Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
978/04.5TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
EMBARGOS
DESPACHO SANEADOR
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.4, 5, 6, 7 CRP, 351, 508-A, 510, 646 CPC
Sumário: 1. - A decisão de mérito logo no saneador apenas pode verificar-se quando toda a matéria de facto relevante para a decisão segundo as várias soluções plausíveis se encontre provada; quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos; quando todos os factos controvertidos relevantes para aquele efeito apenas possam ser provados por documentos, atento o disposto no artº 646º nº4 do CPC.

2. - O registo predial atem-se a razões de certeza e segurança do tráfego jurídico-comercial, encerra uma função declarativa e não constitutiva de direitos, e constitui mera presunção, ilidível, de que o direito existe nos termos por ele definidos.

3. - O artº 5º nº4 do CRPredial – adoptou, na sequencia do Ac. do STJ nº3/99 de 18 de Maio, um conceito restritivo de terceiro para efeitos registrais, no âmbito do qual não assume tal qualidade um alegado adquirente de um certo bem, por reporte ao titular de um direito de crédito sobre o mesmo, embora sob a protecção de um direito real de garantia (penhora) ou ao seu alienante.

4. - Invocando o embargante de terceiro que adquiriu a propriedade do bem penhorado em execução antes do registo da penhora, e não obstante apenas ter registado tal aquisição após este registo, não têm aqui aplicação as regras registrais – rectius os artºs 5º nº1 e 6º - mas antes deve ser apurado acerca de tal aquisição, procedendo, ou não, a sua pretensão, consoante prove, ou não, o seu domínio anterior aquele registo.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Por apenso à execução instaurada por N (…) contra P (…) Lda, deduziu A (…) embargos de terceiro.

Alegou:

É proprietário e possuidor do veículo automóvel de marca Renault, modelo Clio (SB0E0F), com a matrícula ...-...-PO, conforme certidão emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Ourém, que aqui se junta com doc. 1.

O referido veículo automóvel foi por si adquirido em 02/07/2007, conforme consta no requerimento de declaração para registo de propriedade - Contrato verbal de compra e venda, que aqui se junta com doc.2.

E, sempre desde a data da aquisição o utilizou e usufruiu do referido veículo, pagou as suas reparações, zelou pela sua manutenção e limpeza e sempre esteve na posse, uso e fruição, daquela viatura.

Acontece porém que  soube no dia 19/03/2009, que fora o referido veículo penhorado no âmbito dos autos acima referenciados.

Data em que foi informado que o seu veículo automóvel tinha sido, indevidamente, penhorado, conforme consta no auto de penhora.

Desconhece que haja da sua parte, alguma dívida à Executada.

E nunca tomou conhecimento da existência de qualquer dívida à Executada. Nem é devedor de qualquer dívida à Executada.

O referido veículo foi, pois, indevidamente penhorado.

Pediu:

1) Se declare que o automóvel lhe pertence, única e exclusivamente e se ordene o cancelamento da respectiva penhora, até à decisão definitiva neste processo de embargos.

Contestou o exequente e embargado N (…).

Disse:

Que o pretenso registo de aquisição do veículo em nome daquele só ocorreu em 10 de Fevereiro de 2009.

Tendo a penhora de tal viatura sido efectuada e registada em 7 de Agosto de 2008.

Donde se conclui que na data em que foi registada a penhora da viatura objecto dos presentes autos, o Apelante ainda não era o titular inscrito no registo, nem tão pouco era o seu possuidor.

Dispõe o artigo 6º n.º do Código de Registo Predial que “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes.”

Pelo que o registo da penhora sub judice goza de prioridade em relação ao registo da aquisição do veículo e, como tal, na data em que foi apresentado o registo de penhora o veículo em causa pertencia à sociedade executada pelo que é um bem sobre o qual se podia efectivar tal penhora, como veio a suceder e foi correctamente determinado.

Ademais o embargante é filho do gerente da sociedade executada e tudo isto foi conluiado entre eles para eximir o bem à execução, sendo certo que quem usou e fruiu o automóvel tem sido a sociedade.

