Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
173/23.4T8CLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DO BEM
LOCAÇÃO FINANCEIRA
ACÇÃO CAUTELAR
EFECTIVAÇÃO DA PROVIDÊNCIA
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 366.º E SEG.S E 377.º E SEG.S, DO CPC
ARTIGOS 1.º; 3.º; 5.º; 10.º, 1; 17.º E 21.º, DO DL 149/95, DE 24/6
Sumário: 1. Decorre do preâmbulo do DL n.º 30/2008, de 25.02, que o legislador, ao rever o regime jurídico da locação financeira, pretendeu evitar ações judiciais desnecessárias, permitindo ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar (requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.6); evita-se, assim, a existência de duas ações judiciais (uma providência cautelar e uma ação principal) que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.

2. A entrega judicial do bem locado tem lugar numa simples ação de tipo cautelar - a execução da entrega insere-se na própria providência, efetivando, tão depressa quanto possível, o desapossamento do bem, de modo a conferir ao locador a possibilidade de proceder à sua futura cedência ou alienação (art.º 7º do DL n.º 149/95, de 24.6).

Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Vítor Amaral
                  Alberto Ruço

 
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                (…)

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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                    

           

           I. Em 20.10.2023, A..., S. A., veio requerer contra AA, providência cautelar de entrega judicial de bem locado, nos termos do art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.6, pedindo que esta seja condenada à entrega imediata dos quatro bens móveis dados em locação financeira, melhor identificados na petição inicial (p. i.).

           Alegou, em síntese: no exercício da sua atividade celebrou um contrato de locação financeira mobiliária com a requerida que teve por objeto os referidos bens; a requerida deixou de pagar os valores da renda mensal a que se encontrava adstrita; procedeu à resolução do contrato[1], sem que tenham sido restituídos os bens locados.

           A requerente pediu ainda a antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos e para os efeitos do n.º 7 do cit. art.º 21º.

            A Requerida, citada[2], não deduziu oposição.

           Por sentença de 15.7.2024[3], o Tribunal a quo decidiu: «julga-se o presente procedimento cautelar procedente e ao abrigo do disposto no artigo 21º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, determina-se a entrega imediata à requerente, na pessoa do fiel depositário que se nomeia, a sociedade comercial B..., Lda., (...) dos bens objeto do contrato de locação financeira celebrado entre esta e a requerida, (i) um Trator Agrícola, da marca MASSEY FERGUSON, modelo MF1500 MF 1532, com o número de série ...30 e com a matrícula ..-..-TL, (ii) uma JG Fresa Agrícola 1.40 MT 28 Facas, com o número de série ...18, (iii) uma JG Caixa Varga Basculante 1,25MT, com o número de série ...06 e (iv) um Semi-Reboque, da marca HERCULANO, modelo S1ET 2500-MT, com o número de série ...37 e com a matrícula AV-....5. / Mais se determina a notificação das partes para o disposto no artigo 21º, n.º 7 do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciarem relativamente à requerida antecipação da decisão final sobre a questão em análise.»

           Em 24.7.2024, o Senhor Funcionário Judicial, na presença do depositário, tentou fazer a diligência respeitante à entrega dos bens em causa, tendo junto ao processo auto de diligência onde fez constar: (...) Porém não pudemos levar a efeito a ordenada diligência em virtude de no local termos constatado que a requerida já não reside nesta morada acerca (sic) de 1 ano, e não se conseguindo localizar os bens a entregar. (...).”[4]

           Por sentença de 23.8.2024, antecipando o juízo sobre a causa principal, nos termos do art.º 21º, n.º 7, do DL n.º 149/95, de 24.6, o Tribunal a quo julgou «a presente ação integralmente procedente, por provada», mantendo «a ordem à Requerida de entrega imediata à Requerente dos bens móveis dados em locação financeira (...).»

           Em 29.8.2024, a requerente veio expor e requerer (requerimento ref.ª 49714483): «(...) vem (...) requerer que seja ordenada a diligência de entrega de bens na morada da citação, isto é (...).»

