Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
92/23.4T8CNT-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROVIDÊNCIA DE RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL POR ENTIDADE PÚBLICA
DEFESA DA PROPRIEDADE
RELAÇÕES DE ÍNDOLE PRIVADA
COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS COMUNS
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 211.º, 1 E 212.º, 3, DA CRP
ARTIGO 14.º, 1, DO NRAU
ARTIGOS 112.º E 113.º, DO CPTA
ARTIGO 40.º, DA LOSJ
ARTIGOS 64.º; 362.º E 364.º, DO CPC
ARTIGOS 1.º, 1 E 4 E 4.º, DO ETAF
ARTIGO 1311.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – A competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a ação, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).

II - A providência cautelar não especificada de restituição provisória de um imóvel, na qual as requerentes, entidades de direito público, invocam a detenção abusiva de um imóvel, por um particular, de cuja propriedade uma daquelas se arroga titular e cuja restituição vem reclamada por via desse procedimento, tem natureza privada.

III – Isto porque a entidade pública que exerça o seu direito de defesa da posse e da propriedade de um imóvel contra pessoa singular em circunstâncias e com fundamentos similares aos de uma pessoa de natureza privada, não se prevalecendo de normas de direito público, não encontra no âmbito da sua esfera de influência enquanto tal, pelo que, atento o modo como tal providência cautelar foi configurada pelas requerentes, não se enquadra ela em nenhuma das previsões do art. 4º, nº1 do E.T.A.F. [norma delimitadora da competência dos tribunais administrativos e fiscais].

IV – Assim sendo, são os tribunais comuns, e não os administrativos, os competentes em razão da matéria para conhecer de tal providência cautelar.

Decisão Texto Integral:

Apelação em processo comum e especial (2013)

                                                           *

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 - RELATÓRIO

MOVIJOVEM – MOBILIDADE JUVENIL, COOPERATIVA DE INTERESSE PÚBLICO DE RESPONSABILIDADE LIMITADA” e “IPDJ – INSTITUTO PORTUGUÊS DO DESPORTO E DA JUVENTUDE, I.P.,” instauraram no Juízo Central Cível de Coimbra contra “A..., Lda. uma PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA concluindo no sentido de que devia a providência ser decretada, por provada, e por via disso:

«a) Ser ordenada a restituição do imóvel, livre de pessoas e bens, no prazo de cinco dias após o decretamento da providência cautelar ora requerida;

b) Serem os Requerentes dispensados, nos termos do artigo 369.º do Código de Processo Civil, do ónus de propositura da ação principal, uma vez que a matéria aqui alegada e provada permite ao ilustre Tribunal formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado e a natureza da providência a decretar é adequada a realizar a composição definitiva do litígio.»

As Requerentes fundaram tal pretensão, muito em síntese, na alegação de que tendo celebrado em 23 de setembro de 2013 com a Requerida um “Protocolo de Concessão de Exploração da Pousada de ...”, esta última incumpriu os termos contratuais estabelecidos, face ao que operaram a resolução desse protocolo, mormente através de carta registada rececionada pela Requerida, cujo A/R se mostra assinado em a 21/09/2022, mas não tendo ainda sido entregue o imóvel apesar da solicitação feita, sendo por força disso que lhes assiste o direito a reaver o mesmo, sendo certo que ao dano de privação do direito de propriedade, acresce a impossibilidade de ser disponibilizada a Pousada em causa a entidades terceiras, conforme obrigação entretanto assumida, e que o decretamento da providência cautelar não causará qualquer prejuízo relevante à Requerida.

                                                           *

Na sequência da arguição da exceção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por parte da Requerida em sede de Oposição, o Tribunal a quo, chamado a pronunciar-se, assim também o entendeu, perfilhando, o seguinte entendimento:

«(…)

A questão aqui em causa é a de saber se, de acordo com o alegado no Requerimento inicial, o que está em causa é um litígio de natureza real.

Em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, a conclusão não pode ser no sentido de se estar perante uma acção de revindicação.

Com efeito, a detenção do imóvel adveio à Requerida através de uma relação contratual estabelecida entre as Requerentes e a Requerida. Isto é, a Requerida é detentora do imóvel em cumprimento do “Protocolo de Concessão de Exploração da Pousada de ...” (fls.77 a 85).

É na sequência da resolução de tal “Protocolo” (fls.86) que – no entendimento das Requerentes – surge na sua esfera jurídica o direito de reaver o imóvel, tal como decorre da Cláusula 17.ª/3 do “Protocolo”.

