Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
435/20.2T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIRES ROBALO
Descritores: NOVO REGIME JURÍDICO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO JUDICIAL
INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 117/2019, DE 13/09; ARTºS 1082º A 1135º DO NCPC.
Sumário: I – A Lei nº 117/2019, de 13.9, que entrou em vigor em 1.1.2020, veio, além do mais, revogar o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei nº 23/2013, de 5.3, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil (arts. 1082º a 1135º) o inventário judicial.

II - Sem prejuízo do regime transitório previsto nos arts. 12º e 13º da referida Lei nº 117/2019, estabelece a mesma a repartição de competências para a tramitação do inventário entre os tribunais judiciais e os cartórios notariais, delimitando o art. 1083º do C.P.C. os casos em que o processo de inventário é da competência exclusiva dos primeiros.

III - Resulta da alínea b) do n.º 1 do art.º 1083.º do C.P.C. que o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

IV - Por outro lado, resulta do n.º 1 do art.º 1133º do mesmo diploma que: “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”.

V - O inventário para separação de meações é dependente do processo de divórcio judicial, na medida em que é consequência do que nele foi decidido, pois é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal.

VI - Da leitura destes preceitos e da sua conjugação com o disposto no n.º 2 do art.º 122.º da Lei Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), onde se refere que: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”, temos para nós que o inventário tem de correr nos tribunais judiciais (juízos de família e menores) quando seja subsequente a ação de divórcio judicial.

Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível (3.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra

Proc.º n.º 435/20.2T8PBL-A.C1

1.- Relatório

J..., cabeça de casal, pediu o processamento do inventário ao processo de divórcio que correu termos no Juízo de Família e Menores de Pombal sob o processo n.º ...

1.2. Foi proferido despacho datado de 2/11/2020 do teor que se transcreve:

Ref.ª ...: Conforme já decorre do despacho que antecede, face à ausência de norma expressa em sentido diferente o processo de inventário instaurado no âmbito do art.º 1133.º do Cód. Proc. Civil é tramitado como processo autónomo e independente.          Como Tomé D’ Almeida Ramião refere in ‘Novo Regime do Processo de Inventário Judicial e Notarial, Anotado e Comentado, Quid Juris, p. 123’, «Face ao novo regime jurídico, o processo de inventário deixa de correr por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, como se previa no art.º 1404.º, n.º 3 do anterior Cód. Proc. Civil e, em consequência, pode não ser da competência do tribunal que apreciou e decidiu o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens.

Este preceito legal é omisso quanto à forma como é autuado esse processo, se corre autonomamente ou por apenso ao processo de divórcio, separação judicial de pessoas e bens ou declarado nulo ou anulado o casamento, ao contrário do que se previa no correspondente art.º 1404º, n.º 3 do anterior CPC, ao estabelecer que o processo de inventário corria por apenso a esses processos», não se podendo «afirmar haver uma relação de dependência entre esses processos (que estão findos e não pendentes) e o processo de inventário, já que a instauração do processo de inventário pressupõe uma decisão, transitada em julgado, que ponha termo à comunhão conjugal (divórcio, anulação ou nulidade do casamento) ou à separação judicial de pessoas e bens».

Em face do exposto, aderindo-se ao mencionado entendimento, tratando-se o processo de inventário de verdadeira ação autónoma e independente, não pode ter aplicação o disposto no art.º 206.º, n.º 2 do CPC.

Termos em que se indefere o requerido.

Proceda à desapensação do processo notarial apenso e remeta ao respetivo cartório.

Oportunamente conclua a fim de determinar os ulteriores termos do processo”.

1.3. – Inconformado com tal decisão dela recorreu o requerente terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

1ª.) Os presentes autos de inventário, para separação de meações, iniciaram-se ao abrigo do regime jurídico do processo de inventário no Cartório Notarial na sequência de processo de divórcio judicial que correu termos no Juízo de Família e Menores de Pombal sob o processo nº ...

