Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/22.4T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA CONDICIONAL
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA FIDEICOMISSÁRIA
DISPOSIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA IRREGULAR
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 54.º, 2 E 55.º, A), DO CÓDIGO DO NOTARIADO
ARTIGOS 9.º; 68.º; 69.º; 70.º E 140.º, 1, DO CRPREDIAL
ARTIGOS 2059.º, 2; 2157.º; 2187.º; 2229.º; 2242.º, 1; 2286.º; 2291.º; 2295.º, 1 E 3 E 2361.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I - a distinção entre uma disposição testamentária condicional e uma disposição testamentária fideicomissária tem como critério o carácter retroactivo, ou não, da disposição, pois se existir a vontade de que a devolução do primeiro chamado não seja integralmente eliminada, existe sucessão de chamados e assim uma substituição fideicomissária; e se, diversamente, se pretender que o facto tenha eficácia retroactiva, afastando da sucessão o primeiro chamado, existirá uma disposição condicional.

II - tal critério vale para a disposição fideicomissária irregular.

III - na disposição pela qual o testador estabelece que «No caso de sua mãe lhe prefalecer institui herdeira de toda a sua herança, sua referida mulher, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB», a existência do resíduo no momento do óbito da mulher não atribui eficácia retroactiva ao seu chamamento sucessório, existindo uma transmissão sucessiva nos mesmos bens que configura um fideicomisso irregular (ou de resíduo) para os termos do art. 2295º n.º2 al. b) do CC por indicar objectivmente uma substituição sucessiva de herdeiros, não existindo elementos que revelem uma vontade de substituição alternativa de herdeiros.

Decisão Texto Integral:
Relator: António Marques da Silva
1.º Adjunto: Luís Manuel Ricardo
2.º Adjunto: falcão Magalhães


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. CC, solicitador, requereu o registo de aquisição, por compra, de um prédio, registo que veio a ser efectuado provisoriamente por dúvidas na medida em que, e no essencial, a Exma. Sra. Conservadora do Registo Predial considerou que o prédio alienado se integrava em fideicomisso irregular, e estaria em falta o consentimento dos fiduciários para a alienação, mais fazendo referência a não se perceber a menção feita no título ao legado do usufruto, face aos termos da habilitação de herdeiros e do testamento que o instruíram.

O apresentante apresentou recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., sustentando no essencial que não estaria em causa um fideicomisso irregular mas uma disposição testamentária sob condição.

A Exma. Sra. Conservadora manteve o despacho de qualificação.

O recurso não foi objecto de apreciação por razões formais (falta, não sanada, de assinatura electrónica qualificada).

Foi então impugnado judicialmente o despacho de qualificação da Exma. Sra. Conservadora, adoptando o impugnante a mesma linha argumentativa, especificando que não existe um fideicomisso porque o testador quis beneficiar o seu cônjuge e não impôs no testamento o encargo de conservar e transmitir os bens.

O MP deu parecer, aderindo à posição da Sra. Conservadora, considerando por isso dever ser julgada improcedente a impugnação.

Foi proferida decisão que julgou improcedente a impugnação, qualificando a disposição testamentária como «um fideicomisso irregular nos termos previsto no artigo 2295.º, n.º1 alínea b) e n.º 3, do Cód. Civil», sendo assim exigível o consentimento dos fideicomissários para a alienação.

Inconformado, o apresentante interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A .../.../1976, DD, falecido a .../.../1997, fez lavrar no Cartório Notarial ..., um testamento cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido e na parte que ao recurso interessa, dispõe: “como não tem descendentes e ainda tem a sua mãe viva, institui herdeira da quota disponível da sua herança, sua mulher EE, consigo convivente. No caso de sua mãe lhe prefalecer institui herdeira de toda a sua herança, sua referida mulher, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB”.

2. DD foi casado em primeiras núpcias, sob o regime da comunhão geral de bens, com EE.

3. DD, não teve descendentes nem tinha ascendentes vivos, à data da sua morte.

4. A 24 de setembro de 2019, foi celebrada Escritura Pública de Habilitação de Herdeiros, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido e na parte que ao recurso interessa, dispõe: “falecido no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de bens de comunhão geral de bens com EE e sem descendentes e ascendentes vivos. Que o falecido fez testamento público, lavrado no Cartório Notarial ... aos quinze de outubro de mil, novecentos e setenta e seis (…) pelo qual instituiu herdeira da quota disponível da sua herança, sua mulher EE, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB. Que o falecido deixou como única e universal herdeira: a mulher, EE, natural da freguesia ..., concelho ... e residente no Lar ....”

5. A 04 de maio de 2020, por via de Documento Particular Autenticado, foi celebrado contrato de compra e venda entre EE como vendedora (representada por FF, munido de procuração, que se dá por integralmente reproduzida, outorgada a seu favor, conferindo-lhe poderes especiais para efetuar a referida venda) e GG, como comprador.

6. O referido negócio refere-se à compra e venda do prédio rústico sito à “...”, da freguesia ..., concelho ..., composto por terra de eucaliptal, pinhal e mato, com a área de 900 m2, a confrontar de Norte e Nascente com GG e do sul e poente com HH, não descrito na CRP ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...48, da respetiva freguesia, que provém do anteriormente inscrito na freguesia ... (extinta) sob o número 2981, com o valor patrimonial de €8,48 e o valor tributável de €500,00.

7. Em detrimento da referida venda, foi celebrado termo de autenticação do Documento Particular de Autenticação “Contrato de Compra e Venda”, em 04 de maio de 2020, perante o ora Recorrente, Solicitador.

8. O ora Recorrente apresentou na Conservatória do Registo Predial ..., um pedido presencial de registo de aquisição, com o n.º 73, Ap. n.º ...74, a favor de GG, do prédio n.º ...48, da freguesia ..., no concelho ....

9. Tendo a Exma. Senhora Conservadora da CRP ..., registado a referida aquisição como provisória por dúvidas, uma vez que entendeu que a disposição da propriedade do prédio se encontra, alegadamente, sujeita ao regime da substituição fideicomissária irregular, nomeadamente, do fideicomisso de resíduo, previsto na alínea b), do n.º 2, do artigo 2295.º do Código Civil, pelo que, alegadamente, a venda carece de consentimento dos fideicomissários, i.e., dos sobrinhos do de cuiús, para que seja válida.

10. O ora Recorrente interpôs recurso hierárquico contra a Conservatória de Registo Predial ..., dirigido ao Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Registos e Notariado, requerendo o registo definitivo da aquisição, em face da verificação de uma disposição condicional, ao invés do regime da substituição fideicomissária.

11. A Exma. Senhora Conservadora apresentou Despacho de Sustentação, o qual manteve o despacho de provisoriedade por dúvidas da inscrição de aquisição.