A ser como pretendem as Requerentes, qualquer acção de arrendamento em que o senhorio pede ao inquilino a restituição do locado por resolução do contrato passaria a ser uma acção real e não obrigacional.

Em conclusão, a nosso ver, a causa de pedir invocada pelas Requerentes tal como decorre dos artigos 10.º a 13.º do Requerimento inicial, é um contrato e não o facto jurídico de que deriva o direito real das Requerentes sobre o imóvel (art.º 581.º/4 CPC), pois não é sequer objecto de discussão que a propriedade do imóvel pertence ao Requerente.

Quanto à natureza da relação contratual em discussão, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, é patente que se trata de uma relação jurídica de direito público. Basta atentar no teor do “Protocolo” no qual se consigna que: “...A pousada é composta pelos bens móveis e imóveis afetos àquela pelos direitos e obrigações destinados à realização do interesse público subjacente à celebração do presente protocolo...” (Cláusula 1.ª); cujo regime de exploração é de serviço público (Cláusula 8.ª); que se trata da concessão de serviço público (Cláusula 9.ª); e em que as próprias partes reconhecem que se trata de um contrato de concessão de exploração sujeito ao direito administrativo prevendo expressamente como competente para dirimir conflitos o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (Cláusula 22.ª).

Em síntese, a nosso ver, são os Tribunais Administrativos que têm competência para apreciar a pretensão formulada pelas Requerentes, sendo este Tribunal absolutamente incompetente para o efeito.».

Em conformidade, proferiu o seguinte concreto “dispositivo”:

«1) Julgar procedente a invocada excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, em consequência, declarar este Tribunal materialmente incompetente para conhecer da pretensão formulada pelas Requerentes e absolver a Requerida da presente instância.

2) Condenar as Requerentes no pagamento das custas.

Registe e notifique.»

                                                           *

Inconformadas com tal decisão vieram as Requerentes recorrer, formulando a concluir as alegações que apresentaram, as seguintes conclusões:

«a) Os presentes autos reconduzem-se à restituição da posse de um imóvel propriedade da 2.ª Requerente e cedido através de protocolo à 1.ª Requerente, que atualmente se encontra em posse da Requerida sem que para tal exista qualquer título legitimo.

b) Deste modo, o que se discute na presente lide é a ocupação abusiva de um imóvel propriedade da 2.ª Requerente, questão inteiramente subsumível à matéria dos direitos reais, não se discutindo qualquer questão de domínio público, ou do foro contratual ou obrigacional, sendo irrelevante a relação contratual que em tempos vigorou entre as partes.

c) O tribunal a quo considerou que a matéria subjacente aos presentes autos se reconduz a uma relação jurídica de direito público, uma vez que no entendimento do tribunal recorrido a matéria a discutir é enquadrável no âmbito obrigacional e não no âmbito dos direitos reiais.

d) Julgou o tribunal recorrido que “É na sequência da resolução de tal “Protocolo” (fls.86) que – no entendimento das Requerentes – surge na sua esfera jurídica o direito de reaver o imóvel, tal como decorre da Cláusula 17.ª/3 do “Protocolo”.

e) Não se pode, salvo devido respeito, concordar com tal entendimento.

f) O direito a reaver o imóvel resulta sim, salvo devido respeito, do direito de propriedade que a 2ª Requerente tem sobre o dito Imóvel.

g) Mais se diga que ao referir a existência de uma relação contratual prévia entre as partes presentes na atual contenda não se pretende que a resolução operada seja judicialmente validada ou ratificada, uma vez que a mesma já produziu todos os seus efeitos.

h) Pretendia-se sim, tal como aconselha a jurisprudência das cautelas, antecipar e afastar ab initio todos os eventuais argumentos que a requerida poderia alegar para justificar a sua posse sobre o referido imóvel.

i) Em suma, os ora Recorrentes, não fundaram o seu pedido na alegação de que fora celebrado um negócio jurídico do qual emerge a obrigação de restituição, mas antes na afirmação da titularidade de um direito de propriedade sobre o imóvel em causa.

j) Não basta o facto de o Requerente ser uma entidade de direito público para transpor a competência material de uma questão do domínio privado para a competência dos Tribunais Administrativos.

k) A competência em razão da matéria do tribunal é determinada pela forma como o Autor/Requerente configura a ação na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir.

