Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
388/05.7TTAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTES ANTERIORES COMO TRABALHADOR POR CONTA PRÓPRIA
DETERMINAÇÃO DA INCAPACIDADE DO SINISTRADO
Data do Acordão: 11/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: BASES I, II E V DA LEI Nº 2127, DE 3/8/65; ARTºS 3º E 9º DA LEI Nº 100/97, DE 13/09 (LAT); E DL Nº 159/99, DE 11/05.
Sumário: I – Os acidentes ocorridos com um sinistrado no âmbito de um contrato de seguro por acidentes “por contra própria” não podiam qualificar-se como acidentes de trabalho na configuração legal definida pela Lei nº 2127, de 3/08/65, considerando as disposições conjugadas das suas Bases I, II e V, e uma vez que o âmbito desse diploma legal visava exclusivamente a protecção dos trabalhadores por conta de outrem, num quadro primacial de responsabilidade objectiva dos empregadores pelos danos físicos sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço e por causa dele.
II – Com a entrada em vigor da Lei nº 100/97, de 13/09, estipulou-se a obrigação dos trabalhadores independentes efectuarem seguro que garanta as prestações previstas na legislação própria dos acidentes de trabalho.

III – Actualmente, todos os acidentes de trabalho que ocorram com trabalhadores independentes e dos quais tenha resultado incapacidade permanente para o trabalho são obrigatoriamente processados judicialmente, mediante comunicação da seguradora ao tribunal, como decorre do artº 8º do DL nº 159/99, de 11/05, e processados de acordo com as regras processuais aplicáveis aos trabalhadores por conta de outrem.

IV – Mas em caso de acidente ocorrido anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 100/97 e com um trabalhador “independente”, as eventuais incapacidades permanentes então fixadas extrajudicialmente por uma seguradora não podem, por si só, ser atendidas para a determinação de incapacidades permanentes do mesmo sinistrado num processo posterior emergente de acidente de trabalho.

V – Verificando-se que o mesmo sinistrado sofreu três acidentes anteriormente à vigência da Lei nº 100/97, como trabalhador independente, os quais não são reconduzíveis ao conceito de acidente de trabalho, e que na época foram reparados no âmbito de um seguro facultativo de acidentes pessoais, impõe-se a não consideração das eventuais incapacidades anteriores (não reconhecidas judicialmente) na determinação do grau de incapacidade do sinistrado decorrente do acidente ocorrido após a entrada em vigor da Lei 100/97.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em processo emergente de acidente de trabalho Proc. nº 388/05.7TTAGD do Tribunal de Trabalho de Águeda, procedeu-se à tentativa de conciliação na fase conciliatória do processo, no âmbito da qual autor e seguradora ré, não se tendo conciliado, acordaram na verificação dos seguintes factos:
a) que o autor foi vítima de um acidente de trabalho no dia 2/3/2005, quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade patronal A..., mediante a a retribuição anual de € 11.326,12;
b) que a entidade patronal tinha transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para a ré seguradora;
c) que o autor se encontra indemnizado pelas incapacidades temporárias sofridas até à data da alta médica;
d) que o autor despendeu, em deslocações obrigatórias ao tribunal, a quantia de € 10,00, incluindo a deslocação para o exame por junta médica.
A seguradora não aceitou o grau de desvalorização atribuído no exame médico realizado na mesma fase conciliatória, por entender que o sinistrado autor se encontrava curado sem desvalorização, razão única pela qual as partes não se conciliaram.
A mesma seguradora requereu, então, exame por junta médica e, realizado este, concluíram os Srs. peritos, por unanimidade, que o sinistrado apresentava, como sequelas do acidente, amputação traumática da falange distal do polegar esquerdo, em consequência do que lhe atribuíram uma IPP de 14,25%. Deixaram, no entanto, consignado no auto que o sinistrado já apresentava uma incapacidade por amputação de dedos da mão direita, resultante de acidente ressarcido pela B..., segundo informação do próprio sinistrado.