           Por despacho de 02.9.2024, decidiu-se: «Requerimento da Requerente (ref.ª 49714483): / Sem prejuízo de se mostrar esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença de 23.8.2024, a qual, antecipando o juízo sobre a causa principal, nos termos do disposto no art.º 21º, n.º 7, do DL n.º 149/95, de 24.6, na redação conferida pelo DL n.º 30/2008, de 25.02, manteve a obrigação de a Requerida proceder à entrega imediata à Requerente dos bens móveis dados em locação financeira, aguardem os autos o respetivo trânsito em julgado da decisão e, após notifique à Requerida a pretensão da Requerente, expressa no requerimento que antecede, quanto ao lugar do cumprimento da mencionada obrigação de entrega. / Notifique.»

            De seguida, a 04.9.2024, a requerente veio dizer e pedir:

           - Solicitou ao Tribunal que fosse ordenada uma nova diligência de entrega/apreensão de bens.

            - Entende o Tribunal que nada tem a ordenar quanto à diligência de entrega, determinando a notificação da Requerida para entregar os bens na morada indicada.

           - O que impede que a providência cautelar decretada seja cumprida em toda a sua extensão e não se coaduna com a urgência na tutela do direito da Requerente.

            - Não se tendo concretizado o objetivo da providência cautelar, solicita ao Tribunal que ordene ao Senhor Agente de Execução nomeado a realização de nova diligência de apreensão na morada indicada no requerimento de 29.8.2024.

           A 17.9.2024, foi proferido o seguinte despacho: «Requerimento com a ref. eletrónica n.º 2479216 /        Mantém-se integralmente o decidido no despacho com a ref. eletrónica n.º 3156949 em função do teor da decisão final com a ref. eletrónica n.º 31553829, nada mais havendo a decretar, por ora, quanto à entrega do bem móvel em causa. / Notifique.»

           Dizendo-se inconformada, a requerente apelou (em 19.9.2024) formulando as seguintes conclusões:

           1ª - Em 20.10.2023, apresentou a Recorrente Procedimento Cautelar de Entrega Judicial, peticionando a entrega imediata dos bens de que é proprietária com base na resolução de um contrato de locação financeira mobiliária identificado pelo n.º ...83, celebrado em 22.9.2020, o qual veio a ser decretado.

           2ª - Na sentença datada de 23.8.2024, o Tribunal a quo determinou “Em face do exposto, antecipando o juízo sobre a causa principal, nos termos do disposto no artigo 21º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de fevereiro, julga-se a presente ação integralmente procedente, por provada, e, em consequência, mantém-se a ordem à Requerida de entrega imediata à Requerente dos bens móveis dados em locação financeira e que acima se mostra devidamente identificados.”.

            3ª - Em 24.7.2024, o Senhor Funcionário Judicial tentou fazer a diligência respeitante à entrega do bem locado, tendo junto ao processo o auto de diligência onde fez constar: “Porém não pudemos levar a efeito a ordenada diligência em virtude de no local termos constatado que a requerida já não reside nesta morada acerca de 1 ano, e não se conseguindo localizar os bens a entregar. Por ser verdade se lavra o presente auto que vai ser devidamente assinado.”

           4ª - Não sendo possível concretizar a diligência, a Requerente solicitou ao Tribunal que fosse ordenada a realização de nova diligência.

            5ª - Tal pedido foi indeferido pelo Tribunal a quo.

            6ª - Em 04.9.2024 a Requerente voltou a requerer ao Tribunal a realização de nova diligência de apreensão dos bens locados no local onde tinha sido possível concretizar a citação da Requerida.

            7ª - Apesar destes factos, e de outros arrolados no requerimento de 04.9.2024, o Tribunal a quo decidiu: “Mantém-se integralmente o decidido no despacho com a ref. eletrónica n.º 3156949 em função do teor da decisão final com a ref. eletrónica n.º 31553829, nada mais havendo a decretar, por ora, quanto à entrega do bem móvel em causa.”.

           8ª - Saliente-se que o bem objeto do procedimento cautelar mantém-se, até à presente data, por apreender, tendo culminado frustrada a diligência de apreensão realizada.