12. O Conselho Consultivo emitiu um primeiro Parecer, que se dá por integralmente reproduzido, em 29 de março de 2021, homologado a 27 de julho de 2021 pelo Presidente do Conselho Diretivo, nomeadamente, para o ora Recorrente suprir a falta de assinatura, sob pena de indeferimento do recurso.

13. Em 07 de dezembro de 2021, o Conselho Consultivo aprovou um segundo Parecer, homologado a 07 de dezembro pelo Presidente do Conselho Diretivo, que se dá por integralmente reproduzido, de indeferimento do recurso, por falta de suprimento de vícios.

14. O recorrente impugnou judicialmente a decisão da Exma. Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial (CRP) de ..., de qualificação como provisório por dúvidas, do registo da aquisição na AP. ...74 de 2020/05/14.

15. Tendo sido proferida sentença pelo tribunal “a quo” que declarou a improcedência da impugnação judicial, mantendo o despacho proferido pela Exma. Senhora Conservadora do Registo Predial ....

16. Entende o Recorrente que a sentença ora recorrida não valorou corretamente, como se impunha, a matéria de Direito.

17. Desde logo, estabelece o n.º 2 do artigo 54.º do Código do Notariado (CN) que “Os instrumentos pelos quais se partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles, não podem ser lavrados sem que também se faça referência à inscrição desses direitos em nome do autor da herança, ou de quem os aliena, ou à inscrição de propriedade do prédio em nome de quem o onera.”

18. Sendo essa mesma exigência dispensada se, nos termos da alínea a) do artigo 55.º do CN, “(…) nos actos de partilha de herança e, tratando-se de prédios não descritos ou sem inscrição de aquisição, nos de transmissão de prédios que dela façam parte, se os partilhantes ou transmitentes se encontrarem habilitados como únicos herdeiros, ou for feita, simultaneamente, a respectiva habilitação.”

19. Ora, de iure condendo, uma vez que o prédio em causa não se encontrava descrito, à data da outorga da compra e venda mencionada, a exigência de referência à inscrição do direito de propriedade não é obrigatória.

20. Contudo, o mesmo é valorado pela Exma. Senhora Conservadora e pelo Tribunal “a quo”, na medida em que aplica um juízo de exclusão, em detrimento do fideicomisso de resíduo.

21. Pelo que, não pode, salvo o merecido respeito por entendimento diverso, o mesmo ser fundamento de recusa do registo de aquisição, nem, tampouco, ser justificação para submeter a herança por óbito de DD ao regime do fideicomisso irregular, estabelecido na alínea b), do n.º 1, do artigo 2295.º do Código Civil (CC).

22. A disposição testamentária terá de ser interpretada à luz dos critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 2187.º do CC, pois perante disposições testamentárias, indagar-se-á a vontade do testador, interpretando o contexto declarado conforme o que parecer mais ajustado àquela vontade.

23. Tendo o testador previsto duas hipóteses condicionais, nos termos do artigo 2229.º do CC: (1) que a mãe lhe pré-falecesse; (2) que restassem bens da sua herança, à data da morte da sua mulher.

24. Uma vez que a primeira condição referida se verificou, operaria a disposição em que “(…) institui herdeira de toda a sua herança, sua referida mulher, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB”.

25. Reconstruindo a vontade do de cuiús, cristalizada no testamento de 15 de outubro de 1976, parece que este quis acautelar a posição da sua esposa, EE, na sucessão hereditária, num quadro em que não tinham quaisquer descendentes.

26. Tudo parece indicar que o marido quis deixar à sua mulher todos os seus bens, o que coaduna com o facto de, à data do testamento, o cônjuge não ser herdeiro legitimário e de apenas ocupar a quarta classe dos sucessíveis, depois dos irmãos e descendentes do de cuiús.

27. Pelo que, de acordo com o regime legal em vigor no momento da outorga do testamento, o cônjuge não teria direito a qualquer parte da herança, salvo se o de cuiús tivesse acautelado a sua posição em disposição testamentária, o que se verificou.

28. Em face da interpretação da vontade cristalizada no testamento, à luz do contexto histórico e legal, conclui-se que o de cuiús instituiu, nos termos do artigo 2229.º do CC, disposição condicional de, eventualmente, virem a restar bens pertencentes à herança do de cuiús no momento da morte da sua mulher, EE.

29. Desde logo, nas disposições testamentárias, o de cuiús não instituiu qualquer encargo à herdeira, sua mulher.

30. Sendo certo, portanto, que a vontade do testador foi de, em qualquer situação, acautelar a posição hereditária da sua mulher.

31. Razão, pela qual, declarou que instituía como sua única herdeira a sua mulher, EE.

32. Pelo que, interpreta-se que a vontade do de cuiús não foi acautelar a posição dos sobrinhos, ao contrário do proferido no recorrida sentença, pois, caso fosse essa a sua intenção, teria disposto, igualmente, nesse sentido, para o caso de sua mãe ainda ser viva aquando do seu falecimento, o que não se verificou.

33. Foi, pois, propósito do testador instituir a sua mulher como sua única herdeira, tendo em conta o regime legal sucessório em vigor, na data da outorga do referido testamento, em que o cônjuge ainda ocupava a quarta classe dos sucessíveis, depois dos irmãos e descendentes destes.

34. Tal vontade, assim expressa, foi perfeitamente legal e compreensível, num quadro em que não tinha descendentes nem ascendentes, não tendo, então, herdeiros legitimários, sendo notória a intenção de acautelar a posição da sua mulher.

35. E, prevendo a hipótese condicional de ainda restarem bens da sua herança à data da morte da sua esposa, dispôs desses eventuais bens, atribuindo-os aos seus sobrinhos.

36. Trata-se de um destino da herança que corresponde, objetivamente, aos trâmites normais da vida, interpretando o testamento, desta forma, à luz dos critérios estabelecidos no artigo 2187.º do CC.

37. Garante-se, assim, a posição da herdeira testamentária – o cônjuge -, subtraindo a herança à aplicação das regras da sucessão legítima, a favor dos sobrinhos que se apresentavam, na data do testamento, como sucessíveis prioritários na sucessão legítima e só depois, após a morte da sua mulher, para o caso de sobrarem bens daquela herança, então que sucedam aqueles herdeiros legítimos, sobrinhos do testador.

38. Pelo que, dessa forma, proteger-se-á primeiro o cônjuge e apenas depois os referidos herdeiros legítimos do testador, na condição de haver bens dessa herança aquando a morte da sua mulher.

39. Sendo certo que o testador pretendeu apenas acautelar a posição hereditária da sua mulher, não querendo-lhe impor qualquer encargo fideicomissário, ainda que nos termos do fideicomisso irregular.