Com base nesta informação, o Sr. Juiz determinou que esta seguradora “B...”, com vista à determinação da capacidade restante, informasse sobre a incapacidade que ressarciu o mesmo sinistrado.
Em cumprimento do determinado, aquela seguradora veio informar que no âmbito de contrato de seguro por acidentes “por conta própria”, que manteve com o sinistrado, ressarciu-o pelos danos ocorridos com três acidentes, o primeiro ocorrido em 01.09.84, tendo o sinistrado tido alta com IPP de 2,2%, o segundo ocorrido em 20.02.91, tendo o sinistrado tido alta com IPP de 8% e o terceiro ocorrido em 27.02.99, tendo o sinistrado tido alta com IPP de 12,84%
Perante esta detalhada informação, o Sr. Juiz averiguou da existência de processos judiciais nos quais estivessem reconhecidas tais incapacidades, tendo-se concluído que não houve lugar àqueles processos, uma vez que à data dos acidentes vigorava a Lei 2127, de 03-08-65, que não abrangia acidentes ocorridos no âmbito de trabalho por conta própria, pelo que a fixação daquelas incapacidades resultou apenas de acordo extra-judicial entre a seguradora “B...” e o sinistrado.
Na posse destes dados, proferiu então sentença, na qual ponderou o seguinte, quanto à questão da eventual determinação da capacidade restante:
“Com efeito, há indícios de que o sinistrado terá já sofrido anteriormente três acidentes “de trabalho”, um em 1/9/1984, outro em 20/2/1991 e outro em 27/2/1999, em que lhe terão sido atribuídas, respectivamente, as incapacidades permanentes de 2,2%, 8% e 12,84% (cfr. fls. 63, 64 e 65).
Como questão prévia, dir-se-á que, a terem ocorrido tais acidentes, o sinistrado não era então trabalhador por conta de outrem e os eventuais sinistros então verificados não eram qualificáveis, em termos técnico-jurídicos, como acidentes de trabalho, com a acepção e o âmbito previstos na então aplicável Lei nº 2127, de 3/8/1965, e no Decreto nº 360/71, de 21/8.
Tudo indica que nenhuma decisão judicial terá sido proferida sobre o eventual ressarcimento dos eventuais anteriores sinistros.
A ter existido indemnização, ela deverá ter sido determinada por acordo ou mediante critérios que não permitem a equiparação actualmente feita nos termos dos artigos 3º e 9º da Lei nº 100/97 de 13/9 e do Decreto-Lei nº 159/99, de 11/5.
Com efeito, o artigo 9º da Lei 100/97, de 13/9, no seu nº 2 – que corresponde quase ipsis verbis ao nº 2 da base VIII da Lei 2127 – refere que quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 17º.
É verdade que o nº 5 alínea d) das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades refere que o coeficiente global de incapacidade será obtido pela soma dos coeficientes parciais, segundo o princípio da capacidade restante, calculando-se o primeiro coeficiente por referência à capacidade do indivíduo anterior ao acidente ou doença profissional e os demais à capacidade restante, fazendo-se a dedução sucessiva do coeficiente ou coeficientes já tomados em conta no mesmo cálculo.
E a alínea e) do mesmo nº 5 da T.N.I. dispõe que, no caso de lesão ou doença anterior, se aplica o já citado nº 2 da base VIII da Lei nº 2127.
A este propósito, a jurisprudência vinha entendendo, no domínio desta Lei 2127, que a desvalorização anterior a que se referiam os nºs 2 e 3 da base VIII era a que tivesse sido reconhecida judicialmente, ficando, consequentemente, de fora a apenas reconhecida extrajudicialmente.
Ora, no caso vertente, a existirem o reconhecimento das referidas incapacidades pregressas e as respectivas indemnizações, aquelas não terão sido reconhecidas judicialmente e estas não terão revestido a forma de pensão, nem os respectivos eventuais capitais terão sido calculados nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 17º da Lei 100/97.
Correcta se mostra, deste modo, a não consideração das eventuais incapacidades anteriores na determinação do grau de incapacidade do sinistrado”.