Pediu:

 A improcedência dos embargos e a condenação do embargante como litigante de má fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a mil euros.

2.

Em sede de audiência preliminar o Sr. Juiz  considerou-se habilitado a conhecer do pedido o que fez nos seguintes termos, ipsis verbis:

«Factos provados:

A - O exequente deu à execução o título constante de fls. 8, dos autos apensos, que aqui se dá por integral reproduzido;

B - O exequente procedeu à penhorado veiculo automóvel com matrícula ...-...-PO, marca Renault, modelo Clio;

C - O embargante é titular inscrito do direito propriedade sobre o veiculo automóvel referido em "B" mediante AP 02034 de 10/02/2009 (por lapso na decisão consta 10.12.2009), documento junto a fls. 8 dos autos de embargo;

D - Em 7/08/2008, o exequente procedeu ao registo da penhora efectuada sobre o veiculo aludido em "B".

 E - A S(…)Instituição Financeira de Crédito, S.A. emitiu em 27/05/08 a declaração que dos autos de execução a estes apenso faz fls. 61, 62, onde consta que a executada P (…)Lda., procedeu à liquidação em Julho de 2007 de contrato de Locação Financeira com aquela entidade celebrado.

DECISÃO

Vêm os presentes autos de embargos propostos por A (…) pugnando este pelo direito de propriedade sobre o veiculo automóvel referido em "B" dos factos assentes, direito de propriedade que lhe adveio por via do contrato celebrado com a executada.--- Junta para esse efeito documento que pretende consubstanciar tal aquisição.---

Todavia decorre da certidão emitido pela Conservatória do Registo Automóvel de Ourém, que à data da inscrição do registo (da penhora) 07/08/2008 (por lapso escreveu-se 2009), o direito de propriedade sobre o dito veiculo automóvel se encontrava registado a favor da sociedade executada nos autos a estes apenso.---

Nos termos do art. 6º do C.R.P., resulta que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece aos que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens por ordem da data de registo e dentro das mesmas datas pelo número de ordem das apresentações correspondentes.---

Resulta dos autos que o embargante levou a registo aquisição do veiculo em relação ao qual os presentes autos se debruçam, em 10/02/2009 (e não 10.12) assim, pelo princípio do trato sucessivo impõe-se concluir que o embargante à data em que procedeu ao registo do direito de propriedade do qual funda os presentes os presentes embargos não poderia deixar de saber que sobre o dito veiculo automóvel indicia um ónus previamente inscrito e que acompanhou a dita transmissão do direito de propriedade.--

Decorre também dos autos que à data em que foi efectuado o acto de penhora do dito veiculo o titular inscrito era o executado, que sobre o mesmo existia uma reserva de propriedade que a Instituição locadora veio esclarecer já não se encontrar em vigor por haver sido liquidado o contrato em apreço, é assim inoponível à exequente o acto translactivo do direito de propriedade, falecendo-lhe por essa via a invocada qualidade de terceiro para efeitos de dedução dos presentes embargos, embargos esses que estão assim votados ao insucesso pelas razões supra aludidas.---

No que concerne à litigância de má fé, entendemos que a situação sobre que versam os autos situa nas franjas daquilo que a doutrina qualifica como um caso de litigância temerária distinta de litigância de má fé, não justificativa de condenação a esse título peticionada.---

Pelas razões supra alinhadas, julgo improcedentes, por não provados os presentes embargos, absolvendo as partes primitivas do pedido.»

3.

Inconformado recorreu o embargante.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1)…

2)…

3) …

4)…

5)…

6) Não se consegue perceber a posição do Meritíssimo Juiz quando refere: “Entende-se que os autos contêm elementos que permitam desde já proferir decisão de mérito..”.;

7) Porque o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador não pode ocorrer quando do processo não constem todos os elementos de prova essenciais a uma decisão segura e suficientemente fundamentada;

8) Assim, e de acordo com a p.i. de embargos de terceiro do Recorrente, necessário seria proceder a uma averiguação concreta dos factos, para que o Meritíssimo Juiz não profira decisões precipitadas, que salvo o devido respeito, foi o que aconteceu;

