Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
601/13.7TTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO
MEIO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 04/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 258º/1 E 260º/1, AL. A), E 2 DO CT/2009.
Sumário: I – Só deve ter-se por retribuição aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida da sua disponibilidade para o trabalho.

II – Não se consideram retribuições as importâncias recebidas a título de subsídio de alimentação, salvo quando essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador (presunção legal elidível sobre o carácter não retributivo do subsídio de alimentação).

III – Não sendo o subsídio de refeição retribuição em sentido técnico, não havendo lugar para aplicação do artº 276º/1 do CT/2009, pode a entidade patronal pagar tal subsídio através de cartões de refeição.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho, pedindo a condenação da ré a:
a) ver declarada ilegal e de nenhum efeito a alteração efectuada no modo de pagamento do subsídio de refeição, de numerário para vales ou tickets de refeição, através da comunicação entregue à autora, datada de 29 de Abril de 2013, por violação dos arts. 127º/1/b, 129º/1/d, 258º, 260º e 276º, todos do Código do Trabalho, e 406º do Código Civil.
b) ver declarado que a autora não deu o seu acordo à alteração determinada pela ré, do pagamento em numerário para vales ou tickets de refeição, sendo consequentemente válidos, legais e tempestivos os fundamentos invocados pela autora na oposição apresentada à determinação da ré em 14 de Maio e 18 de Junho de 2013.
c) ver declarado que a alteração do pagamento do subsídio de alimentação em numerário para vales ou tickets de refeição a partir do mês de Maio de 2013, inclusive, prejudica gravemente a autora nas prestações a receber em situações de baixa por doença, acidente de trabalho, licença de maternidade, subsídio de desemprego e na sua pensão de reforma;
d) ver declarado que a determinação da utilização do cartão-refeição ou ticket refeição, condiciona a autora no uso do que é seu, não tendo os cartões aceitação universal e não oferecendo segurança;
e) a pagar à autora, desde Maio de 2013, inclusive, o subsídio de refeição em numerário, com isenção de IRS e descontos para a Segurança Social até ao montante de 4,27 € por dia, e sobre o excedente até 5€ por dia com processamento do IRS e dos descontos sociais e remetê-los à Segurança Social;
f) a pagar à autora em numerário referente ao subsídio de alimentação já apurado dos meses de Maio de 2013 até Julho do mesmo ano, inclusive, a quantia de 320 € e ainda os valores vincendos que se apurarem serem-lhe devidos desde Agosto de 2013, inclusive;
g) a pagar à autora a quantia de 150 € por mês, a título de sanção pecuniária compulsória e enquanto se verificar o não pagamento de subsídio de alimentação em numerário à autora.
Alegou, em resumo, que é trabalhadora da ré desde 1 de Julho de 2001, auferindo a partir de Setembro de 2008 a retribuição base de € 1.130, acrescida de € 50 mensais de subsídio de transporte e de € 5 por cada dia útil de trabalho a título de subsídio de alimentação, sendo que este último sempre foi pago em dinheiro; a partir do mês de Maio de 2013, inclusive, unilateralmente e contra a vontade expressa da autora, a ré alterou o modo de pagamento do subsídio de alimentação, passando a pagá-lo em vale de refeição, através do cartão Caixa Breack da Caixa Geral de Depósitos, alteração essa a que a autora deduziu oposição, sem sucesso; com a