Baseado nesta ponderação, apoiando-se no parecer dos Srs. Peritos expresso no exame por Junta Médica, considerou correcto e ajustado o coeficiente arbitrado face aos elementos então constantes do processo, nomeadamente a natureza e gravidade das sequelas, a idade e a profissão do sinistrado, fixando a IPP considerada, de 0,1425, em consequência do acidente dos autos, desde 12-07-2005, dia seguinte ao da alta pelo que condenou a ré seguradora a pagar ao autor o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 1.129,78, com efeitos desde aquela data.

É desta decisão que, inconformada, a ré seguradora vem apelar.
Alegando, conclui:
“1- Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls.... e seguintes, que condenou a Recorrente no pagamento da pensão anual e vitalícia ao sinistrado, calculada com base, para além do mais, na I.P.P. de 14,25%, porquanto o Meritíssimo Juiz "a quo” considerou não ser de atender, na fixação da I.P.P. do sinistrado, as anteriores I.P.P.s de que este já padecia, em consequência de outros acidentes de trabalho, conforme prescreve o art. 9°, nº 3 da LAT.
2- Encontra-se demonstrado nos autos que o sinistrado sofreu três anteriores acidente, dos quais resultaram I.P.P.s, a saber: 01.09.1984, I.P.P. 2,2%; 20.02.1991, I.P.P. 8%; e, 27.02.1999, I.P.P. 12,84%.
3- Uma vez que a pensão tem por finalidade compensar o sinistrado pela perda da capacidade de trabalho ou aquisitiva de que se encontra afectado, é indúbio que deve ser sempre adequada à exacta e justa medida desta (perda da capacidade aquisitiva), sob pena de haver um injusto locupletamento do sinistrado, quando tal não se verifica, o que a lei não autoriza nem consente, seja na sua letra ou espírito.
4- Assim, nos termos do disposto no art. 9°, nº 3 da LAT, quando o sinistrado se encontra afectado de uma - ou várias - I.P.P. anterior ao acidente, dever-se-á ter em consideração que a reparação será apenas a correspondente à diferença entre a capacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.
5- No caso dos autos, o sinistrado já se encontrava afectado pelas incapacidades mencionadas na conclusão 2a, pelo que, na determinação da l.P.P. resultante do sinistro em apreço nestes autos, deveria ter-se em consideração que a capacidade de trabalho do sinistrado não era de 100%, mas ao invés, de 76,96% (100% - (2,2% - 8% - 12,84%)), em razão do que o cálculo deveria corresponder à seguinte expressão numérica: 76,96 x 0.1425 = I.P.P. 10,96%.
6- Ao caso vertente não tem aplicação o disposto no art. 9º, nº 2 da LAT, uma vez que as lesões decorrentes do sinistro dos autos não têm qualquer conexão com os anteriores acidentes sofridos pelo sinistrado, sendo que, por outro lado, o argumento invocado pelo Meritissimo Juiz “a quo” em sentido contrário ao constante da conclusão 5a, viola, desde logo, o princípio fundamental na interpretação das leis “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.
7- Com efeito, a citada disposição legal - art.9°, nº 3 da LAT -, refere apenas a existência de uma incapacidade permanente anterior ao acidente para que seja aplicado o critério que consagra, e, por outro lado, nem desta, nem de qualquer outra disposição da LAT e do Decreto Regulamentar se pode retirar a conclusão de que tal princípio só se aplica aos acidentes verificados após a sua entrada em vigor.
8- Aliás, o entendimento sufragado na sentença seria igualmente conducente à violação do principio da igualdade, consagrado no art. 13° da Constituição da República Portuguesa, porquanto iria introduzir uma inadmissível distinção e um tratamento desigual entre sinistrados com I.P.P.s anteriores a 01.01.2000 e aqueles com I.P.P.s posteriores aquela data, e, bem assim, entre trabalhadores independentes e por conta de outrem, pelo que, também nesta perspectiva, não merece acolhimento.