40. Não podendo, dessa forma, colher-se o entendimento de que ficou instituída a figura do fideicomisso irregular, nos termos previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 2295.º do Código Civil, no testamento outorgado, por violação do estabelecido no artigo 2187.º do CC.

41. Em face do exposto, e em cumprimento do estabelecido nos artigos 2187.º, n.º 1 e 2229.º do Código Civil, e artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 8.º-A, n.º 1, alínea a) do Código de Registo Predial, deveria, em nosso entender, ter sido a impugnação judicial julgada procedente.

42. Pelo que, destarte, deve, salvo douto suprimento, o registo de aquisição pela AP. ...74 de 2020/05/14, a favor de GG, ser lavrado a título definitivo.

43. Impondo-se, nesta sede, a revogação da sentença recorrida e substituição por decisão que ordene o registo definitivo da referida aquisição.

O MP respondeu, considerando que a disposição testamentária constituía um fideicomisso irregular e que devia ser mantida a decisão impugnada.

Cumpre decidir

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

            Assim, a questão a tratar radica na qualificação da disposição testamentária realizada (disposição fideicomissária irregular ou disposição sob condição) e os efeitos de tal qualificação nos termos do registo requerido.

III. Estão assentes os seguintes factos:

1. Em 15.10.1976, no Cartório Notarial ..., DD outorgou um testamento declarando que: “como não tem descendentes e ainda tem a sua mãe viva, institui herdeira da quota disponível da sua herança, sua mulher EE, consigo convivente. No caso de sua mãe lhe prefalecer institui herdeira de toda a sua herança, sua referida mulher, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB”.

2. A 24.09.2019 no Cartório Notarial do concelho ..., foi celebrada escritura de Habilitação de Herdeiros, na qual, entre o mais, foi declarado: “que em .../.../1997, na freguesia ... em ..., faleceu DD, que era natural da freguesia ..., concelho ..., onde teve a sua ultima residência no lugar..., falecido no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de bens de comunhão geral de bens com EE e sem descendentes e ascendentes vivos. Que o falecido fez testamento público, lavrado no Cartório Notarial ... aos quinze de outubro de mil, novecentos e setenta e seis (…) pelo qual instituiu herdeira da quota disponível da sua herança, sua mulher EE, devendo o que restar à morte desta beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos dos seus irmãos AA e BB. Que o falecido deixou como única e universal herdeira: a mulher, EE, natural da freguesia ..., concelho ... e residente no Lar ....”

3. Ficou a constar na Habilitação de Herdeiros que não existem outros herdeiros que, segundo a lei, concorram com a mulher do de cujus, na respetiva sucessão.

4. Em 22.02.2019 EE outorgou procuração constituindo seu bastante procurador FF, a quem concedeu os poderes necessários para em seu nome podendo fazer negócio consigo mesmo, proceder à partilha dos bens deixados por óbito do seu marido, DD, com que foi casada sob o regime de comunhão geral de bens (…). Mais lhe conferindo poderes para em seu nome, e pelo preço clausulas e condições que tiverem por convenientes, comprar, vender, doar, (…) quaisquer bens imóveis, direitos prediais ou direitos reais recebendo o preço e dando quitação, elaborar e assinar contratos promessa de compra e venda, hipoteca e penhor, outorgar e assinar as competentes escrituras de compra e venda, (…) requerer quaisquer atos de registo predial, provisórios ou definitivos (…).

5. O termo de autenticação da procuração, foi celebrado em 22.02.2019, perante o Solicitador CC.

6. Por documento particular denominado “Contrato de Compra e Venda” relativo a prédio rústico, outorgado em 4 de maio de 2020, na presença do Solicitador CC, entre FF, na qualidade de procurador de EE, viúva (primeiro outorgante) e GG (segundo outorgante), foi celebrado o contrato no qual, se lê: «(Primeira Cláusula) o primeiro outorgante vendeu ao segundo outorgante que o aceitou, o prédio rustico sito na freguesia ..., concelho ..., sito e denominado “...”, da freguesia ..., concelho ..., composto por terra de eucaliptal, pinhal e mato, com área de 900m2, a confrontar de Norte e Nascente com GG e do sul e poente com HH, não descrito na CRP ..., inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...48, da freguesia ..., que provém do anteriormente inscrito na freguesia ... (extinta) sob o número 2981, com o valor patrimonial de €8,48 e o valor atribuído para efeitos de IMT de €500,00 com a representação georreferenciada a que foi atribuído o processo número 52..., designado “Imóvel”; (…) (Segunda Cláusula) A representada do primeiro outorgante adquiriu os prédios descritos na cláusula anterior, na herança aberta por óbito de DD. O referido DD faleceu no dia dezassete de novembro de mil, novecentos e noventa e sete, na freguesia ..., concelho ..., natural da freguesia ..., concelho ..., no estado de casado com EE, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral de bens, com a sua ultima residência habitual no lugar.... Que o falecido efetuou em testamento público, lavrado em quinze de outubro de mil novecentos e setenta e seis, no Cartório Notarial ..., exarado de folhas vinte e cinco a folhas vinte e cinco verso do livro de testamento número 40-D e a folhas um a folhas um verso do livro de testamento número 40-D, pelo qual nomeou legatária do usufruto de toda a sua herança e da quota disponível da herança da sua mãe, a sua referida mulher, EE, tendo-lhe sucedido como única universal herdeira, em cima devidamente identificada. Que assim, a representada do primeiro outorgante, outorga na qualidade de única herdeira e interessada no acervo de bens, que constituem a referida herança, aberta por óbito do mencionado autor da herança, da qual faz parte o imóvel ora transmitido. (Terceira Cláusula) O imóvel é vendido pelo preço de quinhentos euros, que o primeiro outorgante, na qualidade que outorga, em nome da sua representada, declara já ter recebido, hoje em numerário, em euros, e que dá a respetiva quitação. (…).»

7. O termo de autenticação do Documento Particular “Contrato de Compra e Venda”, foi celebrado em 4.05.2020, perante o Solicitador CC.

8. Em 14.05.2020 foi apresentado pelo Solicitador CC, na Conservatória do Registo Predial ..., um pedido presencial de registo de aquisição, com o n.º 73, e Ap. n.º ...74, a favor de GG, do prédio n.º ...48, da freguesia ..., do concelho ....

9. O referido prédio encontra-se inscrito na matriz predial rústica, da freguesia ..., do concelho ..., tendo tido origem no artigo 2981, sito em ..., com as confrontações de norte e nascente com GG e do sul e poente com HH, inscrito na matriz no ano de 1990, com o valor patrimonial de €8,48, área de 0,090000 m2, composto de eucaliptal, pinhal e mato, na titularidade de GG.