imposição da ré da utilização do referido cartão, a autora fica condicionada no uso do que é seu, porque o cartão não tem aceitação universal e é menos seguro, além de que reduz a sua protecção social e a sua futura pensão de reforma, pelo que tal alteração não tem vantagens para a autora; com a sua conduta, a ré violou, entre outros, os arts. 127º/1/b, 129º/1/b, 258º, 260º e 276º, todos do CT, e 406º do CC, pelo que deve a ré ser condenada a repristinar a anterior forma de pagamento do subsídio de alimentação, processando e remetendo para a segurança social os devidos descontos sociais.
Frustrada a tentativa de conciliação levada a efeito na audiência de partes, a ré contestou pugnando pela integral improcedência da acção.
Alegou, em resumo, que é legal a alteração que introduziu na forma de pagamento do subsídio de alimentação, uma vez que o cartão referido na petição é de utilização universal, nacional e internacional, em qualquer estabelecimento comercial que tenha o código de actividade fiscal do ramo alimentar, pelo que não existe qualquer prejuízo para o trabalhador que apenas está impedido de proceder ao seu levantamento em numerário, numa caixa ATM.
Por outro lado, a cláusula 20ª do CCT aplicável, publicado no BTE nº 33 de 8 de Setembro de 2009, prevê que o subsídio de refeição pode ser pago em dinheiro ou em espécie, sendo que a forma de proceder ao pagamento está na disponibilidade do empregador.
No despacho saneador conheceu-se do mérito da acção, contando do respectivo dispositivo, designadamente, o seguinte:
Por tudo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, julga-se a presente acção totalmente procedente e em consequência condena-se a Ré B..., S.A a:
a) Ver declarado ilegal e de nenhum efeito a alteração efectuada, do modo de pagamento do subsídio de refeição, de numerário para cartão, vales ou tickets de refeição, através da comunicação entregue à Autora A..., datada de 29 de abril de 2013.
b) A ver declarado que a Autora não deu o seu acordo à alteração determinada pela Ré, do pagamento em numerário para cartão, vales ou tickets de refeição sendo consequentemente válidos, legais e tempestivos os fundamentos invocados pela Autora na oposição apresentada à determinação da Ré.
c) A ver declarado que a alteração do pagamento do subsídio de alimentação em numerário para cartão, vales ou tickets de refeição a partir do mês de Maio, inclusive, de 2013 prejudica os direitos sociais da Autora.
d) A ver declarado que a determinação da utilização do cartão-refeição ou ticket refeição, condiciona a Autora no uso do que é seu.
e) pagar à Autora desde maio, inclusive, de 2013 o subsídio de refeição em numerário, com isenção de IRS e descontos para a Segurança Social até ao montante de € 4,27 por dia e sobre o excedente até € 5,00 por dia processar o IRS e os descontos sociais e remete-los à Segurança Social, montantes discriminados nos recibos dos meses respectivos.
f) pagar à Autora em numerário o subsídio de alimentação já apurado dos meses de maio de 2013 até julho, inclusive do mesmo ano a quantia de € 320,00 (trezentos e vinte euros) e ainda os valores vincendos que se apurarem serem-lhe devidos desde agosto, inclusive, de 2013.
g) Pagar à Autora a quantia de €150,00 (cento e cinquenta euros) por mês a título de sanção pecuniária compulsória, desde o trânsito em julgado da presente decisão e enquanto se verificar o não pagamento de subsídio de alimentação em numerário à Autora.
Custas da acção a cargo da Ré.”.
Do assim decidido recorreu a ré, tendo apresentado as seguintes conclusões:
[…]