9- A inatendibilidade de anteriores incapacidades permanentes do sinistrado traduz violação e ofensa dos princípios do direito ao processo justo e do direito à prova, pelo que jamais poderá ser sufragado por este Venerando Tribunal.
10- Face ao exposto, o Meritissimo Juiz “a quo”, em obediência ao principio ínsito no art.663° do Cód. de Proc. Civil (atendibilidade da situação de facto existente no momento do encerramento da discussão) e no art.138° do Cód. de Proc. do Trabalho, deveria ter tomado em consideração as anteriores I.P.P.s do sinistrado na determinação da I.P.P. resultante do sinistro dos autos.
11- Ao assim não considerar, a douta decisão em crise fez uma desadequada interpretação e aplicação das disposições legais supra citadas, designadamente do art.9°, n.o3 da LAT, art. 13º da C.R.P., e art. 663°, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, e dos princípios antes enunciados, que violou, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que, interpretando e aplicando devidamente o direito impendente, considere atendível as I.P.P.s anteriormente atribuídas ao sinistrado na determinação da I.P.P. resultante do acidente dos autos - 10,96% - com todas as legais consequências.”

Nas contra-alegações o autor pugna pela manutenção do julgado.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-geral Adjunto no sentido de que assiste razão à recorrente, pelo que o recurso merece provimento.
O autor respondeu a este parecer, mantendo, no essencial, o teor da sua posição no recurso.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
De facto
É de considerar assente a seguinte matéria de facto relevante para a análise do recurso:
1- O autor foi vítima de um acidente de trabalho no dia 2/3/2005, quando trabalhava, como encarregado, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade patronal A..., mediante a retribuição anual de € 11.326,12;
2- Aquela entidade patronal tinha transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para a ré seguradora;
3- No âmbito de contrato de seguro por acidentes “por conta própria”, que o sinistrado manteve com B..., esta verificou no âmbito da cobertura daquele contrato, sem que tivessem existido processos judiciais com tal objecto, três acidentes sofridos pelo mesmo sinistrado, o primeiro ocorrido em 01.09.84, tendo o sinistrado tido alta pelos serviços clínicos daquela seguradora com IPP de 2,2%, o segundo ocorrido em 20.02.91, tendo o sinistrado tido alta com IPP de 8% e o terceiro ocorrido em 27.02.99, tendo o sinistrado tido alta com IPP de 12,84%.
4- No âmbito do exame por Junta Médica realizado nos autos, os Srs. peritos, por unanimidade, concluíram que o sinistrado apresentava como sequelas do acidente amputação traumática da falange distal do polegar esquerdo em consequência do que lhe atribuíram uma IPP de 14,25%, deixando, no entanto, consignado no auto que o sinistrado já apresentava uma incapacidade por amputação de dedos da mão direita, resultante de acidente ressarcido pela B..., segundo informação do próprio sinistrado.
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De direito
É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil.
Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver se pode equacionar da seguinte forma: se na determinação da incapacidade do sinistrado, consequência de acidente de trabalho verificado nos autos, se devem ou não levar em conta incapacidades permanentes decorrentes de acidentes sofridos pelo mesmo sinistrado como trabalhador independente, estes anteriores à vigência do sistema reparatório introduzido pela Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, e sem que essas incapacidades tenham sido objecto de reconhecimento judicial.
De acordo com os elementos nos autos, apurados posteriormente à realização do exame por Junta Médica, mas antes de proferida a sentença dos autos, verifica-se que no estrito âmbito de contrato de seguro por acidentes “por conta própria”, que o sinistrado manteve com B..., esta verificou no âmbito da cobertura daquele contrato, sem que tivessem existido processos judiciais com tal objecto, três acidentes sofridos pelo mesmo sinistrado, ocorridos em 01.09.84, 20.02.91 e 27.02.99, tendo o sinistrado tido alta pelos serviços clínicos daquela seguradora, respectivamente, com IPP´s de 2,2%, 8% e 12,84%.