l) Ora, atento o modo como o mesmo foi configurado pelos Requerentes, o procedimento cautelar intentado tem natureza privada, destinando-se à defesa de direitos com a mesma natureza

m) Não se discutem nos presentes autos questões do domínio público, não se enquadrando em nenhuma das previsões do art.º 4.º/1 do ETAF.

n) Assim sendo, porque a questão não se integra em qualquer um dos critérios atributivos de competência do art.º 4.º do ETAF, os tribunais comuns são competentes para conhecer da mesma.

o) Este tem sido, desde logo, o entendimento dos Tribunais Superiores Portugueses.

p) Veja-se a título de exemplo: Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 03/11/2020 no âmbito do processo n.º 056/19, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/09/2021 no âmbito do processo 3858/21.6T8VNG.P1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/03/2023 no âmbito do processo 18673/22.1T8PRT.P1.

Sem prescindir,

q) Existindo dúvidas sobre a eficácia da resolução operada pelas requerentes, deveria, no limite, ter-se ponderado que o julgamento da presente ação estaria eventualmente dependente de apreciação de questão prejudicial cujo conhecimento compete aos Tribunais Administrativos, devendo ser a instância suspensa até decisão da mesma.

r) Acontece que tal suspensão, como tem sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (veja-se a este propósito acórdão de 24/09/2020 no âmbito do processo n.º 1898/17.9T8SNT.L1.S2), não se revela também admissível em sede de procedimento cautelar.

s) Dito isto, mesmo que se entenda ser necessária a resolução de questão prejudicial, os ora recorrentes têm o direito de poder recuperar o gozo pleno do bem.

t) Nestes termos, mesmo que se entendesse necessária a resolução de questão prejudicial, o que não se concede, a solução que melhor se adequa ao espírito do sistema é o decretamento da providência requerida.

Sem prescindir,

u) A competência para julgar os presentes autos apenas poderia caber aos tribunais administrativos numa única situação: caso se verificasse uma impugnação da resolução operada pelas requerentes junto do mencionado tribunal administrativo.

v) Nessa situação aconteceria o que a doutrina usualmente denomina de “competência por conexão”, existindo nos termos do n.º 2 do artigo 364.º do CPC uma apensação dos presentes autos à eventual ação de impugnação a correr nos Tribunais Administrativos

w) Acontece que essa ação, que poderia ter sido intentada no prazo de 3 meses após a notificação da resolução nunca o foi, e não pode neste momento ser proposta, uma vez que tendo ocorrido a 21 de setembro de 2022 o prazo de que a requerente dispunha para a impugnação terminou a 21 de dezembro de 2022.

x) Veja-se a este propósito acórdão de 05/03/2021 do Tribunal Central Administrativo Norte no âmbito do processo n.º 00026/19.0BEPRT.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirão se requer:

I. Que o presente recurso seja julgado totalmente procedente, sendo os presentes autos devolvidos ao Juízo Central Cível de Coimbra»

                                                                       *

A Requerida respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, concluindo as suas contra-alegações no sentido de «Termos em que Deve manter-se a decisão, que não se funda apenas na natureza pública de pelo menos um dos entes, mas sim na relação jurídica entre AA e a Ré, que se regula nos termos do direito público, não tendo a Ré deduzido qualquer oposição à real propriedade das AA mas sim, apenas à fruição do imóvel por estas, em resultado da contratação disso contratada com a Recorrida.»

                                                                       *

            O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em determinar se o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra detém competência em razão da matéria, para o presente procedimento cautelar, ou antes compete a mesma ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

                                                              *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então decidir a questão supra enunciada, sendo certo que vamos fazê-lo começando por referir que a questão sob recurso se vem colocando com alguma frequência junto dos Tribunais Superiores, se bem que face a contornos de facto nem sempre coincidentes.

Consabidamente, a competência em razão da matéria determina-se pela natureza da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, independentemente do seu mérito ou demérito.

Ora, como regra, relativamente à competência em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional [é o que consta no art. 40º da LOSJ, e é reiterado pelo art. 64º do n.C.P.Civil].

Temos então, segundo estas normas – e em consonância com o que dispõe o art. 211º, nº1, da Constituição da República Portuguesa – que a competência dos tribunais judiciais é residual.

No caso vertente e para o efeito em causa, importa aferir da possível competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, posto que a estes tribunais compete o julgamento das ações e recursos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais [cf. nº 3 do artigo 212º da já citada Constituição da República Portuguesa (CRP)].