            9ª - Foi com surpresa que a Recorrente recebeu a notificação do despacho em crise indeferindo o requerido, em 03.9.2024, mormente a realização de diligências necessárias com vista ao cumprimento do presente procedimento cautelar, as quais têm por finalidade obter a apreensão do bem em causa, e que no entendimento do Tribunal a quo não estão no âmbito do seu poder jurisdicional, porque o mesmo terminou com a decisão final.

           10ª - Ora, ab initio importa ter presente que não se verifica in casu qualquer dos casos de caducidade da providência previstos no art.º 373º CPC.

           11ª - Alias, todas as situações de caducidade previstas no preceito legal acima referido reportam-se, para o que aqui releva, ao não reconhecimento do direito acautelado pela providência.

           12ª - Ora, no caso sub judice, tal não se verifica, porquanto o direito da Recorrente foi definitivo reconhecido, não se tendo o mesmo, de todo, extinguido.

            13ª - Não tendo o bem objeto do presente procedimento, até à presente data, sido apreendido, será forçoso concluir que o mesmo não se concretizou na sua plenitude, pelo que o direito da Recorrente, reconhecido definitivamente no âmbito dos presentes autos, não se encontra, ainda, devidamente assegurado.

            14ª - A execução imediata da providência constitui o único meio adequado para afastar o perigo e “assegurar a efetividade do direito ameaçado”, assegurando, assim, o efeito/conteúdo útil do direito, objetivo máximo da tutela cautelar.

           15ª - O Tribunal a quo, ao indeferir o requerimento apresentado, impediu que a apreensão ordenada possa ser executada no âmbito dos presentes autos.

           16ª - Assim, e uma vez que não se verifica in casu qualquer dos casos de caducidade da providência previstos no art.º 373º do CPC, nem sendo a prolação da sentença de inversão do contencioso fundamento para proceder à extinção dos presentes autos, deverá a providência requerida prosseguir os seus termos atentos os fins especiais de celeridade e agilização processual, sendo que os presentes autos de procedimento cautelar só deverão findar com a efetiva apreensão e entrega do bem ao proprietário/Recorrente.

           17ª - Ao indeferir as diligências de apreensão requeridas pelo suposto esgotamento da tutela cautelar, em virtude do reconhecimento definitivo do direito, sem que a providência cautelar haja sido cumprida em toda a sua extensão - porque o bem dela objeto não se mostra apreendido -, está o Tribunal a forçar a Recorrente a ter de executar a referida sentença que julgou definitivamente a presente causa.

           18ª - Tal configuraria uma situação demasiado penosa para a Recorrente que, tendo visto o seu direito já reconhecido, ver-se-ia na obrigação de instaurar uma outra

ação - ação executiva para entrega de coisa certa - por forma a ver cumprido o já anteriormente ordenado.

           19ª - Salvo o devido respeito, a solução supra enunciada não só esvazia, em absoluto, o objeto da providência cautelar decretada, como não se coaduna com a urgência na tutela do direito da Recorrente.

           20ª - O facto de a decisão provisória tomada no âmbito dos presentes autos ter sido reconhecida definitivamente no âmbito dos presentes autos nunca poderá conduzir à conclusão de que a providência cautelar se extinguirá.

            21ª - Deste modo, afigura-se imperioso concluir que a apreensão do bem objeto dos presentes autos, na medida em que consubstancia o termo da execução do procedimento cautelar decretado, e ainda não alcançado, justifica, obviamente, a continuação dos presentes autos e realização das diligências necessárias até efetiva apreensão.

           22ª - O despacho em apreço viola o disposto no art.º 373º do CPC, devendo ser revogado e os presentes autos prosseguirem com a realização das diligências necessárias até à efetiva apreensão dos bens dele objeto, sem necessidade de intentar outra ação.

            Não houve resposta.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[5], importa apreciar e decidir, sobretudo, se deve ser ultimado/concretizado o procedimento de entrega dos bens ou se nada mais se impõe efetuar.