9) Pois considerar improcedente por não provados os embargos, fundamentando a sua decisão, única e exclusivamente, por meras suposições, quando todos os factos foram impugnados pelo Recorrente, parece-nos uma decisão precipitadas;

10) Até porque, o conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador só poderá verificar-se quando “ o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total dos pedidos deduzidos”, o que, manifestamente, não ocorre no caso em apreço;

11) Necessário seria a elaboração da base instrutória, tendo em vista a selecção da matéria de facto controvertida e relevante para a decisão da causa, pois na p.i. de embargos à Execução o Recorrente impugnou o alegado no auto de penhora e requerimento executivo;

12) Por todo o exposto tem a sentença recorrida ser considerada nula;

13) Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 659 nº 2 do CPC, na Sentença recorrida deve discriminar os factos considerados provados, sendo que, a ausência destes conduz, inexoravelmente, à sua nulidade de harmonia com o disposto no artigo 668º nº 1 alínea b) do CPC;

14) Também, as afirmações formuladas pelo Recorrente, em sede de embargos de terceiro à Execução, consubstanciam-se em matéria controvertida, não só face ao título executivo, como também à posição assumida pelo Exequente na sua contestação;

15) Assim sendo, não se podia ter conhecido desde logo dos embargos de terceiro no Despacho Saneador;

16) Dever-se-ia antes ter elaborado a matéria assente e a base instrutória, nos termos do artigo 511º nº 1 do CPC, uma vez que a solução da questão de direito estava dependente do apuramento daquela factualidade controvertida;

17) Pelo que, identicamente, por este motivo, deverá a Sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;

18) Devendo assim, a Sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes, o que desde já aqui se requer;

19) Sofrendo a Sentença recorrida de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d) do n.º 1 do artigo 668º do CPC;

20) Nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;

21) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da improcedência da Oposição sem realização da Audiência de Julgamento;

22) O Meritíssimo Juiz, limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: os elementos constantes no processo;

23) Deixando o Meritíssimo Juiz de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;

24) Deverá ser REVOGADA a decisão recorrida.

25) A Sentença recorrida viola: artigos 3º, 158º e alíneas b), c) e d) do artigo 668º do Código do Processo Civil; artigos 13º, 20º, 201 202º, 204º, 205º da C. R.P.

Contra-alegou o exequente nos seguintes termos conclusivos:

A) A douta sentença não enferma de nenhum dos vícios apontados pelo Apelante nas suas doutas alegações de recurso, porquanto

B) Em face dos elementos existentes nos autos, mormente da prova documental, o Tribunal a quo entendeu e bem que estavam reunidas as condições para que fosse proferida de imediato decisão de mérito; tendo, inclusive, tido a preocupação de chamar as partes para uma discussão de facto e de direito sem que o Apelante tivesse requerido que o processo fosse para julgamento; não se encontrando violado qualquer preceito constitucional.

C) Por outro lado, o Meritíssimo Juiz a quo indicou quais os factos que, no seu entender perante os elementos existentes nos autos, resultaram provados; os quais só por si bastam para que fosse proferida douta decisão no sentido da improcedência dos embargos.

D) Como também a douta sentença encontra-se correctamente fundamentada, como correcto está o enquadramento jurídico dos factos, pelo que se adere aos fundamentos nela constantes e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.

E) Com efeito, resulta dos autos que o Apelante juntou com a douta petição de embargos (certidão do registo automóvel) que o pretenso registo de aquisição do veículo em nome daquele ocorreu em 10 de Fevereiro de 2009, tendo a penhora de tal viatura sido efectuada e registada em 7 de Agosto de 2008.

F) Donde se conclui que na data em que foi registada a penhora da viatura objecto dos presentes autos, o Apelante ainda não era o titular inscrito no registo, nem tão pouco era o seu possuidor.

Ora

G) Dispõe o artigo 6º n.º do Código de Registo Predial que “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes.” (sublinhado nosso).

H) Pelo que o registo da penhora sub judice goza de prioridade em relação ao registo da aquisição do veículo.