Temos, assim, por seguro que tais acidentes não se podiam então qualificar como acidentes de trabalho, na configuração legal, então em vigor, definida pela Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, considerando as disposições conjugadas das suas Bases I, II e V, e uma vez que o âmbito desse diploma legal visava exclusivamente a protecção dos trabalhadores por conta de outrem, num quadro primacial de responsabilidade objectiva dos empregadores pelos danos físicos sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço e por causa dele.
Efectivamente, aqueles três “acidentes” não terão ocorrido para o sinistrado enquanto trabalhador por conta de outrem, mas sim como trabalhador independente ou “por conta própria”.
Foram apenas verificados no mero âmbito de seguro facultativo efectuado pelo sinistrado com uma seguradora.
Posteriormente à ocorrência de tais acidentes, entraram em vigor a Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, que estipulou a obrigação dos trabalhadores independentes efectuarem seguro que garanta as prestações previstas na legislação própria dos acidentes de trabalho, bem como o DL 159/99, de 11 de Maio, que veio regulamentar esse seguro obrigatório. Pretendeu-se, de forma clara, equiparar as garantias da legislação infortunística, própria para os trabalhadores por conta de outrem, aos trabalhadores independentes sujeitos a idênticos riscos laborais e através dum seguro de acidentes de trabalho (v. preâmbulo do DL nº 159/99).
Hoje, portanto, todos os “acidentes de trabalho” que ocorram com trabalhadores independentes e de que tenham resultado incapacidade permanente são obrigatoriamente processados judicialmente, mediante a comunicação pela seguradora e que é imposta pelo artigo 8º DL 159/99, de 11 de Maio. E processados de acordo com as mesmas regras - incluindo as substantivas quanto à fixação da incapacidade - aplicáveis aos “trabalhadores por conta de outrem”.

Mas, ao tempo dos três referidos acidentes não era assim.
Para eles, para cada um deles, não correu processo de acidente de trabalho ou qualquer outro que observasse as tais regras técnicas para a fixação da incapacidade.
Assim, sendo a noção de incapacidade permanente, própria da legislação infortunística laboral, uma noção eminentemente técnica, não havendo na sua fixação um controlo judicial e estando nós num domínio respeitante a direitos indisponíveis, parece intuitivo que, desde logo, as incapacidades permanentes fixadas extrajudicialmente por uma seguradora, não podem, por si só, ser atendidas para a determinação de incapacidade neste ou noutro processo emergente de acidente de trabalho.
Portanto, logo por aqui, parece ser de reconhecer razão à sentença recorrida quando se pronunciou pela desconsideração das incapacidades não reconhecidas judicialmente, uma vez que as mesmas não apresentam força de facto estabelecido, mas antes conclusões técnicas desprovidas de validade judicial.

Mas, ainda por outro lado, importa considerar o seguinte:
É certo que o artigo 9º da Lei 100/97, de 13/9, no seu nº 3, refere que no caso de o sinistrado estar afectado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação será apenas a correspondente à diferença entre a capacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente (é, sem dúvida, o nº 3 do artigo 9º que está em causa, como sustenta a recorrente, e não o seu nº 2, como talvez por lapso se referiu na sentença recorrida).
Mas já face ao nº 3 da Base VIII da Lei 2127, que tinha redacção idêntica, entendia Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição actualizada, pag. 76, que este apenas se aplicava quando a tal incapacidade anterior fosse derivada de acidente de trabalho, reconhecido judicialmente como tal (como não podia deixar de ser). O que parece efectivamente resultar do confronto com o nº 2 da mesma Base, com redacção idêntica ao nº 2 do artigo 9º da Lei 100/97. É que, nos casos abrangidos, a lei está a reportar-se a incapacidades permanentes resultantes de acidente de trabalho e não a meras deformidades físicas anteriores (ainda que parcialmente incapacitantes), pois aqueles nºs 2 fazem referência às situações em que o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 17º (no caso do artigo 9º da Lei 100/97), fazendo assim óbvia referência ao quadro de reparação legal dos acidentes de trabalho.