10. Pela aquisição do direito de propriedade plena sobre o referido imóvel, foi apresentado pagamento em 4.05.2020, à Autoridade Tributária, pelo sujeito passivo GG, do imposto de selo, no valor de €4,00.

11. A Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial ..., proferiu em 24.07.2020 Despacho de Qualificação do registo provisório por dúvidas, do qual entre o mais se lê: «Estamos perante um registo de aquisição cuja legitimação foi feita por feita por sucessão hereditária e testamentária. Decorre do testamento que o testador institui herdeira da sua herança sua mulher “devendo o que restar à morte dela beneficiária, reverter a favor dos seus sobrinhos, filhos de seus irmãos…” Foi assim instituído um fideicomisso irregular nos termos dos artigos 2295.º, n.º1 alínea b) do Código Civil, que estipula que são havidos como fideicomissos irregulares “as disposições pelas quais o testador chame alguém ao que restar da herança por morte do herdeiro”. Ora, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, o fiduciário pode alienar os bens por ato entre vivos, independentemente da autorização judicial, se obtiver o consentimento do fideicomissário, o que não se verifica no Documento Particular Autenticado de compra e venda apresentado. Por ultimo, do referido Documento Particular Autenticado verificamos que é feito referência que do testamento consta “que institui legatária do usufruto de toda a sua herança e da quota disponível da herança da mãe, a sua referida mulher, EE, tendo-lhe sucedido como única universal herdeira” cuja referência e enquadramento não se percebe, face ao testamento e habilitação de herdeiros juntos. Este serviço desencadeou procedimento de suprimento de deficiências, nos termos do art. 73.º do CRP, não tendo havido suprimento das mesmas. Pelo exposto ao abrigo do art. 70.º e 34.º, n.º 2 do CRP foi o registo lavrado por provisoriamente por duvidas, dispondo os interessados de um prazo de seis meses, nos termos do n.º 3 do art. 11 do CRP, para as vir remover, sob pena do mesmo caducar. Notifique nos termos do art. 71.º.»

12. O Solicitador CC foi notificado, por carta registada remetida em 24.07.2020, da provisoriedade do registo da aquisição, proferido no Despacho de Qualificação da Sr.ª Conservadora.

13. Foi interposto recurso hierárquico pelo Solicitador CC contra a Conservatória de Registo Predial ..., conforme Ap....27, dirigido ao Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Registos e Notariado, no qual se pode ler, entre o mais, o seguinte: «reconstruindo a vontade do de cuiús, cristalizada no testamento de 15 de outubro de 1976, parece que este quis acautelar a posição testamentária da sua mulher, EE. Num quadro em que a sociedade conjugal não tinha descendentes, e só “no caso de pré-falecer” a mãe de DD, o que se veio a verificar, tudo parece indicar que o marido quis deixar à sua mulher os seus bens, o que se coaduna com o facto de, à data do testamento, o cônjuge não ser herdeiro legitimário e de apenas ocupar a quarta classe de sucessíveis, depois dos irmãos e descendentes do de cuiús (cfr. artigo 2133.º, alínea d) na redação anterior à dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77 de 25 de novembro). (…) O testador previu ainda a hipótese de restarem bens da sua herança à data da morte da esposa, EE, ao referir “o que restar à morte da beneficiária”, sendo a sua vontade a de, colocando-se a hipótese de restarem bens pertencentes à sua herança, dispor desses eventuais bens, atribuindo-os aos seus sobrinhos. (…). Ou seja, garante-se a posição do cônjuge, em primeira linha, subtraindo a herança à aplicação das regras da sucessão legítima, a favor dos sobrinhos que se apresentavam, na data do testamento, como sucessíveis prioritários na sucessão legítima. (…) Ou seja, primeiro está o cônjuge podendo este livremente dispor dos seus bens, sem que tenha de preservar e conservar os bens para depois transmiti-los por sua morte, a outrem. E, só depois de acautelar o cônjuge, estão os referidos herdeiros legítimos do testador, se bens do de cujus ainda existirem quando aquela falecer. (…) Na disposição testamentária não parece haver fideicomisso uma vez que não se impõe ao cônjuge EE, o encargo de conservar e transmitir os bens do acervo hereditário do de cuiús, que não se pode presumir e tem de resultar de forma expressa e inequívoca do corpo textual. Por outro lado, e consequentemente, resulta implícito que o instituído persevera a faculdade de alienar e transmitir os bens fideicomitidos (…). A cláusula não tem a virtualidade de ser qualificada como encargo fideicomissório (…) apenas se pode configurar como uma cláusula condicional, de acordo com a qual, se, à data da morte do beneficiário (EE) ainda restarem bens deixados pelo de cuiús DD, deverão estes ingressar nas esferas jurídicas dos sobrinhos deste ultimo. (…) irá operar mediante a verificação de uma condição, ou seja, de acordo com o art. 270.º do Código Civil, o acontecimento futuro e incerto, que no caso será o falecimento de EE, havendo na sua esfera jurídica bens pertencentes à herança de DD.(…)»

14. Sobre o recurso hierárquico apresentado, recaiu Despacho de Sustentação da Sr.ª Conservadora, proferido em 14.09.2020, que manteve o despacho de provisoriedade por dúvidas da inscrição de aquisição, e onde se lê, entre o mais: «(…) Não poderá deixar de se entender que a vontade do testador era de sujeitar os bens deixados ao regime legal e próprio do fideicomisso irregular, previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 2295 do CC (…) caracterizado pelas restrições à alienação, conforme n.º 3 do mesmo artigo, que prevê que o fiduciário possa dispor dos bens por atos entre vivos, se obtiver consentimento do fideicomissário. Alegar, como faz o recorrente, que a vontade do testador, face ao conteúdo do testamento, seria de atribuir ao cônjuge sobrevivo a propriedade de todos os bens do testador, sem quaisquer restrições de alienação, valendo a disposição a favor dos sobrinhos, como declaração condicional para a hipótese de à morte do herdeiro existirem bens do testador, não encontra, a nosso ver, qualquer correspondência no texto ou contexto da disposição testamentária, cabendo claramente a citada disposição no preceito legal do art. 2295.º. n.º 1 alínea b) do CC, como fideicomisso irregular. Acresce que no DPA de compra e venda, a herdeira/vendedora/fiduciária é representada por procurador e na procuração depositada no DPA confere poderes ao mandatário para proceder “à partilha dos bens deixados por óbito do seu marido, testador, podendo acordar livremente na composição dos lotes…” o que nos pode conduzir a duas conclusões:

a) que há mais interessados no acervo dos bens da herança pertencente ao testador e tal é assumido pelo cônjuge sobrevivo (fiduciário) ao passar a procuração com tais poderes; e

b) que eventualmente haverá que proceder previamente à partilha a fim de se apurar a meação e legítima do cônjuge sobrevivo, aferindo da ofensa da legitima/meação do cônjuge sobrevivo (fiduciário) pela disposição testamentária em causa, não esquecendo, no entanto, que o “Princípio da intangibilidade” da legítima não é causa de invalidade de atos, antes permite a sua redução por inoficiosidade, nos termos do art. 2178.º do CC.