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            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do relatório que antecede e a seguinte factualidade que a 1ª instância considerou assente[6]:

           1) A Requerente é uma sucursal de uma instituição de crédito que tem por objeto social todas as operações bancárias, financeiras e de crédito em especial e em particular a locação ou a locação financeira de qualquer material de equipamento novo ou usado.

           2) No exercício da sua atividade, a requerente e a requerida celebraram um acordo intitulado “Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...35”, no dia 22.9.2020, tendo por objeto (i) um Trator Agrícola, da marca MASSEY FERGUSON, modelo MF1500 MF 1532, com o n.º de série ...30 e com a matrícula ..-..-TL, (ii) uma JG Fresa Agrícola 1.40 MT 28 Facas, com o n.º de série ...18, (iii) uma JG Caixa Varga Basculante 1,25MT, com o n.º de série ...06 e (iv) um Semi-Reboque, da marca HERCULANO, modelo S1ET 2500-MT, com o n.º de série ...37 e com a matrícula AV-....5.

           3) A requerente adquiriu, por indicação da requerida, os bens indicados no ponto anterior à sociedade C..., S. A., pelo valor de € 21 150.

           4) Nos termos do acordo indicado em 2), a requerente obrigou-se a ceder à requerida o gozo dos bens aí igualmente indicados, contra o pagamento de rendas mensais, por um período de 96 meses com início a 22.9.2020 e termo a 22.9.2028, obrigando-se a vender-lho findo tal prazo caso esta exercesse a opção de compra por um valor residual correspondente a € 374,34.

           5) O valor da primeira renda cifrava-se em € 898,22 e as demais 95 rendas no valor de € 227,11, acrescendo a estes valores o Imposto sobre o Valor Acrescentado à taxa legal em vigor, as despesas de transferência e os seguros de bens em leasing e de responsabilidade civil.

           6) Após a outorga do acordo acima referido, a requerente entregou à requerida os bens identificados em 2).

           7) Para além das rendas acordadas, a requerida deixou de pagar os valores correspondentes às despesas de transferência e aos seguros contratados, de 22.01.2023 a 23.7.2023 (rendas 29 a 35), no montante total de € 1 831,55.

           8) A requerente efetuou diversas interpelações à requerida, tendo-lhe solicitado o pagamento das rendas em atraso, as quais não foram pagas.

           9) Nos termos do art.º 28º, n.º 2 do anexo ao acordo indicado em 2) intitulado “condições gerais” do contrato celebrado entre a requerente e a requerida, “[...] considera-se que há incumprimento definitivo quando o Locatário [requerida] estiver em mora relativamente a uma qualquer das suas obrigações e não cumprir no prazo que lhe for fixado pelo Locador [requerente], exceto quando a mora respeitar ao pagamento duma qualquer renda, caso em que o incumprimento definitivo se verifica automaticamente após terem decorrido 30 (trinta) dias sobre a data do respetivo vencimento”.

           10) A 10.8.2023, a requerente remeteu à requerida missiva, enviada para a morada indicada no acordo identificado em 2), informando-a de que procedia à sua resolução, mais exigindo a entrega dos bens objeto do mesmo à sociedade B..., Lda..

            11) Nos termos do art.º 36º do anexo ao acordo indicado em 2) intitulado “condições gerais”, “As notificações ou comunicações entre o Locador [requerente] e o Locatário [requerida] serão consideradas válidas e eficazes se forem efetuadas para os respetivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados no presente Contrato”.

            12) Os bens referidos em 2) não foram entregues à requerente.

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           Preceitua o DL n.º 149/95, de 24.6 (diploma que alterou/reformou o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira)[7]:

            - Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados (art.º 1º).

            - A locação financeira de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo fica sujeita a inscrição no serviço de registo competente (art.º 3º, n.º 5).

          - Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro (art.º 7º).

            - São, nomeadamente, obrigações do locatário: a) Pagar as rendas; k) Restituir o bem locado, findo o contrato, em bom estado, salvo as deteriorações inerentes a uma utilização normal, quando não opte pela sua aquisição (art.º 10º, n.º 1).

           - O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação (art.º 17º, n.º 1).

           - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente (art.º 21º, n.º 1, sob a epígrafe “Providência cautelar de entrega judicial”). Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, exceto a do pedido de cancelamento do registo (...) (n.º 2). O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (n.º 3). O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada (n.º 4). Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no art.º 7º (n.º 6). Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso (n.º 7). São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma (n.º 8).

            3. Respiga-se do preâmbulo do DL n.º 30/2008, de 25.02, que o legislador, ao rever o regime jurídico da locação financeira, pretendeu concretizar uma das novas medidas de descongestionamento do sistema judicial (evitar ações judiciais desnecessárias):

           - Por um lado, esclareceu, nomeadamente, que o cancelamento do registo da locação financeira é independente de qualquer tipo de ação judicial intentada para a recuperação da posse do bem locado, podendo ser efetuado pelas vias administrativas normais e eletrónicas.

           - Por outro lado, permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.6. Evita-se assim a existência de duas ações judiciais - uma providência cautelar e uma ação principal - que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.

            4. Na situação em análise resulta clara a afirmação dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar especificamente prevista no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.7: cessação do contrato de locação financeira em razão do seu incumprimento pela requerida e subsequente resolução pela requerente/locadora, de harmonia com o acordado e o descrito quadro normativo; não entrega/restituição ao locador dos bens objeto da locação.

           Em cumprimento do preceituado no art.º 21º, n.º 7, do DL n.º 149/95, de 24.6, foi proferida decisão antecipando o juízo final.

           5. A requerente insurge-se contra o despacho, de 02.9.2024, que considerou “esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença de 23.8.2024” e ordenou que a requerida fosse notificada da pretensão da requerente “quanto ao lugar do cumprimento da mencionada obrigação de entrega”, posição reiterada no despacho de 17.9.2024, no qual também se concluiu nada mais haver a decretar, por ora, quanto à entrega do bem móvel em causa”.

            6. A posição da requerente/recorrente é correta.

           A consagração legal da providência cautelar de entrega judicial de bem locado tem essencialmente em vista a proteção do interesse patrimonial do locador, tentando evitar que lhe advenham prejuízos de vária ordem no quadro da atividade que exerce, porquanto a não entrega da coisa importa, do ponto de vista do locador, a impossibilidade (temporária) de a alienar ou de a onerar. Por outro lado, pode provocar, na perspetiva do locatário, um desinteresse em relação à própria coisa, que se pode repercutir não só na sua manutenção e na sua conservação, mas também noutras vertentes, como por exemplo na possível utilização indevida do bem ou até numa eventual deterioração acentuada.

           Daí, para o seu decretamento, o locador não necessita de alegar, nem de demonstrar, o justificado receio da sua lesão, o qual, segundo a doutrina e a jurisprudência dominantes, é presumido (´jure et de jure`) por lei, independentemente do tipo de bem (móvel ou imóvel) em causa. As razões que o fundamentam decorrem do uso continuado da coisa pelo locatário, o que determina pelo menos o seu desgaste/degradação, com o inerente prejuízo para o proprietário/locador.

           Assim, o requerente está dispensado da alegação e prova do periculum, ao abrigo do art.º 21 do DL 149/95, de 24.6; o elemento de facto futuro da causa de pedir é presumido juris et de jure e, portanto, inilidível pela parte contrária.[8]

            7. A entrega cautelar, imediata, do bem é que constitui, no rigor, o interesse de direito substantivo que o mecanismo adjetivo visa assegurar e salvaguardar.

            Releva, pois, a tutela do locador como inequívoca opção legal de tutela.

           A lei da locação financeira é inédita, sendo que a providência nela prevista assume particularidades que a distinguem das demais, desde logo, das providências cautelares não especificadas previstas nos art.ºs 362º e seguintes do CPC e dos procedimentos cautelares especificados previstos nos art.ºs 377º e seguintes do mesmo Código.[9]
           8. O
DL n.º 30/2008, de 25.02,  estabeleceu a regra, na hipótese da entrega judicial, de que decretada essa providência o tribunal deva, após contraditório, logo antecipar o juízo sobre a causa principal; o que só não fará se for de supor que não hajam sido trazidos ao procedimento os elementos necessários à resolução definitiva do caso (art.º 21º, n.º 7, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira).