A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
O réu contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
*
II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, é a seguinte a questão a decidir: saber se é ilícita a decisão da ré de proceder unilateralmente à alteração da forma de pagamento do subsídio de alimentação à autora e, em caso afirmativo, quais as consequências de tal ilicitude.
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III Fundamentação

A) De facto

Os factos dados como provados pela decisão recorrida são os que a seguir se deixam transcritos:
[…]

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B) De direito

Única  questão: saber se é ilícita a decisão da ré de proceder unilateralmente à alteração da forma de pagamento do subsídio de alimentação à autora e, em caso afirmativo, quais as consequências de tal ilicitude.

Para efeitos de decidir a questão acabada de enunciar cumpre determinar, antes de mais, se o subsídio de refeição pago pela ré à autora pode ser qualificado como fazendo parte integrante da retribuição a que a autora tinha direito.
Nos termos do art. 258º/1 do CT/09 “Considera -se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.”.
Resulta explicitamente da norma cujo conteúdo acaba de transcrever-se que só deve ter-se por retribuição aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida da sua disponibilidade para o trabalho.
Por regra, o subsídio de refeição não constitui uma prestação a que o trabalhador tenha direito como contrapartida daquela disponibilidade, antes visa compensar o trabalhador por despesas acrescidas pelo facto de ter de tomar as suas refeições, em virtude da prestação de trabalho, fora do seu domicílio, dada a impossibilidade de se deslocar a este para tomar a refeição durante o intervalo de descanso diário.
Por outro lado, atente-se em que por força da cláusula 20ª do CCT aplicável à relação de trabalho entre a autora e a ré[1], o subsídio de refeição apenas é devido por cada dia completo de trabalho, a significar, por exemplo, que tal prestação não é devida na retribuição de férias, durante a suspensão do contrato de trabalho, ou durante as situações de faltas ao trabalho, justificadas ou não.
 Justamente por isso, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1, alínea a), e 2 do art. 260.º do CT/09, não se consideram retribuição as importâncias recebidas a título de subsídio de alimentação, salvo quando essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Do conteúdo normativo acabado de invocar pode seguramente extrair-se uma presunção legal elidível sobre o carácter não retributivo do subsídio de alimentação.
Como escreve Monteiro Fernandes, “Embora o abono seja, na maioria dos casos, uma importância fixa e regularmente paga, ele não deve, em princípio, incluir-se na retribuição, para efeitos de periodicidade e irredutibilidade. O art. 260º/2 CT admite, no entanto, que lhe seja atribuído carácter retributivo se e na medida em que o seu valor exceder um montante considerado normal, ou quando, pelo contrato ou pelos usos, seja tido como elemento integrante da retribuição. O CT toma posição idêntica perante o subsídio de refeição que muitas convenções colectivas consagram em benefício dos trabalhadores abrangidos. Este subsídio pode assumir carácter retributivo nas condições acima indicadas – ter um valor superior ao normal, ou ser qualificado como parte da retribuição pelo contrato ou pelos usos – sem por isso ser devido nos dias em que o trabalhador, por qualquer razão, não compareça ao trabalho.”. - Direito do Trabalho, 13ª edição, p. 474.
Flui do exposto, assim, que o subsídio de refeição não tem, por regra, a natureza de retribuição em sentido jurídico.
Por outro lado, dos factos dados como provados não resulta, a nosso ver, que os montantes pagos pela ré a título de subsídio de alimentação excedessem o normal, nem que tal subsídio estivesse qualificado como retribuição pelo contrato ou pelos usos, sendo certo que, nesta matéria, o ónus de alegação e prova impendia sobre a autora, enquanto pessoa que se arrogou ao direito de ver considerado o subsídio de alimentação como fazendo parte integrante da retribuição legal (art. 342º/1 do CC).
Como assim, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, o subsídio de refeição não está sujeito à disciplina do art. 276º/1 do CT/09, nos termos do qual o pagamento de retribuições através de prestações não pecuniárias só pode ser levado a efeito havendo acordo entre o empregador e o trabalhador.