O recorrente sustenta ainda no seu requerimento de interposição de recurso que bem andou a Sr.ª Notária que lavrou a escritura de habilitação de herdeiro, que declarou “o cônjuge único e universal herdeiro”, mas devemos referir que a habilitação de herdeiros está em desconformidade com o testamento (…).(…) é de referir ainda que não se entendeu recusar o registo de aquisição, cuja qualificação foi objeto do presente recurso, por se considerar que apesar de não ter sido feito prova no pedido de registo, do consentimento do fideicomissário para a venda efetuada, não se trata de “uma verdadeira venda de coisa alheia, dado que a fiduciária também é dona dos bens, embora limitada na extensão dos seus poderes de alienação. Por outras palavras não existe manifesta nulidade de facto, já que se tratará de uma nulidade atípica, sanável por confirmação do fideicomissário.(…)»

15. O Conselho Consultivo aprovou por unanimidade, um primeiro Parecer em 29.03.2021, que foi homologado pelo Presidente do Conselho Diretivo em 27.07.2021, com a seguinte conclusão: «(…) propormos que se ordene a suspensão do presente recurso hierárquico (cfr. art. 652.º, n.º1 alínea g) do CPC), visando permitir ao recorrente, a notificar para o efeito, vir suprir a falta de assinatura no prazo de 10 dias, sob pena de indeferimento do recurso».

16. O Conselho Consultivo aprovou por unanimidade, um segundo Parecer em 21.10.2021, que foi homologado pelo Presidente do Conselho Diretivo em 07.12.2021, com a seguinte conclusão: «(…). Frustrado que foi o suprimento – pois continua em falta a assinatura eletrónica qualificada legalmente exigida – resta-nos consequentemente propor o indeferimento do presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º2 alínea b) do CPC, ex vi artigo 156.º do Código de Registo Predial.»

IV.1. Nos termos do art. 2286º do CC, diz-se substituição fideicomissária, ou fideicomisso, a disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído (o fiduciário) o encargo de conservar a herança, para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem (o fideicomissário).

A figura caracteriza-se, no essencial, pelas seguintes notas:

- a existência de uma dupla transmissão/disposição dos mesmos bens, assente numa ordem sucessiva (não simultânea nem alternativa): existem dois herdeiros, a quem se transmitem os (mesmos) bens de forma sucessiva.

- a imposição ao fiduciário do encargo de conservar a herança para o fideicomissário. Em conformidade, fica o fideicomissário privado do poder de disposição dos bens, salvo nos casos excepcionais previstos no art. 2291º do CC.

Quanto à referência legal à reversão (automática) dos bens para o fiduciário aquando da morte do fideicomissário como nota da figura, esta pretende sublinhar que não existe qualquer transmissão sucessória entre fiduciário e fideicomissário, revertendo a herança para o fideicomissário, com a morte do fiduciário, por força da existência daquela dupla transmissão por vontade do testador (da «segunda instituição sucessiva» de herdeiro), sendo assim tributária ou expressão da referida dupla transmissão.

2. De acordo com o art. 2295º n.º1 do CC, são havidas como fideicomissárias:

a) As disposições pelas quais o testador proíba o herdeiro de dispor dos bens hereditários, seja por acto entre vivos, seja por acto de última vontade;

b) As disposições pelas quais o testador chame alguém ao que restar da herança por morte do herdeiro;

c) As disposições pelas quais o testador chame alguém aos bens deixados a uma pessoa colectiva, para o caso de esta se extinguir.

Nenhuma das situações corresponde realmente a uma substituição fideicomissária, face às suas referidas características legais. Em particular e no que aqui interessa, na segunda disposição falta a imposição (directa) do encargo de conservação dos bens. Como nota Guilherme de Oliveira[1], «a obrigação de deixar ao fideicomissário o que sobrar, não é limitação nenhuma». Pois se apenas se transmite o eventual resíduo, fica implícito que i. existe a faculdade de alienar e não o dever de conservar e ii. tal faculdade não estaria sujeita a qualquer limite concreto. Nessa medida, essa previsão seria ainda uma disposição condicional (sujeita à condição de sobrarem bens no momento do óbito do herdeiro). Mas como existe «a dupla instituição e o carácter sucessivo da instituição» quanto aos mesmos bens, a lei subordina tal disposição ao regime do fideicomisso comum [embora de forma atenuada, admitindo a alienação em vida com o consentimento do fideicomissário: art. 2295º n.º3 do CC].

3. Quanto à condição, a sua genérica admissibilidade decorre do art. 2229º do CC. Tal cláusula faz depender a vocação sucessória da verificação, ou não, de certo acontecimento futuro e incerto a que o testador associa a atribuição (condição suspensiva) ou a perda (condição resolutiva) da qualidade de herdeiro. Dada a natureza necessariamente retroactiva da condição (art. 2242º n.º1 do CC), existe apenas uma vocação sucessória desde o momento da abertura da sucessão, e assim a transmissão sucessória é alternativa e não sucessiva.

4. Existe proximidade estrutural entre a disposição fideicomissória (instituição de herdeiros em fideicomisso) e a instituição condicional de herdeiro, quando a condição tenha que se verificar no momento da morte do instituído, quer porque em ambos os casos é prevista uma substituição de herdeiros (no sentido de um por outro), quer porque à substituição fideicomissária podem ser associados momentos condicionais[2] (já que depende da circunstância de o fiduciário ser vivo no momento do óbito do fideicomissário, ou de este ter capacidade sucessória, por exemplo)[3] [o fideicomisso diz-se condicional no sentido de que a substituição não é certa no momento da abertura da sucessão]. Esta proximidade intensifica-se no fideicomisso irregular porquanto neste existe, como referido, uma verdadeira e adicional condição implícita (a existência do resíduo no momento do óbito do fiduciário[4]).

Mas «reduzir a fideicomisso condicional todos os casos em que o testador pretende estabelecer uma disposição sob condição resolutiva cuja verificação deva coincidir com a morte do instituído, acompanhada de substituição directa, é deturpar sem razão uma vontade que a lei prevê e protege»[5]. Tem que ser realizada uma diferenciação entre figuras em cada caso concreto.