           E aqui se vislumbra a diluição da ação principal no processo cautelar.

           Assim, a entrega judicial do bem locado tem lugar numa simples ação de tipo cautelar; e a lei supõe até que nesta, em regra, se acham reunidas as condições para viabilizar um juízo concludente e final sobre o tema.[10]

           9. No regime legal de entrega judicial de bem locado, teve o legislador o particular cuidado e preocupação em regulamentar a entrega judicial do bem, ciente das especificidades decorrentes deste procedimento cautelar - importa efetivar, tão depressa quanto possível, o desapossamento do bem, de modo a conferir ao locador a possibilidade de proceder à sua futura cedência ou à alienação ao anterior locatário ou a terceiro (art.º 7º).

            A execução da entrega insere-se na própria providência.

           10. Evidenciam os autos, por um lado, a dificuldade em concretizar a apreensão e, por outro lado, as sucessivas solicitações da requerente visando a apreensão e a entrega dos bens.

           11. No apurado circunstancialismo, o Tribunal a quo devia considerar que o objetivo da providência não se havia concretizado/cumprido - a imediata apreensão e entrega dos bens em causa; a imediata localização e a célere restituição ao legítimo proprietário de bens utilizados indevidamente e/ou sujeitos a eventual deterioração/desvalorização acentuada (cf. II. 6., supra).[11]

           12. Há que efetivar o direito da requerente, ainda não assegurado (e o Tribunal a quo não esclareceu a forma ou meio de alcançar tal desiderato), prosseguindo, assim, no âmbito do presente procedimento, as diligências com vista à efetiva apreensão e entrega dos bens locados objeto dos autos.[12]

           13. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos como se indica em II. 12., supra.

            Sem custas.


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12.11.2024


[1] O que diz ter feito nos termos dos art.ºs 27º, 28º, n.º 2 e 29º das “condições gerais do contrato” celebrado entre as partes.

[2] Por despacho de 24.10.2023 determinou-se «(...) Pelo exposto, não se dispensa o contraditório e determina-se a citação da requerida para, querendo, deduzir oposição nos termos legais. / Notifique-se e cite-se.»; citação que teve as vicissitudes aludidas nos despachos de 11.02.2024 e 06.5.2024.
[3] Depois de confirmado o cumprimento do art.º 21º, n.º 2, in fine, do DL n.º 149/95, de 24.6 - cf. despachos de 01.7.2023 e 05.7.2024 e requerimento de 10.7.2024 (e documento anexo).
[4] Cf. fls. 62.

[5] Admitido a subir “imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo”.

[6] Com o seguinte fundamento: “Atentos os documentos juntos aos autos e em função do disposto no art.º 567º n.º 1 do CPC, consideram-se confessados os seguintes factos (...).”
[7] Diz-se no preâmbulo deste diploma que “a reforma introduzida no regime jurídico do contrato de locação financeira visa, fundamentalmente, harmonizá-lo com as normas dos países comunitários, afastando a concorrência desigual com empresas desses países e a consequente extradição de atividades que é vantajoso que se mantenham no âmbito da economia nacional”.

[8] Vide F. de Gravato Morais, Manual da locação financeira, 2006, págs. 245 e seguintes e Rui Pinto, A questão de mérito na tutela Cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 593 e seguintes.

