Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1222/20.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA DA PARTE
AUDIÇÃO DA PARTE SOBRE A NEGLIGÊNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, 1 E 3; 195.º, 1; 277.º, C); 281 E 617.º, DO CPC
ARTIGO 20.º, 1 E 4, DA CRP
Sumário: I – No regime do atual n.C.P.Civil, a deserção da instância prevista no art. 281º depende da verificação de dois pressupostos, um de natureza objetiva, que se traduz na demora superior a 6 meses no impulso processual, e outro de natureza subjetiva, que consiste na inércia imputável a negligência das parte.
II – Se a Requerente (e Cabeça de Casal), que até se encontrava representada por Advogado, foi expressamente alertada que o não impulso do processo (com o pagamento da provisão necessária à citação duma Interessada) teria como consequência a deserção da instância ao fim de 6 (seis) meses, tal como previsto e determinado legalmente, nessas circunstâncias não cumpre ao tribunal, findos os 6 meses, promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista formular um juízo sobre a razão da inércia, quando era essa parte que tinha o ónus do impulso processual.

III – Nem sequer resulta da lei a realização de tal diligência, nomeadamente à luz do princípio do contraditório.

IV – O exercício do contraditório não iria cumprir qualquer função processualmente útil, porquanto se em tese com o mesmo se visa afastar a denominada “decisão surpresa”, tal seguramente in casu não o era, pois que se veio a tratar da concretização duma perspetiva jurídico-processual antevista pela parte.

V – Sendo que a negligência será então avaliada primacialmente em função dos elementos objetivos que resultarem do processo, em linha com o entendimento de que recai sobre a parte o ónus de informar o tribunal sobre algum obstáculo que possa surgir.

Decisão Texto Integral:

Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

      Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA requereu que se procedesse a inventário para partilha dos bens que integram a herança aberta por óbito de BB.

Por despacho judicial proferido em 20/02/2023, foi ordenada a notificação a todos os Interessados do não pagamento da provisão necessária à citação da Interessada CC, sendo concretamente a dita Requerente (e Cabeça de Casal) notificada desse despacho judicial com a seguinte expressa advertência:

«Se nenhuma das interessadas efetuar o pagamento em falta, o processo ficará a aguardar o respetivo impulso, tudo sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º1 do Código do Processo Civil».

Nada foi dito ou requerido nos autos.

                                                           *

Na oportuna sequência processual, em 07/10/2023, pelo Exmo. Juiz de 1ª instância foi proferido o seguinte despacho:

«AA requereu que se procedesse a inventário para partilha dos bens que integram a herança aberta por óbito de BB.

Por despacho judicial proferido em 20/02/2023, foi ordenada a notificação a todos os Interessados do não pagamento da provisão necessária à citação da Interessada CC, bem como determinou-se que os autos aguardem o pagamento em falta ou outro impulso, sob pena de deserção da instância.

Dispõe o artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das Partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Ora, atento o período temporal decorrido até à presente data sem que qualquer um dos Intervenientes Processais viesse dar cumprimento ao despacho suprarreferido, sabendo que a respetiva inércia conduziria à deserção da instância, importa então concluir que a paragem do processo por período superior a seis meses decorreu de negligência imputável àqueles.

Em face do que antecede, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º al. c) e 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil, declaro a extinção da instância, por deserção.

Fixo à ação o valor de 5.001,00 EUR (cinco mil e um euros), por força do critério especialmente consagrado no disposto no artigo 302.º n.º 3 do CPC.

Condeno a Requerente nas custas da ação (art. 527.º do CPC e art. 6.º n.º 1 do Regulamento de Custas Processuais, por referência à Tabela I).

Registe e notifique. »

                                                           *

Inconformada com um tal despacho, apresentou a Requerente (e Cabeça de Casal) recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

«B1. O presente recurso visa o despacho que decretou a extinção da instância, por deserção, o que não se concede.

B2. Desde logo, aquela decisão é nula nos termos das disposições conjuntas dos arts. 3º-3, e 195º-1 CPC, por violação do princípio do contraditório ínsito no invocado art. 3º do CPC, porquanto consubstancia verdadeira “decisão surpresa”.

B3. Com efeito, impunha-se ao Tribunal a quo, em obediência ao dever de observância do princípio do contraditório que, previamente à tomada daquela decisão, desse oportunidade à recorrente, para, querendo, se pronunciar, o que não sucedeu.

B4. Ante o exposto, deve a arguida nulidade ser julgada verificada e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido e proferido outro que ordene a notificação da exequente para, requerer e / ou dizer o que tiver por conveniente face à posição que o Tribunal pretende tomar.