Por outro lado, nos termos da cláusula 20ª do CCT aplicável, o subsídio de refeição pode ser pago em dinheiro ou em espécie.
Nos termos dessa mesma cláusula, a obrigação da ré proceder ao pagamento do subsídio de alimentação está expressa por referência a um valor em dinheiro (4,40 €), a significar que está em causa uma obrigação de natureza pecuniária.
Ora, como é sabido, dinheiro não é, apenas, o papel-moeda, podendo sê-lo outros objectos que são utilizados como meio geral de liquidação de dívidas, como por exemplo os metais preciosos ou determinadas mercadorias, os cartões de crédito, os cartões de débito, os cheques, entre outros.
Com efeito, em todos esses meios de liquidação de dívidas estão presentes as três características do dinheiro, a saber: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.
Aliás, no que concretamente concerne aos cartões de refeição do tipo dos que estão em causa nestes autos, decidiu já o STA[2] que “… os vales ou cartões de refeição são títulos de pagamento de refeições, isto é, são títulos que se destinam a ser utilizados na aquisição e pagamento de refeições ou de outros produtos disponibilizados pelos estabelecimentos (…) aderentes a esse sistema de pagamento. (…) Isto é, os vales ou títulos de refeição são “dinheiro” (…) [e constituem] um mero meio de pagamento para uma despesa potencial que se concretizará com utilização desse meio de pagamento”.
Como assim, o novo sistema de pagamento do subsídio de alimentação implementado pela recorrente, apesar da substituição do papel-moeda pelos cartões de refeição, continuou a ser um sistema de pagamento em dinheiro.
Do mesmo modo, o próprio Banco de Portugal tem vindo a referenciar os cartões refeição como um meio apto à satisfação de obrigações com valor expresso em dinheiro, e não como meio de pagamento em espécie, ao referenciar, a par do pagamento por cheque, das transferências a débito, e dos cartões de crédito, os cartões pré-pagos “… de finalidade limitada, emitidos por empresas para utilização, por exemplo, em cantinas, refeitórios (…)”.[3]
Como assim, a alteração introduzida pela ré no sistema de pagamento do subsídio de refeição nem sequer pode ser encarada como uma verdadeira alteração na forma de pagamento que vinha sendo praticada, registando-se, apenas, uma mudança no meio de pagamento, integrado, no entanto, na mesma forma de cumprimento da obrigação em dinheiro.
Finalmente, diga-se que ao disponibilizar à autora o cartão de refeição contra o qual esta se insurge, a recorrente coloca à disposição da autora um meio de pagamento apto a satisfazer a finalidade prosseguida com o pagamento do subsídio de alimentação, pois está em causa um cartão onde é creditado um determinado valor que apesar de ser insusceptível de ser convertido em dinheiro que fique disponível para o titular do cartão, tendo por isso uma liquidez limitada, pode, no entanto, ser utilizado nos TPAs de todos os estabelecimentos comerciais do sector alimentar, nacionais ou estrangeiros, das redes Multibanco e Mastercard, e realiza pagamentos de compras on-line nas lojas virtuais dos comerciantes do sector alimentar, com a utilização de CVC2 (verso do cartão).
O mesmo sucede, por exemplo, com os vales de refeições ou similares que várias empresas distribuem aos seus trabalhadores para pagamento do subsídio de refeição.
Resta dizer que a alteração introduzida pela ré no pagamento do subsídio de alimentação não implicou qualquer redução do montante pago à autora, como bem resulta dos factos provados
Como assim, não sendo o subsídio de refeição retribuição em sentido técnico, não havendo lugar para aplicação do art. 276º/1 do CT/09, e representando a atribuição pela ré à autora do cartão referido nos factos provados uma forma de pagamento em dinheiro do subsídio de alimentação, deve o recurso proceder, com a consequente improcedência da pretensão da autora.
*
IV - Decisão

Acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra  no sentido de julgar a apelação procedente, com a consequente revogação da decisão recorrida e absolvição da ré dos pedidos contra ela formulados pela autora.
Custas pela recorrida.
Coimbra, 3/4/2014

 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes)


[1] CCT celebrado entre a FENAME e a FETESE e outros, cujo texto consolidado se mostra publicado no BTE nº 33, de 8 de Setembro de 2009, com Portaria de Extensão nº 212/2010, publicada no DR, I Série, de 15 de Abril de 2010.
[2] Acórdão STA de 21 de Abril de 2010, processo 0619/19.
[3] Cfr. Relatório do Departamento de Sistemas de Pagamentos do Banco de Portugal de Janeiro de 2009.