Tendo naturalmente presente que decorre do art. 362º do n.C.P.Civil os procedimentos cautelares constituírem medidas provisórias, de natureza conservatória ou antecipatória, destinadas a assegurar a efetividade de um direito que se encontra ameaçado, tendo por propósito acautelar o efeito útil de uma ação, já instaurada ou a instaurar, de que são dependentes e que tem por fundamento o direito acautelado [cf. art. 364º  do mesmo n.C.P.Civil], aqui importando destacar a natureza claramente instrumental do procedimento cautelar e a sua “dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado” (cf. normativo vindo de citar por último).

De referir que nos termos do art. 112º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (C.P.T.A.), também os tribunais administrativos e fiscais têm competência para conhecer e julgar providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, sendo equivalente a relação de instrumentalidade e dependência entre estas e a causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito – assim dispõe o art. 113º do C.P.T.A. que «1- O processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respetivo».

Por último, não se olvide que o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal está estabelecido nas als. do art. 4º do E.T.A.F.[2], no qual, para o que ora diretamente releva, se prevê:

«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

(…)
e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos do respetivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

(…)»

Desde logo ressalta que são as “relações jurídicas de índole administrativa” que determinam a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais de acordo com as disposições conjugadas do art. 212º, nº3 da C.R.P. e dos arts. 1º, nº1 e 4º do E.T.A.F., na medida em que através desta última norma se abandonou a distinção tradicional entre “atos de gestão pública” e “atos de gestão privada”, isto é, com o atual regime, o legislador visou alargar o âmbito da competência da jurisdição administrativa, usando um conceito de relação jurídica administrativa mais abrangente - já não importa o conteúdo do contrato (de natureza público ou privado), nem a qualidade das partes (dotadas ou não de jus imperii), mas sim as regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis.[3]

Será então que na providência cautelar interposta [analisada em função do pedido e causa de pedir] estamos perante uma “relação jurídica de natureza administrativa” [conforme resulta dos arts. 212°, nº 3 da C.R.P., e 1° e 4° do E.T.A.F.], dado existirem normas de direito público que importe apreciar?

Cremos bem que não, com tal discordando claramente da decisão recorrida.

Na verdade, temos para nós como insofismável que a pretensão principal que as Requerentes enunciaram, e que funciona como caracterizadora do pleito por elas interposto, enquadra-se tipicamente nas ações de reivindicação [cf. art. 1311° do Código Civil], isto na medida em que consiste nos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel e de condenação da Requerida/ocupante a restituí-lo.

E nem se argumente – como feito na decisão recorrida! – que «a causa de pedir invocada pelas Requerentes tal como decorre dos artigos 10.º a 13.º do Requerimento inicial, é um contrato e não o facto jurídico de que deriva o direito real das Requerentes sobre o imóvel».

Na verdade, a causa de pedir da providência cautelar era, efetiva e concretamente, a afirmação da titularidade de um direito de propriedade sobre o imóvel em causa.

E se foi relatado no requerimento inicial que a detenção do imóvel por parte da Requerida teve lugar ao abrigo do referenciado “Protocolo de Concessão de Exploração da Pousada de ...”, foi mais concretamente como alegação antecipada de que a Requerida ocupa o fogo reivindicado/cuja restituição é requerida, sem dispor de um título justificativo da sua detenção.

A esta luz, merece-nos inteiro acolhimento a alegação no sentido de que «só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.»[4]

De facto, não é esse contrato [dito “Protocolo”] que está na base da providência interposta, antes esta tem o seu núcleo central – em termos do “fumus bonus iuris” do “direito” em que se fundamenta! – assente (e limitado), na alegação do direito de propriedade sobre o imóvel detido pela Requerida, obrigando, assim, a configurar nessa parte a providência, como uma autêntica e genuína “reivindicatio”.