I) Com efeito, sempre foi a sociedade executada quem pagou o respectivo imposto de circulação, porquanto consta dos autos a informação prestada pelos serviços de Finanças que, pelo menos, em 2008 (e portanto em momento posterior à data indicada pelo Apelante como tendo pretensamente adquirido tal viatura) que o titular, para efeitos fiscais, do veículo sub judice era a sociedade aqui executada, conforme se infere do documento n.º 2 junto com a contestação aos embargos.

J) Contudo e porque o Apelante veio apresentar o presente recurso cuja falta de fundamento não

deveria ignorar, constituindo o presente meio um expediente dilatório para uma vez mais protelar o normal andamento da execução, até porque o Apelante tem perfeita consciência que a penhora que incide sobre o veículo sub judice não viola o direito de propriedade de terceiros, vem o Apelante fazer, uma vez mais, um uso manifestamente incorrecto do processo, apresentando recurso cuja falta de fundamento não deveria ignorar.

   K) Pretendendo com a interposição do presente recurso impedir a realização da justiça e, consequentemente, que o Apelado receba o seu crédito, está o Apelante a litigar de má fé (como evidenciam os factos e os próprios elementos documentais existentes nos autos).

   L) Pelo que deverá o Apelante ser condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor do Apelado nunca inferior a € 1.000,00 (mil euros), atento os prejuízos que conscientemente a este pretende causar.

   4.

   Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Ilegalidade da decisão de conhecimento do mérito da causa em sede de audiência preliminar uma vez que a solução da questão de direito estava dependente do apuramento de factualidade controvertida invocada na pi.

Nulidade da sentença  por violação do disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 668º do CPC.

5.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

Nos termos dos artºs 508º-A nº 1 al.d) e 510º ºnº1 al.b) do CPC, findos os articulados o juiz profere despacho saneador no âmbito do qual deve: «conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória».

O estado do processo permitirá conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas sempre que a questão seja apenas de direito, ou, sendo de direito e de facto, o processo contiver todos os elementos, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas tendo em vista a perfilhada pelo juiz da causa – Abílio Neto, CPC, Anotado, 16ª ed. p.727.

Por outras palavras, pode conhecer-se do mérito da causa sempre que os factos necessários para a resolução do litigio estejam já provados no processo, não carecendo de ulterior instrução ou actividade probatória.

Tal verifica-se seguramente:

- quando toda a matéria de facto relevante  para a decisão segundo as várias soluções plausíveis se encontre provada se encontre;

- Quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos;

- Quando todos os factos controvertidos relevantes para aquele efeito apenas possam ser provados por documentos, atento o disposto no artº 646º nº4 do CPC – cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, 2º, 638 e Abrantes Geraldes, Temas,  2º, 131/32.

Havendo ainda quem aceite um julgamento de mérito antecipado mesmo no caso de alguns factos atinentes à decisão se encontrarem controvertidos, desde que o juiz, através de um juízo de prognose fundado em critérios objectivos, conclua que os já provados permitem a prolação de uma decisão final conscienciosa e segura, o que se verifica no caso de os factos controversos, mesmo a provarem-se, não permitirem a defesa de outra solução que não a adoptada – A. Geraldes, ob. cit. 133/34.

6.1.2.

«O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário» – artº 1º do CRP.

«O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define» – artº 7º.

Daqui emerge que o registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis, por razões de certeza e segurança do tráfego jurídico-comercial.

   Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva de direitos. Conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos cfr. entre outros, o Ac. do STJ de  26.06.2008, dgsi.pt. p. 08B1862.

E assumindo a presunção mencionada o cariz de “iuris tantum”, logo elidível, ou seja, podendo provar-se o contrário quanto à existência do direito registado e à sua titularidade.

   6.1.3.

   «Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros»- artº 4º.

   Porém e no que tange á oponibilidade a terceiros: «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo» - artº 5º.

   Sendo que: «O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes» - artº 6º.

   6.1.3.1.

O conceito de terceiro para efeito de registo predial foi objecto de controvérsia jurisprudencial.

Numa primeira análise desta problemática, o plenário do STJ adoptou um conceito mais amplo, julgando serem terceiros, para efeito de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vissem esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente - Acórdão nº 15/97, de 20 de Maio, Diário da República, I Série, de 4 de Julho de 1997.

