BMW, modelo ... D  ..., com 1ª matrícula de Outubro de 2014.
              -Ac RP de 10/7/2019 (Rodrigues Pires), in dgsi.pt: «I - Numa acção em que o autor invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro com a ré, em consequência de se ter verificado um furto, é a ele que incumbe a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito. II - Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. III - Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais»
                 Acção julgada improcedente, decisão confirmada na Relação.
               - Ac R P de 8/11/2022, Proc 2842/20.1T8STS.P1 (Fernando Vilar Ferreira): «Porque o evento “furto de veículo”, enquanto risco coberto por contrato de seguro de danos, se assume como elemento constitutivo do direito de indemnização do autor, sobre este impende o respetivo ónus de prova, nos termos do preceituado no art. 342.º, n.º 1, do CCivil. III – Ainda assim, não é de exigir ao autor, tomador do seguro, prova concludente no sentido da verificação dos elementos típicos que integram o crime de furto (subtração com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa - v. art. 203.º, n.º 1 do CPenal), bastando para o efeito prova indireta e indiciária (de primeira aparência), que pode passar pela apresentação de denúncia às autoridades policiais, em conjugação com outros elementos de prova coadjuvantes que possam conduzir à formulação de um juízo de verosimilhança relativamente àquela denúncia, não contrariado de forma relevante pelos elementos trazidos à lide pela seguradora».
               Acção julgada improcedente ma 1ª instância, e parcialmente procedente na Relação.
                -Ac. RP de 10/01/2022, Proc 6509/18.2T8MTS.P1 (Damião e Cunha); «Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar, impõe-se à autora não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. III - Nesta medida, efectuada esta prova do furto do veículo (demonstração de ter sido efectuada a participação policial em conjugação com outros elementos probatórios credíveis), teria a Ré seguradora, para afastar a sua responsabilidade contratualmente assumida, que pôr em causa a aludida verosimilhança das alegações fácticas da Autora fundada naquela prova»    
               Acção julgada parcialmente procedente na 1ª instância, decisão confirmada na Relação.

               - Ac. da RG de 11/07/ 2013, Proc 2135/12.8TBBRG.G1, (Ana Cristina Duarte):  «II – Porque o evento “furto de veículo”, enquanto risco coberto por contrato de seguro de danos, se assume como elemento constitutivo do direito de indemnização do autor, sobre este impende o respetivo ónus de prova, nos termos do preceituado no art. 342.º, n.º 1, do CCivil.
III – Ainda assim, não é de exigir ao autor, tomador do seguro, prova concludente no sentido da verificação dos elementos típicos que integram o crime de furto (subtração com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa - v. art. 203.º, n.º 1 do CPenal), bastando para o efeito prova indireta e indiciária (de primeira aparência), que pode passar pela apresentação de denúncia às autoridades policiais, em conjugação com outros elementos de prova coadjuvantes que possam conduzir à formulação de um juízo de verosimilhança relativamente àquela denúncia, não contrariado de forma relevante pelos elementos trazidos à lide pela seguradora».

               Acção parcialmente procedente na 1ª instância, decisão confirmada na Relação.
                [2]  -  Teixeira de Sousa, «As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa»,  p 208 e ss, em que refere: « Na  prova  histórica, o facto que o tribunal percepciona representa o facto a provar; são exemplos de provas históricas a prova documental e a testemunhal  porque aquilo que é transmitido pelo documento ou pelo depoimento permite ao tribunal retirar a prova do facto. Na prova indiciária, o facto levado ao conhecimento do tribunal  (facto probatório ou indiciário) permite deduzir o facto que constitui o objecto da prova (facto essencial).»
              [3] - E não já de medida da prova exigida para o Tribunal alcançar a convicção. De novo Teixeira de Sousa, obra referida, p 200 

          [4] - Manuel de Andrade, «Noções Elementares de Processo Civil», p 212
                [5] Não confundir prova contrária como prova do contrário que é a necessária para infirmar a prova plena
                [6] – Obra referida, p 241.
                [7] - Obra referida, p 244-245
                [8] - Obra referida, p 248
                [9] - Cfr por todos, Ac R P 2/12/2019 (Eugénia Cunha)