Sem prescindir,

B5. Compulsada a decisão recorrida, constata-se que a mesma se limitou a verificar o aspecto formal da deserção da instância, não tendo cuidado de verificar / averiguar da efectiva negligência da parte quanto a uma eventual, porém inexistente, falta de impulso processual da sua parte, o que não se concede.

B6. Com efeito, a deserção da instância, por falta de impulso processual, não se verifica de forma automática, pelo mero decurso dos seis meses, sendo necessário que se ajuíze, em concreto, se tal falta de

impulso processual é, ou não, devido a negligência das partes.

B7. A interpretação do disposto no art. 281º, nº 5 do CPC segundo a qual a deserção da instância, por falta de impulso processual, se verifica de forma automática, pelo mero decurso dos seis meses, não sendo necessário que se ajuíze, em concreto, se tal falta de impulso processual é, ou não, devido a negligência das partes é inconstitucional, por violadora do disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

B8. Ainda: a decisão ora impugnada, proferida nos termos em que o foi, é injusta, desproporcionada e ilegal, violando regras e princípios do direito de qualquer cidadão a meios jurisdicionais para defesa dos seus direitos e legítimos interesses, como decorre do artigo 20º da CRP e do artigo 2º do CPC, para além da violação do já citado art. 281º-5 e do artigo 7º, ambos do CPC.

B9. Nesta confluência, torna-se manifesto que a decisão recorrida, ao não notificar a parte para esclarecer as razões pelas quais não impulsionou o processo de forma a aferir pela (in)existência de negligência, viola o disposto nos arts. 20º da CRP e, ainda, os arts. 2º, 3º, 7º, 281º do CPC e, consequentemente o art. 277º, al. c), pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene a notificação da exequente.

                Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, em conformidade com as conclusões.»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

De referir que no despacho de admissão dos recursos, o Exmo. Juiz a quo sustentou a não verificação da arguida nulidade.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- nulidade da decisão que decretou a deserção, por violação do princípio do contraditório e prolação de “decisão surpresa [arts. 3º, nº3 e 195º, nº1  do n.C.P.Civil]?;

- desacerto dessa decisão, por não ter aferido a “negligência das partes” para esse efeito (cf. art. 281º, nº5 do n.C.P.Civil), o que também é inconstitucional por violação do disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa [assim sendo injusta, desproporcionada e ilegal, violando regras e princípios do direito de qualquer cidadão a meios jurisdicionais para defesa dos seus direitos e legítimos interesses]?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - Cumpre então começar por apreciar a arguição de nulidade da decisão que decretou a deserção, por violação do princípio do contraditório e prolação de “decisão surpresa” [arts. 3º, nº3 e 195º, nº1  do n.C.P.Civil].

Estatui o art. 281º do n.C.P.Civil, sob a epígrafe “Deserção da instância e dos recursos” o seguinte:

«1. Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

(…)

4. A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

5. No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»

Esta norma veio substituir os anteriores arts. 285º e 291º do C.P.Civil que regulavam a interrupção e deserção da instância, fazendo-o nos seguintes termos:

«A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento.» (dito art. 285º ).

«Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos.» (dito art. 291º, nº1).

Deste modo, de acordo com o disposto no referido art. 291º, nº1, do anterior C.P.Civil, considerava-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esta estivesse interrompida durante dois anos.

Temos então que no regime do n.C.P.Civil, além de se ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, que a parte dispunha para impulsionar os autos sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou-se também a figura da interrupção da instância, ficando a instância deserta logo que o processo, por negligência das partes, estivesse sem impulso processual durante mais de seis meses.

Isto implicou a consagração de um regime mais rigoroso, reduzindo o prazo de suspensão da instância por acordo das partes, para três meses e sancionando a negligência das partes em promover o andamento do processo, culminando a falta de impulso processual, por mais de seis meses, de acordo com o preceituado na al.c) do art. 277º e art. 281º, ambos do n.C.P.Civil, com a consequente extinção da instância por deserção.

Sem embargo, no regime atual, a deserção da instância deixou de ser automática carecendo, portanto, de ser julgada por despacho do juiz – ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual, como acima ficou dito, a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial.

Assim, no novo figurino da ação declarativa, a decisão judicial tem que apreciar e aquilatar a conduta da parte, já que a deserção é condicionada pela negligência da parte em promover os termos do processo, questão, esta, em princípio, sujeita ao contraditório, nos termos do disposto no art. 3º, nº 1, do n.C.P.Civil.

De referir que, como já foi doutamente sustentado, «Diferentemente do que ocorria no direito anterior, a instância não se considera deserta «independentemente de qualquer decisão judicial». A ideia de negligência das partes não é conciliável com a ausência de uma decisão do juiz que a verifique. Embora a decisão prevista no n.º 4 seja meramente declarativa, até ser proferida não pode, pois, a instância ser considerada deserta, designadamente pela secretaria judicial.»[2]

Mas será que terá sempre de ser atuado o contraditório antes da prolação da decisão de deserção?