5. Tal diferenciação, como decorre da sintética exposição das características relevantes das figuras, deve buscar-se no facto de no fideicomisso existir uma dupla transmissão sucessiva (primeiro para um herdeiro e, de forma sucessiva, para outro herdeiro, sem que esta segunda anule a primeira transmissão), e assim na existência de dois herdeiros efectivos. Já na condição existe apenas uma transmissão, sendo que, em caso de verificação da condição resolutiva, a primeira é eliminada retroactivamente, sendo substituída pela segunda (e alternativa) transmissão. Juridicamente, tudo se passa como se apenas existisse um instituído; a eficácia retroactiva da condição determina que os bens passem a pertencer ao segundo desde o momento da morte do de cujus. Assim, existe sempre apenas um herdeiro, o inicial se a condição não se verifica, o subsequente se ela se verifica, e uma única transmissão. No caso da condição suspensiva, o herdeiro cujo chamamento permanece suspenso torna-se, com a verificação da condição, herdeiro efectivo e único desde a abertura da sucessão; não se verificando a condição, não chega a ser herdeiro. Também aqui não existe, pois, sucessão de herdeiros.

Deste ponto de vista, pode aceitar-se que é o carácter retroactivo ou não retroactivo da disposição que serve de critério distintivo, pois se existir a vontade de que a devolução do primeiro chamado não seja integralmente eliminada, existe sucessão de chamados e assim uma substituição fideicomissária. Se, diversamente, se pretender que o facto tenha eficácia retroactiva, afastando da sucessão o primeiro chamado, existirá uma disposição condicional[6].

São, pois, estes efeitos que delimitam as figuras.

6. A condição é, como cláusula acessória típica, expressão da vontade do testador. O fideicomisso também é «de instituição voluntária», asserção que também vale para o fideicomisso irregular. O que conduz à primazia da vontade do testador e ao apelo a essa vontade para fixar o alcance da disposição. A qualificação da disposição testamentária é, pois, um problema de interpretação da vontade do testador, ou seja, de determinação dos efeitos pretendidos pelo testador

7. Segundo o art. 2187º do CC, na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento (n.º1), e é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (n.º2).

Face a este regime legal, na interpretação prevalece o sentido mais ajustado à vontade do testador (feição subjectivista), atendendo ao contexto do testamento, sendo este integrado «pelo conjunto de estipulações contidas no testamento e, como tal, corresponde à declaração negocial», ou seja, «ao texto» de todo o testamento, e não apenas da declaração a interpretar[7]. Acresce que, sendo admitida prova complementar, ou seja, o recurso a dados externos ao testamento, a fixação da vontade real não está dependente do contexto do testamento a não ser pela exigência de que tal vontade apurada tenha uma correspondência mínima com o contexto do testamento, limite imposto pela natureza formal do negócio[8].

Não sendo apurada a intenção real do testador, a interpretação tem que atender ao regime do art. 236º n.º1 do CC, prevalecendo o sentido objectivo do testamento[9].

8. Pela própria natureza do procedimento de impugnação registal (essencialmente circunscrito aos documentos sujeitos a registo), inexistem na situação vertente factos externos ao testamento a ponderar (limitação válida, aliás, também para o Conservador, e a qualificação que efectua, atento o disposto no art. 68º do CRP). Resta atender, assim, ao contexto do testamento, no sentido exposto.

9. A lei não elenca os elementos a mobilizar na interpretação. A letra da disposição, como primeira expressão da vontade negocial formalizada, é indubitavelmente o ponto de partida.

No caso, é indiscutível a proximidade literal da disposição testamentária com o texto da lei, quer na previsão do resíduo (na intenção de dispor do que sobrar), quer na utilização do verbo reverter, cujo significado jurídico aponta, como referido, para a ideia da dupla transmissão sucessiva inerente ao fideicomisso (incluindo o irregular), com a existência de herdeiros sucessivos. É certo que se deve atender ao sentido corrente, usual, das palavras nesta interpretação (C. Fernandes) - não sendo possível atender no caso a um sentido próprio que o testador lhe atribua, por falta de prova complementar.

Mas, de um lado, o sentido corrente da palavra associa-a a uma ideia de destinação subsequente, de nova transmissão, o que subjaz ao conceito legal do fideicomisso.

De outra banda, e atendendo já ás condições em que o negócio é celebrado (circunstâncias do negócio enquanto elemento da interpretação), deve atender-se a que a manifestação da vontade do testador é coadjuvada por um técnico (o notário), que o ajuda a exprimir a sua vontade em termos adequados. Não desconhecendo o notário a lei, e cabendo-lhe auxiliar o testador na expressão da sua vontade, a proximidade declarativa com a letra da lei constitui ainda índice do real sentido da declaração (no sentido da existência de uma dupla sucessão sucessiva).

A formulação remete para a previsão do fideicomisso (irregular), com uma dupla transmissão (dos mesmos bens).

10. Apelando ao contexto do testamento, o recorrente considera que a vontade do testador foi deixar à sua mulher todos os seus bens, acautelando a sua posição, o que se coaduna com o facto de, à data do testamento, o cônjuge não ser herdeiro legitimário e de apenas ocupar a quarta classe dos sucessíveis, depois dos irmãos e descendentes do de cujus; pelo que, de acordo com o regime legal em vigor no momento da outorga do testamento, o cônjuge não teria direito a qualquer parte da herança, salvo se o de cujus tivesse acautelado a sua posição em disposição testamentária, o que se verificou; a disposição do que restasse a favor dos sobrinhos seria uma disposição condicional de, eventualmente, virem a restar bens pertencentes à herança do de cujus no momento da morte da sua mulher; tanto que, nas disposições testamentárias, o de cujus não instituiu qualquer encargo à herdeira, sua mulher.

É certo que, à data do testamento, o cônjuge sobrevivo não integrava o elenco de herdeiros legitimários[10], e que aquele cônjuge foi instituído herdeiro de tudo o que o autor da sucessão podia dispor (da quota disponível) caso a sua mãe, herdeira legitimária, concorresse; e que se previu que caso a sua mãe pré-falecesse (e por isso não fosse chamada à sucessão) então seria herdeira integral.

A verdade, porém, é que a leitura proposta é sugestiva mas meramente conjectural, sem que a conclusão seja resultado preciso do referido contexto (ou de outros elementos, inexistentes).