2ª.) As partes requereram, ao abrigo do disposto no artigo 12º, nº 2, alínea a) da Lei 117/2019, de 13 de Setembro, a sua remessa para o Tribunal Judicial competente em razão da matéria e do território.

3.ª) A sua remessa, verificados os pressupostos aí definidos, foi determinada por despacho da Sra. Notaria nesse sentido, com envio do processo notarial ao Juízo de Família e Menores de Pombal;

4ª.) Todavia, a Meritíssima Juiz do Juízo de Família e Menores proferiu o despacho recorrido determinando que os presentes autos sejam tramitados de forma autónoma e independente do referido processo de divórcio cuja apensação foi requerida e que o processo notarial remetido pelo Cartório fosse desapensado e devolvido.

5ª.) Tal despacho fere o espirito da conexão de processos e dependência da causa ínsitos nos termos dos artigos 206º do Código de Processo Civil e 122º, nº 2 da LOSJ.

6ª.) Ou seja, os presentes autos de inventario são decorrentes do divórcio.

7ª.) E nessa medida deveriam ser apensados àqueles autos, numa perspetiva de economia, celeridade e aproveitamento dos elementos aí existentes.

8ª) Tal como a tramitação subsequente dos autos de inventário na fase judicial deveriam aproveitar no principio da adequação formal e da gestão processual tudo o que foi validamente praticado pelas partes, além da respetiva instrução probatória documental.

9ª.) Ao ser determinada a sua devolução ao Cartório as partes veem-se forçadas a repetir a causa todo o processado inutilizando-se, a prova junta e os actos praticados.

10ª.) Em clara contradição do espirito legislativo e do preceituado nas normas transitórias dos artigos 12º e 13º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, onde a tramitação subsequente segue a forma do processo do inventário judicial prevista nos artigos 1082º a 1135º do Código de Processo Civil, adequando-se  os actos já praticados.

11ª.) O despacho ora recorrido viola as disposições legais previstas nos artigos 122º,  nº 2 da LOSJ  e dos artigos 206º, nº 2; 1082º a 1135º do Código de Processo Civil e artigos 12º e 13º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro.

Termos em que deve o presente recurso ser admitido e, em consequência, ser revogado o despacho proferido sob a referência citius ..., ordenando-se a apensação dos presentes autos ao processo de divórcio que correu termos sob processo nº... e serem aproveitado os elementos probatórios e os atos praticados na fase de processo notarial.’

1.4. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º do C.P.C. não houve resposta.

1.5. – Foi proferido despacho a receber o recurso.

1.6. – Com dispensa de vistos cumpre decidir.

2 Fundamentação

A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
                                                            
3. Motivação

3.1. Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. art.s 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, todos do C.P.C.).

De acordo com as conclusões supra transcritas, a única questão a decidir consiste em saber se, atenta a conexão entre o inventário e o processo judicial que decretou o divórcio, deve aquele ser instaurado por apenso a este.

Na decisão recorrida entendeu-se que o art. 1133º do C.P.C. não o prevê, defendendo o recorrente que a apensação se justifica por razões de conveniência e ainda face ao preceituado nos art.ºs 206º do Código de Processo Civil e 122º, nº 2 da LOSJ.

Vejamos.

A Lei nº 117/2019, de 13.9, que entrou em vigor em 1.1.2020, veio, além do mais, revogar o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei nº 23/2013, de 5.3, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil (arts. 1082º a 1135º) o inventário judicial.

Assim, e sem prejuízo do regime transitório previsto nos arts. 12º e 13º da referida Lei nº 117/2019, estabelece a mesma a repartição de competências para a tramitação do inventário entre os tribunais judiciais e os cartórios notariais, delimitando o art. 1083º do C.P.C. os casos em que o processo de inventário é da competência exclusiva dos primeiros.

Resulta da alínea b) do n.º 1 do art.º 1083.º do C.P.C. que o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Por outro lado resulta do n.º 1 do art.º 1133º do mesmo diploma que:

“Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”

O inventário em causa é dependente do processo de divórcio judicial, na medida em que é consequência do que nele foi decidido, pois é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal.