[9] Cf. acórdão da RP de 14.01.2013-processo 1074/12.7TBPNF.P1 (em que foi 2º adjunto o aqui relator), publicado no “site” da dgsi.
[10] Idem.
  Cf., ainda, acórdão da RC de 30.6.2009-processo 51/09.0TBALB-A.C1 [com o sumário: «1. Na redação dada pelo DL 30/2008 de 25/02 ao n.º 7 do art.º 21 do DL 149/95, com a decisão da providência “cautelar de entrega do bem locado” fica definitivamente resolvida a questão da restituição do bem com base na resolução, dispensando-se o locador de propor a ação principal destinada à declaração do direito de entrega do bem locado, meramente acautelado. 2. Verdadeiramente aquele procedimento deixou de ter a natureza de uma providência cautelar. Passou a constituir um “procedimento abreviado” ou “simplificado” de “condenação definitiva” do locatário a entregar a coisa locada ao respetivo locador. 3. Por conseguinte, a ação que o legislador de 2008 procurou eliminar foi apenas aquela que visa o reconhecimento do direito do locador à entrega do bem locado (...), seja quando esse direito se funda em resolução já comunicada, ou no mero decurso do prazo do contrato (...). (...).»] e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 62/2010-processo 642/09, de 04.02.2010 [além de referir a mens legislatoris expressa no exórdio do DL n.º 30/2008, de 25.02, decidiu não julgar inconstitucional a norma do art.º 21º, n.º 7, do DL n.º 149/95, de 24.6, na redação dada pelo DL n.º 30/2008, de 25.02], arestos publicados no “site” da dgsi.
  Concluiu-se no acórdão da RL de 12.9.2024-processo 9630/17.0T8LSB.L2-2, publicado no mesmo “site”: «(...) - No procedimento cautelar de entrega judicial de imóvel previsto no art.º 21º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, não pode ser decretada a inversão do contencioso, apenas tendo cabimento legal a figura da antecipação do juízo da causa principal; (...).»

[11] Cf., de entre vários, acórdãos da RL de 04.10.2011 [sumariando-se: «1 - Este tipo de providência cautelar (entrega judicial do bem locado) teve em vista enfrentar as situações de “periculum in mora” decorrentes do incumprimento dos contratos de locação financeira por parte dos locatários e que não são compatíveis com a natural morosidade da justiça. 2 - O Legislador, neste particular, foi mais longe, na redação dada pelo DL 30/2008, de 25-2, ao n.º 7, do art.º 21º, do DL 149/95, de 24-6, dando ao julgador a faculdade de decidir a causa no próprio procedimento cautelar, antecipando nesse processo a resolução definitiva do litígio. 3 - Sendo o escopo do Legislador evitar a ação principal, não se compreende que se traga à colação o prazo de caducidade a que se reporta o art.º 389º nº 1 a) do CPC (exceto quando dos autos não constem os elementos necessários à resolução definitiva do caso). 4 - Até porque um dos objetivos que em regra só se consegue com a ação principal já foi alcançado na providência cautelar em apreço: O locador poder dispor da coisa (n.º 6 do citado art.º 21º do DL 149/95).»], 26.4.2016-processo 934/14.5TVLSB-A.L1-7 [com o sumário: «(...) III - Não faz sentido obrigar a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efetivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento, sendo certo que não ocorreu qualquer das causas de extinção por caducidade da providência cautelar consignadas no artigo 373º do Código de Processo Civil.»] e 26.10.2021-processo 22010/20.1T8LSB.L1-6 [tendo-se concluído: «I. A definição do desígnio legislativo no âmbito da providencia cautelar de entrega judicial de bem locado, parece visar a dispensa da ação definitiva no que se reporta ao âmbito de convergência dos dois procedimentos – a entrega do bem. II. Tal intenção legislativa teve em consideração que a apreensão e entrega seriam prévias a tal “convolação” do procedimento cautelar em “juízo antecipado sobre a causa principal”. III. Ao decidir-se pela necessidade de interposição de uma ação executiva, com a consequente extinção do procedimento, tal vai contrariar a intenção do legislador, que sob o primado da economia processual permitiu a antecipação do juízo definitivo no mesmo processo, pelo que não pode ser considerado que com base nessa antecipação não haverá que alcançar o objetivo da providência – a apreensão e entrega.»], publicados no “site” da dgsi.

[12] Daí que se possa acolher a asserção contida no ponto 28 da fundamentação da alegação de recurso: «Afigura-se, por isso, incompreensível e ilógico que, por considerar que o seu poder jurisdicional terminou, obrigue a Recorrente a aguardar para que a Requerida (que ainda não cumpriu nenhuma decisão do Tribunal a quo nem reagiu ao presente processo) se digne a entregar voluntariamente os bens locados, com o inerente acréscimo de dispêndio de tempo.»