E também pode, a partir do mesmo «contexto», entender-se que o testador considerou que, caso a mãe do testador fosse chamada à sua sucessão, então parte dos bens (aqueles que integrassem a quota indisponível que cabia à sua mãe) iriam transmitir-se para a família do de cujus (eventualmente para os irmãos e por essa via poderiam ainda beneficiar os sobrinhos[11]), podendo a garantia que queria dar ao seu cônjuge alcançar-se com a deixa pura e simples da sua quota disponível (para além da meação no património comum que já lhe cabia). Já no caso de a mãe do testador lhe pré-falecer, seria então a dupla transmissão (e assim o fideicomisso irregular) uma forma de cuidar sucessoriamente do seu cônjuge e simultaneamente garantir uma tendencial sucessão de bens dentro da família[12] (garantia que já existia caso lhe sobrevivesse a sua mãe).

Acresce que mesmo a leitura proposta pelo recorrente não exclui a existência de herdeiros sucessivos, sem retroactividade: pois se o testador pretendia acautelar o seu cônjuge, também queria tê-lo como herdeiro inicial mas perene, firme, cuja vocação nunca deixaria de existir; e se, a existir resíduo, pretende que este resíduo passe para outro herdeiro, este sucederia de forma sucessiva, sem substituir o herdeiro inicial, justamente porque esta segunda sucessão só visava o resíduo, deixando intocado o mais que o cônjuge herdeiro tivesse alienado. À faculdade de disposição de bens pelo primeiro instituído (imposta pela natureza residual da transmissão subsequente) é inerente uma vontade de manutenção do estatuto sucessório do primeiro chamado. Deste ponto de vista, teríamos uma dupla sucessão, e não uma disposição (do resto) condicional e alternativa. Teríamos, pois, uma vontade ajustada à situação fideicomissária e não a uma verdadeira disposição condicional.  

Assim, a contextualização possível acaba por não confortar a qualificação do recorrente, sendo ainda conforme a uma natureza fideicomissária da disposição em causa.

11. No que concerne à invocação da falta de imposição do encargo de conservação dos bens, não é determinante porque esse encargo, em termos essenciais, não existe no fideicomisso de resíduo. Como este supõe a alienação parcial dos bens, pois sem a alienação não pode haver a parte restante que se transmite a terceiro, então tal faculdade de alienação dos bens, derivando tanto da lei como da vontade do testador, tende a excluir um típico e próprio dever de conservar os bens. Sem embargo, e como o herdeiro pode não alienar os bens[13] ou pode alienar apenas parte deles, porque a alienação é uma faculdade e não uma obrigação, então toda ou parte da herança passará para terceiro e nessa medida o herdeiro ainda conserva e transmite à pessoa designada [14], pelo que aquele encargo ainda fica implícito ao menos quanto ao resíduo.

Assim, a falta de previsão deste encargo não apenas não contradita a figura em causa como até a ela corresponde.

12. Quanto à invocada natureza condicional da disposição, a afirmação, em si, não concorre para a distinção. A existência do resíduo no momento do óbito do primeiro chamado constitui na verdade uma condição suspensiva da segunda vocação mas tal é típico ou conatural ao fideicomisso de resíduo, que o pressupõe, não se lhe contrapondo. Este fideicomisso irregular constitui, legalmente e neste sentido, um fideicomisso condicional (mas que o fideicomisso não se define pela condição resulta da sua diferente natureza, implícita no art. 2059º n.º2 do CC). Relevante é que essa condição fica associada a outro elemento, o óbito do primeiro chamado, que constituiria um termo final da primeira vocação e inicial da segunda vocação[15], sendo a associação destes elementos que demonstra ainda a existência de uma dupla transmissão sucessiva própria do fideicomisso sem carácter retroactivo (retroactividade que o termo, dada a sua natureza, impede, sendo tal imposto pelo próprio regime legal do fideicomisso).

Diferente é a situação da dupla deixa dos mesmos bens a duas pessoas, mas subordinando-a à ocorrência ou não ocorrência de determinado acontecimento a verificar-se à morte de uma delas, de tal maneira que, se o acontecimento se der, se considera essa pessoa, retroactivamente, como não chamada à sucessão, e como chamada, também retroactivamente, a outra. Aqui existe uma condição resolutiva para a primeira e suspensiva para a segunda, em que a primeira adquire a propriedade dos bens, mas o seu direito é resolúvel, pois que, se se verificar a condição, o seu chamamento tem-se por não ocorrido; e, em contrapartida, dá-se o chamamento do outro nomeado, até aí suspenso, e com efeito reportado também ao momento da abertura da sucessão (a formulação é tributária de I. G. Telles). Só neste caso existe uma disposição verdadeiramente condicional. O que os elementos disponíveis não permitem dizer que ocorre no caso, ainda que apenas quanto a certos bens [16].

13. Deste modo, os dados colhidos parecem confortar a qualificação da cláusula realizada no despacho e na sentença impugnados.

Ou ao menos, na falta de elementos diversos seguros, deveria prevalecer o sentido objectivo da disposição, que a remete para o domínio do fideicomisso irregular.

Sendo que, como refere P. de Lima, «quando o testador nomeia um substituto para o caso de, à morte do primeiro instituído, se verificar certa condição, apenas pretende, em regra, que a verificação da condição faça cessar a propriedade a favor do primeiro instituído e que os bens transitem para o segundo. Não pretende que a condição opere retroactivamente, destruindo todos os efeitos jurídicos que do direito de propriedade derivaram para o substituído» [cit., pág. 43]. Pode não ser assim, como este Autor também adverte, mas é este o sentido natural deste tipo de previsão, o que o legislador aceitou, no caso da deixa do resíduo, ao prever o regime do fideicomisso irregular.

14. Haveria ainda várias questões que se poderiam colocar mas que, em último termo e face aos termos do processo, não alteram a solução alcançada. Assim:

- poderia discutir-se se o testador pretendeu que a instituição condicional de herdeiro operasse apenas para os bens que fossem alienados. Os dados disponíveis, como exposto, não o permitem avaliar.

- poderia discutir-se se o testador, querendo uma sucessão de herdeiros, já não queria que os actos de alienação do primeiro (o seu cônjuge) dependessem do consentimento dos herdeiros subsequentes (e assim se ele pretenderia dispensar o consentimento dos fideicomissários para as alienações realizadas pelo fiduciário). Trata-se de questão normativamente duvidosa pois se, por um lado, a substituição fideicomissária tem, como referido, um suporte voluntário que pode sustentar a atribuição de uma natureza supletiva ao regime legal (estando o seu regime genericamente na disponibilidade do autor da sucessão[17]), também se diz que o art. 2295º n.º3 do CC «parece equilibrar injuntivamente as posições do fiduciário e do fideicomissário» (Daniel Morais, cit., pág. 457). Mas esta é também questão que não tem suporte nos termos da disposição testamentária, quanto a tal intenção de dispensa do consentimento.