Posteriormente e em segunda análise da mesma problemática, o plenário do STJ adoptou uma concepção mais restritiva, no sentido de que terceiros para efeitos do disposto no artigo 5º do CRP são apenas os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa - Acórdão nº 3/99, de 18 de Maio, Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1999.

Tese esta que foi legalmente consagrada na sua essência, pois que se estatuiu que «terceiros para, efeitos de registo, são os adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo transmitente comum» - artigo 5º, nº 4, do CRP.

6.1.3.2.

O mencionado Acórdão nº3/99 foi tirado num caso quase simétrico ao que ora nos ocupa.

Pelo que aqui interessa e releva o que nele, a dado passo, se expendeu, a saber:

 «Por força do condicionamento da eficácia, em relação a terceiros, dos factos sujeitos a registo, é evidente que, se alguém vende, sucessivamente, a duas pessoas diferentes a mesma coisa, e é o segundo adquirente quem, desconhecendo a primeira alienação, procede ao registo respectivo, prevalece esta segunda aquisição, por ser esse o efeito essencial do registo. Estão em causa direitos reais da mesma natureza. Aqui, a negligência, ignorância ou ingenuidade do primeiro deve soçobrar perante a agilidade do segundo, cônscio, não só dos seus direitos como dos ónus inerentes. É sob este prisma que a primeira venda leva à constituição de um direito resolúvel cuja resolução ocorre perante a verificação do facto complexo de aquisição posterior, de boa fé, seguida de registo.

Isto quer a alienação seja voluntária, isto é, livremente negociada, quer coerciva, ou seja, obtida por via executiva. Efectuada a compra, por via de arrematação em hasta pública, ou por qualquer outro modo de venda judicial, este modo de alienação, na perspectiva em causa, tem, pelo menos, a mesma eficácia daqueloutra. Também aqui a prioridade do registo ultrapassa a incompatibilidade.

Situação diferente é a resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora registada quando o imóvel penhorado já havia sido alienado, mas sem o subsequente registo. Aqui, o direito real de propriedade, obtido por efeito próprio da celebração da competente escritura pública, confronta-se com um direito de crédito, embora sob a protecção de um direito real (somente de garantia). Nesta situação, mesmo que o credor esteja originariamente de boa fé, isto é, ignorante de que o bem já tinha saído da esfera jurídica do devedor, manter a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denuncia a veracidade da situação, seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situação intrinsecamente ilícita, que se aproxima de subsunção criminal, ao menos se for o próprio executado a indicar os bens à penhora. Assim, poderia servir-se a lex, mas não seguramente o jus…

Como já se verificou, o imóvel penhorado, na caso dos autos, já havia saído do património do devedor. Portanto, não podia garantir nenhuma das suas dívidas. Como bem alheio que é, pode o seu titular embargar de terceiro.

A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Portanto, efectuada a venda, é que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. In casu ainda se não efectivou a venda. Nesta perspectiva, poderia dizer-se que, a conceder-se eficácia ao registo, de alguma maneira estaria a emprestar-se-lhe capacidade impeditiva de o embargante conservar o seu direito de propriedade. No entanto, é certo que ninguém pode ser privado, no todo em ou parte, daquele direito senão por via de expropriações ou requisições, mediante pagamento de indemnização, sob pena de inconstitucionalidade…».

(sic com sublinhado nosso)

6.1.4.

In casu.

Perante a actual concepção restritiva do conceito de terceiro, para efeitos registrais, tem de concluir-se que o embargante não assume esta qualidade no confronto quer com o exequente  quer com o  alegado alienante.

Logo não podem ser chamadas à colação e ser-lhe aplicáveis as regras do registo no que à sua oponibilidade a terceiros concerne.

Nem outrossim tendo cabimento, como entendido na decisão, o artº 6º do CRP.