Da leitura destes preceitos e da sua conjugação com o disposto no n.º 2 do art.º 122.º da Lei Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), onde se refere que: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”, temos para nós que o inventário tem de correr nos tribunais judiciais (juízos de família e menores) quando seja subsequente a ação de divórcio judicial (cfr. neste sentido Ac. Rel. de Lisboa de Lisboa de 14.7.2020 – 6, proc.º n.º 99/16.6T8CSC-D.L1-7, relatado por Maria da Conceição Saavedra).

É verdade que o art.º 133.º do C.P.C., como se refere na decisão recorrida, sustentada na opinião de Tomé D’ Almeida Ramião,  não prevê, de forma expressa, que o inventário requerido na sequência de divórcio seja tramitado por apenso ao processo judicial onde este foi decretado, ao contrário do que sucedia com o nº 3 do art. 1404º do C.P.C. que lhe correspondia na versão do DL nº 329-A/95, de 12.12.

Contudo, temos para nós que é a dependência e a conexão entre ambos os processos que justificará a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar tais inventários (cfr. neste sentido Ac. da Rel. de Lisboa supra citado), pois só assim, quanto a nós, se compreende a conjugação dos art.ºs 1133.º do C.P.C. e art.º 122 da LOSJ.

Por outro lado, o nº 2 do art. 206º do C.P.C. refere que: “As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.”

Assim, como refere Pedro Pinheiro Torres in Cadernos do CEJ “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, pág. 31: “(…) Será, porventura. relevante fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente o divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC; (…).”

Também António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa vão nesse sentido, ao referirem in “Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2020, Vol. II, pág. 527” que: “(…) Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206º, nº 2.(…).”.

Referem ainda os mesmos autores, in ob. cit., págs. 527 e 629, que “a mesma relação de dependência justifica a instauração por apenso na prestação de contas pelo cabeça de casal (art. 947º), na atribuição da casa de morada de família por dependência da ação de divórcio pendente ou finda (art. 990º, nº 4), na autorização para a prática de atos por dependência de processo de inventário ou de maiores acompanhados (art. 1014º, nº 4), na nomeação judicial de titulares de órgãos sociais para efeito de representação da pessoa coletiva em causa pendente (art. 1054º, nº 2) ou ainda nos casos previstos nos arts. 881º, nº 3, 915º, 924º e 959º).

Pelo exposto e por concordar com o segmento do referido no Ac. da Rel. de Lisboa supra citado, aqui o transcrevemos “Cremos, com o devido respeito, que a regra da apensação, justificada pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos é a que melhor se coaduna com a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar, nomeadamente, o inventário requerido na sequência de divórcio judicial, sendo ainda a mais conforme com o princípio da economia processual, já que do processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha (cfr. art. 1789º do C.C., com a epígrafe “Data em que se produzem os efeitos do divórcio”).

Pelo que, tendo em conta o disposto no art. 206º, nº 2 do C.P.C., não podemos retirar do confronto entre o atual art. 1133º do C.P.C. e o correspondente art. 1404º do C.P.C. de 1961 que o inventário será tramitado de forma autónoma e independente nos tribunais de família e menores ainda que aí tenha corrido termos a ação que lhe deu origem e que com ele é conexa.

Em suma, concluímos que cabendo aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil (sem prejuízo das competências atribuídas às conservatórias do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento), cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122, nº 2, da LOSJ, e 206, nº 2, do C.P.C..”.

Face ao exposto, tem de proceder a pretensão do recorrente, devendo ser o inventário tramitado por apenso ao processo de divórcio judicial dos interessados.

4. Decisão

Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão proferida e determinando a tramitação do presente inventário por apenso ao processo de divórcio judicial dos interessados, tudo como requerido.

Sem custas.

Coimbra, 23/2/2021

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Jaime Ferreira (adjunto)