Ademais, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, as ações de despejo destinam-se a “fazer cessar” a situação jurídica do arrendamento [cf. art. 14º, nº1 do N.R.A.U.) sempre qua a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal “cessação”, do que decorre, a contrario sensu, que, quando, nomeadamente, está em causa uma situação em que o arrendamento é inválido (vg., é nulo por falta de forma), caducou (v.g., o senhorio entende que o arrendamento não se transmitiu), ou se o uso do imóvel é intitulado (uso abusivo) ou precário (comodato), a cessação da correspondente situação não pode ter lugar através do uso de uma ação de despejo (nem a fortiori, mediante o processo especial de despejo), antes o sendo através de uma ação declarativa (de simples apreciação e de condenação), em regra uma ação de reivindicação ou de restituição de posse.[5]

O que tudo serve para dizer que, quando como no caso vertente, foi invocado já ter sido resolvido o contrato [dito “Protocolo”] extrajudicialmente, sem “impugnação” por parte da Requerida, temos que «(…) a declaração de resolução, ainda que fora dos parâmetros em que é admitida, não é inválida, pelo que, mesmo injustificada, produz efeitos; ou seja, determina a cessação do vínculo».[6]

A esta luz, mesmo a admitir-se que para a “impugnação” da resolução valem os prazos regras da prescrição[7], estando então a Requerida em tempo para a deduzir, acontece que essa impugnação fundada no não incumprimento [designadamente com apelo às normas de direito público – cf. “contrato de concessão de exploração sujeito ao direito administrativo”, nos termos da cláusula 22º do dito “Protocolo”], sempre constitui questão que só acidentalmente cumprirá apreciar no âmbito da providência.

Com efeito, no particular da resolução, s.m.j., releva a questão dela não ter sido operante, por não ter sido rececionada pela Requerida.

Acontece que esta última não é matéria que envolva apreciação de quaisquer normas de “direito público”…

Sendo certo que procedendo essa questão invocada como meio de defesa pela Requerida, aí o que sucede é a improcedência sem mais da providência cautelar, por existir então uma detenção/ocupação lícita do imóvel por parte da Requerida, ao abrigo do “Protocolo” celebrado validamente entre as partes.

Dito de outra forma: a providência cautelar não especificada é de restituição do imóvel [Pousada de ...], fundando-se na ocupação pela Requerida, sem título, de espaço de que uma das Requerentes é proprietária; assim sendo, não está em causa uma relação jurídica de direito administrativo, nem quaisquer normas de “direito público” terão que ser apreciadas na providência, sendo que só acidentalmente se colocarão problemas ligados ao direito público.

Assim sendo, a providência cautelar interposta, da forma como é configurada pelas Requerentes, tem natureza privada, destinando-se à defesa de direitos com a mesma natureza, nela não se discutindo questões do domínio público, não se enquadrando em nenhuma das previsões do artigo 4º, nº 1 do E.T.A.F. [norma delimitadora da competência dos tribunais administrativos e fiscais], não bastando o facto de as Requerentes serem entidades de direito público para transpor a competência material de uma questão do domínio privado para os tribunais administrativos.

Donde, por não merecer concordância a decisão recorrida, procede o recurso, impondo-se a revogação da decisão sob recurso.

(…)

*

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar a decisão impugnada, declarando competente em razão da matéria o tribunal recorrido, devendo o mesmo determinar o prosseguimento do procedimento cautelar instaurado pelas Requerentes/recorrentes, se a isso não obstarem outros fundamentos.

            As custas do recurso serão suportadas pelas Requerentes/recorrentes (por tirarem proveito da decisão), mas serão atendidas a final.

                                                                       *

                                                                                   Coimbra, 10 de Outubro de 2023   

Luís Filipe Cravo

Alberto Ruço

Rui Moura





[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Alberto Ruço
   2º Adjunto: Des. Rui Moura
[2] aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19.02..
[3] Cf., mais aprofundadamente sobre a questão, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 16-2-2012, proferido no proc. nº 021/11, acessível em www.dgsi.pt/jtc.
[4] Assim o sustentam as Requerentes nas suas alegações, nesse mesmo sentido se encontrando sólida e reiterada jurisprudência do Tribunal dos Conflitos [cf., inter alia, os acórdãos de 08-11-2022 (proferido no proc. nº 025/21) e de 04-02-2016 (proferido no proc. nº 046/15), ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jtc].
[5] Neste sentido vide ABÍLIO NETO, in “Despejo de Prédios Urbanos”, 1ª Ed., 2016, Ediforum, a págs. 28-29.
[6] Citámos agora PEDRO ROMANO MARTINEZ, in “Da Cessação do Contrato”, 2ª Ed., Livª Almedina, Coimbra, 2006, a págs. 221.  
[7] Neste sentido vide PEDRO ROMANO MARTINEZ in obra e local referidos na precedente nota, ora a págs. 177.