- poderia equacionar-se a possibilidade de o testador, querendo a sucessão de herdeiros sobre os mesmos bens, não ter representado as limitações dispositivas próprias do fideicomisso (irregular). Mas essa é questão não alegada nem demonstrada e que, de qualquer modo, já relevaria do eventual erro e não da interpretação e qualificação da cláusula (do seu regime).

- poderia, também, discutir-se a natureza do vício que atinge a alienação realizada sem o devido consentimento legal (nulidade, anulabilidade, nulidade atípica), e do seu significado face ao registo (aos poderes de qualificação do conservador e aos vícios negociais que pode conhecer). Mas trata-se de questão que excede a factualidade em causa (e as conclusões do recurso) já que apenas se discute o pedido de registo face á qualificação da cláusula, ignorando-se se o consentimento existe ou não (e assim ignora-se se existe o vício ou não). O que se afirma é que, sem demonstrar a existência do consentimento, existe obstáculo ao registo tal como requerido.

- por fim, vê-se que a abertura da sucessão ocorre em momento em que o cônjuge já é herdeiro legitimário do testador (art. 2157º do CC, aplicável dado o disposto no art. 12º n.º1 do CC), e que, por força do art. 2163º do CC, o testador não pode impor encargos sobre a legítima, contra a vontade do herdeiro, previsão que contempla o fideicomisso (M. Leitão, cit., pág. 432), incluindo o fideicomisso irregular dados os condicionamentos colocados aos poderes de disposição. Mas não está revelada a oposição do herdeiro à disposição, elemento da previsão legal, a qual assim não pode operar.

15. Sendo assim, face à qualificação operada, e à falta de desmonstração de existência do consentimento dos fideicomissários, que era devido, mostram-se justificadas as dúvidas por esta via opostas ao registo (art. 70º e 69º, este a contrario, do CRP).

16. Por força do art. 140º n.º1 do CRP, a decisão impugnada é aquela que recusa a prática do ato de registo nos termos requeridos (no caso, o registo é lavrado como provisório quando se pretendia um registo definitivo). Significa isto que a decisão impugnada é aquela que qualifica o registo (o primeiro despacho, de qualificação, da Sra. Conservadora).

Foi fundamento também da provisoriedade a circunstância de no título se fazer referência a que no testamento consta «que institui legatária do usufruto de toda a sua herança e da quota disponível da herança da mãe, a sua referida mulher, EE, tendo-lhe sucedido como única e universal herdeira», considerando a Sra. Conservadora que que esta «referência e enquadramento não se percebe, face ao testamento e habilitação de herdeiros juntos». Este fundamento, independentemente do seu mérito, não foi impugnado, e assim teria que subsistir, por não haver razão para o discutir oficiosamente. 

Sendo que a invocação pelo recorrente do regime dos art. 54º n.º2 e 55º al. a) do CN nada tem a ver com isto, nem se alcança o seu relevo no caso (tendo-se também por certo que não pesou na sentença impugnada, na qual, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra a invocação de tal regime, de forma directa ou indirecta, nem se vê ainda a violação de tais regras, correspondentes ao princípio da legitimação também consagrado no art. 9º do CRP, invocadas no despacho de qualificação da Sra. Conservadora).

17. Assim, tem que improceder o recurso.

18. Como decai, o recorrente responde pelas custas (art. 527º n.º 1 e 2 do CPC).

V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Custas pelo recorrente.

Notifique-se.

           

(…)

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.





[1] O Testamento, Apontamentos, Reproset (sem data), pág. 117.
[2] V. F. Pires de Lima, Anot. in RLJ 101/41, ou C. Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, vol. II, Lex 1993, pág. 259.
[3] Trata-se de pressupostos gerais do fenómeno sucessório (sobrevivência do herdeiro, sua capacidade, etc.) a que a dilação da transmissão sucessória para momento futuro atribui carácter diferenciado no caso do fideicomisso, tornando-as em condições legais.
[4] A falta de bens, evento futuro e incerto, tem efeito extintivo da segunda instituição sucessória.
[5] Cfr. Carlos Olavo, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. I, Almedina 2002, pág. 449 - a afirmação vale ainda que esteja em causa um fideicomisso implicitamente condicional (como no irregular).
[6] A solução parece ser pacificamente aceite; neste sentido, F. Pires de Lima, cit., pág. 42/43, Carlos Olavo, cit., pág. 450, Daniel Morais, CC Anotado, livro V, Almedina 2022, pág. 442/443, I. Galvão Telles, Legado condicional e fideicomisso, Revista do Notariado, 1988/1, pág. 86/87, ou Ac. do STJ proc. 3077/16.3T8VIS.C1.S1 (in 3w.dgsi.pt) (também para situações análogas).
[7] C. Fernandes, Interpretação do Testamento, Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, 90 anos, Almedina 2007, pág. 730.
[8] Embora também se discuta a aplicabilidade do regime do art. 238º n.º2 do CC ao testamento, mas a questão não tem no caso relevo.
[9] C. Fernandes, cit., pág. 734.
[10] À data do testamento vigorava o regime original do CC, no qual os herdeiros legitimários eram apenas os descendentes e os ascendentes (art. 2157º do CC na redacção original); o cônjuge era herdeiro legítimo mas apenas depois dos parentes (descendentes, ascendentes e irmãos ou descendentes destes – art. 2132º do CC na redacção original).
[11] Que o testador não podia nomear, nesse caso, pois não podia condicionar a sucessão legitimária da sua mãe.
[12] Sendo que aqui já podia nomear directamente os sobrinhos.
[13] Naturalmente, tanto é resto o que sobra depois da alienação parcial como tudo o que foi deixado ao fideicomissário e subsiste ainda aquando do óbito deste.
[14] V., para o direito anterior mas válido para o regime actual, idêntico neste aspecto, Cunha Gonçalves, Fideicomisso de resíduo, ROA, ano 6, n.º1 e 2, pág. 177/8, que se seguiu de perto.
[15] Assim, Carlos Olavo., cit., pág. 418 e ss., e Menezes Leitão, A Substituição Fideicomissária, ROA III/IV 2020, pág. 443; a qualificação não é isenta de controvérsia; parece ser a solução que melhor se adequa à dupla transmissão sucessiva dos mesmos bens; por resultar da lei, o regime do art. 2243º n.º2 do CC não constitui obstáculo; o termo radicaria no óbito, evento certo (embora incerto quanto ao momento da sua verificação).
[16] A condição total, sobre todos os bens, é incompatível com a disposição do resíduo, pois esta supõe que as disposições parciais se mantenham eficazes, o que a verificação retroactiva da condição impediria (nesse sentido, seria também contrária à vontade do testador). 
[17] Oliveira Ascenção, Sucessões, 1989, pág. 248.