Vejamos.

A nível doutrinal é reconhecida a intenção do legislador de eliminar os fatores de morosidade da justiça, encurtando em seis meses o prazo de inércia das partes, mas sem o sacrifício, em primeira linha, do princípio do contraditório, evitando-se, nomeadamente, decisões surpresas.[3]

A nível jurisprudencial tem-se firmado o entendimento de que «a deserção da instância depende da verificação de dois pressupostos: um de natureza objectiva, que se traduz na demora superior a 6 meses no impulso processual, e outro de natureza subjectiva, que consiste na inércia imputável a negligência das parte», e que «a não intervenção do tribunal desde o despacho que suspende a instância por óbito de um interessado até à decisão que julga extinta a instância por deserção, não viola o princípio da cooperação previsto no art. 7.º do CPC ou o dever de gestão processual previsto no art. 6.º deste diploma legal, porquanto não cabe ao tribunal terminar com a inércia das partes, impondo-lhes a prática de atos que as mesmas não pretendam praticar (devendo sofrer as consequências legais da sua omissão), pois a maior intervenção que o CPC confere ao juiz para providenciar pelo andamento célere do processo e com vista à prevalência da justiça material em detrimento da justiça adjetiva, não afasta o princípio da autorresponsabilização das partes.».[4]

Efetivamente, são duas as teses que, entre nós, se confrontam quanto ao que se deve entender por uma decisão-surpresa.

Para uma primeira corrente, que se pode chamar antiformalista, por defender que não se pode abstrair do conteúdo da decisão a proferir, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão; não se pode falar em decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis; só há decisão surpresa «quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela».[5]

Para uma outra corrente, garantista, o escopo principal do princípio do contraditório «é a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo», consequentemente, deve garantir-se a «participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão».[6]

Ocorre que, s.m.j., a primeira corrente é a que se mostra mais curial e justa para uma situação como a ajuizada.

Atente-se que resulta muito concretamente dos dados da situação que a Requerente (e Cabeça de Casal) foi notificada do despacho judicial de 20.03.2023 com a expressa advertência de que «Se nenhuma das interessadas efetuar o pagamento em falta, o processo ficará a aguardar o respetivo impulso, tudo sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º1 do Código do Processo Civil». [com destaques da nossa autoria].

Isto é, a Requerente (e Cabeça de Casal) ora recorrente, que até se encontrava representada por Advogado, foi expressamente alertada que o não impulso do processo (com o pagamento da provisão necessária à citação duma Interessada) teria como consequência a deserção da instância ao fim de 6 (seis) meses, tal como previsto e determinado legalmente.

Donde, poderia ab initio essa Requerente (e Cabeça de Casal) ora recorrente antecipar o raciocínio que faria o juiz e, em consequência, deveria tomar posição adequada…

Atente-se que fora ela a instaurar o processo e tinha nele o cargo de Cabeça de Casal.

A esta luz, resultava constituída insofismavelmente uma situação de injustificada inação imputável a essa parte, que assim não poderia deixar de arcar com as inerentes consequências processuais, quais sejam, precisamente a deserção da instância.

Este, tanto quanto é dado perceber, foi o raciocínio do Exmo. Juiz a quo, que se louvou em jurisprudência que cita [no despacho ao abrigo do art. 617º do n.C.P.Civil!], a saber,

«(…)

 V. A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).

VI. Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.

VII. Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual.»[7]

Sancionamos integralmente um tal entendimento, também à luz do princípio da auto-responsabilidade das partes.

Sendo certo que o exercício do contraditório não iria cumprir qualquer função processualmente útil, porquanto se em tese com o mesmo se visa afastar a denominada “decisão surpresa”, tal seguramente in casu não o era, pois que se veio a tratar da concretização duma perspetiva jurídico-processual antevista pela parte.[8]

Dito de outra forma: a prolação de decisão de deserção da instância não constituiu na circunstância qualquer “decisão surpresa”!

E é por assim ser que não consideramos verificada a arguida nulidade do art. 195º do n.C.P.Civil.

Improcede assim, sem necessidade de maiores considerações, esta questão recursiva.

                                                           *

4.2 – Questão do desacerto dessa decisão, por não ter aferido a “negligência das partes” para esse efeito (cf. art. 281º, nº5 do n.C.P.Civil), o que também é inconstitucional por violação do disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa [assim sendo injusta, desproporcionada e ilegal, violando regras e princípios do direito de qualquer cidadão a meios jurisdicionais para defesa dos seus direitos e legítimos interesses].