Este mesmo entendimento foi acolhido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Novembro de 1990 (publicado no BMJ nº 401, pag. 468).
Ora, no caso em apreço os três acidentes que o sinistrado sofreu anteriormente não são reconduzíveis, como se disse, ao conceito de acidente de trabalho (ignorando-se mesmo como foram reparados e com base em que critérios).
Na época em que ocorreram terão sido reparados no âmbito de um seguro facultativo de acidentes pessoais (ao que vem indicado, com a genérica designação de “por conta própria”, estando suposto por facilidade que abrangesse o “trabalho independente”), tal como o seriam se tal seguro facultativo de acidentes pessoais abrangesse os danos próprios por acidente de viação, acidente doméstico ou outros…
Também por essa razão, assim, se deve considerar excluída a aplicação do nº 3 da Lei 100/97, de 13/9, na medida em que só é aplicável a incapacidades permanentes anteriores que sejam derivadas de acidentes de trabalho, e, por isso mesmo, excluída também a aplicação do nº 5 alínea d) das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades, pois o chamado princípio da capacidade restante só é configurável no caso de lesões múltiplas causadas por um ou mais acidentes de trabalho.
E não se diga, tal como defende a recorrente, que tal solução conduz a injusto locupletamento do sinistrado à custa da entidade reparadora, uma vez que se, por um lado, se ignora qual a concreta reparação de que aquele beneficiou (no âmbito do tal seguro facultativo), para que tal se possa afirmar, por outro lado e também por isso, esse não é sequer argumento demonstrável em face dos específicos critérios normativos, não naturalísticos, a que obedecia a responsabilidade objectiva em sede de reparação de acidentes de trabalho no domínio da Lei nº 2127. Basta ponderar que, antes, o sinistrado seria um trabalhador independente com uma capacidade e dinâmica de ganho que, eventualmente, lhe permitiam ter maior sucesso na aquisição de proventos e, hoje, é um trabalhador dependente, com uma valia específica para o trabalho organizado por outrem, à qual corresponde um salário determinado, eventualmente mais reduzido do que os proventos que anteriormente auferia, valia essa que fica diminuída com a incapacidade adquirida nesse trabalho dependente e que importa, por isso, indemnizar em especial.

A recorrente defende, ainda, que nada permite afastar a aplicação dos efeitos do nº 3 do artigo 9º da Lei nº 100/97 aos acidentes ocorridos antes da sua entrada em vigor e que hoje poderiam ser incluídos no seu âmbito. E defende, também, que tal entendimento conduz à violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, pois iria introduzir uma inadmissível distinção no tratamento entre trabalhadores independentes e por conta de outrem, bem como entre sinistrados com IPP´s anteriores e posteriores à vigência da Lei.
Não tem razão, contudo.
O artigo 41º nº 1 a) da Lei nº 100/97 refere expressamente que a lei é aplicável apenas aos acidentes que ocorrerem após a sua entrada em vigor.
Ora, entendendo-se que os acidentes ocorridos com trabalhadores independentes poderão ser reconduzidos a acidentes de trabalho para efeitos de aplicação da Lei nº 100/97, então parece claro que só serão consideráveis para esse efeito os que tiverem ocorrido depois da sua entrada em vigor e não outros.
Por outro lado, não se vê que no caso ocorra violação da chamada proibição de arbítrio, ínsito no princípio da igualdade, como limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos (v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pag. 127) - aquela que poderia estar em causa na visão expressa pela recorrente -, pois a distinção apontada tem adequado suporte material, já que com a nova lei se estende uma protecção que antes não existia de todo, com vista à aproximação de sujeitos de exposição de riscos de actividade laboral, sendo, por isso, justificável que ocorra (a distinção) para efeitos de normal aplicação da lei no tempo.

Improcedem, assim, as conclusões do recurso.
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III- DECISÃO
Termos em que se delibera confirmar inteiramente a decisão impugnada, negando-se provimento ao recurso.
Custas a cargo da apelante.