Não assume a qualidade de terceiro para efeitos registrais mas já a encerra para efeitos processuais atinentes á sua legitimidade para instaurar a acção, pois que, alegadamente, a penhora ofendeu a sua posse sobre e a propriedade do veículo, o que se terá verificado em processo em que não foi parte – artº 351º do CPC

Ora dos factos essenciais relevantes pelo embargante alegados e supra referidos, emerge, nuclearmente, a invocação da propriedade do veículo penhorado, que diz ter adquirido em 02.07.2007 através de um contrato verbal de compra e venda.

A regra no que concerne à transferência dos direitos sobre coisas determinadas é que ela se efectiva por mero efeito do contrato – artºs 408º, nº 1 do CC.

Regra esta que se aplica à compra e venda de veículo automóvel a qual, ademais, não depende da observância de forma especial  - artºs 219º e 879º al. a) e Ac. do STJ de  16.09.2008, dgsi.pt, p. 08B1697.

Importa, pois, para a boa decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, apurar se o embargante adquiriu, na data que alega, ou não, a propriedade e posse do veículo.

Pois que se tal se provar, estamos perante um caso em que a regra da prioridade da aquisição do direito de propriedade prevalece sobre a prioridade de inscrição do registo da penhora.

Certo é que, atentas certas vicissitudes já indiciariamente alcançáveis, vg. o largo lapso de tempo em que a questão está judicialmente introduzida –desde 2004 – e as invocadas relações de filiação entre o embargante e o sócio gerente da executada, algumas dúvidas se podem colocar, à partida, sobre a bondade e real e efectiva veracidade do alegado, ou, pelo menos, sobre a boa fé quanto ao fito prosseguido pelos ditos outorgantes.

Mas tal é juízo que apenas se pode, definitiva e conscientemente, formular com cabal escalpelização do caso após a produção, apreciação e valoração da prova.

Em suma: procede esta pretensão recursiva, devendo o processo prosseguir com selecção dos factos pertinentes relativos à invocada aquisição da propriedade do veículo em causa.

6.2.

Segunda questão.

Tendo procedido a primeira questão queda prejudicada, na lógica das pretensões do recorrente a apreciação.

No entanto sempre se dirá, sumária e conclusivamente, que, neste particular, não assiste razão ao recorrente pois que na decisão se plasmaram os factos em que se alicerçou, inexiste qualquer vício lógico entre os seus fundamentos e ela mesma e, quanto à questão essencial decidenda – saber se ao embargante assiste, ou não, jus ao levantamento da penhora – existiu pronuncia, posto que, como se viu, algo intempestiva.

6.3.

Sumariando.

I- A decisão de mérito logo no saneador apenas pode verificar-se quando toda a matéria de facto relevante  para a decisão segundo as várias soluções plausíveis se encontre provada; quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos; quando todos os factos controvertidos relevantes para aquele efeito apenas possam ser provados por documentos, atento o disposto no artº 646º nº4 do CPC.

II-  O registo predial atem-se a razões de certeza e segurança do tráfego jurídico-comercial, encerra uma função declarativa e não constitutiva de direitos, e constitui  mera presunção,  ilidível, de que o direito existe nos termos por ele definidos.

III- Acresce que actual lei – artº 5º nº4 do CRPredial – adoptou, na sequencia do Ac.  do STJ nº3/99 de 18 de Maio,  um conceito restritivo de terceiro para efeitos registrais, no âmbito do qual não assume tal qualidade  um alegado adquirente de um certo bem, por reporte ao titular de um direito de crédito sobre o mesmo, embora sob a protecção de um direito real de garantia (penhora) ou ao seu alienante.

IV- Destarte, invocando o embargante de terceiro que adquiriu a propriedade do bem penhorado em execução antes do registo da penhora, e não obstante apenas ter registado tal aquisição após este registo, não têm aqui aplicação as regras registrais – rectius os artºs 5º nº1 e 6º - mas antes deve ser apurado acerca de tal aquisição, procedendo, ou não, a sua pretensão, consoante prove, ou não, o seu domínio anterior aquele registo.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, ordenar a legal tramitação dos autos nos termos sobreditos.

Custas pelo vencido a final ou pelas partes na proporção da respectiva sucumbência.


Carlos Moreira (Relator)
Teresa Pardal
Moreira do Carmo