Que dizer?

Face ao precedentemente exposto, cremos que a decisão já inteiramente se adivinha.

É certo que o art. 281º do n.C.P.Civil exige, para que a instância seja julgada deserta, que exista negligência da parte onerada com o ónus do impulso processual, o que significa que a decisão que julgue deserta a instância tem de conter um juízo que aponte para a negligência da parte em termos de impulso processual.

Isto é, a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo, antes demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte.

Ora isso existe e foi feito no caso.

Atente-se que a decisão recorrida muito clara e concretamente ponderou e ajuizou sobre a verificação dessa negligência, ao nela se dizer que «Ora, atento o período temporal decorrido até à presente data sem que qualquer um dos Intervenientes Processais viesse dar cumprimento ao despacho suprarreferido, sabendo que a respetiva inércia conduziria à deserção da instância, importa então concluir que a paragem do processo por período superior a seis meses decorreu de negligência imputável àqueles.»

E nem se argumente que a negligência da parte (elemento subjetivo de inatividade da parte) é um requisito autónomo da deserção da instância e não um requisito que esteja implícito na falta de impulso processual, sob pena de o elemento objetivo de inatividade de parte consumir o elemento subjetivo

No aresto já supra citado[9], aduziu-se doutamente a este propósito o seguinte:

«(…)

Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.

De outro lado, em sítio algum estabelece a lei qualquer “audição” das partes (seja ou não a expensas do princípio do contraditório) em ordem à formulação de um juízo sobre essa negligência (aliás, mais do que ouvir as partes ou atuar o contraditório, tratar-se-ia então de um autêntico “incidente”, por isso que, dentro da lógica subjacente, as partes teriam que ser admitidas a demonstrar as razões que as levaram a não promover o andamento do processo, isto é, a sua não negligência). Ao invés, à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência. O que a lei pretende é que a parte ativa no processo não seja penalizada em termos de extinção da instância quando a razão do não andamento da causa lhe não seja imputável.(…)»

Aderimos inequivocamente a esta linha de entendimento.

Na verdade, se se trata efetivamente da necessidade de proceder a uma valoração, que não deve ficar entregue unicamente à discricionariedade do julgador, tal foi feito no caso ajuizado, com o Exmo. Juiz a quo a avaliar os dados da situação e, perante eles, a fundamentada e ponderadamente decidir no sentido da positiva verificação de negligência da parte.

Ademais, não foi alegado, nem se vislumbra, em que medida ou dimensão tenha sido negado o acesso ao direito ou aos tribunais à Requerente (e Cabeça de Casal) ora recorrente, nem lhe foi impedido o acesso a um processo equitativo (cf. art. 20º, nos 1 e 4 da CRP)…

Assim sendo e brevitatis causa, também improcede claramente esta questão recursiva.

                                                           ¨¨

Nesta conformidade improcedendo o recurso.

                                                           *

(…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar a apelação interposta improcedente por não provada, mantendo-se a decisão recorrida nos seus termos.

Custas pela Requerente/recorrente.

                                                              Coimbra, 21 de Maio de 2024

                                               Luís Filipe Cravo

                                                  Vítor Amaral

                                                  Fonte Ramos


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Vítor Amaral
  2º Adjunto: Des. Fonte Ramos
[2] Citámos PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, Vol. I, Combra, Livª Almedina, 2014, 2.ª Edição, a págs. 273.
[3] Cf. ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA in “Código Processo Civil” , Vol. I, , 2ª edição, Almedina – anotação ao artº 281, a págs. 347-350; JOSÉ LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª edição, Coimbra Editora, anotação ao artº 281º, a págs. 572-573.
[4] Assim no acórdão do STJ, de 5/5/2022, proferido no proc. nº 1652/16.5T8PNF.P1.S1; no mesmo sentido, os acórdãos do mesmo STJ de 16/3/2023, proferidos no proc. nº 19315/16.OT8LSB.L2.S1, e no proc. nº 543/18.OT8LSB.L2.S1; todos estes arestos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Vide CARLOS LOPES DO REGO, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., Livª Almedina, Coimbra, 2004, a págs. 33.
[6] Citámos JOSÉ LEBRE DE FREITAS, in “Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, a págs. 125.
[7] Trata-se do acórdão do STJ de 20/09/2016, proferido no proc. nº 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Aliás, o próprio normativo legal prevê a dispensa do contraditório em casos de manifesta desnecessidade (cf. art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil), sendo que o termo manifesta deve ser interpretado como «não haver dúvidas», «saltar aos olhos», «resultar claramente dos autos», que é de resto o sentido comum.
[9] Na precedente nota [8].